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Cláudio AQUATI*
heróis realizam viagem ainda mais exótica, pois cortam a sociedade num mergulho
Ouro; Apuleio.
uma narração fluente em prosa, um relato amoroso ameno, com noções de tempo e
espaço muito flexíveis, não distante do gosto e das expectativas populares. Seu tom é
quase épico e destina-se a engrandecer o herói. Em graus diversos, não lhe faltou o
exotismo oriental e o amor cavalheiresco, que, como notou Grimal (1958, p. xx), não é
exclusivo ou original da Idade Média ocidental, e faz com que o herói realize as
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Departamento de Teoria Lingüística e Literária, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas,
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, São José do Rio Preto, SP, CEP
15054-000 - Brasil.
maiores façanhas e empreenda longínquas viagens a bem de seu amor pela heroína.
Os romances gregos adotaram tipos humanos e situações básicas muito próximos uns
voltado “para o indivíduo como pessoa e, como tal, empenhado, acima de tudo, em
ser feliz, na ânsia da realização integral da própria vida” (Horta, 1984, p. 55).
pelo interesse por viagens fabulosas pelos confins do mundo, real ou imaginário, o
que revelava não só os desejos, mas também os riscos temidos na vida daquele
período, comuns, e não admiráveis, deve-se entender, para povos nascidos e criados
abelhas venenosas, cães que devoram cadáveres e dromedários que fazem o papel de
mensageiros do amor. Era aquele mundo raro, onde se mesclava o mais antigo com o
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A tradução das citações de autores estrangeiros é da responsabilidade do autor deste ensaio. O
original segue em nota de rodapé.
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“ Además intervienen sepulcros, tesoros enterrados, torturas y mutilaciones, brujos, nigromantes y
ventrílocuos, así como curiosas variedades del reino animal: moscas venenosas y abejas
envenenadas, perros que devoran cadáveres y dromedarios que hacen el papel de mensajeros del
amor. Era aquel mundo raro, donde se mezclaba lo más antiguo com lo más moderno: Babilonia
después de Jesuscristo. Junto a los prodigios hay descriptiones de paisajes, de pinturas o de animales
exóticos, como la jirafa de Heliodoro o el hipopótamo y el elefante de Aquiles Tacio”.
Esse escapismo pode ainda levar o leitor a experimentar outro tipo de vida a que
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está acostumado, aproximando-o de um cenário bucólico, como em Dáfnis e Cloé.
Conforme observa Horta (1984, p. 66), “Longo tira proveito do escapismo em relação
que imprime à sua obra reproduz o “gosto pelas paisagens e a vida rústicas, numa
urbanos helenísticos, só vantajosa para uma minoria privilegiada pela fortuna, ou pela
na temática das obras, ocorre sempre porque o “curso dos acontecimentos normal,
lugar para outro. Viajar significa carência de nexos; é a forma livre de viver, se cabe
E é preciso que se diga que, se há fantasia no relato das aventuras por paragens
distantes e incomuns, não há contudo absurdo, pois, como chamam a atenção Grimal
(1958, p. xx) e Bakhtin (1988, p. 215), os autores seguem de perto a realidade dos
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Tradução para o português de D. Bottman (v. referências bibliográficas: Longo, 1990).
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“La experiencia viajera convierte en espacio la atmosfera que domina la novela. Los
protagonistas son empujados no sólo de un peligro a outro, sino también de un lugar a
otro. Viajar significa carecer de nexos; es la forma libre de vivir, si cabe llamarlo así. Por
lo tanto, lo proteico de la novela tiene que expresarse por medio del viaje”.
lugares por onde perambulam os heróis, com alguma inexatidão, é bem verdade, e
alguma credulidade, lançando mão de descrições por vezes bastante detalhadas não
p. 221), o tema das viagens está ligado a uma “expiação de culpas”, como se pode
Habrócomes grita gemendo: — […] a idade não põe termo ao verdadeiro amor; mas eu
percorro em todas as direções terra e mar, e eu não posso esperar até esse dia, ó querida
Ântia, de saber que tu estás de volta. Ó infeliz oráculo! Ó Apolo, tu que predisseste
grandes infortúnios, tem piedade de nós e faze cumprir o desenlace prometido por teus
Nessa expiação de culpas deve-se levar em conta sobretudo a da hybris, que leva o
igualando-se a eles:
ainda mais confiante em sua beleza: tudo o que se acreditava belo, ele, com desdém o
tinha como muito inferior a si mesmo; nada lhe parecia digno de ser olhado ou ouvido por
Habrócomes; elogiava-se diante dele um belo rapaz ou uma bonita moça, ele zombava
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“Habracomès s’écrie en gémissant: «[…] l’âge ne met point terme au véritable amour;
mais moi je parcours en tous sens terre et mer, et je n’ai pu jusqu’à ce jour, à chère
Anthia, apprendre au moins ce que tu es devenue. O malhereux oracle! Ô Applon toi qui
nous a prédit les plus grandes misères, prends enfin pitié de nous et fais s’accomplir le
denouement promis de tes oracles”.
daqueles ignorantes que não sabiam que só ele era belo. (Xenofonte de Éfeso, Efes.
Após a travessia que durou alguns dias, eles [Habrócomes e Ântia] desembarcaram em
Éfeso, onde todos já sabiam que eles retornavam sãos e salvos. Logo que puseram os
pés em terra firme, sem perda de tempo, foram ao santuário de Ártemis. Depois de ter
feito seus votos e seus sacrifícios à deusa, eles lhe consagram, entre outras oferendas,
uma inscrição onde se lia tudo o que eles haviam feito e sofrido. (Xenofonte de Éfeso,
Essa peregrinação nada mais é que a proposição de uma série de provas que
dignos do amor de que são depositários. “A aventura tem, portanto, uma finalidade
catártica: o errar torna o homem sábio, pois o liberta do orgulho” (D’Onófrio, 1976, p.
Asno de Ouro. 8A divindade persegue ou conduz: se, por um lado, o desterro decorre
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“ Le jeune homme en éprouvait de l’orgueil, et s’il se glorifiait de sa vertu, il était plus fier encore de sa
beauté: tout ce qui était réputé beau il le tenait avec dédain pour bien inférieur à lui-même; rien ne lui
semblait digne d’être regardé ni écouté par Habrocomès; louait-on devant lui un beau garçon ou une
jolie fille, il se moquait de ces ignorants qui ne savaient pas que lui seul était beau”.
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“Après une traversée de quelques jours ils débarquèrent à Éphèse, où tous savaient déjà qu’ils
revenaient sains et saufs. Aussitôt qu’ils eurent pris terre ils se rendirent sans désemparer, au
sanctuaire d’Artémis. Après avoir adressé à la déesse leurs voeux et leurs sacrifices, ils lui
consacrèrent, parmi d’autres offrandes, une inscription où se lisait tout ce qu’ils avaient fait et subi”.
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Tradução para o português de R. Guimarães (v. referências bibliográficas: Apuleio, 1963). O texto
latino de base é o estabelecido por D. S. Robertson (v. referências bibliográficas: Apulée, 1956).
da expiação de faltas contra ela, por outro lado, para obter o sucesso em sua aventura
contam com o auxílio de forças superiores, o favor divino, seu padroeiro (D’Onófrio,
meios que lhes possibilitem suportar as duras provações e tamanhos obstáculos a que
foram destinados, como poderiam lutar e obter o perdão? No exato momento o deus
literatura que o precede e que, sabe-se, contribui da forma mais variada para sua
formação. Brandão (1996, p. 58) observa que, se a Odisséia já conta dentre seus
realismo das situações vividas. Também a comédia nova, dentre outros elementos
Tem-se, contudo, uma visão bem diversa no romance latino. Os espaços em que se
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desenvolve o argumento do Satíricon, cronologicamente o primeiro dos romances
Encólpio como narrador, sacrilégio contra Priapo, Encólpio como bode expiatório,
interlúdio com Dóris, introdução de Gitão; em movimento para o sul, direção de Baias,
o aparecimento de Eumolpo, com quem se traçará toda uma teoria literária, e o infeliz
embarque no navio de Licas, cenário mais uma vez adverso e agressivo aos jovens
(Cesareo & Terzaghi, 1952, p. viii)11 ou “uma cidade sem nome que resumisse em si
Por fim, vem à tona novamente a especulação de Schmeling (1996, p. 461), o qual
supõe que Eumolpo deixa a história, Encólpio e Gitão partem de Crotona, aparece
alguma outra personagem que toma o lugar de Eumolpo, o trio movimenta-se para o
oriente e chega a Lâmpsaco (terra natal do deus Priapo), Encólpio expia suas ofensas
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Sullivan, 1968, p. 40-1; Grimal, 1972, p. xiii; Schmeling, 1996, p. 460-1.
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“[…] città campana, una colonia, avanti l’imbarco”.
Dentre as personagens que povoam esse enredo itinerante nenhuma há que tenha
bons princípios morais, qualquer que seja sua extração social. Com elas Petrônio
Encólpio e Gitão formam a dupla que, viajando pelo sul da Itália, protagoniza o
num ergastulum, onde o estudante aguardava para ser jogado ad bestias. Depois do
encontro com Gitão, tudo o que parece mover Encólpio é o ciúme, possivelmente
figurando como parte da vingança de Priapo: teria sido essa a razão do assassínio e
do roubo de Licurgo, e da questão com Trifena (na parte perdida). Licas fugiria a esse
esquema, pois seu relacionamento teria sido com Encólpio, para depois ser traído por
ele e sua esposa Hédile e ainda ter assaltada a imagem da deusa Ísis de seu navio,
parece ter mantido relações com Encólpio, cai igualmente na «ira» de Encólpio pelo
Graças a seu caráter multiface, de cada ângulo que se observa o Satíricon pode-se
ter uma idéia diferente acerca de seu formato. Esse é o resultado a que chega
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A reconstrução do enredo é suposição, aqui, de Sullivan (1968, p. 42-5).
Petrônio, penso que não casualmente, é claro, dada o extremo esmero que se pode
O dado essencial do romance — a viagem dos três jovens através da Itália helenizada
— lembra sem dúvida as viagens dos romances gregos […]. Mas nada mais é que uma
A pintura satírica dos costumes toma o passo sobre todo o resto: vê-se claramente a
(1958, p. xxiii).13
Conforme avalia Cizèk (1975, p. 92), por mais risível que seja o meio freqüentado
ser o interesse de Petrônio. Na verdade, opressor e oprimido nessa ficção romana são
riso liberado da comédia, como observou Sell (1984, p. 277), já que não há uma
sequer contornada, daí a viagem, a fuga a que sempre estão submetidos os anti-
heróis petronianos.
vida humana: entre outros aparecem a vida no submundo dos ladrões, seu meio de
defeitos humanos, com que muitas vezes se expõem ao ridículo os valores sociais. O
certo é que o protagonista passeia pelo underground como que perseguido pela
asno vê sem ser visto: o quadro social que testemunha e que vai a pouco e pouco
descobrindo em O Asno de Ouro evoca amiúde a sátira, com notável gosto pelo
o interesse por figuras extrassociais e ínfimas, pelo mundo das coisas, etc. Enfim, a
mesmo em relação à épica clássica. Graças à sua novidade — a visão múltipla diante
verdade, é muito mais exótica que a dos heróis do romance grego, que cortam
norma clássica, por contraste vista como central, alta, inserida (Stallybrass, 1986, p.
AQUATI, Cláudio. Quo Vadis?: Travelling as an element of the ancient novel. Rev. Let..
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A sátira social desenvolve-se nas histórias de ladrões, na história de Caridade, do hortelão e o
soldado, etc.
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A sátira religiosa desenvolve-se nas histórias de bruxas e, principalmente, na de Filebo, o falso
sacerdote.
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Agradeço à Profª Drª Giséle Manganelli Fernandes pela contribuição na elaboração deste
ensaio.
ABSTRACT: In this paper, the meaning of travelling is focused as an element of the
ancient novel. In the Greek novel, travelling through space seems to indicate expiation
of guilt, especially of hybris, which will take the protagonists to purification through
suffering. Travelling is, therefore, a cathartic element. In the Latin novel, travelling
implies either the rupture of order or the discovery of the most miserable aspects of
human nature. If the heroes in the Greek novel travel in an exotic way through the
most distant places, in the Latin novel the anti-heroes travel to even more exotic
places, since they go deep into society reaching unknown, or rather, carefully put aside
KEY-WORDS: Greek novel, Roman novel, Satyricon, Petronius, The Golden Ass,
Apuleius.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APULEIO. O Asno de Ouro. Trad. e introd. Ruth Guimarães. São Paulo: Cultrix, 1963.
p.91-101, 1975.
GRIMAL, P. (Trad., introd. e notas) Romans grecs et latins. Paris: Gallimard, 1958.
LONGO. Dáfnis e Cloé. Trad. D. Bottman. Campinas: Pontes, 1990. Original grego.
PÉTRONE. Le Satiricon. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. 3.ed. Paris: Les
SCHMELING, G. (org.). The novel in the ancient world. Leiden: E. J. Brill, 1996.
SELL, Rainer. The Comedy of hyperbolic horror: Seneca, Lucan and 20th century
p.277-300, 1984.
STALLYBRASS, P., WHITE, A. The politics and poetics of transgression. Ithaca: Cornell U.
P., 1986.
SULLIVAN, J. P. The Satyricon of Petronius. A literary study. Londres: Faber and Faber,
1968.