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Filosofia da tecnologia: um convite

Alberto Cupani

O Prometeu definitivamente
desacorrentado, ao qual a ciência confere
forças antes inimagináveis e a economia o
impulso infatigável, clama por uma ética
que, por meio de freios voluntários, impeça
o poder dos homens de se transformar em
uma desgraça para eles mesmos. (Jonas, H.,
2006).

Peter Paul Rubens, 1618

Filosofia da tecnologia: um convite


A proposta aqui é de refletir sobre uma realidade mais complexa do que a sugerida pela
costumeira associação da tecnologia com a engenharia, porque a tecnologia nos afeta e nos
desafia qualquer que seja a nossa atividade, o que nos possibilita tratar de uma realidade que
pode (e deve) ser tematizada pelas áreas tradicionais da filosofia, pois encerra questões tanto
ontológicas quanto epistemológicas, tanto éticas quanto estéticas.

A tecnologia importa porque pode significar tanto a nossa satisfação pelos aparelhos que
tornam nossa vida mais cômoda, o nosso entusiasmo ante as possibilidades que o
computador e a internet nos abrem, quanto o nosso temor às armas cada vez mais potentes e
sofisticadas ou a nossa perplexidade ante a clonagem de organismos. A importância da
tecnologia (isto é, o fato de que ela nos “importa”, quase inevitavelmente) implica que todos
somos levados a pensar, de modo mais ou menos sistemático e duradouro, sobre a sua
presença na nossa vida. Desde a banal questão acerca das vantagens de possuir um telefone
celular, até a requintada meditação de quem se pergunta se não seria melhor um mundo
sem tecnologia, passando pelas pesquisas sociológicas e históricas sobre as formas da sua
existência e evolução, a tecnologia é sem dúvida objeto de reflexão.

Como podemos garantir que a tecnologia constitua um tema de reflexão filosófica? A pergunta
pela natureza da tecnologia é quase obviamente a inicial. Em termos da filosofia clássica,
trata-se da questão do ser ou da essência da tecnologia. É ela uma “coisa”, um processo ou o
quê? Trata-se de algo real ou apenas de uma noção com que pensamos um conjunto de
objetos, atividades e eventos? Há uma diferença essencial entre técnica e tecnologia? Se
considerarmos a atividade tecnológica, percebemos que ela tem, por sua vez, pressuposições
ontológicas. Ela pressupõe, por exemplo, que o mundo é composto de objetos materiais que
se associam formando sistemas, os quais por sua vez evoluem.

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Supõe também que o homem é capaz de alterar processos naturais e até de produzir (ou
destruir) classes naturais. Outra questão ontológica básica é a relativa ao ser dos artefatos.
Que classe de realidade eles representam? Como se diferenciam o natural e o artificial? Existe
hoje em dia algo puramente natural? Como consequência dessas perguntas, torna-se mais
aguda uma questão preexistente: o que é algo natural? Quais são as características
diferenciais dos sistemas artificiais que se autocontrolam com relação aos naturais? Existe
algo a mais que uma mera analogia entre o bom funcionamento de um artefato e a saúde
de um organismo? É concebível uma máquina capaz de levantar e elucidar problemas
originais e de praticar tanto o bem como o mal? Podemos ainda contar entre as questões
ontológicas: tem a tecnologia uma dinâmica própria? É por acaso autônoma (uma suposição
suscitada pela aparente impossibilidade de mudar seu rumo)? Determina a tecnologia os
outros meios da sociedade (economia, política, cultura)? É determinada por algum desses
fatores, em particular?

O historiador norte-americano Lewis Mumford (1895-1990) é conhecido por uma sugestiva


história da tecnologia (Technics and civilization, 1934) que complementou anos mais tarde
com outro volumoso estudo: The myth of the machine (1967 e 1970). Para Mumford (1967):

As máquinas se desenvolveram a partir de um complexo de


agentes não orgânicos para transformar energia, realizar trabalho,
ampliar as capacidades mecânicas ou sensoriais do corpo
humano, ou para reduzir à ordem e regularidade mensurável os
processos da vida. O autômato é o último passo em um processo
que começou com o uso de uma parte do corpo humano como
instrumento. Sob o desenvolvimento de instrumentos e máquinas
jaz a tentativa de modificar o ambiente de tal modo que se
fortifique e sustente o organismo humano: o esforço é ou bem
para estender as capacidades do organismo ou bem para
manufaturar fora do corpo um conjunto de condições mais
favoráveis na direção de manter seu equilíbrio e assegurar a sua
sobrevivência.

Com base nessa tese, Mumford esboça uma história do progressivo desenvolvimento
tecnológico da espécie humana. Nessa história, ele reserva a palavra “técnica” para designar
não os procedimentos específicos para obter fins práticos (isso é, para ele, a “tecnologia”),
mas a inter-relação do meio social e as inovações tecnológicas. Sempre na sua terminologia,
“máquinas” são dispositivos (como a imprensa ou o tear mecânico) que tendem a operar
automaticamente, à diferença dos instrumentos ou ferramentas, que se prestam à
manipulação dos aparelhos (como um forno de fazer pão ou de fazer tijolos) e das “utilidades”
(como estradas e pontes). Já quando se refere a “a máquina”, está aludindo ao “inteiro
processo tecnológico”, que abrange conhecimento, habilidades e artes, bem como
instrumentos, aparelhos, utilidades e máquinas.

Essas precisões irão nos ajudar a compreender a análise de formas de “técnica” (politécnica,
monotécnica), bem como o alcance da sua expressão “o mito da máquina”. Por outra parte,
essa história da técnica é veículo de uma interpretação do seu significado, de uma filosofia
da técnica (por mais que o autor nunca utilize essa expressão), guiada por brilhantes intuições
que vinculam inesperadamente aspectos ou episódios da história ocidental.
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Ao ditar os fins, a tecnologia destaca certos objetivos, cria outros, ignora ou destrói outros
mais. Na sociedade industrial, o trabalho produtivo é uma meta valorizada; a consagração a
Deus ou a dedicação à arte, por exemplo, não o são (efetivamente, embora possam ser
elogiados retoricamente). Bastaria essa seletividade para suspeitar que a tecnologia não é
neutra com relação a um dado panorama cultural.

Tudo isso tem duas importantes consequências: a atenção ao como mais do que ao porquê
das ações, e a obediência aos peritos (qualquer que seja a sofisticação das suas tarefas). Estes
últimos acabam por definir a realidade com que se deve lidar.

Desse modo, assim como estou doente porque tenho o que o


médico define como a minha doença, ou estou nervoso porque
sofro do que algum psiquiatra define como a minha neurose,
também meus interesses nacionais correspondem ao que meu
governo anuncia que sejam, e o nível da minha educação é o
que o meu diploma afirma. Na medida em que essa suposição
acerca da exclusiva competência de um número sempre
crescente de peritos para definir a realidade é aceita pelo
público sem questionar, nessa medida podemos falar de uma
cultura tecnicista. (STANLEY, Horton; 1981).

O desenvolvimento tecnológico dissocia as formas sociais tradicionais, e com elas, seu modo
de vida. Isso se percebe não apenas na alteração da vida familiar (como com o caso banal do
hábito de assistir à televisão) ou laboral (com a introdução de máquinas e sistemas
automáticos de produção), mas também na educação.

A “tecnologia elimina o [para ela] não essencial e por meio de um uso racional transforma
tudo em um meio. Mais do que a ciência, que se limita a explicar o “como” [das coisas], a
técnica dessacraliza porque demonstra (pela evidência e não por razões, através do uso e
não através de livros) que o mistério não existe. A “técnica” toma posse disso e o escraviza
[...]. A “técnica” nega a priori o mistério. O misterioso é meramente aquilo que não foi ainda
tecnificado.

Do ponto de vista filosófico, a apreciação do impacto cultural da tecnologia exige um esforço


para não julgá-la, acriticamente, desde a posição ideológica que todos temos, seja ela qual
for. Precisamos da coragem para “colocar entre parênteses” (como sugeriria um
fenomenólogo) nossas convicções e indagar, de maneira sistemática, a realidade efetiva das
mudanças culturais operadas pela tecnologia, pois há aqui uma questão empírica
independente dos juízos de valor.

Com efeito, quando se afirma, por exemplo, que na sociedade industrial tecnologicamente
condicionada os fins não são discutidos e as pessoas se interessam apenas pelo como e não
pelo porquê das coisas, cabe perguntar-se se isso foi muito diferente em outras sociedades.
Discutia o cidadão ateniense médio a finalidade do Estado ou o porquê das práticas
pedagógicas? Discutia o cristão medieval a meta existencial da salvação ou a prática dos
sacramentos? É verdadeiramente geral a alegada preferência atual das pessoas pelo
artificial em vez do natural? Onde “começa” o artificial? (Um pão caseiro, vale recordar,
é algo artificial). Por outra parte, será verdade que a tecnologia minimiza capacidades
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humanas tais como a fantasia, a criatividade, o jogo? Acaso os materiais tecnologicamente
produzidos, os aparelhos, as máquinas e os dispositivos não estimulam novas formas de
arte, esporte e diversão? É a maior (e melhor) capacidade de previsão necessariamente
incompatível com dimensões espontâneas (não planejadas) da existência humana? Não
trouxe a tecnologia novas experiências (basta mencionar o cinema)? Essas e outras perguntas
devem ser formuladas numa apreciação equilibrada do impacto cultural da tecnologia.

E ainda resta saber se fenômenos tais como o predomínio da racionalidade instrumental, a


especialização indefinida, a dessacralização de tudo, etc., ou se as diversas modificações
culturais atribuídas à tecnologia não se devem a outros tantos diversos fatores (econômicos,
políticos, etc.), em vez de ter uma causa única. Uma consideração tanto quanto possível des-
ideologizada da influência cultural da tecnologia é sobretudo necessária, para apreciar o
que ela representa enquanto estratégia de criação e aproveitamento de oportunidades.
Entender essa estratégia é imprescindível para melhor compreender a condição humana e o
consequente papel da reflexão filosófica numa civilização tecnológica.

Referências Bibliográficas
BUNGE, M. La investigación científica (trad. de Scientific Research, 1967). Barcelona: Ariel,
1969.
. Racionalidad y realismo. Madrid: Alianza, 1985.
CUPANI, Alberto. Filosofia da tecnologia : um convite. 3. ed. Editora da UFSC, 2011
MUMFORD, L. Technics and civilization (orig. 1934). New York: Harcourt Brace, 1963.
. Technics and human development. New York: Harcourt Brace, 1967. (The
Myth of the Machine, v. 1).
STANLEY, M. The technological conscience: survival and dignity in an age of expertise (orig.
1978). Chicago: The University of Chicago Press, 1981.WINNER, L. Autonomous technology:
technics-out-of-control as a theme in political thought. Cambridge: The MIT Press, 1977.

Referências Consultadas
JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.
Tradução de Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora
PUC-Rio, 2006.
KUHN, T. The structure of scientific revolutions. 2. ed. Chicago: The University of Chicago Press,
1970. Trad. em português: A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1974
e seguintes edições).

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