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Alberto Cupani
O Prometeu definitivamente
desacorrentado, ao qual a ciência confere
forças antes inimagináveis e a economia o
impulso infatigável, clama por uma ética
que, por meio de freios voluntários, impeça
o poder dos homens de se transformar em
uma desgraça para eles mesmos. (Jonas, H.,
2006).
A tecnologia importa porque pode significar tanto a nossa satisfação pelos aparelhos que
tornam nossa vida mais cômoda, o nosso entusiasmo ante as possibilidades que o
computador e a internet nos abrem, quanto o nosso temor às armas cada vez mais potentes e
sofisticadas ou a nossa perplexidade ante a clonagem de organismos. A importância da
tecnologia (isto é, o fato de que ela nos “importa”, quase inevitavelmente) implica que todos
somos levados a pensar, de modo mais ou menos sistemático e duradouro, sobre a sua
presença na nossa vida. Desde a banal questão acerca das vantagens de possuir um telefone
celular, até a requintada meditação de quem se pergunta se não seria melhor um mundo
sem tecnologia, passando pelas pesquisas sociológicas e históricas sobre as formas da sua
existência e evolução, a tecnologia é sem dúvida objeto de reflexão.
Como podemos garantir que a tecnologia constitua um tema de reflexão filosófica? A pergunta
pela natureza da tecnologia é quase obviamente a inicial. Em termos da filosofia clássica,
trata-se da questão do ser ou da essência da tecnologia. É ela uma “coisa”, um processo ou o
quê? Trata-se de algo real ou apenas de uma noção com que pensamos um conjunto de
objetos, atividades e eventos? Há uma diferença essencial entre técnica e tecnologia? Se
considerarmos a atividade tecnológica, percebemos que ela tem, por sua vez, pressuposições
ontológicas. Ela pressupõe, por exemplo, que o mundo é composto de objetos materiais que
se associam formando sistemas, os quais por sua vez evoluem.
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Supõe também que o homem é capaz de alterar processos naturais e até de produzir (ou
destruir) classes naturais. Outra questão ontológica básica é a relativa ao ser dos artefatos.
Que classe de realidade eles representam? Como se diferenciam o natural e o artificial? Existe
hoje em dia algo puramente natural? Como consequência dessas perguntas, torna-se mais
aguda uma questão preexistente: o que é algo natural? Quais são as características
diferenciais dos sistemas artificiais que se autocontrolam com relação aos naturais? Existe
algo a mais que uma mera analogia entre o bom funcionamento de um artefato e a saúde
de um organismo? É concebível uma máquina capaz de levantar e elucidar problemas
originais e de praticar tanto o bem como o mal? Podemos ainda contar entre as questões
ontológicas: tem a tecnologia uma dinâmica própria? É por acaso autônoma (uma suposição
suscitada pela aparente impossibilidade de mudar seu rumo)? Determina a tecnologia os
outros meios da sociedade (economia, política, cultura)? É determinada por algum desses
fatores, em particular?
Com base nessa tese, Mumford esboça uma história do progressivo desenvolvimento
tecnológico da espécie humana. Nessa história, ele reserva a palavra “técnica” para designar
não os procedimentos específicos para obter fins práticos (isso é, para ele, a “tecnologia”),
mas a inter-relação do meio social e as inovações tecnológicas. Sempre na sua terminologia,
“máquinas” são dispositivos (como a imprensa ou o tear mecânico) que tendem a operar
automaticamente, à diferença dos instrumentos ou ferramentas, que se prestam à
manipulação dos aparelhos (como um forno de fazer pão ou de fazer tijolos) e das “utilidades”
(como estradas e pontes). Já quando se refere a “a máquina”, está aludindo ao “inteiro
processo tecnológico”, que abrange conhecimento, habilidades e artes, bem como
instrumentos, aparelhos, utilidades e máquinas.
Essas precisões irão nos ajudar a compreender a análise de formas de “técnica” (politécnica,
monotécnica), bem como o alcance da sua expressão “o mito da máquina”. Por outra parte,
essa história da técnica é veículo de uma interpretação do seu significado, de uma filosofia
da técnica (por mais que o autor nunca utilize essa expressão), guiada por brilhantes intuições
que vinculam inesperadamente aspectos ou episódios da história ocidental.
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Ao ditar os fins, a tecnologia destaca certos objetivos, cria outros, ignora ou destrói outros
mais. Na sociedade industrial, o trabalho produtivo é uma meta valorizada; a consagração a
Deus ou a dedicação à arte, por exemplo, não o são (efetivamente, embora possam ser
elogiados retoricamente). Bastaria essa seletividade para suspeitar que a tecnologia não é
neutra com relação a um dado panorama cultural.
Tudo isso tem duas importantes consequências: a atenção ao como mais do que ao porquê
das ações, e a obediência aos peritos (qualquer que seja a sofisticação das suas tarefas). Estes
últimos acabam por definir a realidade com que se deve lidar.
O desenvolvimento tecnológico dissocia as formas sociais tradicionais, e com elas, seu modo
de vida. Isso se percebe não apenas na alteração da vida familiar (como com o caso banal do
hábito de assistir à televisão) ou laboral (com a introdução de máquinas e sistemas
automáticos de produção), mas também na educação.
A “tecnologia elimina o [para ela] não essencial e por meio de um uso racional transforma
tudo em um meio. Mais do que a ciência, que se limita a explicar o “como” [das coisas], a
técnica dessacraliza porque demonstra (pela evidência e não por razões, através do uso e
não através de livros) que o mistério não existe. A “técnica” toma posse disso e o escraviza
[...]. A “técnica” nega a priori o mistério. O misterioso é meramente aquilo que não foi ainda
tecnificado.
Com efeito, quando se afirma, por exemplo, que na sociedade industrial tecnologicamente
condicionada os fins não são discutidos e as pessoas se interessam apenas pelo como e não
pelo porquê das coisas, cabe perguntar-se se isso foi muito diferente em outras sociedades.
Discutia o cidadão ateniense médio a finalidade do Estado ou o porquê das práticas
pedagógicas? Discutia o cristão medieval a meta existencial da salvação ou a prática dos
sacramentos? É verdadeiramente geral a alegada preferência atual das pessoas pelo
artificial em vez do natural? Onde “começa” o artificial? (Um pão caseiro, vale recordar,
é algo artificial). Por outra parte, será verdade que a tecnologia minimiza capacidades
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humanas tais como a fantasia, a criatividade, o jogo? Acaso os materiais tecnologicamente
produzidos, os aparelhos, as máquinas e os dispositivos não estimulam novas formas de
arte, esporte e diversão? É a maior (e melhor) capacidade de previsão necessariamente
incompatível com dimensões espontâneas (não planejadas) da existência humana? Não
trouxe a tecnologia novas experiências (basta mencionar o cinema)? Essas e outras perguntas
devem ser formuladas numa apreciação equilibrada do impacto cultural da tecnologia.
Referências Bibliográficas
BUNGE, M. La investigación científica (trad. de Scientific Research, 1967). Barcelona: Ariel,
1969.
. Racionalidad y realismo. Madrid: Alianza, 1985.
CUPANI, Alberto. Filosofia da tecnologia : um convite. 3. ed. Editora da UFSC, 2011
MUMFORD, L. Technics and civilization (orig. 1934). New York: Harcourt Brace, 1963.
. Technics and human development. New York: Harcourt Brace, 1967. (The
Myth of the Machine, v. 1).
STANLEY, M. The technological conscience: survival and dignity in an age of expertise (orig.
1978). Chicago: The University of Chicago Press, 1981.WINNER, L. Autonomous technology:
technics-out-of-control as a theme in political thought. Cambridge: The MIT Press, 1977.
Referências Consultadas
JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.
Tradução de Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora
PUC-Rio, 2006.
KUHN, T. The structure of scientific revolutions. 2. ed. Chicago: The University of Chicago Press,
1970. Trad. em português: A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1974
e seguintes edições).