You are on page 1of 8

Caso Bolsonaro: qual foi o crime cometido e de quem é a

competência para julgá-lo?


sexta-feira, 7 de setembro de 2018

No dia de ontem (06/09/2018), o Deputado Federal e candidato à Presidência


da República Jair Messias Bolsonaro recebeu uma facada durante a realização
de um ato de campanha na cidade de Juiz de Fora (MG).

O agressor foi preso em flagrante.

O objetivo deste post é analisar, no exercício do magistério, qual o tipo penal


que o agente teria praticado e a competência jurisdicional para apurar e julgar
a conduta.

Obviamente, as conclusões aqui expostas são baseadas nas informações que


foram divulgadas nos meios de comunicação social. Somente com o devido
processo legal é que teremos respostas mais seguras. A finalidade é apenas
iniciar o debate, sob o ponto de vista estritamente jurídico.

Qual foi o crime, em tese, praticado pelo agressor de Bolsonaro?


Existem duas opções possíveis:

1) TENTATIVA DE HOMICÍDIO
Tentativa de homicídio qualificado por motivo torpe e mediante
dissimulação (art. 121, I e IV, c/c art. 14, II, do CP):
Art. 121 (...)
§ 2° Se o homicídio é cometido:
I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
(...)
IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que
dificulte ou torne impossivel a defesa do ofendido;
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

Motivo torpe ocorre quando o agente pratica o crime por uma razão
repugnante, moralmente reprovável. No caso, segundo as notícias divulgadas,
o agressor confessou o crime e disse que agiu por “motivações religiosas” e “de
cunho político”.
Assim, tudo leva a crer que a motivação seria realmente política, ou seja, o
agressor teria praticado o crime por não concordar com as ideias políticas e
ideológicas defendidas pelo Deputado, o que representa motivo moralmente
reprovável.

“Dissimulação é atuação disfarçada, hipócrita, que oculta a real intenção do


agente. O agente aproxima-se da vítima para posteriormente matá-la, valendo-
se das facilidades proporcionadas pelo seu modo de agir.” (MASSON,
Cleber. Direito Penal. Vol. 2., São Paulo: Método, 2017, p. 38). No caso, o
agente demonstrou falsa simpatia para com o candidato a fim de poder se
aproximar dele e, aproveitando-se de sua distração enquanto ele
cumprimentava o público, deu a estocada.

O advogado do agressor, em entrevista, afirmou que a intenção do


agente não era a de matar, mas sim de lesionar o candidato. O que isso
significa?
Essa argumentação indica, em princípio, que uma das teses da defesa será
alegar que não houve tentativa de homicídio, mas sim lesão corporal (art. 129,
§ 1º, II, do CP).
Penso, contudo, que se trata de uma tese difícil de ser acolhida.
Será um trabalho difícil da defesa comprovar que o agente que dá uma
estocada no abdome da vítima queria apenas lesionar (e não matar). Fosse a
intenção apenas ferir, não seria utilizada uma faca ou, então, o golpe seria no
braço, na perna ou em outra região não vital do corpo humano.
Além disso, ainda que a defesa consiga comprovar que não houve dolo direto
de matar, o agente poderia ser condenado por tentativa de homicídio com dolo
eventual. É senso comum que uma facada profunda no abdome pode gerar a
morte da pessoa. O agressor, mesmo tendo consciência disso, aceitou a
possibilidade concreta de que a morte da vítima acontecesse.
Dessa forma, o mais provável é que o agente seja realmente denunciado e
responda o processo penal por tentativa de homicídio.

2) CRIME CONTRA A SEGURANÇA NACIONAL (LEI Nº 7.170/83)


Lei nº 7.170/83
A Lei nº 7.170/83 define os crimes contra a segurança nacional, a ordem
política e social, estabelece seu processo e julgamento. Veja o que diz o seu
art. 1º:
Art. 1º - Esta Lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão:
I - a integridade territorial e a soberania nacional;
II - o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito;
III - a pessoa dos chefes dos Poderes da União.

A Lei nº 7.170/83 tipifica os CRIMES POLÍTICOS no Brasil.

Necessidade de prova da motivação política


Para que se configure crime político, além de a conduta estar enquadrada em
um dos tipos previstos na Lei nº 7.170/83, exige-se também que fique
comprovada a motivação política do agente.
Assim, para que seja crime político, exige-se um especial fim de agir do réu
(vulgo “dolo específico”), que é a motivação política do agente.
Desse modo, pode-se dizer que para que uma conduta seja enquadrada em um
dos tipos penais previstos na Lei de Segurança Nacional, isto é, para que seja
considerada crime político, exige-se o preenchimento de requisitos de ordem
objetiva (art. 2º, II c/c art. 1º) e de ordem subjetiva (art. 2º, I):
1) Requisito de ordem OBJETIVA: lesão real ou potencial a um dos bens
jurídicos listados no art. 1º da Lei nº 7.170/83.
2) Requisito de ordem SUBJETIVA: o agente deve ter motivação e objetivos
políticos em sua conduta.

Nesse sentido:
(...) O Supremo Tribunal Federal, a partir de interpretação sistemática da Lei nº
7.170/83, assentou que, para a tipificação de crime contra a segurança
nacional, não basta a mera adequação típica da conduta, objetivamente
considerada, à figura descrita no art. 12 do referido diploma legal.
2. Da conjugação dos arts. 1º e 2º da Lei nº 7.170/83, extraem-se dois
requisitos, de ordem subjetiva e objetiva: i) motivação e objetivos políticos do
agente, e ii) lesão real ou potencial à integridade territorial, à soberania
nacional, ao regime representativo e democrático, à Federação ou ao Estado de
Direito. (...)
STF. Plenário. RC 1472, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 25/05/2016.

Requisito de ordem SUBJETIVA


No caso concreto, tudo leva a crer que a motivação do agente seria realmente
política, ou seja, o agressor teria praticado o crime por não concordar com as
ideias políticas defendidas pelo candidato e para retirá-lo do pleito.
Vale ressaltar que o agressor teria sido supostamente filiado, durante anos, a
um partido político que se opõe à ideologia sustentada por Bolsonaro.
O objetivo do crime, portanto, seria político.
Esclareço, mais uma vez, que somente a investigação poderá trazer mais
elementos informativos. Estamos aqui trabalhando com hipóteses.

Requisito de ordem OBJETIVA


O requisito de ordem objetiva também está preenchido, considerando que a
tentativa de matar um candidato à Presidência da República que lidera as
pesquisas eleitorais representa uma conduta que gera perigo de lesão ao
regime representativo e democrático e ao próprio Estado de Direito (art. 1º, II,
da Lei nº 7.170/83).
Desse modo, a conduta praticada, em tese, ao tentar ceifar a vida de um dos
candidatos à Presidência da República, ofende o pluralismo político (art. 1º, V,
da CF/88) e a soberania popular, que é exercida pelo sufrágio universal e pelo
voto direto e secreto, com valor igual para todos (art. 14).

E qual delito da Lei nº 7.170/83 teria sido praticado?


O crime do art. 20, parágrafo único, da Lei nº 7.170/83:
Art. 20. Devastar, saquear, extorquir, roubar, sequestrar, manter em cárcere
privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou
atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos
destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou
subversivas.
Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.
Parágrafo único. Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se
até o dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo.

Vale ressaltar que o art. 20, no que tange ao terrorismo, foi derrogado pela Lei
nº 13.260/2016 (Lei do Terrorismo). No entanto, naquilo que não se refira a
atos terroristas, penso que o dispositivo continua válido.
Aliás, mesmo antes da Lei nº 13.260/2016, a doutrina majoritária já afirmava
que o referido art. 20 não servia para tipificar validamente o terrorismo porque
não conceituou de forma precisa e taxativa os atos de terrorismo.

Princípio da especialidade
Sendo a conduta prevista tanto no Código Penal como na Lei nº 7.170/83, por
que deverá prevalecer a tipificação como crime político?
Porque se trata de previsão específica. Assim, cumpridos os requisitos subjetivo
e objetivo e encontrando tipificação em um dos dispositivos da Lei nº 7.170/83,
a conduta deverá ser considerada crime político, conforme dispõe o seu art. 2º:
Art. 2º Quando o fato estiver também previsto como crime no Código Penal, no
Código Penal Militar ou em leis especiais, levar-se-ão em conta, para a
aplicação desta Lei:
I - a motivação e os objetivos do agente;
II - a lesão real ou potencial aos bens jurídicos mencionados no artigo anterior.

Indiciamento pela PF e prisão preventiva


Segundo informa a imprensa, a Polícia Federal de Juiz de Fora (MG) indiciou o
agressor pela prática do crime do art. 20 da Lei de Segurança Nacional
adotando, em tese, essa segunda hipótese.
A Juíza Federal da 2ª Vara Federal de Juiz de Fora (MG), em juízo preliminar,
concordou com a tipificação e decretou a prisão preventiva do agressor que
permanecerá custodiado em um Presídio Federal.

DE QUEM É A COMPETÊNCIA PARA JULGAR O CRIME?


JUSTIÇA FEDERAL (art. 109, IV, da CF/88).

1) Se a conduta for tipificada como tentativa de homicídio (art. 121, I e


IV, c/c art. 14, II, do CP):
JUSTIÇA FEDERAL, com base no art. 109, IV, da CF/88, pelo fato de o crime ter
sido praticado em detrimento de interesse da União:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(...)
IV - (...) as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou
interesse da União (...);

A tese é a seguinte: a conduta foi praticada para retirar da disputa um


candidato à Presidência da República. As eleições para o cargo de Presidente da
República são nacionais e regidas pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Está sendo selecionada a pessoa que irá ser o chefe do Poder Executivo federal,
havendo, portanto, nítido interesse federal na normalidade e lisura do pleito
(por exemplo: art. 89, I; art. 158, III; art. 205, do Código Eleitoral).
Em reforço a essa conclusão, veja o que dizem a Lei nº 7.474/86 e o Decreto
nº 6.381/2008:
Lei nº 7.474/86:
Art. 2º O Ministério da Justiça responsabilizar-se-á pela segurança dos
candidatos à Presidência da República, a partir da homologação em convenção
partidária.

Decreto nº 6.381/2008:
Art. 10. Os candidatos à Presidência da República terão direito a segurança
pessoal, exercida por agentes da Polícia Federal, a partir da homologação da
respectiva candidatura em convenção partidária.

Reparem, portanto, que a União possui o compromisso legal de garantir a


segurança dos candidatos à Presidência da República. Dessa forma, o atentado
contra a vida do referido candidato representou um crime praticado em
detrimento de interesse federal legalmente protegido.

Ressalte-se que o fato de Bolsonaro ser Deputado Federal, em princípio, não


influencia na definição da competência. Isso porque somente são de
competência da Justiça Federal os crimes praticados contra servidor público
federal, quando relacionados com o exercício da função (Súmula 147-STJ). Em
outras palavras, não basta o delito ter sido cometido contra servidor público
federal. Para que haja competência da Justiça Federal, é necessário que a
infração penal esteja relacionada com o exercício da função pública federal
desempenhada pelo funcionário.
Ao que parece, o delito não foi praticado em virtude do cargo de Deputado
Federal de Bolsonaro, mas sim em razão de sua candidatura a Presidente da
República.
Situação diferente será se o agressor declarar, por exemplo, que tentou matá-
lo porque não gosta dos discursos dele como parlamentar ou pela forma como
ele vota no Congresso Nacional. Em situações como essa, aí sim a competência
seria da Justiça Federal.

2) Se a conduta for tipificada como Crime contra a Segurança Nacional


(art. 20 da Lei nº 7.170/83):
JUSTIÇA FEDERAL, com base no art. 109, IV, da CF/88, pelo fato de se tratar
de crime político:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(...)
IV - os crimes políticos (...);

Quais são os crimes políticos?


Os crimes políticos a que se refere este inciso IV do art. 109 da CF/88 são
aqueles previstos na Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83).

Cuidado com o art. 30 da Lei nº 7.170/83


O art. 30 da Lei nº 7.170/83 afirma que os crimes contra a Segurança Nacional
são de competência da Justiça Militar. Este dispositivo não foi recepcionado pelo
art. 109, IV, da CF/88, ou seja, a regra ali exposta não é mais válida.
Assim, com a CF/88, os crimes previstos na Lei de Segurança Nacional
passaram a ser de competência da Justiça Federal comum (Juiz Federal de 1ª
instância).

Qual será a diferença entre a hipótese 1 (tentativa de homicídio) e a


hipótese 2 (crime político) no que tange à competência?
Em ambos os casos, a competência será da Justiça Federal. No entanto, temos
aqui uma interessantíssima diferença:

Hipótese 1 (TENTATIVA DE HOMICÍDIO):


A competência para julgar o réu será do Tribunal do Júri Federal (art. 5º,
XXXVIII, “d”, da CF/88).
Em outras palavras, em tese, o Procurador da República irá oferecer denúncia
na Justiça Federal de 1ª instância; o Juiz Federal irá receber; será realizada
instrução e, havendo pronúncia, o réu será levado a Júri Popular, sendo julgado
por 7 pessoas do povo, em uma sessão presidida por um Juiz Federal.
O recurso contra esta sentença será julgado pelo TRF da 1ª Região.
Depois da decisão do TRF, em tese, ainda seria possível a interposição de
recursos especial (STJ) e extraordinário (STF).

Hipótese 2 (CRIME POLÍTICO):


A competência para julgar o réu será do Juiz Federal de 1ª instância (Juízo
Federal de Juiz de Fora/MG).
Contra a sentença do Juiz Federal que julgar o crime (condenando ou
absolvendo) não caberá apelação, mas sim recurso ordinário constitucional
(também chamado de recurso criminal ordinário), de competência do STF:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da
Constituição, cabendo-lhe:
II - julgar, em recurso ordinário:
b) o crime político;

Trata-se, portanto, de um peculiar caso no qual uma sentença de Juiz Federal é


apreciada diretamente pelo STF em grau de recurso. Vale ressaltar que o STF
funcionará como “tribunal de apelação”, ou seja, ele poderá inclusive
reexaminar as provas.

Posição pessoal
Até agora, com os elementos informativos que foram colhidos, penso correta a
tipificação da conduta no art. 20 da Lei de Segurança Nacional, sendo a
competência da Justiça Federal.
Faço, contudo, mais uma vez, a advertência de que o objetivo do post não é o
de defender a adoção desta solução jurídica ao caso. A finalidade é unicamente
discutir juridicamente as hipóteses penais e processuais possíveis, com
objetivos meramente acadêmicos.

Márcio André Lopes Cavalcante


Professor

You might also like