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Morte
e vida de
Homero:
três visões
do poeta grego
publicadas
no século
XVIII
André Malta
Reprodução
que se mantenha sempre o herói principal “à e da Odisseia com base nas suas supostas
vista dos leitores”, “sobre o palco” – e manda inconsistências; e, finalmente, a referência às
ainda (vale acrescentar) que ele e os demais repetições e ao uso dos epítetos – elementos
não sejam apresentados a toda hora em lá- que vão reaparecer, sob a capa do cientificis-
grimas, e sem serviçais para lhes preparar mo filológico, no século XIX, livres de certo
a refeição (Magnien, 1925, pp. 97 e 103-4)! amadorismo do abade, e permanecerão no
Finalmente, no trecho que encerra o tra- centro do debate no século XX.
balho encontramos a discussão específica Deve-se destacar que, no que diz respeito
sobre as “discordâncias diversas” (Magnien, à questão da oralidade, o abade7 não é claro.
1925, pp. 123-44); ela é importante porque se Embora se apoie, como vimos, em Flávio
apoia nas supostas contradições internas do Josefo (que postulava uma origem oral para
poema – ainda sem muita precisão – para de- a poesia homérica) e afirme que a Ilíada se
fender o caráter compósito da narrativa. Para formou a partir de cantos costurados entre si,
o abade, mais uma vez, “um único autor, ain- seu texto dá a entender que não postula uma
da que pouco hábil, não teria cometido tais época de produção poética exclusivamente
contradições, que se podem chamar de erros mnemônica, em que a escrita está ausente.
de julgamento; pois, tendo em vista a obra Veja-se este trecho:
inteira, ele teria observado a conveniência,
sem destruir uma coisa com outra” (Mag- “Uma vez que Homero não deixou absolu-
nien, 1925, p. 124). Entre as incongruências tamente por escrito as obras que levam seu
citam-se o modo como pinta certos perso- nome, deve-se concluir que ele jamais as
nagens, como Páris (covarde no Canto 3 e compôs, e, se ele jamais as compôs, deve-se
valente no Canto 11) ou Aquiles (amante do concluir que ele não existiu absolutamente.
butim no Canto 1 e indiferente aos presentes Pois como é possível que ele tenha composto
de Agamênon no Canto 19); a presença de essas poesias, sem jamais as ter posto por
repetições desnecessárias, como quando, no escrito, e se possa ter conhecimento delas,
Canto 1, Aquiles repete para a mãe a narra- contendo mais de trinta mil versos? Seria
tiva do início do poema; a mistura do tom preciso que tivessem sido repetidas durante
em geral elevado com o burlesco (presente toda a sua vida, e que as gentes não tivessem
no diálogo de Zeus com Hera no Canto 1); a feito outra coisa senão escutá-lo para poder
recorrência dos epítetos, tão destacadamente aprendê-las” (apud Magnien, 1925, pp. 40-1).
“que se tornam insuportáveis”, sendo muitos
deles aplicados indiferentemente a vários he- A conclusão que se pode tirar desse ra-
róis, com o agravante de que isso é feito “sem ciocínio um pouco frouxo é que, se Homero
qualquer conveniência, sem energia, sem au- tivesse existido, teria escrito seus poemas,
mentar a força do sentido e a graça da expres- sobretudo em se tratando de um conjunto de
são” – defeito que, segundo o abade, só veio versos tão extensos, que não poderiam ser
a aparecer porque a reunião de dezenas de preservados exclusivamente pela memória8.
poemas independentes, baseados num “bem Duas associações chamam a atenção aí: a
comum”, tornou o que era belo “vicioso”. entre criação poética (coerente) e escrita; e
Por esse breve apanhado, é possível notar a entre extensão poética e escrita. Como, nas
como a obra tocava, em fins do século XVII, Conjecturas Acadêmicas, parte-se da ideia
naqueles pontos que seriam fundamentais dupla de que a Ilíada não tem unidade artísti-
7 O abade parecia não
para o desenvolvimento dos estudos homé- ca e é um conglomerado de pequenos cantos,
conhecer bem o gre-
go, e se confunde em ricos: a importância de certas informações fica sim indicada a oralidade da produção
determinados mo - históricas sobre a oralidade e uma “recen- poética, mas ela não recebe uma atenção pró-
mentos. Ver Magnien,
1925, pp. xl, xli e 128-9. são” antiga dos poemas; o emprego de um pria e não se separa do letramento – elemento
8 Ver o que diz Luigi Fer-
racionalismo extremo (e arbitrário) na leitura que depois será fundamental.
reri (2007, pp. 152-3). crítica; a tentativa de decomposição da Ilíada Já sobre a intervenção de Pisístrato (ou
O filósofo
Giambattista Vico
de seu filho Hiparco) na organização dos mente retórico, feito sob o prisma das regras
poemas, o abade não diz nada que não tenha do bem escrever então vigentes na França do
já aparecido no texto de autores que vieram Dezessete – unidade, verossimilhança, bom
antes dele, e que se apoiaram nas mesmas gosto, etc. –, à semelhança do que já precei-
fontes, embora não especifique se ela implica tuava Júlio César Escalígero em sua Poética
uma redação9. O que mais chama a atenção (1561), ao louvar a arte de Virgílio em detri-
no livro, sem dúvida, é a proposição de que mento da de Homero. Há, certamente, por trás
Homero não existiu. Por mais equivocado do seu arrazoado, uma ideia de progresso, se-
que tenha sido o caminho pelo qual chegou gundo a qual os “modernos” eram capazes de
a ela, o fato é que antecipa a ênfase que será produzir, a partir da imitação, e de uma pers-
posteriormente dada à tradição em detri- pectiva superior, obras mais acabadas que as
mento da figura do poeta-autor. Podemos antigas, cuja autoridade não era total; mas
medir o grau de perplexidade que essa ideia essa é uma visão evolutiva estática, que não
causava em sua época pela reação dos seus consegue sair da obra para o contexto, e que
próprios camaradas “modernos”, que igual- aplica indiscriminadamente ao passado suas
9 Para um detalhamen
to dos nomes, ver o
mente rejeitaram, junto com os adversários regras (que, paradoxalmente, de lá vieram). citado livro de Luigi
“antigos”, tamanho absurdo, um verdadeiro Ferreri (2007, p. 1), que
toma a questão homé-
paradoxo: uma obra que não tem autor e é
GIAMBATTISTA VICO rica como sendo, basi-
fruto do acaso (Ferreri, 2007, pp. 145 e segs.). camente, o “problema
da redação de Pisístra-
O fato é que, em perspectiva mais ampla, Essa determinação histórica vai surgir to”, e a investiga desde
nessas Conjecturas Acadêmicas não percebe- com mais clareza no texto célebre de Vico, o século XVI até o XVIII,
de modo exaustivo,
mos ainda uma visão propriamente histórica Sobre a Descoberta do Vero Homero, que incluindo autores em
a respeito do poema; o enfoque é essencial- corresponde ao livro terceiro de sua Ciência geral ignorados.
Nova. Nele, a reflexão sobre Homero vem Em apoio ao que diz, cita a presença de De-
atrelada a dois elementos principais: 1) a módoco no Canto 8 da Odisseia e a possibili-
admissão de um estágio primitivo da huma- dade de o próprio nome “Homero” significar
nidade no seu processo de desenvolvimento “cego” (Cristofolini, 2006, p. 95).
(favorecida pela comparação com os povos Não é essa, no entanto, a formulação
indígenas das Américas, há pouco descober- mais debatida da obra. Vico guarda para o
tas); 2) a atribuição ao mito (que é o modo de último capítulo, intitulado justamente “A
pensar dessa época, essencialmente poético) Descoberta do Vero Homero”, a reflexão so-
de um sentido histórico e sociocultural, e bre o papel que se deve reservar ao Homero
não mais normativo e alegórico. Aplicadas histórico. Cito a tradução de Sonia Lacerda
a Homero, essas ideias resultam na visão de (2003, p. 283):
uma poesia representativa de uma Idade He-
roica do homem, cujos costumes ela retrata “Todas essas coisas agora nos compelem
em seu testemunho histórico. As fábulas, a afirmar que com Homero ocorreu justa-
segundo Vico, têm um sentido verdadeiro e mente como com a guerra troiana, a qual,
refletem as propriedades de um povo inteiro. conquanto tenha fornecido um afamado
São, portanto, os primeiros tempos da Gré- marco dos tempos à história, os críticos
cia que a poesia homérica nos mostra, e não mais precavidos julgam que nunca se travou
lições filosóficas escamoteadas. no mundo. E certamente, como da guerra
Mas a parte mais interessante é a que troiana, se de Homero não tivessem resta-
vem a seguir, que corresponde à segunda do certos vestígios tão grandes quais são
metade da obra (que, no total, não ultrapas- os seus poemas, diante de tantas dificulda-
sa as trinta páginas), quando Vico aduz as des se diria que ele foi um poeta de ideia, e
“provas filosóficas” e as “provas filológicas” não um homem particular existente na na-
relativas à descoberta do “vero” (“verdadei- tureza. Mas tais e tantas dificuldades, jun-
ro”) Homero. É nesse ponto que ganha desta- to com os poemas que dele nos chegaram,
que o papel atribuído à memória. Retomando parecem forçar-nos a afirmá-lo pela metade:
o já citado passo de Flávio Josefo, sobre a que este Homero tenha sido uma ideia ou
ausência de escrita na época do poeta épico caráter heroico de homens gregos, enquan-
(e supondo que os poemas foram ordenados to narradores, em cantos, de sua história”.
pelos pisistrátidas num período já letrado)10,
o filósofo napolitano reflete sobre a necessi- Logo em seguida, veremos ainda a afir-
dade de se recorrer, nessas circunstâncias, ao mação de que “esses povos gregos foram este
metro e ao ritmo para garantir a preservação Homero”, e que a representação tradicional
das informações. Nesse contexto, os rapso- de Homero não mais é do que a reunião,
dos desempenham papel fundamental: eles numa figura só, do que era característico
eram “homens do povo, que conservavam dos rapsodos (apud Cristofolini, 2006, p. 99).
um a um, de memória, os livros dos poemas Finalmente, ao tratar das diferenças entre a
homéricos. Porque Homero não deixou por Ilíada e a Odisseia, Vico abandona a visão
escrito nenhum de seus poemas” (apud Cris- exposta por Longino no seu tratado Do Su-
tofolini, 2006, pp. 71-9 e 85-7). Entenden- blime (de que a primeira corresponderia à
do também o termo “rapsodo” segundo sua fase madura do poeta, e a segunda, ao tem-
10 Flávio Josefo é men- difundida etimologia – como “o costurador po da velhice) para propor que cada epopeia
cionado nas páginas
71 e 85, e os pisistráti-
de cantos” –, Vico imagina que, na Grécia testemunha um período e um local diferentes
das, na página 87. Uti- antiga, esses cantores eram figuras pobres e no desenvolvimento da Grécia antiga. Com
lizo a edição de Paolo itinerantes; mais do que isso: que eram ce- isso, tira-se de Homero uma existência real
Cristofolini (2006).
gos, porque “é propriedade da natureza hu- e atribui-se a ele um valor simbólico, num
11 Ver discussão de So-
nia Lacerda (2003, pp. mana que os cegos tenham um desempenho contexto de produção coletiva oral com forte
290-4). maravilhoso no que diz respeito à memória”. sentido histórico11.
do livro, e vai ocupar o autor ao longo das ela, “embora conhecida na Grécia durante a
próximas cinquenta, mas é importante que época em que o poeta viveu, era muito pouco
se diga que não está no centro das atenções, praticada” (Wood, 1775, p. 276). Essa con-
restringindo-se ao último capítulo, “A Lín- cessão decorre, certamente, daquele receio
gua e a Instrução de Homero”. de chocar o público a que se endereçava a
Wood aborda o tema com cautela, ante- obra: Wood tinha clara consciência de que
vendo “o espanto do leitor com a insinuação sua proposta “podia parecer ofensiva ao Po-
de que Homero não sabia ler nem escrever” eta, uma vez que lhe roubava uma parte res-
(Wood, 1775, p. 248). Mas sua conclusão é peitável do caráter, há muito reconhecida, e
de que a adoção de um registro gráfico da contradizia a opinião preferida a respeito de
fala “é resultado de uma reflexão e de um sua instrução”; no entanto, ele conseguia ver
pensamento muito profundos” (Wood, 1775, “algumas vantagens decorrentes desse esta-
p. 249), ainda ausentes na selvagem época do de iletramento que compensavam aquela
homérica. Para confirmar essa ausência, ele perda” (Wood, 1775, p. 279): Homero era o
promove um vasto inventário de evidências poeta da natureza avesso às regras, e a imper-
(que talvez seja o que há de mais contunden- feição da arte, os modos rudes e a sociedade
te e inovador no livro): o fato de não haver iletrada eram as condições que melhor se
nenhuma menção nos poemas à escrita; o ajustavam ao seu caráter. Essa simplicidade
uso restrito, lento e complexo da anotação se refletia, por fim, em seu estilo não escrito,
alfabética em sua fase inicial; a escassez de em que não têm lugar períodos desenvolvi-
materiais, que ficavam restritos à pedra e à dos e linguagem intricada, e “as repetições
madeira; o modo solene como Homero se de passagens inteiras (pelo que Homero é
dirige às Musas, filhas da Memória; a trans- censurado) eram não apenas mais naturais,
missão não escrita das leis nos primeiros mas também menos perceptíveis e, portan-
tempos; o testemunho de Flávio Josefo; e, to, menos ofensivas” (Wood, 1775, p. 281).
finalmente, a atribuição (principalmente a Temos aí então as reflexões centrais de
Pisístrato) de uma ordenação da Ilíada e da Wood: embora pertencente a uma época bár-
Odisseia, tomada como sinal da introdução bara, anterior aos refinamentos da cultura,
da escrita (Wood, 1775, pp. 278-9). Tudo isso Homero para ele é exato, verdadeiro e ori-
faz Wood colocar o poder da memória em ginal, e trabalhou (como o próprio Wood...)
primeiro plano – no que diz respeito a Ho- como um “viajante curioso e observador”
mero –, e estipular o ano de 554 a C. como o (Wood, 1775, p. 34), coletando e ordenando
período mais provável para a disseminação vasto material; além do mais, sua condição
do uso da escrita na Grécia antiga (Wood, é a de um poeta oral, que, por não recorrer
1775, p. 258). ainda à arte da escrita, só tem potencializa-
Em sua argumentação, Wood faz também das suas qualidades. No trabalho do inglês,
um levantamento das mais variadas ciências notamos de fato uma atenção especial à
em Homero (geografia, astronomia, medi- oralidade, mas a realidade é que o fato de
cina, pintura, anatomia, arquitetura, arte trabalhar com essa ideia de um Homero ge-
militar), para chegar à conclusão de que, na nial leva-o a não dar peso maior à tradição
obra do poeta, elas ainda não surgem como (como o faz Vico)14, e acaba traindo um olhar
ciências de fato, o que está de pleno acordo letrado e anacrônico, apesar das afirmações
com a simplicidade de sua época – anterior em contrário.
à fixação das artes e favorável à clareza, à No fim das contas, Wood parece trazer
originalidade e à verdade. O arrazoado – fica consigo o mesmo espanto que imagina em
claro – serve para encaminhar a constatação seu leitor perante a afirmação de que Ho-
de que, em consonância com as outras artes, mero não sabia ler nem escrever, e isso fica
14 Embora faça referên-
cia à “tradição oral” na também a da escrita deveria ser inexistente – indicado por sua insistência no uso do nome
página 259. mas nesse ponto o inglês recua e afirma que “Homero” (evidente nos títulos dos capítu-
B I B LI O G R AFIA
CRISTOFOLINI, Paolo (ed.). Giambattista Vico: La Discoverta del Vero Omero, Seguita dal Giudizio
sopra Dante. Pisa, Edizioni ETS, 2006.
DAVIDSON, J. “The Homeric Question”, in Alan Wace & Frank Stubbings. A Companion to
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Paris, Hachette, 1925.
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WOOD, Robert. An Essay on the Original Genius and Writings of Homer. London, H. Hughs, 1775.