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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo

Alessandra Tavares de Souza Pessanha Barbosa

Nasceu lá na serra uma linda flor: memórias sobre a fundação do


Império Serrano (1947-1952)

São Gonçalo
2012
Alessandra Tavares de Souza Pessanha Barbosa

Nasceu lá na serra uma linda flor: memórias sobre a fundação do Império


Serrano (1947-1952)

Dissertação apresentada como requisito parcial


para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-graduação em História
Social, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração: História Social
do Território.

Orientadora: Prof.ª Dra. Iza Terezinha Gonçalves Quelhas

São Gonçalo
2012
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHD

B238 Barbosa, Alessandra Tavares de Souza Pessanha.


TESE Nasceu lá na serra uma linda flor: memórias sobre
a fundação do Império Serrano (1947-1952) /
Alessandra Tavares de Souza Pessanha Barbosa.
– 2012.
150 f.

Orientadora: Profª Drª Iza Terezinha Gonçalves Quelhas.


Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação.

1. Escola de Samba Império Serrano – História – Teses. 2.


Escolas de samba – Rio de Janeiro (RJ) - Teses. 3. Identidade
cultural – Rio de Janeiro (RJ) - Teses I. Quelhas, Iza Terezinha
Gonçalves. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Faculdade de Formação de Professores.III. Título.
CDU 394.25(815.31)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial


desta dissertação, desde que citada a fonte.

___________________________________ _____________________
Assinatura Data
Alessandra Tavares de Souza Pessanha Barbosa

Nasceu lá na serra uma linda flor: memórias sobre a fundação do Império


Serrano (1947-1952)

Dissertação apresentada como requisito parcial


para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-graduação em História
Social, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração: História Social
do Território.

Aprovada em 5 de janeiro de 2012.

Orientadora: Prof.ª Dra. Iza Terezinha Gonçalves Quelhas


Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo
- UERJ
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Gelsom Rozentino de Almeida
Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo
- UERJ

Prof.ª Dra. Helenice Aparecida Bastos Rocha


Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo
- UERJ

Prof. Dr. Marcelo de Souza Magalhães


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

São Gonçalo
2012
DEDICATÓRIA

Aos meus parceiros desta vida, companheiros inseparáveis, Fernando Pessanha


meu eterno negro gato e meu Joãozinho, menino falante de alegria pulsante, pelo
incentivo constante amor e fé.
AGRADECIMENTOS

        
        
        Chegar até o momento dos agrecimentos tem um sabor ímpar - quem já ficou
às voltas com um trabalho acadêmico sabe bem do que estou falando. É um misto
de satisfação por ter terminado e com um tanto de nostalgia pelo que passou - um
pouco como os idosos de Ecléa Bosi ao evocarem a memória de suas vidas.
                Tia  Eulália  tem  uma  fala  que  muito  me  impressionou  neste  caminho  de
pensar a memória: mesmo na dificuldade era bom. Diante deste prisma faço de
suas  palavras  minhas,  para  traduzir  um  pouco  do  que  se  passa  comigo  neste
momento. Minhas identidades de mulher do século XXI foram colocadas à prova.
Ser  estudante  e  ter  de  equilibrar  o  constante  chamado  para  ser  a  mulher
multitarefas, mãe, esposa, filha, neta, tia, irmã, dona de casa e trabalhadora, já é
em  si  uma  dificuldade,  mas  daquelas  da  tia  Eulália:  difícil  mas  boa.  Assumindo
todas as minhas identidades, as enumeradas e as que talvez não se percebam,
posso dizer: - uffa!
        Naturalmente que este percusso não foi feito sozinho. Tenho em minha vida
diversos parceiros que me ajudaram a manter o equilíbrio e seguir em frente.
        Para começar, quero agradecer a Deus, Mestre querido, pela oportunidade
de  estar  aqui,  passando  por  todos  estes  momentos  em  direção  ao
desenvolvimento. Agradecer à base da minha vida: minha família, minha equipe, a
razão  eterna  do  meu  prosseguir.  À  minha  mãe  Clarisse  e  minha  irmã  Monica,
pelas inúmeras palavras de incentivo que só uma Tavares de peruca forte sabe
fazer,  e  pelos  vários  sequestros  consentindos  do  meu  muito  falante,  Joãozinho,
para a casa da vovó e da titia.
        Aos meus amigos queridos, malungos das primeiras viagens, que guardo de
longa  data:  Kaline,  Pc,  Marcelo  e  Tica  pelos  momentos  de  descontração  e
incentivo.  Às  minhas  amigas  e  vizinhas  Zê  e  Larissa,  pelos  vários  socorros  de
computador e impressora - foi em um desses socorros que vi meu nome na lista
dos  aprovados  no  mestrado.  À  minha  amiga  Elaine  Maciel,  pela  presença
constante  ao  longo  de  todo  o  trabalho  com  suas  leituras  sofisticadas  e  pelo
incentivo  nos  momentos  frágeis.  Aos  meus  malungos  de  mestrado,  amigos
companheiros  que  fiz  no  trabalho  diário,  nas  aulas  e  nas  várias  discussões  nos
almoços na Uerj: Carine Neves, Carlos Torres Filho, Rafael Mello, Fernando M. da
Mota, Walter Barreto, Luciana Neco, Tatiane Queiroz, Angela Pimenta, Henrique
Mendonça,  Daniele  Lopes.  E  em  especial  às  minhas  amigas  Marta  Ferreira  e
Natália  Crivello,  que  compartilharam  a  travessia  de  duas  cidades  em  direção  ao
subúrbio do Rio de Janeiro, parte deste trajeto na nossa tão conhecida minhoca
de  metal,  o  trem,  onde  entre  vários  picolés  da  MoleKa,  no  calor  inclemente  -
realidade bem conhecida de todo suburbano - discutimos boa parte dos trabalhos
que desenvolvemos no programa.
        Quero agradecer aos meus alunos e amigos de trabalho do Colégio Primeiro
de Maio, pelo incentivo e por me ajudarem a me equilibrar entre minhas múltiplas
identidades.
                Ao  amigo  Jorge  Luíz,  que  abriu  as  porta  do  Império  Serrano,  onde  fui
recebida com muito carinho pelos membros da Velha-Guarda, em especial à Dona
Vilma, Dona Pedrina, Sr. Mazinho e Sr. Hélio. Pelas horas roubadas de nostágicas
lembranças de uma vida dedicada à escola de samba do coração, e da vida. Aos
meninos  do  setor  de  pesquisa  do  MIS  Lapa,  Luiz  Antônio  e  Valter,  pela  grande
gentileza de me receber.
        Ao Programa de Mestrado em História Social, por ter me acolhido ainda com
um  pré-projeto  amplo,  que  foi  sendo  delineado  ao  longo  do  caminho.  Muito
especialmente à minha orientadora Iza Quelhas, pelo respeito e tranquilidade com
que  me  ajudou  a  decidir  quais  caminhos  tomar;  pessoa  que  entrou  na  minha
história  e  além  das  questões  acadêmicas  me  fez  pensar  em  como  ser  forte  e
exigente  sem  desrespeitar  os  processos  do  outro.  Agradeço  ao  Marcelo
Magalhães  e  à  Helenice  Rocha  pelas  excelentes  aulas  que  contribuíram  muito
para  o  desenvolvimento  do  trabalho  e  pela  disponibilidade  em  fazer  parte  da
banca  apreciadora  deste  trabalho.  E  por  último  e  não  menos  importante,  aos
secretários  do  programa,  Andréia  e  Vinicius,  que  diante  da  grande  burocracia
muito  se  esforçaram,  contribuindo  para  que  tudo  corresse  bem  nesse  amplo  e
árduo processo de aprendizagem.
        
RESUMO

BARBOSA, Alessandra Tavares de Souza Pessanha. Nasceu lá na serra uma linda


flor: memórias sobre a fundação do Império Serrano (1947-1952). 2012. 150 f.
Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Formação de Professores
de São Gonçalo, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2012.

As escolas de samba no Rio de Janeiro se constituíram como espaços


privilegiados para atuação política dos moradores das comunidades e assim
extrapolaram sua função primeira de promover o lazer para o carnaval em direção à
visibilidade das comunidades a elas ligadas. Neste contexto, enfocam-se o Morro da
Serrinha e a fundação da Escola de Samba Império Serrano, em uma ação que
remonta as redes de relações sociais baseadas em laços familiares. a memória da
história da escola vincula-se à memória das famílias locais, elementos centrais de
produção e reprodução de um discurso legitimador para a agremiação na região.
Através de uma espécie de discurso vencedor, desde os motivos para a fundação de
uma nova escola para a região até os carnavais vencedores, a identidade local foi
estabelecida em um movimento dialético, pois o lugar passou a ser identificado pela
escola de samba, e esta e seus moradores pelo lugar. Assim foi possível identificar
na rede familiar do Morro da Serrinha projetos próprios que, através da escola de
samba, transpuseram barreiras sociais e angariaram benefícios para a região.

Palavras-chave: Escola de Samba, identidades, sociabilidade, rede familiar.


RESUMEN

Las escuelas de samba en Rio de Janeiro se constituyeron como un espacio


privilegiado para la acción política e los residentes de la comunidad. Sin embargo,
extrapolaron su función principal: la promoción del ocio para el carnaval, en dirección
a la visualización de las comunidades a ellas vinculadas. En este contexto está el
Morro de la Serrinha y la fundación de la Escuela de Samba Império Serrano, en una
acción que remonta las redes sociales basadas en vínculos familiares. La memoria
de la historia de la escuela se vincula a la memoria e las familias locales, elementos
claves de la producción en la región. Por medio de una especie de discurso licito
ganador, como las razones para la criación de una nueva escuela para la región y
hasta la identidad ganadora, la identidad local fue situada en un movimiento
dialéctico, pues el lugar pasó a ser identiicado por la escuela de samba junto a sus
componentes, e ella por el local. Por lo tanto, fue possible identificar en la red
familiar los proyetos proprios del Morro de la Serrinha que, por intermedio de la
escuela de samba, lograron superar las barrera y aumentar los beneficios sociales,
para la región.

Palabras clave: Escuela de Samba, identidades, sociabilidades, la red familiar.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

EFDPII Estrada de Ferro D. Pedro II


GRES Grupo Carnavalesco Escola de Samba
LIESA Liga Independente das Escolas de Samba
UES União das Escolas de Samba
SUMÁRIO

  INTRODUÇÃO 11
1 PROVAREMOS AO SUBÚRBIO E TODA A CIDADE 22
1.1 As escolas de samba: identidade e comunidade 22
1.2 Madureira: a capital do subúrbio - capital do samba 29
1.2.1 A ocupação do subúrbio da central 30
1.2.2 Modernização e segregação espacial no Rio de Janeiro 36
1.3 O morro da Serrinha 38
1.4 A construção do lugar social 42
2 O SAMBA DO CONCURSO NÃO ERA AQUELE 45
2.1 Memória e História 45
2.2 Memória coletiva e memória individual 51
2.3 A memória em campo 53
3 E A NOSSA UNIÃO CONSAGROU 68
3.1 Espaços familiares 68
3.2 Rede social, rede de família e sociabilidade 77
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 92
  REFERÊNCIAS 96
  ANEXO A - Transcrições das entrevistas 103
  ANEXO B - Histórico da Fundação 143
  10

INTRODUÇÃO

Este trabalho desenvolve-se em torno da fundação do Grupo Carnavalesco


Escola de Samba (GRES) Império Serrano, em 1947, e consiste em verificar, na
história da fundação da escola, alguns movimentos que levaram a edificações de
identidades, assim como em identificar algumas construções de discursos
estruturados a partir da fundação da escola. Desta forma, visa apreender a
existência de projetos sócio-políticos que foram desenvolvidos a partir da
agremiação.
As práticas culturais do morro da Serrinha, local sede da escola de samba
até a década de 1960 1 , faziam parte de expressões do entretenimento local.
Algumas festas eram promovidas de maneira dispersa nas casas das famílias da
região. Com a fundação da GRES Império Serrano, houve um processo de
edificação do espaço que seria um dos representantes das práticas culturais da
região. Assim, a comunidade estruturou seu discurso identitário com base na
fundação da escola de samba, conforme interpretações desenvolvidas ao longo
desta pesquisa.
As transformações nas condições de vida das famílias do Morro da Serrinha
tiveram como origem um universo local que buscou seu espaço nas políticas
públicas. Através da cultura, o carnaval, desenvolvido a partir do Império Serrano
pelos moradores, atraiu o olhar, mesmo que passageiro, para a região fazendo com
que essa visibilidade coletiva, inserida em um processo de pertencimento, revelasse
a escola de samba como um local gerador de identidades.
De maneira geral, o termo identidade pode ser compreendido como um
processo de articulação pelo qual nos identificamos com os outros, a partir do
reconhecimento de alguma origem ou semelhança comum. Como efeito de
processos políticos e/ou sociais, a identidade é uma categoria de representação
social fundamentada na relação dialética entre o individual e o social, baseada na
                                                            
1
 A sede da escola de samba situada no Morro da Serrinha teria desabado na década de 1960, por conta de um
forte temporal que se abateu sobre cidade do Rio de Janeiro. Cf. MUSEU DA IMAGEM E DO SOM (Brasil).
Depoimentos para Posteridade: Escola de Samba Império Serrano. Rio de Janeiro, 1984.
 
  11

ideia de que o homem estabelece uma relação dupla, em que ao mesmo tempo é
individual e coletivo. Neste caso, a identidade coletiva é sustentada através de
interações entre os indivíduos.
O rompimento com a dualidade entre o coletivo e social na constituição das
identidades pode ser encontrado na constituição das memórias. Na direção da
construção de um discurso memorialista, que dá continuidade à identidade aos
grupos, a memória seria um elemento constituinte de um sentimento de identidade,
que dá coerência e continuidade às memórias coletivas. Segundo Pollack:

A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto


individual como coletiva, na medida em que é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de
2
uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.

Neste sentido, a pesquisa desenvolve-se em torno da concepção identitária,


a partir do viés cultural e, por conseguinte, da cultura popular, entendendo a questão
da identidade como um processo no qual os indivíduos constroem, em sociedade,
seus próprios parâmetros de identificação. Sendo assim, esta análise contempla,
como em Stuart Hall, novas formas de os indivíduos se relacionarem entre si, pois
concebe a questão identitária atrelada ao processo de ampliação e/ou multiplicação
das formas de representação e dos sistemas de significados do mundo
contemporâneo. Não mais uma categoria unificada, ela se manifesta em um
processo múltiplo, definido e construído historicamente, no que Hall chamou de
“celebração móvel” 3 .
Associado a novos caminhos do fazer histórico, o conceito de cultura foi
redescoberto na década de 1970 e desde então vem desfrutando de uma
renovação. Utilizando-se de recursos de análise da antropologia, as ciências sociais
passaram a utilizar o termo cultura de forma estendida para tudo que possa ser
apreendido em uma sociedade, como os modos de ler, de portar-se à mesa, falar ou
silenciar-se, e tantos outros códigos de comportamento.

                                                            
2
POLLACK, Michael. “Memória e Identidade Social” (artigo). In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, 1992,
p.204. 

3
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós- modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p.8.
 
  12

Os críticos da homogeneização da cultura ressaltam a importância de


considerarmos os diferentes grupos de indivíduos envolvidos em sociedade. Pensar
a cultura popular no plural, como culturas populares que convivem no mesmo tempo
e espaço, sem necessariamente entrarem em conflito. Grupos culturais diversos,
mais ou menos autônomos, que se entrecruzam em seus múltiplos contatos tecidos
pela vida em sociedade.
No que se refere ao recorte temporal, esta dissertação abarcará o período
compreendido entre os anos de 1947 e 1951. Segundo a narrativa local, o carnaval
de 1947 foi o marco de um movimento de cisão da Escola de Samba Prazer da
Serrinha, que levou à fundação do Império Serrano. Nos anos posteriores, ocorrem
os carnavais que deram o tetracampeonato à escola de samba (1948, 1949, 1950,
1951).
O recorte temporal, neste trabalho, coloca-se como um marco de mudanças
na estrutura das relações dos indivíduos com os movimentos coletivos na localidade.
Os anos compreendidos entre a cisão, que motivou a fundação da nova escola de
samba, e os anos do tetracampeonato, nos quais houve a consolidação do discurso
vitorioso do grupo da Serrinha, houve certa articulação com a história anterior dos
atores sociais envolvidos. Desta forma, remeter-se-á, em alguns momentos, a um
tempo anterior, para compreensão de aspectos da ruptura com o modelo de
carnaval e os projetos que giram em torno da estruturação e legitimação para a
fundação da nova escola de samba para a região.
Segundo a história desenvolvida pela literatura que estuda o Império
Serrano e as narrativas dos integrantes da agremiação, houve uma articulação dos
insatisfeitos da Escola de Samba Prazer da Serrinha e de outros blocos da região,
cujas famílias abriram as portas de suas casas, onde as reuniões para a fundação e
a sede da nova escola de samba tiveram lugar. Sobre esse movimento, declara Luiz
Fernando Vianna:

Pouco depois do carnaval, em 23 de março, os descontentes reuniram-se na casa


da Eulália Oliveira, na Rua da Balaiada, no alto da Serrinha, e criaram o Império
Serrano, absorvendo ainda integrantes da Unidos da Congonha e da Unidos da
Tamarineira, também do morro. 4

                                                            
4
 VIANA, Luiz Fernando. Geografia Carioca do Samba. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2004, p.76.
  13

A Escola de Samba Prazer da Serrinha era considerada a representante da


comunidade nos campeonatos de escolas de samba no Rio de Janeiro. Os primeiros
campeonatos entre as agremiações foram patrocinados pelos jornais cariocas.
Coube ao jornal “Mundo Sportivo” 5 o pioneirismo na organização dos desfiles das
escolas de samba, em 1932. A partir da iniciativa dos jornais, os líderes das
agremiações se organizaram e fundaram em 1934 a União das Escolas de Samba
(UES). Com objetivo de organizar as exibições públicas e a “obtenção de favores e
outros interesses que [se] revertam em benefício para as filiadas” 6 , a UES adquiriu
os subsídios financeiros e a oficialização dos desfiles.
A Escola de Samba Prazer da Serrinha foi participante do processo de
organização e oficialização dos desfiles. No entanto, segundo a narrativa local, a
relação dos integrantes com o seu presidente, Alfredo Costa, era conturbada, pois
era acusado de ser arbitrário em sua administração.
Do carnaval de 1945 ao de 1947, uma série de desentendimentos por parte
dos integrantes em relação à administração da escola de samba motivou o
movimento que levou à fundação do Império Serrano.
Dentre os desentendimentos com a administração da Prazer da Serrinha,
houve o episódio de 1945, quando o Mestre Fuleiro 7 , diretor de harmonia, quebrou
as alegorias em protesto contra as decisões de Alfredo Costa. Naquele ano, a
escola de samba foi à Praça Onze sem suas alegorias e fantasias, sem o objetivo de
concorrer; apenas para se fazer presente.
Em 1946, houve a substituição do samba que, segundo o discurso local,
levou à cisão dos componentes da Prazer da Serrinha. Por conta de um
desentendimento com a Ala dos Compositores, Alfredo Costa decidiu, no momento
do desfile, substituir o samba “A Conferência de São Francisco” 8 , de Silas de

                                                            
5
 Segundo Sérgio Cabral, o acervo do jornal Mundo Sportivo se perdeu, as notícias que envolviam sua
participação como instituição promotora do evento pode ser pesquisada através de outros jornais da época. Ver.
CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996. 

6
 Estatuto da União das Escolas de Samba 1934. Apud. CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996. 
7
 Antônio dos Santos. Nascido em 1911. 

8
  Este samba ficou conhecido também como “A Conferência da Paz”.  
  14

Oliveira e Mano Décio da Viola, pelo samba “Alto da Colina”, de Albano, que não
tinha ligação com o tema do desfile, revoltando componentes e compositores.
Segundo a narrativa local, teria sido por conta da substituição do samba que
a Prazer da Serrinha obteve o décimo primeiro lugar no campeonato das Escolas de
Samba 9 . Eulália do Nascimento 10 , ao narrar os acontecimentos do desfile de 1946,
reforça o discurso local a este respeito:

O Império Serrano aqui surgiu por procedência de aborrecimentos, todos nós


aqui éramos Serrinha, todos nós aqui saímos na Serrinha, no Prazer da
Serrinha. Nós fizemos um carnaval Conferência da Paz, muito bom o
carnaval, e nós tínhamos até plena certeza que podíamos não ser os
campeões, mas nós íamos ser classificados em algum lugar, vínhamos em
algum lugar no desfile, quando chegou o momento [...] chegamos lá, era na
Praça Onze, era na Praça Onze que era antigamente, a Serrinha chegou
entusiasmada, os rapazes vestidos de alferes aquelas roupas bonitas, as
meninas, nós todos esperando o samba que era da Conferência da Paz , o
seu Alfredo Costa canta o samba de terreiro que não era o samba, era um
samba da quadra, um samba comum. 11

Mesmo com as insatisfações derivadas do carnaval de 1946, a Prazer da


Serrinha conseguiu reunir sua Ala de Compositores e saiu no Carnaval de 1947 com
o samba enredo composto por Silas de Oliveira de Mano Décio da Viola, alcançando
o sétimo lugar 12 . Os descontentamentos aliados aos resultados deixaram “feridas
que já não eram mais cicatrizáveis, tanto que muitos componentes haviam deixado
de desfilar” 13 no carnaval de 1947.
Os episódios supracitados foram narrados por integrantes da agremiação e
já reproduzidos em alguns livros e dissertações. Como trabalho pioneiro, tem-se o
livro de Valença e Valença 14 , publicado em 1981, que traça um panorama dos
personagens envolvidos com a escola de samba e dos carnavais desenvolvidos pelo
Império Serrano, desde sua fundação até a década de 1980, quando os autores
                                                            
9
 VALENÇA, Rachel & VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha Serrano: O Império do Samba. José Olympio, 1981.
CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996.  
10
 Eulália era membro da família Oliveira. Adotou o sobrenome Nascimento de seu marido, para que não haja
confusões sobre sua ligação familiar, será referida da mesma forma como ficou conhecida na região: como Tia
Eulália. 
11
  TIA EULÁLIA: O Império do Divino (documentário). Direção de Erick Oliveira. Rio de Janeiro: Plano Geral
Filmes, 2007. DVD. 

12
 CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996. 

13
 VIANNA, Luiz Fernando. Geografia Carioca do Samba. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2004. 

14
 VALENÇA, Rachel & VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha Serrano: O Império do Samba. José Olympio, 1981.  
  15

produziram um vasto material de entrevistas. A obra é uma das poucas que se


dedicaram exclusivamente a tratar da escola de samba a partir das relações entre
pessoas e famílias, através da narrativa dos entrevistados.
Vasconcellos 15 produziu em 1991 outro livro, o Império Serrano: Primeiro
Decênio 1947-1956. Nele o autor desenvolveu um amplo levantamento documental,
com atas de reuniões, regimento interno da agremiação, matérias de jornais e
algumas programações de festas realizadas pela escola. Seu trabalho constitui-se
uma das mais importantes obras sobre o Império Serrano, por ser hoje uma
referência que permite o acesso a réplicas documentais, da história da fundação da
agremiação, que foram perdidas. Em dado período, conturbado pela administração
da escola de samba, os documentos financeiros e administrativos da agremiação
foram queimados, perdendo-se todos os registros relacionados aos anos iniciais do
Império Serrano.
Outros trabalhos desenvolvidos sobre as manifestações culturais da região
incitam a reflexão sobre as relações entre os moradores do morro e os espaços
culturais da região. Dentre eles destaca-se o estudo pioneiro de Edir Gandra, Jongo
da Serrinha: do terreiro aos palcos 16 desenvolvido a partir de entrevistas com as
famílias jongueiras 17 mais antigas da região e, posteriormente, o trabalho sobre a
construção de um centro de memória para o Jongo, no morro da Serrinha,
desenvolvido por Dyonne Boy 18 .
Acerca da relação dos moradores de Madureira e do morro da Serrinha com
o samba e com a música, existem os trabalhos de Oliveira e Silva sobre Silas de
Oliveira 19 e a dissertação de mestrado de Ana Paula Ribeiro 20 sobre as redes de
sociabilidades desenvolvidas no subúrbio através da música.
                                                            
15
 VASCONCELLOS, Francisco. Império Serrano: Primeiro Decênio: 1947- 1956. Coleção Ensaios de Carnaval,
nº 2. Rio de Janeiro, 1991. 

16
  GANDRA, Edir. Jongo da Serrinha: dos terreiros aos palcos. Rio de Janeiro: Giorgio, 1995. 
17
 Praticantes do jongo.
18
 BOY, Dyonne Chaves. A construção de um centro de memória na Serrinha. 2006. Dissertação de Mestrado
Profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais – Centro de pesquisa e documentação de História
Contemporânea, Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2006. 
19
 OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de & SILVA, Marília T. Barboza da. Silas de Oliveira : Do jongo ao samba-enredo.
Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981. 

20
 RIBEIRO, Ana Paula Alves. Samba São Pés Que Passam Fecundando O Chão... Madureira: Sociabilidade e
conflito em um subúrbio musical. Rio de Janeiro: UERJ, 2003. Dissertação: Mestrado em Ciências Sociais. 
  16

Esta pesquisa baseou-se em fontes escritas e orais. No que se refere à


documentação escrita, foram utilizados o Estatuto e o Regimento Interno do Império
Serrano aprovados após sua fundação, ambos publicados na obra de Vasconcellos.
Foi utilizado ainda um documento do acervo intitulado GRES Império
Serrano, na sede administrativa da Liga Independente das Escolas de Samba
(LIESA). No documento observa-se a falta de assinatura de quem o produziu, mas
na sua narrativa encontram-se indicações de que teria sido escrito por Sr. Sebastião
Oliveira 21 , um dos fundadores da escola de samba, indicação esta aceita e citada
por Valença e Valença como sendo verídica. Este documento foi utilizado nesta
dissertação como um suporte histórico sobre a escola de samba, o qual,
independente da sua autoria, foi produzido e encaminhado pela administração da
agremiação para ser anexado ao acervo da instituição que organiza hoje os desfiles
das escolas de samba no Rio de Janeiro.
No referido documento, há indícios de um projeto segundo a perspectiva de
Gilberto Velho, que o entende como forma de “negociação da realidade” com outros
atores sociais, sejam individuais ou coletivos, feito um modo de “expressar e articular
22
interesses” .
Considerou-se também nesta pesquisa o resultado de um projeto
desenvolvido em 1968 pelo Museu da Imagem do Som, intitulado Depoimentos para
a Posteridade – Escola de Samba Império Serrano 23 . O objetivo do projeto era fazer
um histórico de todos os carnavais da escola de samba e para tanto produziu
entrevistas com a diretoria da agremiação e alguns compositores, em dois
momentos: em 1968 e 1984. O primeiro CD, o de 1968, faz uma sequência de
carnavais de 1947 até 1968; o segundo trabalha com os carnavais de 1969 até
1984, e algumas questões políticas são levantadas, bem como as relações gerais
entre os indivíduos e os grupos.
Através de entrevistas, produzidas pela autora desta dissertação, com o
grupo de pessoas da Velha Guarda da escola de samba, procurou-se construir um

                                                            
21
Foi compositor de muitos sambas dentre estes “Aquarela Brasileira”, sendo o compositor com o maior
número de sambas-enredo, com 14 no total, apresentados nos carnavais pelo Império Serrano. Nascido em
1916. 

22
 VELHO. Gilberto. Projeto e Metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed. 2003, p.103. 

23
 MUSEU DA IMAGEM E DO SOM (Brasil). Depoimentos para Posteridade: Escola de Samba Império Serrano.
Rio de Janeiro, 1968 e 1984. 
  17

material que serviu como fonte para a pesquisa. Foram selecionadas pessoas que
participaram da GRES Império Serrano no período de sua fundação ou que tiveram
participação nos anos iniciais da escola. Foram realizadas entrevistas com homens
e mulheres que participaram ativamente no período compreendido pelo recorte
temporal da pesquisa e que ainda hoje exercem algum tipo de trabalho efetivo
dentro da escola de samba.
O enfoque temático das entrevistas, realizadas no período de 2010 a 2011,
circundou questões referentes ao Império Serrano e às relações dos indivíduos com
a agremiação. Assim, o método de entrevista considera que a memória coletiva não
está desassociada da memória individual, ou biográfica, então cada evocação sobre
a escola de samba aparece permeada pela história de vida do entrevistado. Verena
Alberti ressalta sobre a relação do método:

Apesar dessas diferenças, ambos os tipos de entrevista de história oral


pressupõem a relação com o método biográfico: seja concentrando-se sobre
um tema, seja debruçando-se sobre um indivíduo e os cortes temáticos
efetuados em sua trajetória, a entrevista terá como eixo a biografia do
entrevistado, sua vivência e sua experiência. 24

Em uma articulação entre a produção da fonte e a pesquisa histórica, o


método se fez presente inserido nas relações entre história e memória,
considerando que, no processo de produção documental, não se pode perder de
vista o grau de intervenção existente entre o entrevistador e a narrativa do
entrevistado. Neste sentido, Lucilia Delgado alerta para a relação movediça entre
história oral, memória e História:

A história oral é um procedimento metodológico que busca, pela construção


de fontes e documentos, registrar, através de narrativas induzidas e
múltiplas, testemunhos, versões e interpretações sobre a História em suas
múltiplas dimensões. 25

Considerando-se a produção cultural local, foram inseridos nos títulos de


abertura dos capítulos trechos de sambas desenvolvidos na agremiação. São

                                                            
24
 ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3ª Ed. Rio de Janeiro: FGV. 2005, p.38. 

25
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História Oral: Memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica,
2006.
 
  18

músicas compostas na categoria samba de exaltação, utilizadas nas quadras ou no


início das apresentações da escola para destacar aspectos da história da
agremiação.
Título: Nasceu lá na serra uma linda flor: Memórias sobre a fundação do
Império Serrano, 1947-1951, samba de Antenor Rodrigues de Oliveira:

Nasceu lá na Serra
Uma linda flor
E a nossa união consagrou
Império Serrano quando nasceu
26
Foi mais uma estrela que apareceu.

Capítulo 1 – Provaremos ao subúrbio e toda a cidade, samba de Silas de


Oliveira e Orlando:

Provaremos ao subúrbio
e toda a cidade
que nosso sonho foi realidade
meu Império eu lhe digo a verdade
o momento pr’a nós é muito sério
oh! meu Império... 27

Capítulo 2 – O samba do concurso não era aquele, samba de Sebastião


Oliveira:

Quase que chorei


Quando a nossa escola desfilou
Senti grande emoção
Que meu coração quase parou

O samba do concurso não era aquele


Era um samba harmonioso
Que Mano Décio escreveu
Serra, dos meus sonhos dourados 28

                                                            
26
 OLIVEIRA, Antenor Rodrigues de. Sem título. 1947. 
27
 OLIVEIRA, Silas e Orlando. Rio de Janeiro. [entre 1947 e 1948]. O samba em questão é conhecido pelos
pesquisadores e frequentadores da escola de samba, mas não se tem uma ficha técnica que informe o ano e o
nome da música; sabe-se unicamente que foi um dos primeiros sambas compostos por Silas de Oliveira em
exaltação à nova escola de samba. 

28
 OLIVEIRA, Sebastião. Quase que chorei. Rio de Janeiro, 1947.  
  19

Capítulo 3 – E a nossa união consagrou, samba de Antenor Rodrigues de


Oliveira:

Nasceu lá na Serra
Uma linda flor
E a nossa união consagrou
Império Serrano quando nasceu
29
Foi mais uma estrela que apareceu.

Este estudo divide-se, por tanto, em três capítulos.


Intitulado “Provaremos ao subúrbio e toda a cidade”, o primeiro capítulo
trata do o processo de enraizamento afetivo na transformação de lugares físicos em
lugares afetivos, através das ações individuais ou coletivas. Em seguida, discute-se
como as escolas de samba participaram deste processo de enraizamento que, por
sua vez, passa a ser um elemento dentro do processo de construção identitária para
a região à qual a agremiação está ligada. A partir de tais discussões, focaliza-se o
bairro de Madureira e a região do morro da Serrinha na construção e exposição de
uma identidade local que se irradia da escola de samba.
O segundo capítulo, sob o título “O samba do concurso não era aquele”,
expõe as discussões sobre “Memória e História”, e a relação entre a nostalgia de
quem lembra com a construção de “lugares de memória”, no sentido utilizado por
Pierre Nora 30 . Em seguida, com a “Memória em Campo”, através da narrativa dos
membros da Velha Guarda da escola de samba, são discutidas as possíveis versões
e/ou construções de um discurso legendário para a fundação do Império Serrano.
O terceiro capítulo, “E a nossa união consagrou”, discute a relação entre as
famílias do morro da Serrinha, como grupo de ajuda mútua, com as táticas próprias
de superação das questões de subsistência. Assim identifica-se uma possível
transformação da formação da família nucleada para a compreensão desta de
maneira ampliada. Em uma composição através de redes de famílias, os moradores
do morro da Serrinha encontraram no Império Serrano um caminho de
desenvolvimento de seus projetos.

                                                            
29
 OLIVEIRA, Antenor Rodrigues de. Sem título. 1947. 
30
 NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares” (artigo). In: Projeto História. São Paulo,
nº 10, dez. 1993, p. 7-28. 
  20

1 PROVAREMOS AO SUBÚRBIO E TODA A CIDADE

1.1 As Escolas de Samba: identidade e comunidade

Diante da amplitude do conceito de identidade, este trabalho considerou


relevantes as concepções que envolvem as questões culturais. Para Stuart Hall, “as
identidades modernas estão sendo ‘descentradas’, isto é, deslocadas ou
fragmentadas” 31 . Desta forma, certo tipo de mudança estrutural estaria
transformando as sociedades, “fragmentando as paisagens culturais”, abalando a
ideia de sujeito integrado, na “crise das identidades”. No entanto, tal crise não seria
uma perda de referências identitárias, mas o delineamento de novas formas de
relação entre os indivíduos, na chamada “pós-modernidade”. A questão de
identidade é colocada a partir da busca dos indivíduos por seu lugar na sociedade,
construindo parâmetros próprios de identificação. Assim, novas formas de
identificação são construídas na medida em que os “sistemas de significado e
representação cultural se multiplicam”, uma vez que:

A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada


continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida
historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades que não
são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. 32

33
Para Leopoldi , as características das escolas de samba em seus anos
iniciais foram baseadas nas relações de vizinhança. A proximidade geográfica é
destacada pelo autor como aspecto de congregação dos indivíduos. Na construção
das identidades coletivas, o indivíduo adequa-se aos costumes e valores dos grupos
                                                            
31
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p.8. 

32
 Ibidem. p.13. 
33
 LEOPOLDI. José Sávio. Escola de samba, ritual e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2010, p.94.

 
  21

com os quais se relaciona. Sendo assim, o espaço geográfico assume um papel


importante na construção de identidades ligadas às escolas de samba. Através dos
processos políticos, sociais e culturais, os espaços ganham significados. As relações
cotidianas, dos indivíduos com o local passam por uma espécie de construção que
dá valor afetivo a certas regiões. Desta forma, alguns laços afetivos se mantêm na
circulação cotidiana, através de pontos de encontros, desde espaços reservados
para as tarefas diárias até os espaços de lazer, como as escolas de samba.
A relação subjetiva entre os homens e o espaço tem sido explorada pelas
Ciências Sociais através da categoria “lugar”. A geografia humanística 34 tem-se
debruçado sobre a questão, no tocante aos significados que estes assumem para os
indivíduos. As análises que contemplam essa corrente de pesquisa preocupam-se
em interpretar os códigos e significados dos lugares, ressaltando os sistemas de
ideias dos indivíduos, considerando a vivência no lugar, suas culturas, as quais, por
sua vez, influenciam experiências e ações. Diante desta perspectiva, “o lugar,
recortado afetivamente, emerge da experiência e é um ‘mundo’ ordenado e com
35
‘significado’ ” .
Através de valores e significados especiais atribuídos pelos indivíduos, os
lugares passam por uma espécie de enraizamento afetivo. O cotidiano e as práticas
culturais são formas pelas quais os lugares ganham certo caráter de afetividade para
os indivíduos e os grupos. A incorporação de uma espécie de cultura local é um
aspecto da formação da identidade. A cultura local delineia-se a partir da relação em
que os indivíduos e/ou grupos estabelecem seus laços. Assim, a identidade local
está carregada de experiências e vivências que passam pelo individual e pelo
coletivo. Neste sentido, é possível analisar as ações e/ou percepções dos homens
através da transformação dos espaços físicos em lugares, buscando não somente
os laços de afetividade que unem os grupos aos lugares, mas também considerando
os aspectos do cotidiano. Para Mello:

                                                            
34
  Desde a década de 1970, a Geografia Humanística tem buscado uma análise que aborde o espaço vivido
pelos seres humanos como fundamento de investigação. Esta abordagem percorrida pela Geografia tem gerado
diversos trabalhos que buscam interpretar como o homem se apropria, se relaciona e se utiliza do espaço no seu
cotidiano. 

35
 TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. 1930. Tradução de Lívia de Oliveira, São Paulo:
Difel, 1983. 

 
  22

Os pertences, parentes, amigos e a base territorial experienciada fazem


parte do acervo íntimo do indivíduo. Pausa, movimento e morada conferem
ao mundo vivido a distinção de lugar. As experiências nos locais de
habitação, trabalho, divertimento, estudo e dos fluxos transformam os
espaços em lugares, carregam em si experiência, logo, poesia, emoção,
sensação de paz e segurança dos indivíduos que estão entre os “seus”, tem
uma conotação de pertinência por pertencer à pessoa e esta a ele, o que
confere uma identidade mútua, particular aos indivíduos. Assim, o lugar é
recortado emocionalmente nas experiências cotidianas. [...] Os geógrafos
humanísticos insistem que o lugar é o lar, podendo ser a casa, a rua, o
bairro, a cidade ou a nação. Enfim, qualquer ponto de referência e
36
identidade.

As escolas de samba são agremiações que foram, nos seus anos iniciais,
constituídas por pessoas que habitavam o mesmo lugar e que congregavam o gosto
pelo carnaval. As bases da relação das escolas de samba com o lugar são os
“sambistas moradores” 37 , pois são estes, de maneira geral, que ensaiam durante o
ano, participam de eventos em datas diferentes do carnaval (quando levam o nome
e a bandeira da escola, e com eles o seu lugar). As escolas de samba, neste caso,
são vias de comunicação entre as comunidades periféricas e a cidade de modo
geral.
A noção de pertencimento a um lugar é um caminho para a construção e/ou
manutenção de identidades individuais e coletivas através das escolas de samba.
Para Cavalcanti, a vinculação ao local onde se encontram as sedes das escolas de
samba é até hoje uma de suas características básicas, uma vez que muitas delas
trazem o bairro no seu nome. No entanto, para a autora, a relação afetiva do grupo
ligado às escolas de samba com o local de origem ganhou proporção ao longo do
tempo, na medida em que os sambistas perceberam, em determinado momento,
que a questão local é um elemento de crescimento da comunidade, uma vez que:

(...) o termo “comunidade”, tão usado pelos membros das grandes escolas,
repórteres e comentaristas de televisão, refere-se menos à mitificação de
uma suposta origem do que ao necessário enraizamento de todas as

                                                            
36
  MELLO, J. B. F. “Geografia Humanística: a perspectiva da experiência vivida e uma crítica radical ao
Positivismo” (artigo). In: Revista Brasileira de Geografia, nº52, p. 91-115. Rio de Janeiro, 1990, p.102.

37
  Ao longo do tempo, estas agremiações incorporam diversos elementos externos, pessoas que não
necessariamente moram na região sede da escola de samba, mas que se aproximam em épocas de carnaval.
Os primeiros autores a trabalharem com o movimentos de grupos sociais exteriores às comunidades de origem
das escolas de samba foram : GOLDWASSER, Maria Júlia. O Palácio do Samba: estudo antropológico da escola
de samba Estação Primeira de Mangueira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1975. e LEOPOLDI. José Sávio. Escola
de samba, ritual e sociedade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.

 
  23

escolas, grandes e pequenas, no bairro em que se situam. Os sambistas


perceberam que a união da sua comunidade e o apoio de diferentes atores
sociais do lugar onde a agremiação está sediada são elementos vitais para a
sobrevivência e crescimento da escola de samba. 38

Os grupos ligados às agremiações projetam-se em suas comunidades e nos


lugares que estas estão sediadas – uma espécie de prolongamento de suas
identidades. Em uma análise superficial dos nomes das agremiações em diferentes
regiões da cidade do Rio de Janeiro, a identificação com o lugar é levada desde o
momento em que a escola é anunciada 39 , antes da sua entrada, em qualquer
apresentação, como se pode observar em: Estação Primeira de Mangueira,
Mocidade Independente de Padre Miguel, União da Ilha do Governador. Os
sambistas são identificados não só pela escola de samba a qual pertencem, mas ao
local sede destas. Para Matos e Guimarães, o momento de desfile das escolas de
samba é o momento máximo da representação das identidades por apresentar-se
como:

[...] um “confronto de lugares”, onde cada comunidade procura mostrar sua


capacidade de união e sua capacidade organizacional na disputa com as
demais comunidades. Isto se explica no fato de que o lugar habitado pelo
sambista, ou o lugar onde está sediada a sua escola de samba constitui um
dos principais elementos de identidade desta agremiação. 40

O lugar é um dos pontos de referência no qual se constrói o diálogo entre as


diferentes identidades. A escola de samba congrega uma coletividade de pessoas
que possui diferentes trajetórias, as quais acabam por se encontrar diante do
cotidiano de quem mora em um mesmo lugar e se interessa por um mesmo lazer, no
caso, o carnaval. A ligação com o lugar ganha proporção na medida em que este se
torna um dos constituintes da construção das identidades que se desenvolvem em
torno da escola de samba. Deste modo, a relação entre o lugar e a escola de samba

                                                            
38
 CAVALCANTI, Maria Laura V. C. Carnaval carioca: dos bastidores aos desfiles. Editora UFRJ/Minc/FUNARTE,
1994, p.25.  

39
 Um dos momentos de destaque nos desfiles das escolas de samba é quando a escola se coloca em posição
de entrada para desfilar e os intérpretes oficiais fazem uma espécie de chamada, um “grito de guerra”, que além
de incentivar os sambistas, identifica a escola de samba e o seu lugar. 

40
 MATOS, Marcelo Pereira, GUIMARÃES, Solange Terezinha de Lima. “O Rio de Janeiro das Escolas de
Samba: lugar e identidade”. In: Lucia Helena de Oliveira Gerardi e Pompeu Figueiredo de Carvalho (Org.).
Geografia: ações e reflexões. p.280.  
  24

está expressa na identidade individual e, por conseguinte, constitui uma identidade


coletiva.
As afinidades pessoais efetivas são os alicerces da relação dos sambistas
com o lugar sede da escola de samba. A cada carnaval, o sentido de lugar pode ser
evidenciado. Nos desfiles, os sambistas reivindicam a visibilidade de seus lugares, e
com isto as identidades, que estão ancoradas na relação dos indivíduos com suas
agremiações. No carnaval há um movimento no qual a escola de samba suscita a
identidade da comunidade, como um grupo unido capaz de produzir elementos
culturais e do lugar.

A principal referência para um sambista é a sua comunidade, termo que


adquire uma conotação não só psicossocial, mas também espacial, uma vez
que esta comunidade ocupa um local específico no espaço urbano. O lugar
onde se encontra a sede da escola de samba e onde habitam os
componentes desta escola representa a base territorial desta comunidade. 41

O sentido de comunidade se manifesta através das relações sociais que os


indivíduos mantêm no lugar. As bases das experiências e aprendizados dos
sambistas estão fincadas na idéia de comunidade. A escola de samba seria um
elemento amalgamador dos indivíduos com o lugar, na composição de uma
geografia sócio-cultural tecida pelas escolas de samba no Rio de Janeiro. A respeito
da mobilização que envolve as relações dos sambistas com as escolas de samba e
com os lugares, Matos e Guimarães destacam:

Estes cenários são próprios dos muitos lugares que existem na metrópole
carioca, onde a força do carnaval reflete a força do lugar. A sobrevivência da
cultura do samba na cidade dos cariocas e a identidade socioespacial dos
sambistas com suas comunidades fazem o Rio de Janeiro das escolas de
samba se apresentar repleto de significados e valores, de cooperação e
42
conflito, de experiências e práticas; portanto, um lugar por excelência.

A ideia de comunidade faz parte do rol de conceitos que desafiam as


ciências sociais porque comporta uma diversidade de sentidos. O termo pode ser

                                                            
41
 MATOS, Marcelo Pereira, GUIMARÃES, Solange Terezinha de Lima. “O Rio de Janeiro das Escolas de
Samba: lugar e identidade”. In: Lucia Helena de Oliveira Gerardi e Pompeu Figueiredo de Carvalho (Org.).
Geografia: ações e reflexões. p.291. 
42
MATOS, Marcelo Pereira, GUIMARÃES, Solange Terezinha de Lima. “O Rio de Janeiro das Escolas de
Samba: lugar e identidade”. In: Lucia Helena de Oliveira Gerardi e Pompeu Figueiredo de Carvalho (Org.).
Geografia: ações e reflexões. p.292.

 
  25

utilizado para descrever de nações a clubes. À medida que a sociedade torna-se


mais complexa e diversificada, mais se generaliza a concepção de comunidade e
sua definição, portanto, tem passado pela afirmação de seu caráter subjetivo,
caracterizado por processos sociais de integração. No desenvolvimento do conceito,
tem-se a análise de Ferdinand Tönnies que sugere a dualidade entre sociedade e
comunidade. Segundo o autor, comunidades seriam organizadas através de modos
de vida tradicional, pautadas pelas relações pessoais; já nas sociedades as relações
seriam impessoais, baseadas no interesse da aquisição de benefícios ou vantagens
particulares. Tönnies foi muito criticado, acusado por desenvolver uma visão
romântica e simplista da questão. No entanto, lançou bases para o desenvolvimento
e ampliação do conceito a partir da análise da interação entre os indivíduos.
Um dos autores que trabalham a ideia de comunidade baseada em Tönnies
é Martin Buber 43 , para quem o ser humano não pode ser compreendido de maneira
isolada, mas através de sua relação com o mundo, entre os vários espaços de
relação, como o trabalho, a família e a congregação religiosa. As experiências, os
envolvimentos que os indivíduos estabelecem durante sua existência, permitem
caracterizar o vínculo com a comunidade.
Max Weber 44 é outro autor que propõe uma análise sobre o conceito de
comunidade, valendo-se das definições “associações comunitárias” e “relações
associativas”. Na concepção de Weber, as associações comunitárias teriam como
base o sentimento subjetivo de pertencimento ao grupo, vinculado à tradição ou aos
laços afetivos. Nas relações associativas haveria uma espécie de ligação pautada
no interesse racionalizado, comum ao grupo. A diferença básica entre os dois tipos,
para Weber, é o aspecto subjetivo que leva ao sentimento de pertencimento ao
grupo:

Comunidade só existe propriamente quando, sobre a base desse sentimento


[da situação comum], a ação está reciprocamente referida – não bastando a
ação de todos e de cada um deles frente à mesma circunstância – e na
medida em que esta referência traduz o sentimento de formar um todo. 45

                                                            
43
 BUBER, Martin. Sobre Comunidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987. 
44
 WEBER. Max. Apud. FERNANDES, Florestan. (org.). Comunidade e sociedade: leituras sobre problemas
conceituais, metodológicos e de aplicação. São Paulo: Editora Nacional e Editora da USP, 1973, p.140-143. 
45
  Ibidem. p.142. 
  26

Para a análise da comunidade do morro da Serrinha, a questão da interação


entre os indivíduos é o ponto de partida. Através de elos afetivos, pelas práticas e
valores da tradição, e mesmo por interesses racionalizados, os indivíduos se
associam e formam as chamadas comunidades. Diferentes são os motivos e formas
46
de delineamento das associações comunitárias. Segundo Bauman , fazer parte de
uma comunidade, mesmo sem se saber o seu significado preciso, traz a ideia de
uma “coisa boa” 47 . Na comunidade encontraríamos a segurança e a cooperação,
considerando-se que a ela esteja fundeada na “obrigação fraterna de partilhar as
vantagens entre seus membros, independente do talento ou importância deles”. A
ampliação do debate sobre a noção de comunidade, em Bauman, está na sua
afirmativa da impossibilidade de manutenção de sociabilidades comunitárias
baseadas em formações clássicas.
Com base no exposto, pode-se considerar comunidade como espaço afetivo
que se realiza através das sociabilidades geradas pelas escolas de samba, cujas
práticas culturais levam a uma espécie de coesão promotora de identidades, tanto
para os grupos ligados às agremiações quanto para o local em que estas se
formam.
A ligação com a escola de samba na qual está calcada a identidade lúdica é
efêmera para aqueles que buscam esta relação somente nos quatro dias de
carnaval 48 . No entanto, para os moradores do local sede da escola de samba, para
os frequentadores e colaboradores assíduos, existe todo um capital cultural que
abrange o desenvolvimento de uma estrutura para o carnaval que os envolve
durante os doze meses do ano. São ensaios e apresentações da bateria,
apresentação da sinopse do carnaval, escolha de samba enredo e carnavalescos,
apresentações de protótipos de fantasias, ensaios de alas, além dos grupos de

                                                            
46
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2003, p.7. 

47
 Em face do multiculturalismo, o autor coloca as duas facetas (talvez irreconciliáveis) da vida em comunidade: a
dicotomia entre liberdade e segurança, categorias que em nome da responsabilidade social são colocadas como
uma necessidade de se contrabalancear. Se por um lado a vivência em comunidade acarreta uma busca de
segurança, haveria, segundo o autor, uma perda da liberdade por conta dos códigos simbólicos que o indivíduo
integrante da comunidade deveria seguir. Para o autor, o entendimento destas duas categorias torna a
comunidade uma utopia. 

48
 Esses personagens externos à comunidade e que buscam as escolas de samba (geralmente do grupo
especial) somente nos dias de carnaval são conhecidos como “sambeiros”,em uma distinção entre os sambistas
que frequentam a escola durante o ano inteiro e aqueles frenquentadores temporários.
 
  27

apresentações constantes que têm como objetivo divulgar o nome da escola em


eventos, como os encontros de Velhas Guardas.

1.2 Madureira: a capital do subúrbio – capital do samba

A escola de Samba Império Serrano localiza-se na região entre os bairros


de Vaz Lobo e Madureira, tendo sido fundada no Morro da Serrinha. Para falar de
Império Serrano não se pode deixar de observar a relação das pessoas com o
subúrbio no Rio de Janeiro e, sobretudo, com o bairro de Madureira. Como centro
comercial e cultural, Madureira exerce certo poder de atração no subúrbio carioca,
sendo conhecida como a “capital do subúrbio”. Em homenagem a Madureira, a
Escola de Samba União de Vaz Lobo não só destaca características que
popularizaram a região, como mostra a atração que esta região exerce em se
tratando de expressão cultural:

Hoje tudo é samba


O momento é carnaval
Sonho que nesse ano se refaz na passarela geral
Chegou a hora de se dar a Madureira
Uma justa homenagem
Onde o progresso se firmou
Criando uma grande cidade
Que de repente se tornou
A capital do subúrbio da central
Fala Madureira
Quero ouvir a sua voz no samba
Através de seus sambistas tradicionais
Velhos campeões de muitos carnavais
Esta homenagem é de Vaz Lobo
Que também é bamba
À merecida Madureira
Eterna Capital do Samba. 49

A letra do samba em homenagem a Madureira mostra aspectos da relação


da população da região com o samba e com o carnaval. Além de ser considerado
pelos moradores do subúrbio um grande centro agregador, carrega ainda o status de

                                                            
49
  Madureira, eterna capital do samba. Rio de Janeiro. 1972. O conhecido samba enredo da Escola de Samba
União de Vaz Lobo para o carnaval de 1972, cantado como hino da região de Madureira, surpreendentemente
não possui compositores conhecidos e muito menos foi gravado. Ver referências no site da escola de samba
União de Vaz Lobo. Disponível em:
<http://uniaodevazlobo.no.comunidades.net/index.php?pagina=1238292717>. 
  28

capital do samba, por sua ligação cultural em suas manifestações musicais 50 ,


sobretudo com o samba e as escolas de samba da região.
A atração exercida por Madureira faz da região um ponto de encontro de
sambistas e escolas de samba. O aspecto agregador da região fica patente no
desenvolvimento de agremiações como a Portela, a mais antiga, em Oswaldo Cruz;
o Império Serrano, fundado no Morro da Serrinha, em Vaz Lobo, e transferido
posteriormente para o centro de Madureira; a Tradição, no bairro do Campinho; a
União de Vaz Lobo e a escola de samba mirim Império do Futuro, que se utilizam
das ruas do bairro para os seus ensaios.

51
1.2.1 A ocupação do subúrbio da central

Outra questão ligada a um contexto geral de desenvolvimento do subúrbio


carioca que impulsionou a fixação das pessoas nas regiões foi a instalação de
transportes. O trem é destacado como uma das características do subúrbio do Rio
de Janeiro que, em sua instalação, estimulou esse movimento em direção a tais
52
regiões, considerado pelos pesquisadores sobre o tema um elemento decisivo.
A ocupação da parte do subúrbio em que se localiza Madureira, na Zona
Norte da cidade do Rio de Janeiro, foi impulsionada pela abertura das linhas férreas
para esta região. A inauguração, em 1858, do primeiro trecho da Estrada de Ferro
53
Dom Pedro II (EFDPII), marca o desenvolvimento da ferrovia no Brasil e da
expansão para as regiões de subúrbio, que se entende hoje como Zona Norte. Por
meio da implantação de estações e de serviços de trens, foi iniciado o processo de
                                                            
50
 É importante ressaltar que Madureira não é um polo musical homogêneo; há nesta região diversas
manifestações culturais ligadas à música, como o jongo, o charme, o hip hop e o funk. Para saber mais sobre a
região ver: RIBEIRO, Ana Paula Alves. Samba São Pés Que Passam Fecundando O Chão... Madureira:
Sociabilidade e conflito em um subúrbio musical. 2003. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais – Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003.  

51
 Termo utilizado para caracterizar parte do subúrbio cortado pela linha férrea que tem como terminal a estação
Central do Brasil. 

52
  FERNANDES, Nelson Nobrega. O Rapto Ideológico da Categoria Subúrbio. Rio de Janeiro (1858-1945). 1996.
Dissertação de Mestrado em Geografia - Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 1995. OLIVEIRA, Márcio Piñon de. FERNANDES, Nelson da Nobrega (Orgs). 150 Anos de subúrbio
Carioca. Rio de Janeiro: Lamparina: Faperj/ EdUFF, 2010.  

53
  O primeiro trecho da Estrada de Ferro inaugurado foi entre o Campo de Santana e Queimados.  
  29

urbanização das freguesias rurais de Engenho Novo e Cascadura, estações


pioneiras inauguradas ainda em 1858.
Para se deslocarem, os moradores de Madureira e do Morro da Serrinha
tinham, além dos bondes, a estação ferroviária de Cascadura. No entanto, o
deslocamento era feito de maneira precária, dificultando a ligação com outras
regiões da cidade, tendo de ser percorrido a pé o percurso até a estação de trem e,
em alguns casos, o percurso inteiro, ida e volta.
Uma das pessoas que participaram dos anos iniciais da ocupação do morro
da Serrinha é Tia Eulália 54 , nascida em São José de Além Paraíba, em Minas
Gerais. Chegou ao Morro da Serrinha com um ano de idade, foi testemunha da
chegada gradual de infraestrutura e serviços na região. Tia Eulália afirma que,
apesar da chegada de transportes para a região, o deslocamento nos anos iniciais
era precário:

Nada não tinha nada, não tinha condução nenhuma, nenhuma, nenhuma
não tinha nós íamos em Irajá andando não tinha condução[...] nenhuma
tudo mato, tudo escuro não tinha bonde não tinha nada depois é que veio o
bondinho de burro e com a continuação que veio o bonde elétrico [...] eu era
feliz eu gostava daquela....de não ter. 55

Segundo Valença e Valença e, posteriormente, Gandra –pesquisadores 56


que desenvolveram trabalhos sobre aspectos culturais da região de Madureira e do
morro da Serrinha –, a localidade teria recebido um contingente de pessoas que se
deslocaram da região central do Rio de Janeiro, por conta das reformas urbanas do
início do século XX. Na tentativa de solucionar os problemas sanitários e transformar
a cidade em um centro capitalista aos moldes das cidades europeias, coube à
prefeitura parte da reforma urbana sob a administração do Prefeito Pereira

                                                            
54
 Nascida em 1908 , falecida em 2005. 

55
 TIA EULÁLIA: O Império do Divino (documentário). Direção de Erick Oliveira. Rio de Janeiro: Plano Geral
Filmes, 2007. DVD. 

56
 VALENÇA, Rachel & VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha Serrano: O Império do Samba. José Olympio, 1981. 
GANDRA, Edir. Jongo da Serrinha: dos terreiros aos palcos. Rio de Janeiro: Giorgio, 1995. Ver também:
VASCONCELLOS, Francisco. Império Serrano: Primeiro Decênio: 1947- 1956. Ensaios de Carnaval nº 2. Rio de
Janeiro, 1991. e, BOY, Dyonne Chaves. A construção de um centro de memória na Serrinha. 2006. Dissertação
de Mestrado Profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais – Centro de pesquisa e documentação de História
Contemporânea, Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2006. 
  30

Passos 57 . Com as demolições das moradias “baratas” e as novas regulamentações


para as construções no centro da cidade, os grupos sociais que não podiam arcar
com os custos das moradias no centro foram se deslocando para outras regiões. O
subúrbio cortado pela linha férrea foi uma das opções para estes grupos
desprovidos de recursos.
Atualmente há uma bibliografia 58 que, através da divulgação de novas
fontes, revisita a reforma urbana do centro da cidade do Rio de Janeiro. Através de
documentos pessoais e análises feitas sobre novas questões, um novo perfil do
Prefeito Pereira Passos se delineia, revelando a face da reforma urbana e as
preocupações relativas à habitação.
Segundo André N. de Azevedo, a bibliografia produzida entre as décadas de
59
1970 e 1980 sobre o tema fora desenvolvida diante de um contexto sócio político
que buscava trazer à tona o lugar dos desfavorecidos da história, na direção de uma
espécie de denúncia da associação do grande capital privado com o Estado
brasileiro.

Essa historiografia não discerniu os distintos projetos de reforma urbana que


operaram no Rio de Janeiro da época, sob referências diferentes.
Perceberam-nos como bloco monolítico no cumprimento do intuito de excluir
as camadas populares do centro da cidade, em uma verdadeira trama urdida
pela burguesia e orquestrada pelo prefeito Pereira Passos. 60

Se por um lado temos uma bibliografia desenvolvida no final da década de


1980, da qual Jayme Benchimol faz parte, trazendo-nos um perfil de Pereira Passos
insensível às camadas populares, com o seu bota-abaixo 61 , por outro lado temos o

                                                            
57
A reforma urbana do início do século XX foi um projeto idealizado pelo então Presidente da República
Rodrigues Alves, que tinha como base reformas de modernização do Porto do Rio de Janeiro, implementadas
pela união, e reformas ligadas `a estruturação da região central, implementadas pela prefeitura, a fim de
melhorar a ligação das regiões da cidade ao porto e ao comércio da região.Cf. BENCHIMOL, Jaime Larry.
“Pereira Passos: um Haussmann Tropical. A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século
XX”. Rio de Janeiro: SMCTE/ DGCIC/DE, 1992. Ver também Revista Rio de Janeiro, n°10, 2003. 

58
 AZEVEDO, André Nunes de. “A reforma Pereira Passos: uma tentativa de integração urbana” (artigo). In:
Revista Rio de Janeiro, nº10, maio- agosto. Rio de Janeiro. 2003, p. 40. 

59
  No contexto político brasileiro a ditadura militar, que então governava o Brasil, começava a perder força
política com o avanço de grupos de oposição, que exigiam o direito à cidadania.

60
 AZEVEDO, André Nunes de. “A reforma Pereira Passos: uma tentativa de integração urbana” (artigo). In:
Revista Rio de Janeiro, nº10, maio- agosto. Rio de Janeiro. 2003, p. 40. 

61
 Nome popular dado às demolições de edifícios, ocorridas durante a reforma da região central, seja por motivos
sanitários ou para alargamento das ruas. 
  31

desenvolvimento de pesquisas contemporâneas que sugerem o contrário. As


pesquisas recentes apresentam argumentos e encaminhamentos administrativos de
Pereira Passos, que demonstram sua preocupação em relação à construção de uma
estrutura habitacional para as camadas populares no Rio de Janeiro. Em uma das
cartas destinadas a um amigo engenheiro 62 , Passos afirma em tom indignado a sua
preocupação com os trabalhadores:

Fiquei muito aborrecido quando soube que vão arrendar as casinhas que fiz
construir para operários. Que destempero! A municipalidade gasta centenas
de contos para fornecer ao proletariado habitações decentes e higiênicas, e
63
quem vai lucrar são rendeiros que as vão explorar em benefício próprio!

O que fica patente, no entanto, para quem reflete sobre as habitações


destinadas às camadas populares no Rio de Janeiro do início do século XX, é que
as preocupações de Passos poderiam ser legítimas, mas com a construção de três
vilas operárias 64 , a questão da habitação estaria longe de ser solucionada. Neste
caso, a ação do Estado na criação de uma estrutura habitacional não passou de
uma intenção ineficaz para as condições de vida das camadas populares. Com a
extensão das vias de acesso na cidade, o subúrbio seria uma opção, uma vez que,
após as reformas, os modelos de moradias baratas estavam-se extinguindo.
Para André Nunes de Azevedo 65 , a reforma urbana administrada pela
66
prefeitura foi concebida como um projeto organicista de desenhar a cidade. As
transformações da urbe foram pensadas como uma forma de ligar os vários pontos
de desenvolvimento da cidade ao centro, criando um organismo central, com a
ampliação para o desenvolvimento econômico, através de vias de ligação entre
diferentes pontos da cidade e o centro, e entre este e o porto, assim como um

                                                            
62
Este amigo é Alfredo Américo de Souza Rangel.  

63
 COLEÇÃO PARTICULAR DA FAMÍLIA RANGEL. Carta de 11 de setembro de 1908. Apud.LENZI, Maria Isabel
Ribeiro. “Francisco Pereira Passos: Possibilidade de um outro olhar” (artigo). In: Revista Rio de Janeiro, nº10,
maio- agosto. Rio de Janeiro. 2003.  

64
 A primeira na Avenida Salvador de Sá, a segunda na Avenida Beira Mar no bairro da Glória, e a terceira na
Rua São Leopoldo próximo à Rua Salvador de Sá. 
65
 AZEVEDO, André Nunes de. “A reforma Pereira Passos: uma tentativa de integração urbana” (artigo). In:
Revista Rio de Janeiro, n10. maio- agosto. Rio de Janeiro. 2003. 

66
  O autor trabalha como visão organicista uma ideia de corpus orgânico com vias de ligação de pontos
estratégicos da cidade ao centro, para o circular de pessoas e mercadorias. 
  32

circular cultural, através do embelezamento de praças e ruas como referências de


civilidade, aos moldes das cidades europeias.
Em sua análise, Azevedo destacou como exemplo de integração da cidade,
dentro do projeto de Passos, as aberturas de vias de ligação dos bairros do subúrbio
e da região sul ao centro. Desta forma, haveria, além do esforço de transformar a
região central em modelo urbano de civilização, o estabelecimento de:

[...] artérias de ligações diretas do centro com todas as regiões da cidade,


como já foi assinalado na explicação de sua visão organicista. Para tal
integração, quatro grandes vias foram projetadas e três 67 foram construídas
ligando o centro da cidade aos bairros do subúrbio e apenas uma foi
projetada e implementada ligando o centro urbano à região sul. 68

A transformação da cidade em uma grande capital capitalista não se deu


somente na região central ou através de aberturas de via em direção a esta. Além
das vias de ligação das regiões da cidade ao centro, Passos ainda criou estradas de
ligação dentro do subúrbio. Desta maneira, a Reforma Urbana do início do século
XX provocou impactos na tímida ocupação do subúrbio carioca, uma vez que
facilitou o acesso destas regiões ao centro, pela criação de:

[....] estradas de ligação entre os bairros do engenho Novo e Méier e entre


este e o Engenho de Dentro, assim como fez entre os bairros de Piedade e
Quintino – então conhecido como “Cupertino”. [...] Ainda, Pereira Passos
reparou em toda a sua extensão e reconstruiu em diversos trechos as
estradas de Santa Cruz, Pavuna, Areal, Portella, Porto de Irajá, Bicas,
69
Penha, Marechal Rangel, Sapopemba, Otaviana e Colégio.

A abertura de eixos de penetração em direção ao subúrbio – com


concessões a particulares para fazerem transportes através dos bondes, com a
abertura das estradas de ferro e posteriormente com os impactos das aberturas de
estradas de ligação do subúrbio ao centro – modificou substancialmente o processo
de ocupação na região. À medida que o acesso foi sendo melhorado em direção ao
subúrbio, o capital especulativo, associado à mudança das bases de acesso à

                                                            
67
 Avenida Mem de Sá, a ligação entre a Rua da Carioca à Rua Visconde de Rio Branco e outra ligação entre a
Rua Visconde de Inhaúma e a Marechal Floriano. 

68
 AZEVEDO, André Nunes de. “A reforma Pereira Passos: uma tentativa de integração urbana” (artigo). In:
Revista Rio de Janeiro, nº10, maio- agosto. Rio de Janeiro. 2003, p.63. 

69
  AZEVEDO, André Nunes de. “A reforma Pereira Passos: uma tentativa de integração urbana” (artigo). In:
Revista Rio de Janeiro, nº10, maio- agosto. Rio de Janeiro. 2003, p.55
  33

habitação para as camadas populares, foi-se apresentando, dinamizando a


ocupação para a região suburbana:

Diversos bancos e companhias nacionais e estrangeiros logo adquiriram


grandes glebas de terra, convertendo-as em lotes à medida que as ferrovias
iam sendo inauguradas ou melhoravam o seu tráfego suburbano. E faziam
isso de uma forma totalmente nova: não mais abriam uma ou duas ruas;
criavam bairros inteiros e vendiam os lotes a prazo. O resultado foi a
inundação do mercado pela oferta e, consequentemente, a queda relativa do
preço da habitação, que viabilizou, para muitos e antes mesmo da Reforma
Passos, a moradia fora da área central. E, na maioria dos casos, em bases
totalmente novas, ou seja, via o acesso à propriedade da terra. 70

A movimentação das camadas mais pobres da sociedade para o subúrbio


mudou as características da região. Segundo Fernandes, foi a partir da reforma
71
urbana de Pereira Passos que se deu o “rapto ideológico da categoria subúrbio” .
O conceito de subúrbio carioca passou a ser de “bairros ferroviários e populares
desprestigiados, tanto do ponto de vista social, quanto pelo poder público” 72 ,
diferindo do conceito utilizado em outras cidades, onde essas áreas possuem como
características as baixas densidades demográficas e uma grande distância das
regiões centrais. Por conta dos atores sociais que passaram a buscar os subúrbios
e, sobretudo, a região norte da cidade, após as reformas urbanas do início do século
XX, a região sofreu um rapto ideológico semelhante ao caracterizado pelas palavras
de Fernandes:

[...] podemos entender por rapto ideológico uma mudança drástica do


significado das categorias, sendo os atributos mais originais e essenciais que
definiram sua existência expurgados de seu conteúdo e substituídos por
significados novos e completamente estranhos a sua extração mais genuína,
operação que, para Martins [...] tem por objetivo atender necessidades
73
políticas e ideológicas.

                                                            
70
 ABREU, Maurício de Almeida. “Da habitação ao hábitat: a questão da habitação popular no Rio de Janeiro e
sua evolução” (artigo). In: Revista Rio de Janeiro, nº10, maio- agosto. Rio de Janeiro. 2003, p. 226. 

71
 FERNANDES, Nelson Nobrega. O Rapto Ideológico da Categoria Subúrbio. Rio de Janeiro (1858-1945). 1996.
Dissertação de Mestrado em Geografia - Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 1995. 

72
 OLIVEIRA, Márcio Piñon de. FERNANDES, Nelson da Nobrega (Orgs). 150 Anos de subúrbio Carioca. Rio de
Janeiro: Lamparina: Faperj/ EdUFF, 2010, p 1-2. 

73
FERNANDES, Nelson Nobrega. O Rapto Ideológico da Categoria Subúrbio. Rio de Janeiro (1858-1945). 1996.
Dissertação de Mestrado em Geografia - Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 1995. p. 2-3. 
  34

O subúrbio do Rio de Janeiro passou a ter um significado distinto da


definição geral empregada em diversas cidades do mundo, baseado na densidade
demográfica e distância da região central. Segundo pesquisadores que se debruçam
sobre os processos de formação e segregação dos espaços urbanos, no Rio de
Janeiro são utilizados “topônimos”, zonas e subúrbios que marcam não apenas uma
diferença espacial na cidade, mas “têm embutidos em si significados que os
qualificam ou desqualificam, associados a todo um imaginário que se criou sobre
estes espaços, e que têm, também, como fator correlato, propiciar a segregação
espacial na cidade” 74 .

1.2.2 Modernização e segregação espacial no Rio de Janeiro

A segregação espacial se define com a preponderância dos grupos


dominantes no poder. Na medida em que controlam o mercado de terras e/ ou as
corporações imobiliárias, os grupos dominantes acabam por determinar ou
direcionar seletivamente a localização dos demais grupos sociais, como foi o caso
da Reforma Urbana do início do século XX. Pela via da modernização, o Estado
viabilizou a segregação espacial no Rio de Janeiro. O processo diferenciador
urbano, segundo Correa, é estabelecido em duas vias: “a primeira, da auto-
segregação, referindo-se à segregação da classe dominante, e a segunda, da
segregação imposta, aludindo à dos grupos sociais cujas opções de como e onde
morar são pequenas ou nulas” 75 .
A segregação espacial, imposta ou não, no caso dos grupos sociais que se
dirigiram para a região de Madureira, caracterizou-se pelo o que Bourdin definiu
como uma mobilidade através da mediação social. A integração de ações diversas,
de atores e grupos sociais, assim como trocas de interesses dentro de um processo
76
histórico em particular, impulsionaram a ocupação.
                                                            
74
CARDOSO, Elizabeth Dezouzart. “Estrutura Urbana e Representações: A invenção da Zona Sul e a
construção de um novo processo de segregação espacial no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século
XX” (artigo). In: GeoTextos, vol. 6, n. 1, jul. 2010. 73-88 p. 75.

75
 CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Ática, 1989, p.69. 

76
 As reformas urbanas do início do século XX. 
  35

O impulso populacional em direção ao subúrbio é remontado a partir do


contexto de transformação da cidade no início do século XX, mas não se deve
perder de vista o fato de que as camadas populares ao se deslocarem para estas
regiões levaram consigo suas práticas culturais, suas festas. Assim, Madureira – que
nos anos iniciais de sua ocupação assemelhava-se às áreas rurais, com sua região
distante do centro da capital – foi estruturando-se como um espaço de circulação
cultural. Estes aspectos foram destacados por Oliveira e Silva 77 como fatores que
promoveram o desenvolvimento da região como capital cultural:

Um bom baile de Calango, os blocos do seu Zacarias, as pastorinhas, até a


ladainha da D. Maria, um jongo, um bom pagode, isso tudo reunia e
congregava aquele povo.
[...]
Assim viva o povo de Madureira, Oswaldo Cruz, Cascadura, Largo do Neco,
Vaz Lobo, Irajá. O pessoal do morro da Congonha, da Tamarineira, de D.
Clara. Aquela gente da Serrinha [...] 78

A cultura teve lugar nos espaços de diversão desenvolvidos pelos


moradores. As identidades dos habitantes e da região estão intimamente ligadas a
esta dinâmica cultural que é própria da região. Neste sentido, Madureira
apresentava-se como ponto de conversão cultural: através do carnaval, dos blocos e
das escolas de samba do seu em torno, a região era, e ainda hoje é, um ponto de
encontro de sambistas, um lugar “neutro”, onde circulam os diversos componentes
destas agremiações.

                                                            
77
 OLIVEIRA, Arthur de, SILVA, Marília T. Barboza. Silas de Oliveira: do jongo ao samba-enredo. Rio de Janeiro:
Funarte, 1981. 
78
 Ibidem. 
  36

1.3 O Morro da Serrinha

Serra dos meus sonhos dourados


Onde nós fomos criados
Hei de morrer
Não desfarei de ninguém
Serrinha custa mais [sic] vem 79

Conforme mencionado, desde as primeiras décadas do século XX,


Madureira recebeu famílias que começaram a lotear o terreno e construir suas casas
no sopé do Morro da Serrinha. O loteamento da Serrinha ficou a cargo da
Companhia de Colonização Agrícola 80 . A respeito da questão da moradia na região,
Pedrina Rocha 81 , a Dona Pedrina, secretária da Velha Guarda da escola de samba,
afirma que na época da sua mocidade, na década de 1930, no morro da Serrinha
82
“não tinha barraco, só tinha casa; cada um melhorava a sua casa como podia” .
Se o crescimento desordenado não foi uma característica do povoamento
da região do morro da Serrinha, Nelson Fernandes, no entanto, destaca o local não
era uma favela, também não era um bairro, e possuía como característica, a
realidade de periferia mais pobre do subúrbio de Madureira. Assim era identificada a
Serrinha:

[...] comunidade situada numa encosta do Morro do Dendê que juntou com o
Morro da Congonha e formou o vale que liga os subúrbios de Madureira e
Vaz Lobo. A Serrinha ficava num morro, mas não era uma favela e, segundo
Vasconcellos (1991:25), teve origem num dos muitos loteamentos da
Companhia de Colonização Agrícola, de propriedade do Visconde de Morais,
que desde o princípio do século XX converteu em áreas urbanas as imensas
áreas do subúrbio carioca ocupadas por chácaras e fazendas (Gerson:1965;
Ribeiro: 1983) . Mas se a Serrinha não era uma favela, também não era um
bairro, sendo na realidade umas das periferias mais pobres do subúrbio de
83
Madureira.

                                                            
79
 BEM-TE-VI, Carlinhos et tal. Serra dos meus sonhos dourados. Rio de Janeiro. [entre 1930 e 1940].  

80
 FERNANDES, Nelson da Nobrega. Escolas de Sambas: sujeitos celebrantes e objetos celebrados, Rio de
Janeiro 1928-1949. Rio de Janeiro Secretaria das Culturas, Departamento Geral de Documentação e Informação
Cultural, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001. 
81
 Nascida em 1929. 
82
 ROCHA ,Pedrina. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P Barbosa. Rio de Janeiro, 07 dez.
2010.1° CD (31:11 min); 2°CD (12:24 min). Anexo A, p112..  
83
 FERNANDES, Nelson da Nobrega. Escolas de Sambas: sujeitos celebrantes e objetos celebrados, Rio de
Janeiro, 1928-1949. Rio de Janeiro Secretaria das Culturas, Departamento Geral de Documentação e
Informação Cultural, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001.p.59. Cf. VASCONCELLOS, Francisco.
Império Serrano: Primeiro Decênio: 1947- 1956. Ensaios de Carnaval nº 2. Rio de Janeiro, 1991. 
  37

A época da ocupação é lembrada por algumas famílias, como um período


de dificuldade, contudo, o baixo custo da moradia superava a carência de estruturas
físicas. A superação das dificuldades estruturais é mencionada pelas senhoras da
região como uma época em que a felicidade era partilhada, como narrou Tia Eulália:
“À noite, nós passeávamos aqui, não tinha iluminação nenhuma, tudo escuro, não
84
tinha uma luz nas ruas para iluminar, e nós éramos felizes [...]” . A ocupação é
evocada por Tia Eulália como uma espécie de “época de ouro”, enquanto a
dificuldade é destacada em contraposição à felicidade de um tempo que já se foi.
Ao indicar os caminhos percorridos pela memória, na ressignificação do passado no
presente, quando se dá a evocação, percebe-se uma idealização dos tempos de
outrora.
Apesar da falta de estrutura física, o baixo custo das moradias motivou a
fixação das famílias no morro da Serrinha. Em um movimento que se aproveitava
das oportunidades, o desenvolvimento da região foi sendo conquistado com táticas
que partiam das lideranças locais. Os moradores resistiam às dificuldades
estruturais e se mantinham com as possibilidades que lhes eram apresentadas,
estabelecendo relações com o objetivo de atrair o olhar, mesmo passageiro, do
Estado. Como é o caso de uma passagem conhecida na região, em que Zacarias de
Oliveira 85 , pai de Tia Eulália, aproveitando-se de sua relação pessoal com o político
Edgar Romero, negocia a instalação de uma bica no morro, solucionando uma das
questões de estrutura física do local. Tia Eulália relata o episódio, um tanto extenso,
mas rico em detalhes que expressam a proporção e a teatralização que a
inauguração da torneira, que levaria água por anos ao morro da Serrinha, teve para
a comunidade:

O dia que veio esse cano foi uma festa na Serrinha! Aí o meu pai mandou
que todos os moradores que estavam morando... viesse tudo de lata nova,
pintada; e na hora marcada de abrir a torneira para jorrar a água, não é?[...]
eles alugaram umas quatro figuras, figurante para tocar, né? [...] Aí foi no
Romero, e falou: - Romero nós vamos de branco. Ele e o Romero vieram de
branco. Os dois, quando foram chegando, os fogos, fogos bastante, não é?
[...] Hino Nacional, pessoal de palmas, muitas palmas, não é? Eles dois
levaram, o alicate, na primeira, cortaram! A música a tocar, os fogos. Aí

                                                            
84
 TIA EULÁLIA: O Império do Divino (documentário). Direção de Erick Oliveira. Rio de Janeiro: Plano Geral
Filmes, 2007. DVD. 

85
  Segundo a memória local, Zacarias de Oliveira era funcionário da Companhia de Limpeza Urbana e cabo
eleitoral de Edgar Romero. Quando este ganhou uma eleição, ofereceu àquele um emprego melhor. Zacarias,
porém, negociou no lugar do emprego a instalação da água para a região.
  38

jorrou a primeira água, na segunda água eles encheram a taça, trocaram


meu pai deu a dele pro Romero, o Romero deu pro meu pai, se abraçaram e
quebraram as taças. Aí, a água, e o pessoal na Serrinha... Ah! Água na
Serrinha! [...]. 86

A localização geográfica da região também influenciou a relação dos


moradores com o lazer. Distantes do centro da cidade e dos espaços de diversão,
os moradores do morro da Serrinha promoviam seus próprios espaços de lazer. Nas
casas das famílias, a comunidade reunia-se em torno da música e da comida farta,
na criação de espaços de identificação e pertencimento em relação ao lazer local.
As festas vinculavam-se a uma tradição herdeira de uma cultura do cativeiro, como o
Jongo e a Umbanda, além dos batizados, casamentos e outras comemorações,
onde o samba estava presente. Havia um calendário festivo religioso baseado na
devoção de cada anfitrião, como diz Boy:

O Dia dos Pretos-Velhos, comemorado no dia 13 de maio, é também o Dia


da Abolição da Escravatura e, por ser uma data importante para a população
negra, os jongueiros costumavam se reunir na casa de um morador para
uma roda de jongo em homenagem aos antepassados. Na ocasião,
preparavam uma feijoada, comida dos Pretos-Velhos segundo a umbanda, e
antes de abrir a roda cantavam três pontos para as almas. 87

Nos momentos de festa, a tradição dos fazeres e dos lazeres eram


disseminados e perpetuados entre as famílias. As práticas culturais funcionavam
como amálgamas que levavam ao estreitamento dos laços de solidariedade, na
articulação e na extensão das relações locais, como sugerido nas palavras de Tia
Eulália: “Eu fui quem dei o primeiro jongo na Serrinha [...], aí, depois do jongo, o
88 89
pessoal veio dançar; a minha comadre Maria Joana dançava no meu terreiro” .
Algumas famílias que exerceram liderança cultural na região faziam parte
deste contingente de pessoas que migraram da região do Vale do Rio Paraíba para
a localidade. Os Monteiro, de Valença, e os Oliveira, de São José de Além Paraíba,
                                                            
86
 Apud. GANDRA, Edir. Jongo da Serrinha: dos terreiros aos palcos. Rio de Janeiro: Giorgio, 1995, p.58-59. 

87
 BOY, Dyonne Chaves. A construção de um centro de memória na Serrinha. 2006. Dissertação de Mestrado
Profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais – Centro de pesquisa e documentação de História
Contemporânea, Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2006, p.48-49.  
88
 Maria Joana Monteiro foi líder religiosa e uma das matriarcas do jongo no Morro da Serrinha. A partir de sua
liderança, aspectos modernizantes foram aceitos na prática do jongo para que este não se perdesse com a
morte dos mais velhos. 
89
 TIA EULÁLIA: O Império do Divino (documentário). Direção de Erick Oliveira. Rio de Janeiro: Plano Geral
Filmes, 2007. DVD. 
  39

em Minas Gerais, compunham dois núcleos culturais que se fixaram no Morro da


Serrinha. Maria Joana Monteiro 90 consagrou-se no Morro da Serrinha por sua
liderança espiritual, como Mãe de Santo e por fazer parte de um tronco familiar que
tomou para si a continuidade do jongo da região. Tia Eulália, pó sua vez, foi
fundadora da GRES Império Serrano, participando da escola até seus noventa e
cinco anos. Estas mulheres fazem parte da história de liderança familiar que teciam
espaços de lazer desenvolvidos no seio das famílias e que depois, gradualmente,
avançaram para o espaço público.
Nas festas familiares, identifica-se a dinâmica dos lugares de interação, a
integração das ações e das práticas culturais que constituem a relação com o local.
As interações através das festas fizeram parte de um processo histórico de
valorização do grupo social com o meio.

A festa e seus elementos, como a música, são extremamente importantes


para a relação entre o homem e o meio, pois essas manifestações sempre
refletiram o modo como os grupos sociais pensam, percebem e concebem
91
seu meio ambiente, e ainda valorizam mais ou menos certos lugares.

Os espaços de lazer na Serrinha seriam locais construídos para firmar e


possibilitar a integração do grupo, gerando uma proximidade através das práticas
culturais, que variam em conteúdo e forma. Os momentos de festa estreitavam a
relação cotidiana entre os moradores, forjando proximidades. A coexistência de
diferentes estilos de vida e visões de mundo revelava-se de forma mais evidente nos
momentos de festa, gerando laços. A integração do grupo numa ação coletiva
gerada pela fundação e consolidação do GRES Império Serrano, sustentada por
crenças e valores compartilhados, marcava a relação dos moradores do morro
Serrinha com suas práticas culturais.

                                                            
90
 Nascida em 1902. 

91
 FERNANDES, Nelson da Nobrega. “A Cidade a Festa e a cultura popular”. In: Geographia. Ano 6, nº11,
Niterói: UFF. 2004, p.4. 
  40

1.4 A construção do lugar social

Meu Império
vamos caprichar neste carnaval
nós iremos disputar
a grande prova real
Imperial! quero te ver no jornal
como uma verdadeira glória
para ficar, com nome na história

Provaremos ao subúrbio
e toda a cidade
que nosso sonho foi realidade
meu Império eu lhe digo a verdade
o momento pr’a nós é muito sério
oh! meu Império... 92

Em um dos sambas compostos por Silas de Oliveira e Orlando, em


exaltação ao Império Serrano, a nova escola de samba que se apresentava pela
primeira vez no carnaval carioca de 1948, observam-se algumas questões sobre a
relação entre a comunidade e o carnaval. Como porta-vozes da escola de samba,
seus compositores destacaram na letra a necessidade de se fazer presente para
ganhar o espaço de divulgação. Neste caso, a mídia seria o jornal, e o objetivo seria
“provar” aos diferentes espaços da cidade que o grupo disputaria o campeonato das
escolas de samba para entrar na história. É provável que, além da apresentação de
um carnaval que ficasse na memória, através do espaço da mídia, houvesse o
interesse de “provar” a existência de um grupo social em busca de um lugar na
sociedade.
A menção aos espaços do subúrbio e da cidade chama atenção uma vez
que estes aparecem separados em uma lógica geográfica própria para os
envolvidos. Através do carnaval, o grupo se apresentaria e se colocaria na história
“provando” ao subúrbio e à cidade a força de sua presença, marcando espaços
diferenciados no território urbano. Os espaços referidos pelos compositores do
samba não são espaços compartilhados pelo grupo do morro da Serrinha. O espaço,
neste caso, adquire conotações variadas, onde a cultura popular transpassa o
território da cidade, abrangendo lugares aos quais esses atores sociais talvez não
tivessem acesso.

                                                            
92
 OLIVEIRA, Silas e Orlando. Rio de Janeiro. [entre 1947 e 1948]. O samba em questão é conhecido pelos
pesquisadores e frequentadores da escola de samba, mas não se tem uma ficha técnica que informe o ano e o
nome da música; sabe-se unicamente que foi um dos primeiros sambas compostos por Silas de Oliveira em
exaltação à nova escola de samba. 
  41

Enfatizando os recursos acumulados pelos indivíduos, Gilberto Velho


concebe a sociedade como um agregado de relações sociais, no qual a cultura é
conteúdo, à medida que transmite recursos simbólicos que compõem os homens em
93
sociedade . A cultura não seria algo exterior aos indivíduos, mas um aspecto de
composição destes homens em sociedade. O autor propõe a ampliação da análise
considerando o dinamismo dos sistemas de interações no espaço urbano. Assim, a
questão das identidades partiria da consideração das trajetórias nas quais se
movem os indivíduos:
Creio que uma contribuição importante para a releitura da problemática das
identidades passa pela percepção do dinamismo e complexidades desses
sistemas de interações, em que os indivíduos se movem, através de
94
trajetórias que raramente são lineares num sentido restrito (...).

O deslocamento dos moradores do Morro da Serrinha para a região estava


inserido no processo de segregação espacial do início do século XX, que configurou
as regiões do subúrbio carioca. Diante de uma mobilidade imposta aos grupos
sociais menos favorecidos, a escolha do local, no caso do subúrbio e dos morros
cariocas, não foi escolha simples. Quando, por exemplo, Dona Vilma 95 refere-se à
fixação de sua família na região, destaca que o Morro da Serrinha foi uma opção
diante da necessidade, “porque era o lugar que ela [a família] achou para fazer a
96
casa. Todo mundo era pobre” .
A mediação social feita pelo grupo da Serrinha foi a de levar ao
conhecimento dos espaços de fora da comunidade a relação que já possuíam com o
local. Como espaço de interação dos atores sociais no morro, a escola de samba foi
o espaço escolhido dentro do local para a inserção social do grupo nas políticas
públicas.
Desde os anos de sua ocupação até a fundação do Império Serrano, a
relação da comunidade, diante da necessidade de encontrar caminhos para seu
reconhecimento, foi desenvolvida dentro do movimento de táticas e estratégias.

                                                            
93
 VELHO, Gilberto. A utopia urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. 

94
 VELHO, Gilberto. “Antropologia Urbana: encontro de tradições e novas perspectivas” (artigo). In: Sociologia,
problemas e práticas, n.º 59, 2009, pp.11-18. p.14. 
95
 Nascida em 1939. 

96
 MACHADO, Vilma dos Santos. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro,
30 de agosto de 2010. 1º CD (23:07 min). Anexo A, p.118. 
  42

Michael de Certeau define a relação entre os poderes circunscritos pelos


movimentos de táticas e estratégias como fundamentados pelos acasos do tempo,
onde “a tática é determinada pela ausência de poder, assim como a estratégia é
97
organizada pelo postulado de um poder” .
Através da letra do samba, pode-se refletir sobre a relação que os
compositores fazem entre a escola de samba e a questão do espaço. Quando o
grupo sai da localidade e se coloca no território da cidade como escola de samba,
está representando o seu lugar. A cultura popular, neste caso o carnaval, seria uma
forma de se impor para fora da comunidade. Através da interação entre o espaço
local interno e o espaço externo, por meio do carnaval, vai sendo construída, social
e politicamente, a identidade local.

                                                            
97
 CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p.101.

 
  43

2 O SAMBA DO CONCURSO NÃO ERA AQUELE

2.1 Memória e História

Deixei minha mente vagar


E no rastro da memória
O Império vem mostrar
Histórias da nossa história 98

A epígrafe que faz parte de um dos sambas enredos da escola de samba


Império Serrano nos remete à reflexão sobre memória e história. Como matéria
prima da história, a memória, em diferentes meios sociais, apresenta-se de maneira
difusa. A memória assume uma relação dialética com a história na medida em que,
através da primeira, diferentes grupos sociais baseiam os discursos que lhes dão
existência. O recurso memorialista é utilizado por grupos sociais na construção de
discursos identitários, e através destes discursos o historiador se depara com a
relação entre memória e história.
Ao se lançarem à pesquisa histórica que contempla a memória, os
historiadores se acham em território movediço. Acostumados ao tempo
99
passado ,deparam-se com o aspecto subjetivo da construção e/ou reconstrução
das lembranças. Assim, faz-se necessário considerar que a memória de um fato está
perpassada pelos valores que a experiência individual forja ao longo do tempo.
Desta forma, assim como em Bosi, o historiador deve observar que:

Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ele não é a mesma
imagem que experimentamos na infância, porque nós somos os mesmos de então

                                                            
98
 JANGADA et tal. História da nossa História. Rio de Janeiro. 1990. O samba em questão faz um breve passeio
pela história do Brasil colonial, da chegada dos portugueses e da introdução da lavoura da cana de açúcar ao
período de extração de ouro em Minas Gerais. Neste caso há um jogo de palavras entre memória e história que
nos faz pensar nas formas em que são apropriadas pela sociedade em seus diversos discursos.) 

99
 Em relação às fontes históricas. Mesmo a um passado próximo, como a história do tempo presente, o passado
é o tempo que o historiador está habituado a utilizar.
 
  44

e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nosso juízos de
realidade e de valor. 100

Em sua conhecida discussão sobre história e memória, Pierre Nora chama


atenção para a aceleração da história. Nas sociedades marcadas por padrões de
mudanças rápidas, encontra-se “o medo de que tudo está em iminência de
101
desaparecer” . A morte do passado é decretada diante da percepção de uma
aceleração, que aproxima o calor do vivido a um tempo que alicerça a história,
levando a “uma ruptura de equilíbrio” 102 . Para o autor, estamos no momento de
reflexão sobre os processos de cristalização da memória e o seu esfacelamento pela
crescente ruptura com o passado.
Para Jacques Le Goff, a memória transformou-se em uma mercadoria
explorada pela sociedade de consumo. O medo de uma espécie de “amnésia
coletiva” levou a um movimento de “conversão do olhar histórico” em direção a uma
“moda retro” que impulsiona a pesquisa, o salvamento e a exaltação da memória.
Declara Le Goff:

Pesquisa, salvamento, exaltação da memória coletiva não mais nos


acontecimentos mas ao longo do tempo, busca dessa memória menos nos
textos do que nas palavras, nas imagens, nos gestos, nos ritos e nas festas;
é uma conversão do olhar histórico. Conversão partilhada pelo grande
público, obcecado pelo medo de uma perda de memória, de uma amnésia
coletiva, que se exprime desajeitadamente na moda retro, explorada sem
vergonha pelos mercadores de memória desde que a memória se tornou um
103
dos objetos da sociedade de consumo que se vendem bem.

Nora aponta para um encontro da história com a memória, fruto de uma


aproximação entre as categorias. No que se refere à história, este movimento
ocorreu através da ampliação do seu campo de atuação, do seu diálogo com
temáticas próximas à vida dos indivíduos. Em relação à memória, o autor sinaliza
para a tendência historicista 104 assumida por alguns grupos da sociedade. Neste
caso, a memória deixaria de ser vivida naturalmente por conta de uma espécie de
                                                            
100
  BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: Cia das Letras, 1994. 

101
 NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares” (artigo). In: Projeto História. São Paulo,
nº 10, dez. 1993, p. 7-28. 

102
  Ibidem. p.7.  

103
 LE GOFF, Jacques. “Memória” (capítulo). In: História e Memória. Campinas: Ed. UNICAMP, 1994, p. 472. 
104
 No sentido de busca de historicidade, como forma de legitimar-se na sociedade. 
  45

impulso que poderia levar à repetição, ao hábito, à comemoração, com o objetivo de


lembrar. A memória torna-se um dever, uma vez que, através da recordação, grupos
sociais ancoram suas histórias e, por conseguinte, encontram o lugar de definição
ou redefinição de suas identidades, como uma busca constante de firmar e/ou
reafirmar o seu estar no mundo:

A passagem da memória para a história obrigou cada grupo a redefinir sua


identidade pela revitalização de sua própria história. O dever de memória faz
de cada um o historiador de si mesmo. 105

A passagem da memória para a história impulsionou movimentos de


rememoração de diferentes grupos sociais. A identidade dos agrupamentos sociais
ocorre através de investimentos feitos no caminho da evocação da memória. No
caso do Império Serrano, esses investimentos ocorrem na transmissão de relatos
ligados à sua fundação e aos seus anos de vitória no carnaval carioca,
106
comemorados com seus símbolos e ritos autoafirmados pelos segmentos da
escola.
A responsabilidade de manter viva a memória do Império Serrano recai
107
sobre representantes autorizados, os chamados “guardiões da memória” . Esse
movimento de memorialização está associado ao trabalho de exposição de um
repertório discursivo que imprime coesão interna e fornece um quadro de referências
para circunscrição daquilo que o grupo tem em comum, no caso, a escola de samba,
com seus personagens.
Ao solicitar-se contato com alguém que pudesse falar sobre a história do
Império Serrano, foi acionada uma lista de pessoas específicas para representar a
escola: pessoas ligadas à sua administração, às quais chamaremos de forma geral

                                                            
105
 NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares” (artigo). In: Projeto História. São Paulo,
nº 10, p. 7-28, dez. 1993. p17 
106
 Símbolos, como bandeiras e faixas comemorativas, e ritos, como festas em comemoração pela fundação, pelo
dia do padroeiro da escola, bem como as festas da Velha-Guarda. 

107
 POLLACK, Michael. “Memória esquecimento e silêncio” (artigo). In: Estudos Históricos, v. 2, n.3, 1989. p.3-
15. São pessoas que no processo de consolidação de determinadas memórias coletivas tomam para si, por
escolha própria ou do grupo, a responsabilidade de serem os difusores de uma espécie de discurso que
referenda o grupo. 
  46

de dirigentes 108 , e alguns membros considerados como os mais eloquentes, da


Velha-Guarda.
Considerados “guardiões da memória” do Império Serrano, foram
identificados, pelo menos, dois grupos: os dirigentes da escola e a Velha Guarda. O
grupo ligado à administração da escola compõe-se dos dirigentes 109 , pessoas com a
função específica dentro da agremiação de promover, interna e externamente, a
imagem do Império Serrano. Para os dirigentes da escola de samba, além da
identidade positiva do grupo ligada à memória, há uma espécie de estratégia para
atrair pessoas e capitais para a agremiação. A memória, neste caso está ligada à
questão institucional.
A prática de indicar indivíduos ou grupos específicos para representarem a
escola de samba, e com isto divulgarem certo discurso, foi um exercício desde os
primeiros anos da agremiação, visto que no período logo após a fundação da escola
de samba 110 quem exercia a função de divulgador do Império Serrano era Aniceto
111
de Menezes e Silva Júnior , o Aniceto do Império. Segundo Valença e Valença,
Aniceto era o divulgador oficial da escola, uma espécie de diplomata encarregado de
dar entrevistas e receber pessoas em nome da agremiação.

A facilidade de expressão que lhe fora transmitida pelo pai transformou-o no


orador oficial da Escola que surgiu na Serrinha.
No tempo em que o Império Serrano ainda era sediado no alto do morro, na
Balaiada, lembra-se Aniceto de ali ter recebido e saudado inúmeras
personalidades do meio artístico de então, como as cantoras Marlene e
Dalva de Oliveira, os radialistas Manoel Barcelos e Victor Costa, além do
112
compositor Lamartine Babo .
                                                            
108
 É esse grupo que faz esta seleção de pessoas aptas a falar sobre a história do Império Serrano. 

109
 No caso da memória do Império Serrano, podem-se considerar como dirigentes as pessoas que estiveram
ligadas à fundação da escola no momento da construção do discurso, que posteriormente passou a ser repetido
pelos “guardiões da memória” das gerações seguintes. 

110
 É Importante registrar a reunião do grupo de dirigentes da escola de samba nas fontes. Para a produção de
um acervo sobre escolas de samba no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em 1968 e 1984, foram
convidados representantes do Império Serrano. No momento de apresentação do grupo, todos são identificados
como diretores ou ex-diretores da agremiação. Hoje há setores específicos na escola de samba, como o
departamento cultural, encarregado da divulgação da agremiação, composto por pessoas ligadas à
administração da escola e que são encarregadas de dar entrevistas e produzir sites, blogs e comunidades na
internet para contar a história da escola e divulgar os eventos ao longo do ano. Disponível em:
<www.gresimperioserrano.com.br; www.gresimperioserrano.com.br/noticias#!_blog> . 
111
 Nascido em 1912. 
112
 VALENÇA, Rachel & VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha Serrano: O Império do Samba. José Olympio,
1981, p. 51.

 
  47

Outro caminho de acesso à memória, comum às escolas de samba, é


composto pelos os grupos de idosos das Velhas-Guardas. No Império Serrano não é
diferente. Em encontros semanais, os senhores e as senhoras lembram-se de seus
113
momentos na escola, planejam suas festas e passeios para “levar a história do
Império Serrano”. Dona Pedrina expõe o papel deste grupo dentro e fora da escola:

A Velha Guarda é quem carrega o nome da escola. Em qualquer lugar onde


tiver uma Velha Guarda [...], nós é que carregamos a escola nas costas. Nós
fazemos a apresentação da escola em qualquer lugar que a gente vá, então
nós temos que ter uma postura. 114

Assim, a Velha-Guarda pode ser considerada uma das representantes


autorizadas a levar o nome da escola de samba, e consequentemente sua história,
115
sob certa postura exigida de cada membro como uma “etiqueta essencial” para a
execução do trabalho ao qual se propõe. Para a Velha Guarda, o fator econômico
não é ignorado, como se pode verificar em uma das condições para participar do
grupo. Além de ser sócio remido 116 , deve-se contribuir também como sócio para a
escola. Eis a descrição das atividades da Velha Guarda para com a escola de
samba nas palavras de Pedrina Rocha:

A Velha Guarda não tem uma exigência muito grande para você entrar. Só
entra com cinquenta anos, com menos de cinquenta, você não entra! Você
também tem que ser sócia da escola; se não é, vai ter que ser. Na Velha
Guarda não tem ninguém que não seja sócio da escola, pois é bem
desagradável ser Velha Guarda e não ser sócia da escola. Isso não existe,
né? Ser sócio é um orgulho que a gente tem. Não é como ala, onde sai
quem quiser, [...] depois vai embora e só aparece ano que vem, como turista.
117
Velha Guarda não é assim [...].

                                                            
113
 As reuniões para organizarem as suas festas, passeios e formas de se exporem como representantes.

114
 ROCHA, Pedrina. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P Barbosa. Rio de Janeiro, 07 dez. 2010.
1° CD (31:11 min); 2°CD (12:24 min). Anexo A, p.114 
115
 ROCHA, Pedrina. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro, 07 dez. 2010.
1° CD (31:11 min); 2°CD (12:24 min). Anexo A, p.114çl. 

116
 É o sócio dispensado definitivamente do pagamento da mensalidade, contudo tem todos os direitos e deveres
de um sócio que paga a mensalidade em dia. , de acordo com o Estatuto de uma agremiação, é a pessoa que
contribuiu por vários anos regularmente, e seria uma forma de a escola de samba agraciar seus sócios. 

117
  ROCHA, Pedrina. Entrevista concedida a Alessandra Tavares. Rio de Janeiro,07 dez. 2010. 1° CD (31:11
min); 2°CD (12:24 min). Anexo A, p. 114. 
  48

Com o compromisso de transmitir a história da escola de samba, a Velha


Guarda passeia pelos embates da memória. Uma das questões que chamam
atenção em relação ao papel de “guardiões da memória”, exercido por seus
membros, e aos embates da memória é uma espécie de nostalgia, apresentada em
seus discursos e recorrente nos depoimentos de idosos estudados por Ecléa Bosi,
quando se utilizam da expressão o “meu tempo” 118 em suas lembranças. Talvez um
tempo da nostalgia de uma época considerada encerrada: o tempo da empresa, da
119
juventude, da “memória represada” , cheia de conteúdo, mas dependente da ação
120
. Para os idosos, inclusive aqueles inseridos nas atividades da escola de samba,
parece haver um tempo próprio, que lhes pertence, porque nele eram ativos:
trabalhavam e tinham poder de decisão.
No caso da Velha-Guarda do Império Serrano 121 , a nostalgia de um tempo
de participação direta na escola – colaborando para sua ascensão no carnaval
carioca – se entrelaça com a memória da juventude, durante a qual se deu o
“encantamento” pela instituição em que trabalhariam por toda vida, assim como
conta Sr. Cidiomar Clóvis Barbosa, o Sr. Mazinho 122 , sobre seus primeiros contatos
com o samba e com o Império, lembrança ligada aos costumes de sua família em
dias de carnaval no subúrbio de Vaz Lobo. Destaca-se na narrativa do Sr. Mazinho,
em 2010, o fato de que, após décadas do encantamento com o Império Serrano, sua
beleza é colocada em uma época passada, como um lugar nostálgico que poderia
ser confundido com os lugares mágicos da infância, onde as luzes e as cores
apresentam-se em nuances guardadas na memória:

[...] o Império foi uma escola muito linda, eu estou dizendo que foi porque tudo tem
a sua a época. Eu, quando pequeno, fiquei deslumbrado, então comecei a fugir de
casa para ajudar aquela escola que eu tinha escolhido, por gostar dela, torcer por
ela, e esta escola foi o Império [...]. 123

                                                            
118
  BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: Cia das Letras, 1994, p.421. 

119
 Ibidem. p.422. 

120
  BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: Cia das Letras, 1994.p.422. 
121
 Referência aos entrevistados. 
122
 O Senhor Cidiomar Clóvis Barbosa será referido como conhecido na agremiação: por Sr. Mazinho. Nascido
em 1937. 
123
 BARBOSA, Cidiomar Clóvis. Entrevista concedida a Alessandra Tavares. Rio de Janeiro, 07 dez. 2010. 1° CD
(37:28 min); 2°CD (20:27 min). Anexo A, p 129.  
  49

Entre a nostalgia e o lugar de memória, grupos sociais, de maneira


consciente ou não, tornam-se historiadores de suas histórias. Assim, a memória
exerce papéis diferenciados, entre a nostalgia de um tempo passado e a vontade de
memória na qual está baseada a identidade de um grupo. A constituição de lugares
de memória reconhece a existência de meios de memória como foco de onde esta
irradia. Neste caso, o Império Serrano seria um meio de memória, no qual se
encontrariam as manifestações necessárias para a consolidação de um lugar de
memória.

2.2 Memória coletiva e memória individual

A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura
salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a
que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.
124

125
Para Halbwachs , cada memória individual é um ponto que faz parte da
memória coletiva. Por muito que se deva à memória coletiva, o exercício de evocar a
lembrança de certos momentos irradia, no entanto, do indivíduo. Os deslocamentos
dos indivíduos em direção ao pertencimento do grupo fazem evocar lembranças que
dão sentido à ação e significado a um passado e aos objetos retidos por sua
memória, “dentro de um tesouro comum” 126 .
Após décadas da fundação da escola de samba, é obvio que a maioria dos
membros da agremiação não estivesse presente no momento da fundação. Para
algumas pessoas que viveram a atmosfera da época e estiveram ligadas ao Império
Serrano desde o seu início, a identificação com a memória coletiva, em alguns
casos, é de tal ordem, que a ausência física, em se tratando de memória, torna-se
secundária. Elas reproduzem os acontecimentos que levaram à fundação da escola,
utilizando-se do mesmo discurso daqueles que participaram diretamente, algo

                                                            
124
LE GOFF, Jacques. “Memória” (Capítulo). In: História e Memória. Campinas: Ed. UNICAMP, 1994, p. 477.  

125
 HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. 

126
 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: Cia das Letras, 1994. p. 411. 
  50

próximo ao que Pollak chamou de “memória herdada” 127 de acontecimentos “vividos


128
por tabela” :

É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da


socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou identificação com
determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que
129
herdada.

Os integrantes do Império Serrano partilham um “tesouro comum”, referente


à memória da fundação da escola, momento que se eterniza como marco de
transformação cultural: um símbolo de liberdade transformadora de toda uma
expressividade até então reprimida. Entre a lembrança daqueles que viveram
130
diretamente os acontecimentos e aqueles que adquiriram a “memória por tabela” ,
131
a memória da fundação é transmitida às gerações imperianas , na evocação de
um passado de luta e vitória, coroado pelos campeonatos em que o Império Serrano
132
saiu como vencedor .
A memória coletiva e a memória individual se entrelaçam. A evocação de
uma memória coletiva por parte dos indivíduos contribui para o sentimento identitário
e, por conseguinte, de pertencimento. Por isso, além da função de atestar uma
história real, ela também confere ao grupo uma origem identitária.
No processo de evocação da memória da fundação do Império Serrano,
alguns eventos restritos a grupos de pessoas são inseridos no discurso coletivo. A
força da evocação pode depender do grau de interação que envolve eventos de
repercussão coletiva e restrita, os quais, inevitavelmente, sofrem um processo de
desfiguração, já que a memória coletiva é feita de memórias individuais.

                                                            
127
 POLLACK, Michael. “Memória e identidade social” (artigo). In: Estudos Históricos, v. 5, n.10, 1992, p.201.
128
 Ibidem.  
129
 Ibidem. 
130
 Ibidem. 

131
 Aquele que frequenta a escola de samba é considerado como imperiano, com algumas gradações sempre em
discussão entre aqueles que participam diretamente ou frequentam os eventos durante todo o ano e os que
frequentam a escola somente durante o carnaval.  

132
 Referência aos quatro primeiros campeonatos: os de 1948, 1949, 1950, 1951.

 
  51

“Conhecemos a tendência da mente de remodelar toda a experiência em categorias


nítidas, cheias de sentido e úteis para o presente” 133 .
Um desejo de explicação atua sobre o presente e sobre o passado,
integrando suas experiências nos esquemas pelos quais a pessoa norteia sua vida.
O empenho do indivíduo em dar um sentido à sua biografia penetra as lembranças
134
com um “desejo de explicação” .
Ancoradas no passado, memória e identidade não são fenômenos estáticos.
Em sua relação dialética entre passado e presente, e talvez com o futuro em
algumas situações, sofrem um processo permanente de construções e/ou
desconstruções. Para Le Goff, um dos meios para abordar a questão do tempo e da
história é o estudo da memória social:

O estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os


problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está
ora em retraimento, ora em transbordamento. 135

                                                            
133
  BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: Cia das Letras, 1994. p. 419. 
134
 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: Cia das Letras, 1994. p. 419. 
135
 LE GOFF, Jacques. “Memória” (capítulo). In: História e Memória. Campinas: Ed. UNICAMP,1994, p. 426. 
  52

2.3 A memória em campo

Primeiro ano – Imperial


Segundo ano – Imperial
Terceiro ano – Imperial
Este é o rei dos reis
O campeão do carnaval

São três anos de existência


Quatro anos de vitória
Isto para a nossa escola
É uma grande glória 136

137
Às terças-feiras , às 20:00 horas, na quadra da escola de samba 138
localizada na Rua Edgar Romero, nº 114, em Madureira, podemos encontrar
reunidos um grupo de senhores e senhoras. É a Velha-Guarda do Império Serrano:
pessoas que se reúnem para além da busca pelo prazer, visto que ao longo de suas
vidas se dedicaram por pelo menos 30 anos à escola de samba, à qual ainda hoje
se dedicam. Todas as semanas elas se reúnem para decidir e colocar em prática o
trabalho de levar, para todos os espaços, o nome da escola com a sua história.
Surge, então, para quem assiste de fora, um estranhamento: O que leva essas
pessoas, depois de tantos e tantos anos, a se dedicarem ainda hoje à escola?
Mesmo para elementos estranhos ao seu convívio, não é difícil encontrar
um grupo bem disposto a “contar a história do Império Serrano”. Nas reuniões da
Velha-Guarda, é comum entre os membros do grupo o ato de “lembrar a história do
Império”. Neste processo de evocação, uma espécie de história oficial, repetida ao
longo dos anos, mistura- se com a história de vida de cada indivíduo em sua
participação na escola de samba.
O primeiro a se prontificar para narrar a “história do Império Serrano” foi o
presidente da Velha-Guarda, o Sr. Mazinho. Este personagem, através de sua
narrativa, que ora passa pelo individual, ora assume uma espécie de narrativa
coletiva, ajuda-nos a entender o entrelaçamento das memórias individual e coletiva.

                                                            
136
  NASCIMENTO, Braúlio. Sem título. 1951. 

137
Toda terça-feira o grupo se reúne para o planejamento e desenvolvimento de seus projetos, como os
inúmeros eventos promovidos pelas Velhas-Guardas, suas coirmãs, momentos em que são chamados a
exercerem o papel de “Guardiões da Memória”, ao levarem a história e os símbolos da sua agremiação a tais
eventos. 

138
 Quadra Elói Antero Dias do Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano. 
  53

Em referência a seus primeiros contatos com o carnaval, Sr. Mazinho revela


parte de um cotidiano próprio da região de Madureira, com seus blocos e escolas.
Seus primeiros contatos com o Império Serrano têm como lugar de evocação as
reuniões de família, quando ainda com seus doze anos sentava-se na calçada até
de madrugada e ficava a esperar pelo desfile das agremiações da região:

O samba entrou na minha vida por intermédio do Império Serrano mesmo,


eu nunca mudei. Desde garoto, quando nós esperávamos a Portela, a
Unidos de Congonhas, nós ficávamos até de madrugada sentados, na beira
da calçada; os pais, com a gente pequeno, esperando para ver o Império
passar, a Portela passar, a Unidos de Congonhas passar, e ali eu fui
tomando gosto pela beleza que o Império apresentava e o samba que o
Império tinha. Eu dizia assim: “não, agora eu vou ter que fazer parte de
139
alguma maneira!”

A narrativa do Sr. Mazinho apresenta aspectos relevantes para a análise


das ressignificações da memória. O hábito dos moradores de Madureira, de
esperarem a passagem dos blocos e das escolas de samba da região, não foi
destacado como seu primeiro contato com o samba. Para Sr. Mazinho, seu contato
140
com o ritmo, bem como sua inserção no “mundo do samba” , ocorreu através do
seu deslumbramento com a beleza do Império Serrano. Fazer parte de algo que o
levou ao encantamento é a justificativa para sua permanência ainda hoje na escola
de samba. Mesmo depois de ter sido proibido por seus pais, e posteriormente por
sua esposa 141 , de frequentar o lugar, Sr. Mazinho coloca a atração pelo Império
Serrano na beleza da escola. Sua motivação em ter a identidade ligada a algo belo
foi o que o fez transpor os obstáculos que poderiam impedi-lo de frequentar
ativamente a escola de samba.
A respeito do processo que levou à fundação do Império Serrano, Sr.
Mazinho coloca duas grandes questões: a primeira é a existência de possíveis
versões sobre a história da criação da agremiação; a segunda é a repetição de

                                                            
139
 Sr. Mazinho nos conta em tom jocoso que para frequentar o Império Serrano teve que transpor barreiras
quando ainda jovem fugia de casa para frequentar a escola de samba e posteriormente se deparou com a
resistência de sua esposa quanto à sua relação com a agremiação. Ver: BARBOSA, Cidiomar Clóvis.. Entrevista
concedida a Alessandra Tavares. Rio de Janeiro, 07 dez. 2010. 1° CD (37:28 min); 2°CD (20:27 min). Anexo A,
p.132. 

140
 Termo utilizado para designar todo capital cultural que gira em torno do ritmo, como por exemplo: blocos,
escolas de samba, pagodes e encontros que envolvam o samba de alguma forma.  

141
 BARBOSA, Cidiomar Clóvis. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro, 07
dez. 2010. 1° CD (37:28 min); 2°CD (20:27 min). Anexo A, p.142. 
  54

palavras contidas no discurso oficial sobre a história da escola, que aparecem em


sua narrativa e na de outros entrevistados:

O Império Serrano foi fundado por uma dissidência, foi uma dissidência
que fez o Império ser fundado. O Império é uma dissidência da Prazer da
Serrinha. O presidente de lá era muito austero. Ele era tudo, ele era o
presidente, ele mandava muito e em um determinado ano houve um
aborrecimento sobre o samba que seria cantado na avenida. Eu estou
falando da Prazer da Serrinha. O que eu soube dentro das várias versões
é isso, que o presidente da Prazer da Serrinha era um cara que mandava
mesmo, então ele queria que o samba que fosse apresentado no desfile lá
em baixo fosse um samba, mas alguns que pertenciam à diretoria queriam
142
outro; valeu a vontade dele e a escola teve uma péssima colocação[...]
(grifos da entrevistadora)

Questionado sobre estas versões, Sr. Mazinho comenta que “a versão


mesmo, quase que principal”, foi desta “dissidência” entre os componentes da
Prazer da Serrinha e o presidente, “que era quase o dono”, em meio ao
aborrecimento originado pela escolha do samba 143 . (grifos da entrevistadora)
As questões levantadas pela evocação de Sr. Mazinho se aproximam do
território movediço que é o de trabalhar com a memória. É preciso considerar que a
memória passa por um processo de ressignificação na relação entre o passado e o
144
presente . No ato de lembrar as experiências do passado, as imagens e ideias de
hoje são elementos a serem considerados. Assim, entre um discurso oficial que se
construiu nos momentos iniciais e a memória do ocorrido há seis décadas, o não dito
ainda se coloca de alguma forma como uma ameaça. Talvez não mais como uma
ameaça às identidades tecidas a partir da fundação da escola de samba, porque
estas foram sendo consolidadas ao longo do tempo, mas para evitar atritos entre o
grupo ou mesmo para que não haja qualquer mácula na “história vencedora”, a
história oficial representada pela ruptura que levou à fundação da agremiação.
As possíveis versões da história da fundação, se aconteceram, foram
silenciadas ao longo do tempo. Na construção do discurso oficial, houve uma
escolha de eventos a serem resgatados a fim de compor o quadro apresentado para
legitimar a fundação de uma nova escola de samba no morro – o que se deu em

                                                            
142
BARBOSA, Cidiomar Clóvis. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro, 07
dez. 2010. 1° CD (37:28 min); 2°CD (20:27 min). Anexo A, p.130. 

143
Ibidem, p.132-133. 

144
 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: Cia das Letras, 1994. 
  55

uma hierarquia de eventos a serem lembrados, na construção de uma espécie de


história heroica que agregasse as pessoas envolvidas.
A memória coletiva coloca-se em negociação dinâmica no processo de
seleção do que seria evocado para legitimar a identidade do grupo: “uma memória
que, ao definir o que é comum a um grupo e o que o diferencia dos outros,
fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras
145
socioculturais” . No entanto, longe de ser uma imposição, a memória comum
apresenta-se, neste caso, em sua função positiva, como um reforço à coesão social.
146
Para Pollak o problema da memória oficial é a sua credibilidade . A
organização do discurso passa pelo pressuposto da aceitação de um fundo comum
de referências que possam constituir a memória oficial de determinado grupo. Ao se
referir às organizações políticas, como sindicatos e partidos, o autor aponta para a
ligação do passado com a imagem que estes grupos fazem de si mesmos. Deste
modo, pode-se entender parte do silenciamento na narrativa de Sr. Mazinho, pois
“tais imagens não podem ser modificadas de maneira brusca, a não ser sob tensões,
147
cisões e mesmo o desaparecimento” .
148
O conceito de “projeto” utilizado por Gilberto Velho , como uma espécie
de conduta organizada e motivada por um objetivo a ser alcançado, ajuda a reflexão
sobre as questões colocadas pela narrativa de Sr. Mazinho. Certo teor de
planejamento é acrescido à construção de discursos que se baseiam na memória e
no delineamento de objetivos a serem atingidos. Neste sentido, memória relaciona-
se a projeto no que se refere ao estabelecimento de “visões retrospectivas e
prospectivas que situam o indivíduo, suas motivações e significados de suas ações,
dentro de uma conjuntura de vida, na sucessão de etapas de sua trajetória” 149 .

                                                            
145
 POLLAK. Memória Esquecimento e Silêncio (capítulo). Estudos Históricos, vol2, n 3, 1989, p.3. 
146
 Ibidem. 
147
 Ibidem.  

148
Tal noção o autor trouxe da obra de Alfred Schutz, “como conduta organizada para tingir finalidades
específicas.”. Ver em VELHO. Gilberto. Projeto e Metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.101. 

149
 VELHO. Gilberto. Projeto e Metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003, p.101. 
  56

 
150
Assim, diante de um projeto “organizado para atingir finalidades específicas” , as
versões mencionadas por Sr. Mazinho são silenciadas.
A negociação, ou adesão a um modelo socialmente aceito, não é, segundo
Gilberto Velho, um projeto deliberadamente racionalizado, mas um movimento que
se aproveita das circunstâncias, pelas possibilidades que são apresentadas, como
uma forma de pensar a vida social e cultural. Através de uma espécie de “repertório
sociocultural” 151 , definido pelo autor como “campo de possibilidades”, o projeto
coloca-se nas decisões do cotidiano, nas escolhas dos indivíduos e/ou dos
grupos 152 . “É a partir deste repertório que os indivíduos tomam suas decisões, fazem
suas escolhas, estabelecem suas alianças e, é claro, entram em conflito em torno de
interesses e valores” 153 , implicando o reconhecimento das limitações impostas aos
indivíduos e aos grupos, determinantes para a sobrevivência do projeto. Neste caso,
a identidade depende da relação, da condução do projeto, ou adaptação deste em
uma constante interação com os diversos grupos e sujeitos sociais. Dessa forma, o
projeto seria:

o instrumento básico de negociação da realidade com outros atores,


individuais ou coletivos. Assim ele existe, fundamentalmente, como meio de
comunicação, como maneira de expressar, articular interesses, objetivos,
sentimentos, aspirações para o mundo. 154 (grifos da entrevistadora)

No processo de negociação da realidade, a fundação do Império Serrano


envolveu indivíduos diversos. Do grupo que tomou para si a liderança do movimento
àqueles que testemunharam dos bastidores os eventos que levaram à fundação da
nova escola de samba, observa-se um processo de construção de um discurso
legitimador. No entanto, para a validação de tal discurso, como projeto consciente ou
não, dentro do “campo de possibilidades” apresentado à época, houve um processo
de “adesão” no que se refere à assimilação de certo modo de vida, ou visão de
                                                            
150
 VELHO. Gilberto. Projeto e Metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003, p.101. 

151
 VELHO, Gilberto. Estudos e pesquisas em psicologia. Rio de Janeiro, ano 6, nº 2, 2º, 20 de abril. 206. p.152-
158. Entrevista. p.154. 

152
  Ibidem. p.101.  

153
 Ibidem. p.154. 

154
 VELHO. Gilberto. Projeto e Metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003, p.103. 
  57

mundo, uma vez que este projeto, por “mais velado ou secreto que possa ser, é
expresso em conceitos, palavras e categorias que pressupõem a existência do
outro” 155 . Dessa maneira, o silêncio de Sr. Mazinho pode ser entendido como uma
forma de adesão ao projeto do qual faz parte.
O carnaval das escolas de samba no final da década de 1940, quando o
Império Serrano entra em cena, já estava consolidado como manifestação nacional.
Diante desta perspectiva, as possibilidades eram delineadas pelo sucesso do
carnaval das escolas de samba. Além do financiamento feito pela prefeitura, o
fascínio que as escolas de samba exerciam sobre os diferentes segmentos da
sociedade aumentava as probabilidades de mediação.
Foi destacado que o Império Serrano exercia certa atração sobre as
pessoas famosas, como os intérpretes populares do rádio: Marlene, Emilinha Borba,
Dalva de Oliveira. Esta relação com personalidades de destaque na década de 1940
é apontada por Dona Pedrina e Sr. Mazinho como exemplos da atração que a
beleza do Império Serrano exercia, levando tais pessoas a frenquentar o morro. Na
gravação do depoimento para posteridade em 1968 156 , Aroldo Bonifácio 157 e
Sebastião de Oliveira falam um pouco mais sobre estas relações entre imperianos e
personalidades do momento:

Aroldo – Na história do samba, principalmente na história da Império


Serrano, existe algo de muito importante [...]. Graças à Império Serrano a
sociedade foi ao samba. Eu me recordo perfeitamente que foi numa das
grandes festas no alto da Serrinha que começaram as visitas da sociedade
ao samba, recorda isto Tião?

Sebastião – Foi. De fato nós tivemos o prazer de receber lá na nossa


modesta sede, lá no Morro da Serrinha, embaixadores, figuras que vinham
como visita.

Aroldo – Isto foi quando Sebastião?

Sebastião – Isto foi em 1948- 49. Essas pessoas que vinham ao Itamarati,
vinham visitar a Escola de Samba Império Serrano, por intermédio do nosso
amigo Irênio Delgado 158 e do nosso amigo presente, Aroldo. Recebíamos
artistas de rádio... Emilinha, Dalva de Oliveira, Marlene e todo esse povo...

                                                            
155
VELHO. Gilberto. Projeto e Metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003, p.103. 

156
 MUSEU DA IMAGEM E DO SOM (Brasil). Depoimentos para Posteridade: Escola de Samba Império Serrano.
Rio de Janeiro, 1968. 
157
 Jornalista e compositor. 

158
 Jornalista ligado ao samba. 
  58

Mano Décio – Inclusive elegemos a Dalva de Oliveira!

Sebastião – Elegemos Dalva de Oliveira a primeira rainha do rádio. O


pessoal contribuiu passando voto e fazendo apresentações. Ela pertence ao
nosso departamento feminino permanente; ela e a Marlene. Não me recordo
agora mas elas têm título dado pelo Império.

Aroldo – Títulos honoríficos.

Sebastião – Títulos honoríficos. Tivemos várias visitas importantes lá em


cima, na nossa sede, na modesta dádiva da nossa organização.

A aproximação da sociedade, destacada por Aroldo Bonifácio, através do


Império Serrano pode ser entendida como um campo de possibilidades que se
estabelecera por meio das escolas de samba. A ligação do samba e, por
conseguinte, do carnaval popular dos morros com uma espécie de malandragem,
talvez tenha gerado uma desconfiança da “sociedade”. Com a promoção das
escolas de samba, conforme narrativa de Sebastião, através da ação de algumas
personalidades 159 , houve um processo de aproximação entre os interesses da
“sociedade” e dos populares, pelas músicas, pelo voto nos concursos das rádios e,
160
no caso das escolas de samba, com apoio financeiro .
Além da adesão à versão oficial, pode-se destacar, no discurso de Sr.
Mazinho, o emprego de um repertório de eventos reproduzido palavra por palavra
pelos integrantes da agremiação. Ao referirem-se ao processo de criação da escola
de samba, termos como “dissidência”, em contraposição a um desejo de busca de
um espaço “democrático”, aparecem como recursos mnemônicos no movimento de
lembrar, feito um recurso para se estabelecer o lugar da fundação como uma
ruptura.
Foi encontrado no arquivo da Liga Independente das Escolas de Samba do
Grupo Especial (LIESA) um documento 161 identificado como sendo de autoria de Sr.
Sebastião, mas que, no entanto, não possui sua assinatura. Este documento data de
1967 e se propõe, como diz seu título, a fazer um “Histórico da Fundação” da escola
                                                            
159
 Irênio Delgado e Aroldo Bonifácio. 

160
 E mesmo por uma espécie de positivação das escolas de samba e das comunidades por terem a presença de
pessoas famosas em suas sedes. 

161
 Este mesmo documento foi citado por VALENÇA, Rachel & VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha Serrano: O
Império do Samba. José Olympio, 1981. p 30-31; VASCONCELLOS, Francisco. Império Serrano: Primeiro
Decênio: 1947- 1956. Ensaios de Carnaval nº 2. Rio de Janeiro, 1991. E por OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de &
SILVA, Marília T. Barboza da. Silas de Oliveira : Do jongo ao samba-enredo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981. O
acesso a este se deu através do acervo intitulado GRES Império Serrano, na sede administrativa da LIESA.
Anexo B. 
  59

de samba Império Serrano. O ponto de tensão, destacado por este breve histórico,
que levou à fundação do GRES Império Serrano, foi o descontentamento com os
carnavais de 1946 e 1947 162 . Segundo o documento, o evento desencadeador do
movimento para a fundação do Império Serrano foi a substituição do samba enredo.
Encontra-se no mesmo documento um repertório de eventos e palavras presentes
na narrativa de alguns personagens ligados à agremiação:

Os anos foram passando, e lá pelos idos de 1945, surgiu o primeiro carnaval


163
depois da guerra . Apresentamos a Serrinha como tema de enredo,
“CONFERÊNCIA DE SÃO FRANCISCO”, inspirado pelo bravo Antônio
Caetano, surgindo dali um pequeno desentendimento, porque fomos
desclassificados.
[...]
Houve surpresa geral quando na hora do concurso veio uma ordem para
cantar um outro samba; ficamos completamente transtornados, vendo aquele
fracasso geral, surgindo então vários descontentamentos.
[...]
Procuramos por meio de uma comissão, formada por Chico Oscarino,
Antenor e outros, convencer os responsáveis pela Serrinha de que fosse
formada uma diretoria, porém não tivemos êxito.
Vendo que não se encontrava uma solução, reunimo-nos e, com um simples
lápis e caderno, anotamos os nomes das pessoas que estavam de acordo
com a fundação de uma nova escola, tendo a ideia merecido apoio geral.
Os responsáveis pela Serrinha, quando notaram que estávamos
organizados, convocaram uma reunião e muitos daqueles que tinham
aderido à nossa ideia, logo após a reunião da Serrinha, voltaram a nos
procurar, dizendo que não contássemos com suas colaborações,
desculpando-se porque a Serrinha, por sua tradição não poderia morrer, e na
realidade nossa intenção não era essa, mas sim criar uma agremiação que
elevasse bem alto o nome do nosso bairro. 164

Em entrevista ao Museu da Imagem e do Som 165 do Rio de Janeiro, em


1984, Sr. Sebastião retoma o repertório de eventos e palavras ao falar sobre a
questão da fundação da escola de samba:

[...] o Império surgiu de uma dissidência, porque quando eu digo que


corrigimos, é porque corrigimos. Nossa! A Serrinha tinha dono, as escolas de
samba na sua maioria tinham dono. Era o que eles queriam e não podíamos

                                                            
162
 Os descontentamentos, segundo os envolvidos, tiveram como embate final a questão da escolha do samba
enredo para o carnaval de 1946, quando a escola de samba desenvolveu um desfile de acordo com o samba,
uma inovação para a época. No entanto, após um desentendimento do presidente da Prazer da Serrinha com a
Ala dos Compositores, o samba enredo foi modificado, no momento do desfile. Tal evento foi considerado pelos
integrantes da escola de samba o motivo para não se manterem na Escola de Samba Prazer da Serrinha. Ver:
Diário Trabalhista, 7 de março de 1946. Apud. VALENÇA, Rachel & VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha
Serrano: O Império do Samba. José Olympio, 1981. Anexo B.  

163
 O autor refere-se ao carnaval de 1947. 
164
 Anexo B, p.1-2. 
165
 MUSEU DA IMAGEM E DO SOM (Brasil). Depoimentos para Posteridade: Escola de Samba Império Serrano.
Rio de Janeiro, 1984. 
  60

mudar muitas coisas que desejávamos. Fizemos uma escola que a gente
pudesse mudar, para fazermos tudo dentro do nosso ponto de vista:
deliberar, discutir – o que não existia antes. Antes tinha um dono e se fazia
aquilo que ele queria. 166 (grifo da entrevistadora)

Após a fundação do Império Serrano, a democracia é inserida nos discursos


que explicam e legitimam o processo para a sua fundação. A busca de um espaço
democrático insere-se nos discursos de seus integrantes como um objetivo que
justifica a dissidência, na direção da construção de um mito fundador para a nova
escola de samba.
Neste caso, quando Le Goff analisa a memória em povos sem escrita 167 ,
fomenta o pensar acerca da cristalização de alguns aspectos aparentemente
históricos como recursos identitários:

O primeiro domínio onde se cristaliza a memória coletiva dos povos sem


escrita é aquele que dá um fundamento – aparentemente histórico – à
existência das etnias ou das famílias, isto é, dos mitos de origem. 168

No Império Serrano, o movimento de lembrar sua história se realiza pela


transmissão oral, internamente entre os membros da agremiação e para fora desta,
diante do interesse da mídia. Isto posto, é possível considerar a escola de samba
como uma sociedade cuja memória não se baseia em suporte necessariamente
escrito. Além da perda de uma série documental 169 considerável para a
compreensão de aspectos da história da escola, foi identificado, como fonte de base
escrita, somente o documento supostamente elaborado por Sr. Sebastião. Pode-se
afirmar, portanto, que o movimento de guarda ou exposição da história e/ou
memória na escola de samba por meio de suporte escrito, se praticado, é feito de
maneira informal.
                                                            
166
 MUSEU DA IMAGEM E DO SOM (Brasil). Depoimentos para Posteridade: Escola de Samba Império Serrano.
Rio de Janeiro, 1984. 

167
 Naturalmente que a escola de samba se utiliza da escrita como recurso para se fazer presente como
instituição, no entanto, só foi identificado um documento que se propõe a “fazer um histórico da fundação da
escola de samba” será analisado ou comentado na sequência do trabalho. Ainda há a questão dos documentos
institucionais escritos, que foram destruídos ao longo dos tempos, sendo alguns poucos encontrados somente
em instituições não ligadas necessariamente à escola de samba e em algumas bibliografias sobre o Império
Serrano. 
168
 LE GOFF, Jacques. “Memória” (capítulo). In: História e Memória. Campinas: UNICAMP, 1994, p. 427. 

169
 Documentos relacionados à administração da escola de samba, como atas de fundação e de reuniões, assim
como informativos relacionados às festas. 
  61

Ao buscar uma compreensão para a questão dos mitos políticos, Raoul


Girardet declara que estes devem ser concebidos como uma narrativa que se refere
ao passado e que, no entanto, conservam uma relação com o presente por seu valor
explicativo, na medida em que esclarecem e justificam as experiências individuais ou
coletivas:
O mito político é fabulação, deformação ou interpretação objetivamente
recusável do real. Mas a narrativa legendária exerce também uma função
explicativa, fornecendo certo número de chaves para a compreensão do
presente, constituindo uma criptografia através da qual pode parecer
ordenar-se o caos desconcertante dos fatos e dos acontecimentos. 170

O mito seria uma interpretação que não estaria ligada necessariamente ao


real. O autor propõe a contraposição da ideia de mito à imagem da narrativa
legendária ao exercer uma função explicativa. A narrativa legendária forneceria
bases para a relação entre presente e passado na ordenação dos acontecimentos.
No Império Serrano, a narrativa legendária é um constituinte do imaginário local no
que se refere à sua função de apresentação e/ou representação do real. Baseando-
se na repetição contínua, pautada na ideia da construção de um “discurso
legendário”, a narrativa obedece a um ritmo cronológico, em uma espécie de
cadência que se apresenta como as bases que dão sentido à existência da escola
de samba.
[...] a referência à história, o peso da lembrança, desempenha, aqui, um
papel essencial: não é nada mais que o passado – um passado de ordem ou
de glória – que se vê chamado a socorrer o presente – um presente de
confusão ou de derrota. Daí, no discurso legendário desse tipo, o lugar
essencial ocupado pelos princípios de continuidade e de estabilidade, pelos
171
valores de permanência e de conservação.

É no embate entre a arbitrariedade e a busca por práticas mais


democráticas que os discursos se encontram. As versões mencionadas por Sr.
Mazinho se diluem, ou são silenciadas em favor de uma versão/memória
reproduzida ao longo do tempo em uma narrativa legendária que busca a
legitimação para a fundação da escola de samba.
Porém, além das insatisfações em relação à arbitrariedade da presidência
da escola de samba, é fato que uma agremiação, com seus integrantes, quando se
coloca no campeonato, tem a vitória como objetivo principal e agregador. Por isso
                                                            
170
 GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Cia. Das Letras, 1987, p.12-13. 

171
 Ibidem. p. 74.

 
  62

entende-se que muitos fatores contribuíram para os embates que levaram à ruptura
com a escola de samba existente na Serrinha. A falta de sucessos nos
campeonatos das escolas de samba e as relações conturbadas dentro da
agremiação talvez sejam o que tenha promovido a fundação da escola. A questão
da escola de samba não se colocar entre as campeãs no carnaval é destacada por
tia Eulália, em um momento representativo:

Ali, naquela casa, meu irmão me chamou: “Eulália, vamos lá em baixo. Mano
172
Décio tá lá com a viola te esperando”, porque eu cantava, né? Cantava
muito... Eu cantei o samba (pausa) da tristeza da nossa derrota... Eu falei
“vamos lá!” 173

Os impactos do resultado do carnaval de 1946 teriam assumido proporções


que os envolvidos na atmosfera festiva do carnaval consideraram um fracasso, uma
derrota. Ao redor da bica do sopé, no morro da Serrinha, os integrantes da escola de
samba Prazer da Serrinha teriam se reunido e, naquele momento, Sebastião
Oliveira teria composto o samba referido por tia Eulália como “o samba da tristeza da
nossa derrota”, em alusão aos acontecimentos daquele carnaval 174 :

Quase que chorei


Quando a nossa escola desfilou
Senti grande emoção
Que meu coração quase parou

O samba do concurso não era aquele


Era um samba harmonioso
Que Mano Décio escreveu
Serra, dos meus sonhos dourados
A Paz universal, restabeleceu 175

Segundo os integrantes da Prazer da Serrinha, os embates com a


presidência da agremiação eram gerados pelo despotismo de Alfredo Costa, que
                                                            
172
  Mano Décio da Viola foi o compositor do samba enredo A Conferência da Paz, que por conta de um
desentendimento com o presidente da Escola de Samba Prazer da Serrinha , o senhor Alfredo Costa, teve seu
samba trocado, o que, segundo os moradores, levou à perda de uma colocação entre as campeãs em 1946. 

173
 TIA EULÁLIA: O Império do Divino (documentário). Direção de Erick Oliveira. Rio de Janeiro: Plano Geral
Filmes, 2007. DVD. 

174
 VALENÇA, Rachel & VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha Serrano: O Império do Samba. José Olympio,
1981. 

175
OLIVEIRA, Sebastião. Quase que chorei. Rio de Janeiro, 1947. Segundo Valença somente depois de certo
tempo é que Sebastião ficou sabendo que o samba A Paz Universal também era de autoria de Silas de Oliveira e
não somente de Mano Décio, como ficou consagrado na letra do samba. 
  63

agia como se fosse “dono da escola”. Entretanto, essa característica não era
exclusividade da Serrinha. Tal modelo de administração “sempre esteve presente
176
nas várias agremiações carnavalescas” . Agremiações fundadas e conduzidas por
seus “donos” era prática da época, o que podia ou não provocar crises. Segundo
Vasconcellos, a questão da cisão da Serrinha não teve fundamento somente no
autoritarismo de Alfredo Costa, como afirmam os integrantes da escola de samba.
Apesar de os discursos locais sobre a fundação do Império Serrano mencionarem
somente os embates contra o autoritarismo de Alfredo Costa, Vasconcellos afirma:

Na verdade, a Prazer da Serrinha nunca chegou a empolgar os seus


integrantes, o que deve ter minado a sustentação do todo-poderoso Alfredo
Costa. E afinal, um grupo mais lúcido, consciente e ávido de sucesso,
desgarrou-se da matriz, criando com elementos de outras agremiações e
sambistas avulsos uma nova entidade que nasceu revolucionando e até
177
modificando o cenário das escolas de samba no Rio de Janeiro.

Desde os primeiros momentos de organização dos desfiles das escolas de


samba no Rio de Janeiro, a Prazer da Serrinha, com seu presidente Alfredo Costa,
fazia-se presente. Embora se colocasse entre as escolas de samba da época, como
a Estação Primeira e a Portela, destaca-se que, para alguns frequentadores do
carnaval da região, a Prazer da Serrinha é lembrada como um bloco 178 , e não como
uma escola de samba. Talvez como uma lembrança que venha corroborar com as
afirmações de Vasconcellos a respeito do papel que a Prazer da Serrinha exercia no
morro. Assim, quando da inquisição sobre o carnaval no período anterior à fundação
do Império Serrano, surgem afirmações conforme segue destacado:
Era esse bloquinho só que tinha para a gente sair. Não tinha mais lugar
nenhum: era esse bloco. Deu a noite, não tinha mais folia. Ou, então, se ia

                                                            
176
 VASCONCELLOS, Francisco. Império Serrano: Primeiro Decênio: 1947- 1956. Ensaios de Carnaval nº 2. Rio
de Janeiro, 1991, p.36. 

177
 Ibidem. p.37. 

178
 Oliveira e Silva defendem que em relação às escolas de samba houve uma distorção dos reais objetivos
destas como fenômenos culturais, terminando por induzidas à preocupação exclusiva da vitória nos
campeonatos de carnaval. O que de certa forma levou a uma espécie de descaracterização das escolas de
samba como espaços de participação comunitária, e de tradição cultural. Em relação à Prazer da Serrinha
defendem que: “A vida da escola, a sua participação nos festejos da cidade, a convivência comunitária sempre
foram os aspectos mais importantes para os serranos. Diversas vezes os cronistas carnavalescos apontavam-na
como uma das favoritas. Na hora dos resultados, ela aparecia mal colocada. Por quê?”. Ver. OLIVEIRA FILHO,
Arthur L. de & SILVA, Marília T. Barboza da. Silas de Oliveira: Do jongo ao samba-enredo. Rio de Janeiro:
FUNARTE, 1981, p.33. 
  64

para o palanque que tinha assim nos comércios, e só isso. Só tinha aquele
bloco. 179

Se a questão dos descontentamentos com a administração arbitrária de


Alfredo Costa não foi a única a levar à fundação de outra agremiação é, no entanto,
o lugar em que se cristalizam os discursos locais. Na memória local há um embate
entre um passado que se quer romper, representado pela arbitrariedade, e um
movimento em direção à democracia.
Dona Pedrina, participante da agremiação desde os anos iniciais, quando
tinha seus dezessete anos, foi uma das pessoas que se propuseram a ceder
entrevista 180 . Na narrativa de Dona Pedrina, a fundação e os primeiros anos
aparecem como acontecimentos vitoriosos. A Escola de Samba Prazer da Serrinha
é referida como um bloco e para além da ação de pessoas e famílias locais, o
movimento parece que se encerra nas quatro vitórias do Império Serrano no
carnaval carioca:

Quando o Império foi fundado, tinha um bloco lá na Serrinha que era Prazer
da Serrinha. Aí acabaram com o Prazer da Serrinha e fundaram o Império
Serrano, lá na Serrinha mesmo, na casa da Dona Eulália, [...], Nesta
ocasião, ela morava em cima, que é na rua da Balaiada, onde fundaram o
Império. Esta rua é uma rua de subida, então lá em cima tinha a última casa,
que era da Dona Eulália. Depois vinha a da vovó Maria Joana, mais em
baixo a do meu tio. Aí, quando fundaram o Império, foi aquele alvoroço, para
a moçada, para meninada... Todos queriam sair na escola; todos. A Serrinha
inteira naquela coisa... Foi um Deus nos acuda! [...] Fundado o Império,
fomos para lá e ganhamos quatro anos seguidos. Não sei se você sabe
disto: primeiro, segundo, terceiro, quarto anos. Até tinha uma música que
dizia assim: “Imperial, primeiro ano, segundo ano, terceiro ano imperial, esse
é o campeão dos campeões, com três anos de existência são três anos de
181
vitória, isso para nós é a grande glória.”

A ruptura com um modelo de carnaval, representado pela antiga escola de


samba é o marco que norteia a evocação do discurso local. Dos fundadores aos
                                                            
179
 ROCHA, Pedrina. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro, 07 dez. 2010.
1° CD (31:11 min); 2°CD (12:24 min). Anexo A, p.109. 

180
 Interessante destacar que iniciados os primeiros contatos para a entrevista, já na quadra da escola, esta se
manifestou, com certa veemência, em relação ao local que gostaria de ser filmada, e fez questão que fosse
indicando o local específico onde se realizava a conversa: o camarote Eulália de Oliveira do Nascimento, uma
das fundadoras do Império Serrano. O simbolismo da escolha de Dona Pedrina nos chama atenção, diante dos
vários camarotes existentes na quadra, que homenageiam pessoas consideradas importantes para a história da
agremiação. A opção pelo camarote, segundo a entrevistada, era mais uma homenagem para uma mulher que
dedicou sua vida para o sucesso do Império Serrano. Uma homenagem que nos ajuda a pensar a relação entre
a vida, a memória individual das pessoas e o pertencimento a este grupo como memória coletiva, e como as
pessoas percebem este processo. 
181
 ROCHA , Pedrina. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro,07 dez. 2010.
1° CD (31:11 min); 2°CD (12:24 min). Anexo A, p.104. 
  65

membros anônimos da agremiação, a história da fundação da escola é lembrada


como um processo vencedor. A exaltação da fundação e dos carnavais em que
venceu o campeonato das escolas de samba no Rio de Janeiro fazem parte da
narrativa legendária.
  66

3 E A NOSSA UNIÃO CONSAGROU

3.1 Espaços familiares

A Serrinha era quase uma família só, como nessas fazendas. Eram todos
182
por um, um por todos.

Nasceu lá na Serra
Uma linda flor
E a nossa união consagrou
Império Serrano quando nasceu
183
Foi mais uma estrela que apareceu.

As epígrafes apontam um dos aspectos característicos do morro da


Serrinha: a união entre os moradores. A primeira, trecho do depoimento de Antônio
dos Santos, o Mestre Fuleiro 184 , e a segunda, parte da letra do samba de Senhor
Antenor, quando da reunião de fundação do Império Serrano, indicam aspectos da
vida no Morro da Serrinha, durante suas primeiras décadas. A percepção dos
moradores faz referência à vida em família, uma espécie de união que, por vezes,
fora citada por possuir certa semelhança com o cotidiano em áreas rurais. Tia
Eulália, que ainda pequena fora levada com sua família para o morro, afirma em
entrevista a Edir Gandra 185 que, em sua infância, a Serrinha parecia uma floresta
com diversas árvores, fontes de água e até onças. Segundo Gandra, para tia Eulália
“[...] não havia muita diferença entre aquele novo local de moradia e a fazenda no

                                                            
182
Apud. OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de & SILVA, Marília T. Barboza da. Silas de Oliveira : Do jongo ao samba-
enredo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981, p. 30. 

183
OLIVEIRA, Antenor Rodrigues de. Sem título. 1947. 

184
 Antônio dos Santos, o Mestre Fuleiro, foi fundador e compositor do Império Serrano. Ficou conhecido ainda no
mundo do Samba como o “Apito de Ouro” por ter sido durante muito tempo o único diretor de harmonia do
Império Serrano comandando toda a escola com o seu apito.  

185
 GANDRA, Edir. Jongo da Serrinha: do terreiro aos palcos. Rio de Janeiro: GGE: UNIRIO, 1995. 
  67

interior do Estado de Minas, de onde sua família migrara. O acesso entre as casas
se dava por pequenas trilhas no meio do mato” 186 .
A presença das famílias como agentes de povoação e estruturação da
região é um dos pontos característicos das relações locais. A noção de família é
apontada nos diversos depoimentos apresentados pela literatura 187 que se
desenvolveu a respeito da região como uma espécie de família extensa,
extrapolando a noção de família consanguínea, adotando uma significação mais
ampla.
O estreitamento das relações familiares era forjado no cotidiano através de
atividades profissionais ou pelos lazeres. Uma das marcas deste estreitamento está
no costume local de se referir às pessoas por certo título usado antes dos nomes
que remontam a ligações por parentesco 188 , como é o caso das “tias”, “vovó”,
“madrinhas” e “padrinhos”, nomeações adquiridas ao longo da vida a partir das
relações de vizinhança. Assim, algumas pessoas entraram na história local, sendo
referidas por certo parentesco que as identificavam como parte daquela família
extensa do morro da Serrinha: a Vovó Maria, a Vovó Maria Joana, a Vovó Teresa, a
Tia Eulália, a Tia Maria do Jongo, bem como os vários irmãos e primos “de
criação” 189 . Quando questionada sobre os parentescos, Dona Vilma Machado narra
como funcionava esta relação:

Ninguém é parente de sangue; é parente daquele tempo em que a gente


chamava de “vovó”, “tia, a benção, tia”. Era aquele respeito... Tem muita
gente que não é parente de sangue. Essa Pedrina 190 não era parente de

                                                            
186
 BOY, Dyonne Chaves. A construção de um centro de memória na Serrinha. 2006. Dissertação de Mestrado
Profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais – Centro de pesquisa e documentação de História
Contemporânea, Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2006, p.43. 
187
 VALENÇA, Rachel & VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha Serrano: O Império do Samba. José Olympio,
1981. p 30-31; VASCONCELLOS, Francisco. Império Serrano: Primeiro Decênio: 1947- 1956. Ensaios de
Carnaval nº2. Rio de Janeiro, 1991. OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de & SILVA, Marília T. Barboza da. Silas de
Oliveira : Do jongo ao samba-enredo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981.  

188
O parentesco é a forma de aquisição de laços e relações de identificação e pertença entre seres humanos, a
partir de um "eu" de referência. Distingue-se o parentesco por afinidade, estabelecido através do casamento, do
parentesco consanguíneo por descendência. As noções de parentesco são muitas vezes extensivas a uma
comunidade ou grupo político, religioso ou étnico, para reforçar o sentimento de pertença e de força. Ver: BOTT,
Elizabeth. Família e rede social. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. 

189
  Pessoas que não necessariamente possuem laços consanguíneos e que foram crescendo no mesmo
ambiente, ou seja, foram “criadas juntas”, em uma espécie de parentesco por afetividade. 

190
 Faz referência à Dona Pedrina Rocha, secretária da Velha Guarda, a qual se identifica como sua prima, como
um exemplo da extrapolação do parentesco consanguineo.  
  68

sangue, mas ela me chama de parente e eu aceito, porque nós fomos


criadas junto, daqui do tempo. 191

Oliveira Filho e Silva destacam que na região do antigo distrito de Irajá, do


qual Madureira e o Morro da Serrinha faziam parte, por conta de um grupo vindo das
regiões rurais, as relações entre as pessoas acabavam por se assemelhar às
sustentadas em tais áreas, como, por exemplo, em momentos de nascimento e de
192
morte. Para estes autores, as pessoas da “roça” nasciam de modo diferente ,
viviam, comiam, divertiam-se e até morriam de modo diferente do pessoal da
cidade 193 . O nascer diferente dos costumes da cidade relacionava-se à falta de
acesso a hospitais e ao recurso de parteiras, atividade comum na região rural, o que
gerava mais uma forma de ligação com o parentesco, conforme mencionado por
uma das parteiras do Morro da Serrinha: “Tenho mais de trezentos filhos de
umbigo” 194 . Tais filhos de umbigo são aqueles que nasciam de forma diferente,
assim como viviam diferente em relações que se assemelhavam à vida no interior,
no meio rural. O viver diferente estaria ligado, segundo os autores a uma espécie de
união adquirida somente por quem tinha a experiência da vida rural, sendo
sustentada pela relação de ajuda mútua entre os indivíduos, oriunda de um
ajustamento diante da necessidade de se ultrapassar as dificuldades.
Os rituais ligados à morte, ainda na visão de Oliveira Filho e Silva, também
incorporavam tradições rurais. No morro, costumava-se chamar o velório de
‘gurufim’ 195 , “cerimônia bem pouco triste, com as pessoas presentes bebendo,
196
brincando e lembrando coisas bonitas da vida do finado” . Assim, segundo os
                                                            
191
 MACHADO, Vilma dos Santos. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro,
30 de agosto de 2010. 1º CD. (23:07 min). Anexo A, p.123. 

192
 Segundo os autores o nascer diferente está ligado à falta de acesso a hospitais, o que levava ao uso de
parteiras, mulheres que se dispunham a fazer os partos necessários na região, assim como nas áreas de ‘roça’. 

193
 OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de & SILVA, Marília T. Barboza da. Silas de Oliveira : Do jongo ao samba-enredo.
Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981, p. 29. 

194
 Apud. OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de & SILVA, Marília T. Barboza da. Silas de Oliveira : Do jongo ao samba-
enredo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981, p. 29.  

195
 Conhecido como ‘velório de pobre’, porque reúne, na casa do morto e não nas capelas dos cemitérios, a
família e os amigos para compartilhar histórias sobre o morto. No dicionário Dicionário do folclore brasileiro, de
Luiz da Câmara Cascudo, encontra-se para Gurufim, dentre outros significados, canto de velório negro em São
Paulo.  

196
 OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de & SILVA, Marília T. Barboza da. Silas de Oliveira : Do jongo ao samba-enredo.
Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981, p.29.
  69

autores, houve o surgimento – nestes lugares que receberam um contingente de


pessoas das regiões rurais e que se localizavam geograficamente distantes das
influências dos núcleos urbanizados – de uma tendência a se desenvolverem por
meio de manifestações culturais próprias. Neste sentido, os autores ainda destacam
uma espécie de origem cultural “verdadeira” do povo brasileiro, desconsiderando o
caráter fluídico da cultura brasileira:

Surge uma tendência a desenvolver entre essa gente e nesses locais (a


roça) um tipo de manifestação cultural bem diversa da dos núcleos
urbanizados (a cidade), um tipo de manifestação cultural bem mais
relacionado às verdadeiras origens desse mestiço povo brasileiro.

Não se objetiva neste trabalho priorizar a discussão sobre as “verdadeiras”


origens culturais do povo brasileiro, nem mesmo da região da Serrinha. Não
obstante, em relação ao subúrbio carioca, observa-se que a distância geográfica dos
centros urbanos influía na caracterização ou na preservação de uma espécie de
cultura própria local. Ainda assim, o circular das pessoas entre estes dois espaços, o
do morro e o da cidade, era uma prática cotidiana dos indivíduos que ali moravam.
As manifestações culturais locais podem ser consideradas diferenciadas com base
nos costumes e interesses partilhados pelas pessoas que moravam nessa região.
Contudo, Madureira e o Morro da Serrinha, com toda a precariedade de transporte,
não eram espaços totalmente isolados, geográfica e, sobretudo, culturalmente.
A influência cultural de um contingente de pessoas que se deslocou das
áreas rurais em direção ao Morro da Serrinha é supervalorizada na bibliografia que
focaliza a região. Esta dissertação não desconsidera os aspectos da cultura que se
aproxima do cotidiano das áreas rurais, contudo não negligencia as relações
culturais do grupo de pessoas que se deslocou das regiões centrais da cidade por
conta da reestruturação desta área. Haja vista que um dos possíveis atrativos para a
fixação das pessoas no subúrbio da zona norte do Rio de Janeiro teria sido a
melhoria dos transportes, o que indicaria uma busca por aspectos da vida
urbanizada, pelo menos no que se refere aos deslocamentos em direção aos locais
de maior abundância na oferta de emprego. A propósito, a região era considerada
como “desprovida de infra-estrutura e mercado de trabalho,” obrigando “seus

                                                                                                                                                                                          
 
  70

moradores a se deslocarem para regiões longínquas em busca de trabalho,


principalmente nas proximidades do centro da cidade” 197 .
Valença e Valença, ao estudarem os grupos que se deslocaram para a
região da Serrinha, apontam duas rotas migratórias: uma ligada aos impactos da lei
de treze de maio, que abolira a escravidão no Brasil, e outra associada aos
processos de reurbanização do centro da cidade. A abolição da escravatura, em
termos históricos e para esta dissertação, situa a questão das migrações para a
região num momento distante e, talvez, não dê conta de explicar o que levou as
famílias a exercerem este movimento migratório. É preciso refletir sobre o peso da
atração que o centro do Rio de Janeiro, como capital da República, exercia em
relação ao inóspito espaço do subúrbio da época.
A oferta de empregos e moradia na área urbana da capital exercia uma
atração considerável em relação ao subúrbio do final do século XIX e do início do
século XX, com suas condições físicas precárias e a quase inexistente oferta de
empregos e transportes. Num primeiro momento, pode-se considerar um aumento
do fluxo de pessoas movimentando-se das regiões rurais para o centro e,
posteriormente, um grupo já fixo nas regiões centrais da capital e que, após novas
perspectivas de moradia, dirige-se para as regiões que seriam o subúrbio carioca,
firmando-se como núcleos de atração de familiares e amigos.
Dona Vilma Machado narra que o deslocamento de sua família se deu por
conta de um convite de sua madrinha, a vovó Maria Joana Monteiro, que possuía
uma pequena casa nos fundos da sua. A mãe, uma mulher que acabara de se
separar do marido e com filhos pequenos, fora abrigada pela amiga, recebendo
ajuda no cuidado com as crianças e, muitas vezes, de ordem financeira 198 .
Questionada sobre as bases da relação de proximidade entre as pessoas no Morro
da Serrinha, ela declara que a ligação era feita pelo cotidiano da comunidade, o qual
promovia o estreitamento das relações. Ainda de maneira crítica, Dona Vilma
trabalha com a ideia de que se o samba fosse um agente gerador dos costumes
entre as famílias, as relações no morro estariam até hoje nos moldes anteriores.

                                                            
197
BOY, Dyonne Chaves. A construção de um centro de memória na Serrinha. 2006. Dissertação de Mestrado
Profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais – Centro de pesquisa e documentação de História
Contemporânea, Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2006, p.42-43.

198
MACHADO, Vilma dos Santos. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro,
30 de agosto de 2010 e 20 de out. de 2011. 1° CD (40:17min), 2° (23:07min). Anexo A, p.127. 
  71

Para a entrevistada, havia uma diferença entre as formas de convivência no morro,


baseadas na solidariedade entre as famílias, e a forma como o samba foi se
desenvolvendo:
Eu acho que é mais pela comunidade, porque no samba eu acho que não
tem tanto respeito como antigamente. É, porque todos nascemos aqui, era
tio, avó, aquelas velhinhas e tudo, a mãe do falecido Fuleiro e outras [...].
Então era isso, aquela amizade. Porque nascemos todos ali no mesmo
lugar. As velhas tomavam conta, não tinha nada de creche, hoje em dia tem,
mas naquela época não tinha. Eu nunca gostei de café, então tinha uma
velhinha que me dava o leite, acho horrível até hoje. Quando eu recebia
dinheiro, cinco reis, eu comprava aqueles quartos de leite, aquela carroça
que passava aqui na Serrinha, aquele burro puxando a carroça, quem tinha
dinheiro para comprar um litro, quem não tinha comprava um quarto, meio
litro ai ia aumentando, era assim. E quando estragava? - Eu tinha que
trabalhar o dia inteiro assim mesmo na fábrica. Eu era muito pobre, mas a
minha madrinha me dava muito, me ajudava muito porque minha madrinha já
era melhorzinha, tinha mais situação porque o marido dela trabalhava no
Cais do Porto. Ai eu não tinha pai, mas depois separou de outra mulher e eu
fiquei muito ai com minha madrinha. Minha mãe não, minha mãe ficou cega,
ai tinha que olhar ela. Tinha a minha irmã mais velha, ela morreu com
setenta e três anos, tem dez anos morta. Minha mãe tinha cinco filhos,
morreram todos e só resta eu. Aí nós tivemos que ir cedo trabalhar, nenhum
dos meus irmãos nunca se meterem em coisa errada, nada disso. Tinha um
que era jogador que ia melhorar, caiu do trem e morreu com dezoito anos.
199
Ele tinha dezoito e eu tinha dezesseis.

Carol Stack, ao pesquisar o comportamento sexual e estratégias de


sobrevivência em comunidades negras urbanas nos Estados Unidos, contribui para
a reflexão da relação entre comunidades pobres e a possível semelhança com um
modelo rural. Para a autora, a aproximação entre as pessoas pobres faz parte de
uma estratégia para amenizar as necessidades financeiras 200 . Grupos que se
ajudam mutuamente, muitas vezes, acabam por morarem juntos ou próximos. Os
201
“pobres em comunidades negras urbanas” desenvolveram como unidade básica
de sua sociedade um núcleo de familiares e não aparentados, os quais têm a
cooperação como um princípio básico diário, vivendo próximos uns dos outros ou
202
coabitando” . Logo, pode-se inferir que as relações entre as famílias no morro da

                                                            
199
MACHADO, Vilma dos Santos. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro,
20 de out. de 2011. 1º CD (23:07min). Anexo A, p.123. 

200
 Considera-se a questão financeira um dos aspectos dessa estratégia, no entanto é preciso entender a
aproximação por questões culturais, afetivas, e mesmo para a superação da precariedade das estruturas físicas
a serem transpostas através da aproximação entre os indivíduos. 

201
 No caso do estudo da autora, havia a questão da exclusão social ligada à cor e/ou etnia do indivíduo. Questão
esta que poderia estar presente no cotidiano dos moradores do Morro da Serrinha, visto que parte considerável
da população era negra, mas tal identificação não aparece nos discursos apresentados pelos entrevistados.  

202
  STACK, Carol. “O comportamento Sexual e Estratégias de Sobrevivência Numa Comunidade Negra Urbana”.
In: A mulher, a cultura, a sociedade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra S.A, 1979, p. 141. 
  72

Serrinha estariam no âmbito de uma estratégia de sobrevivência característica de


grupos sociais desprovidos de recursos financeiros. A organização local, de base
familiar, não seria uma prerrogativa de espaços rurais ou que se assemelham a
estas áreas. Segundo Boy, “Os hábitos na Serrinha, naquela época, eram típicos de
uma pequena cidade do interior: apesar da falta de infraestrutura e oportunidade de
trabalho [...]” 203 .
Os estudos de Stack colaboram, ainda, para o entendimento da formação
das famílias economicamente desfavorecidas, direcionando para uma compreensão
destas desassociada da ideia de desorganização desses grupos, considerando, na
sua formação, a reprodução de projetos próprios de organização dentro da
sociedade.
A ênfase na reprodução de um modelo familiar nucleado ou no papel
exercido pela mulher na construção de modelos matrilocais, segundo Stack, deveria
ser deslocada para um sentido de colaboração, pois, além do modelo de família
nucleada, as estratégias produzidas ampliam o sentido de família. Não
necessariamente haveria um modelo específico para elas, já que as relações
estariam baseadas em uma espécie de estrutura doméstica fundada na cooperação.

Sob este prisma, a base da estrutura e cooperação familiar não é família


nuclear de classe média, mas um grupo extensivo de famílias ligadas na
maioria das vezes por crianças, ou também por casamentos e amizades que
se aliam para cumprir as funções domésticas. Este grupo ou estrutura
doméstica está difundido sobre vários lares de famílias e variações de
composição de lares individuais, não afetando significativamente os sistemas
204
de cooperação.

O perfil de fixação na região da Serrinha estava ancorado no deslocamento


familiar. Famílias avizinhavam-se de outros familiares e amigos que ali moravam, o
que fortalecia laços de afetividade pela proximidade. A importância de se considerar
esses laços afetivos é destacada por Ribeiro 205 :
                                                            
203
BOY, Dyonne Chaves. A construção de um centro de memória na Serrinha. 2006. Dissertação de Mestrado
Profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais – Centro de pesquisa e documentação de História
Contemporânea, Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2006, p.45.
 

204
STACK, Carol. O comportamento Sexual e Estratégias de Sobrevivência Numa Comunidade Negra Urbana.
(artigo). A mulher, A cultura, A Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra S.A, 1979, p.142. 
205
 RIBEIRO, Ana Paula Alves. Samba São Pés Que Passam Fecundando O Chão... Madureira: Sociabilidade e
conflito em um subúrbio musical. 2003. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003. 
  73

[...] não podemos negligenciar a atração que parentes, amigos e antigos


vizinhos já morando nas imediações do morro exerciam. Essa possibilidade
de contar com ajuda e amizade nos primeiros tempos de adaptação a seu
novo ambiente provavelmente pesou na decisão dos seus futuros
moradores, pois a solidariedade existente nessas relações ameniza o
206
cotidiano.

Ao analisar aspectos da violência familiar dos trabalhadores pobres do


período correspondente à belle époque carioca, Sidney Chalhoub aponta algumas
características desse deslocamento. Ao citar Lima Barreto quando reflete sobre as
207
formas que a miséria solidifica as relações entre os homens , Chalhoub assinala
que nem sempre estas relações eram harmoniosas. Na tentativa de criar alternativas
para a miséria que acometia os trabalhadores, muitas vezes estes se envolviam em
rusgas domésticas que acabavam em inquéritos policiais. Um dos documentos
analisados pelo autor demonstra aspectos do deslocamento das famílias para a
região do subúrbio, bem como tensões geradas pelo estreitamento da convivência,
engendradas pelos novos arranjos de moradia dos trabalhadores urbanos, como
acontece com Antônio Pedro dos Santos, sergipano, pardo, de 31 anos:

[...] Antônio convidara seu concunhado José Agostinho da paixão para juntos
arrendarem um terreno em Madureira, a fim de fazerem duas casinhas para
si e suas famílias. Então não encontraram terreno para aforar, mas tendo o
declarante posteriormente arrendado um terreno em Madureira, como este
fosse espaçoso, ofereceu uma parte a José Agostinho para que ele
edificasse uma casinha ao lado da do declarante. 208

Nos diferentes inquéritos polícias analisados por Chalhoub, há indicação de


outra face da aproximação entre pessoas em busca de alternativas de moradia. O
morar junto nem sempre foi praticado de maneira amistosa; o cotidiano que poderia
gerar aproximações harmoniosas também poderia levar a tensões que acabavam
por ilustrar as páginas policiais. Havia significativas disputas entre parentes,
compadres e amigos para exercerem o poder dentro dos grupos. Dessa forma,
mostram as observações do autor:

                                                            
206
 RIBEIRO, Ana Paula Alves. Samba São Pés Que Passam Fecundando O Chão... Madureira: Sociabilidade e
conflito em um subúrbio musical. 2003. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003. p.45. 
207
  Apud. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
belle époque. São Paulo: UNICAMP, 2001, p.194. 
208
Antônio Pedro dos Santos, nº 5.023, março 882, galeria A, 1907. Apud. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e
Botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. São Paulo: UNICAMP, 2001, p.194. 
  74

1) que, devido às condições adversas de luta para reprodução de sua vida


material, laços de solidariedade e ajuda mútua entre homens e mulheres em
questão eram um aspecto fundamental de sua estratégia de sobrevivência.
2) que os eventuais conflitos entre parentes, compadres e amigos possuíam
uma significativa densidade política, sendo expressão das tensões
provenientes de lutas por poder e influência no interior dos microgrupos
socioculturias, tensões e lutas estas inerentes à dinâmica de funcionamento
209
de qualquer grupo humano.

Num primeiro momento, pode-se considerar que a proximidade 210 entre


indivíduos era determinada somente pelas dificuldades financeiras e que, em nome
de uma superação, “viviam juntos, trocando, presentes, protegendo-se, prestando-se
211
mútuos serviços” . Todavia, esta relação poderia ser mais complexa do que a
questão econômica poderia abarcar 212 . Talvez a afinidade não fosse determinante
para que as pessoas compartilhassem a intimidade da vida em família, mas é por
conta da mesma que certas aproximações eram tecidas, no estreitamento dos laços
de amizade e parentesco, na execução das tarefas diárias, entre homens e
mulheres da comunidade.

3.2 Rede social, rede de família e sociabilidade

Através das relações de Mestre Fuleiro, é possível mapear aspectos dos


entrelaçamentos familiares do Morro da Serrinha. Fuleiro 213 descendia de um ramo
jongueiro 214 por parte de seus pais, Paulino dos Santos e Teresa Benta dos Santos.

                                                            
209
 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. São Paulo: UNICAMP, 2001, p.186. 
210
 No sentido utilizado por Milton Santos. Tendo a ver com a contiguidade física entre pessoas numa mesma
extensão, vivendo com intensidade as suas inter-relações. 
211
 BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s.d, p. 213-214.
Apud. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. São Paulo: UNICAMP, 2001, p.194. 

212
 Como é possível verificar nos inúmeros inquéritos policiais analisados por Sydney Chalhoub. Ver:
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. São Paulo: UNICAMP, 2001. 
213
  Fuleiro era também primo de Dona Ivone Lara que se casou com um dos filhos de Alfredo Costa. Foi através
dele que Dona Ivone se inseriu no mundo do Samba como a primeira mulher a fazer parte da Ala de
Compositores, tendo inúmeras parcerias na composição de samba com este seu primo. 

214
Uma das famílias que promoviam encontros onde o Jongo era o ritmo tocado e dançado. 
  75

Casou-se como uma sobrinha de Araci Costa, a Dona Iaiá, esposa de Alfredo Costa,
fundador da Escola de Samba Prazer da Serrinha. Quando a proximidade não era
dada pelos laços consanguíneos, ou pelos casamentos 215 eram tecidas pelos
compadrios. Mestre Fuleiro foi mencionado na entrevista que compõe o acervo de
Depoimentos para a Posteridade do Museu da Imagem e do Som 216 , na qual Senhor
Sebastião Oliveira destaca a relação familiar que ia além da questão consanguínea:

Suetônio – Agora o Molequinho fez menção a essas relações familiares, uma


questão importante na origem do Império Serrano. No núcleo, eles todos são
compadres. Mais de uma vez o Molequinho e o Mestre Fuleiro são
compadres. Quantas vezes vocês são compadres?

Sebastião – Parando para contar, somos compadres umas 13 vezes.

José – Quando não eram parentes, eles davam os filhos para batizar uns
aos outros, e chegavam a esses extremos do Molequinho e o Mestre Fuleiro
serem compadres 13 vezes!

Sebastião – A esposa falecida do Fuleiro era amiga da minha falecida


esposa. Eu dei a primeira filha para eles batizarem. Ele e a esposa, Maria
Alice, me deram o primeiro filho para batizar. Mas o meu compadre Fuleiro
gostava de muita orgia, e quando nasceu a Norma, ele tinha ido lá para o
interior e só voltou três dias depois! Eu, como era compadre, resolvi os
problemas, de maneira que quando ele voltou, voltou com ressaca: “- Ué,
tem mais um aí?”. [...] Minto agora; eu estou esquecendo; nós somos
compadres 12 vezes, mas conto 13 porque [ele batizou] a minha primeira
filha[...], mas a minha segunda, eu dei para o meu primo, que é irmão da
Elane.

Elane – E ele ficou aborrecido. 217

Os treze compadrios entre Sebastião e Mestre Fuleiro são exemplos do


estreitamento das relações entre as pessoas no Morro da Serrinha. Em suas
análises, Chalhoub destaca que os deveres de reciprocidade eram muito valorizados
entre os membros das famílias que se aproximavam, assim como “compadres e

                                                            
215
Podemos destacar como casamentos que levaram ao estreitamento das famílias: João Gradim Oliveira
(fundador e primeiro presidente do Império Serrano) com a filha de Elói Antero Dias (conhecido como Mano Elói,
presidente do sindicato dos trabalhadores da estiva do Porto do Rio de Janeiro, fundador de diversos blocos e
escolas de samba e quem incentivou a fundação do Império Serrano, doando a bateria); Silas de Oliveira e Dona
Elane (prima de Eulália, Sebastião e João Gradim); Senhor Élio Antero Dias (um dos fundadores do Império
Serrano e filho de Mano Elói) casou-se com uma das filhas de Tia Eulália.  

216
 MUSEU DA IMAGEM E DO SOM (Brasil). Depoimentos para Posteridade: Escola de Samba Império Serrano.
Rio de Janeiro, 1984. 

217
 MUSEU DA IMAGEM E DO SOM (Brasil). Depoimentos para Posteridade: Escola de Samba Império Serrano.
Rio de Janeiro, 1984. 
  76

amigos eram também pessoas a quem se deviam dar demonstrações constantes de


apreço e cortesia” 218 .
No caso referido por Sebastião, além da questão de ajuda mútua em
momentos de dificuldades – e mesmo nos momentos de acobertamento de desvios
de conduta no casamento, como foi mencionado –, esses diversos compadrios
seriam formas de celebrar e renovar laços de amizade. O aborrecimento de Mestre
Fuleiro denota um laço estreito de amizade entre as famílias, o que deixava brecha
ao protesto, caso a amizade não se manifestasse como esperado – ideia que
Sebastião acatou como muito bom humor dando doze filhos para o amigo
apadrinhar.
A família pode ser entendida como um primeiro espaço de socialização do
sujeito, pois se constitui como rede de apoio e solidariedade. Sendo assim, certas
concepções de mundo e posturas perante a sociedade assumidas pela família são
referências para o sujeito na construção de identidades.
No que se refere às manifestações culturais e sociais, a família pode ser
considerada como uma categoria social que abrange diversas formas e
configurações, agindo como mediadora das relações entre os diferentes sujeitos e
na produção de formas de sociabilidade. Nesse sentido, e em alguns casos, a
família ou os grupos de famílias se organizam em redes de solidariedades,
estabelecendo com isto uma gama de relações calcadas no apoio mútuo.
A aplicação da ideia de rede social e, por conseguinte, de rede de famílias,
ajuda a entender a relação das famílias entre si, no Morro da Serrinha. As redes
sociais podem ser entendidas como associações de pessoas que se unem por uma
espécie de afinidade afetiva ou por partilharem algum tipo de objetivo. Implica a
transformação de pessoas e de famílias no meio social em que estão inseridos.
Desta forma, o conceito de rede social passaria a representar um conjunto de
indivíduos, unindo ideias e recursos em torno de interesses e valores
compartilhados.
Para Marteleto, a análise das redes sociais coloca-se na ampliação da
perspectiva da pesquisa das estruturas sociais. Neste caso, as redes sociais
auxiliam diversas áreas de estudo, no exame dos comportamentos e dos indivíduos,
não de maneira isolada, mas mediante a análise das suas ligações com estruturas
                                                            
218
 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. São Paulo: UNICAMP, 2001, p.198. 
  77

sociais nas quais se inserem. Assim o enfoque não parte do indivíduo, mas do
conjunto de relações estabelecidas pela rede social: “A estrutura é apreendida
concretamente como uma rede de relações e de limitações que pesa sobre as
219
escolhas, as orientações, os comportamentos, as opiniões dos indivíduos” .
Ao trabalhar com a relação indivíduo e sociedade, Norbert Elias entende o
220
social, ou seja, “o todo”, como um “conjunto de relações” . De maneira ampla, o
autor concebe a sociedade através de uma rede de indivíduos em constante relação,
sugerindo uma ideia de interdependência, baseada em laços invisíveis:

Numa palavra, cada pessoa que passa por outra, como estranhos
aparentemente desvinculados na rua, está ligada a outras por laços
invisíveis, sejam estes laços de trabalho e propriedade, sejam de instintos e
afetos. Os tipos mais díspares de funções tornaram-na dependentes de
outrem e tornaram outros dependentes dela. Ela vive, e viveu numa rede de
221
dependências.

Para Elias, a sociedade se constituiria a partir de uma espécie de rede de


funções que possibilitaria, por sua vez, a interação dos indivíduos segundo uma
concepção relacional, na qual os indivíduos seriam compreendidos através das
ligações estabelecidas nas suas diversas redes. Para explicitar essa concepção de
rede, Elias utilizou a metáfora dos fios de um tecido:

Para ter uma visão mais detalhada desse tipo de inter-relação, podemos
pensar no objeto de que deriva o conceito de rede: a rede de tecido. Nessa
rede, muitos fios isolados ligam-se uns aos outros. No entanto, nem a
totalidade da rede nem a forma assumida por cada um de seus fios podem
ser compreendidas em termos de um único fio, ou mesmo de todos eles,
isoladamente considerados; a rede só é compreensível em termos da
222
maneira como eles se ligam, de sua relação recíproca.

As redes sociais são formas dinâmicas de relação dos indivíduos na


sociedade. Apresentadas em sua multiplicidade, estas redes não pressupõem
modelos estanques, considerando o caráter fluídico, e talvez multidimensional, que
as relações em redes podem assumir no cotidiano dos envolvidos.

                                                            
219
MARTELETO, Regina Maria. “Análise de Redes Sociais: aplicação nos estudos de transferência da
informação” (artigo). In: Ciência da Informação. Brasília, v. 30, n. 1, p. 71-81, jan./abr. 2001, p.72. 

220
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 

221
 Ibidem, p.22. 

222
 Ibidem. p.35. 
  78

Para Loiola e Moura, o significado da rede não é dado somente por uma
fonte “geradora/propulsora” 223 , ou seja, pelos motivos que geraram a aproximação;
são os elos que definem a relação em rede. Desta forma, “a igualdade e a
complementaridade entre as partes são seus aspectos básicos, reforçados pela
regularidade entre as malhas”. Os autores trabalham ainda a questão da formação
de redes temáticas ou de conexão, estimuladas por pessoas ou grupos de maneira
espontânea. Tais redes são estabelecidas de maneira informal, articulando
indivíduos que passam a interagir.
Em sua análise das redes sociais, Martelelo distingue dois tipos de redes
sociais: uma que estaria ligada a movimentos institucionalizados, outra ligada aos
espaços informais. A primeira reuniria indivíduos em nome de alguma associação,
com funções e ações que estariam dentro de uma dinâmica para o desenvolvimento,
a consolidação e a perpetuação de tais instituições. Os indivíduos estariam ligados
através de elos hierárquicos, e suas ações dependeriam das ações de outros
indivíduos, de maneira nem sempre espontânea. As redes de segundo tipo se
consolidariam em espaços informais, a partir da tomada de consciência de
interesses e/ou valores comuns numa comunidade. Neste caso, a diferença dá-se
através de sua estruturação, ou seja, sua organização não é estabelecida mediante
uma hierarquização:
[...] de forma diferente das instituições, as redes não supõem
necessariamente um centro hierárquico e uma organização vertical, sendo
definidas pela multiplicidade quantitativa e qualitativa dos elos entre os
diferentes membros, orientadas por uma lógica associativa. Sua estrutura
extensa e horizontal não exclui a existência de relações de poder e de
dependência nas associações internas e nas relações entre as unidades
224
externas.

Na direção de um movimento reflexivo sobre a construção de identidades no


Morro da Serrinha, identificam-se dois tipos de redes, segundo o modelo de
Marteleto. Um no primeiro momento, ainda no início da fixação das famílias na
região, e outro num segundo momento, com a fundação da Escola de Samba
Império Serrano.

                                                            
223
LOIOLA, E. MOURA, S. “Análise de redes: uma contribuição aos estudos organizacionais” (capítulo). In:
FISHER, T. (Org.). Gestão Contemporânea, cidades estratégias e organizações locais. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 54. 

224
MARTELETO, Regina Maria. Análise de Redes Sociais: aplicação nos estudos de transferência da informação.
In. Ciência da Informação. Brasília, v. 30, n. 1, p. 71-81, jan./abr. de 2001, p.73. 
  79

O primeiro momento pode ser caracterizado pela consolidação de uma rede


de famílias que se autoajudavam para vencer os obstáculos impostos pela
adaptação à região e/ou pelas dificuldades financeiras. Pode-se considerar a
consolidação desta rede familiar baseada na informalidade.
Um dos aspectos para a aproximação de indivíduos e, por conseguinte, para
a formação de redes sociais, seria a afinidade. No Morro da Serrinha, as afinidades
entre os indivíduos forjavam relações entre as famílias. Pode-se analisar a
aproximação entre algumas famílias locais através de seus espaços de lazer, suas
festas. As palavras de Senhor Hélio 225 indicam como estes espaços de lazer
entrelaçavam as famílias:

A minha sogra era a Eulália... Ali tinha muitos rapazes e muitas moças, então
nós íamos para lá, brincar, dançar, cantar, tinha sempre alguma coisa para
fazer lá. E a mãe da Dona Eulália gostava muito de trazer aquele povo todo
para casa, ficavam todos ali brincando, passavam a noite brincando... Da
casa da minha sogra saíram muitos casamentos. Ali eu me casei em 1950.
226

Os encontros, em momentos de festa, tornam-se espaços de sociabilidade,


o que se pode entender pelo que afirma Claudia Rezende:

Na teoria social a noção de sociabilidade se refere geralmente a situações


lúdicas em que há congraçamento e confraternização entre as pessoas.
Ariés circunscreve, neste termo, visitas, encontros e festas que envolvem
trocas afetivas e comunicações sociais para além do círculo familiar. Música
e dança são elementos comuns, e a comensalidade figura quase
227
obrigatoriamente nos momentos sociáveis.

Assim as relações eram forjadas e nos momentos de comemoração


reuniam-se indivíduos, parentes consanguíneos ou não, pela proximidade, em
diversas festas, como casamentos, nascimentos, gurufins, jongos, blocos e escolas
de samba da região. Senhor Hélio destaca que, mesmo não morando no Morro da

                                                            
225
 Nascido em 1915. 

226
 DIAS, Hélio Antero. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro, 20 de out.
de 2011. 1º CD (9:50min). p.4. 

227
REZENDE, Claudia Barcelos. “Os limites da sociabilidade: ‘cariocas’ e ‘nordestinos’ na Feira de São
Cristovão”. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. In: Revista Estudos Históricos, nº 28 – Sociabilidades,
2001, p.167. 
  80

Serrinha, as relações de amizade e parentesco o atraíam para a região, por conta


dos diversos tipos de espaços lúdicos existentes nas casas das famílias:

As famílias eram sempre unidas, tinha sempre festa, por isso eu ia para lá,
porque eu morava na Dona Clara 228 . Todo fim de semana tinha alguma coisa
na Serrinha: samba, roda de rua, churrasquinho... Em outros dias, durante a
semana, eu ia para lá para jogar sueca, para ver os colegas. Lá a vida era
assim. Muito boa a vida na Serrinha! 229

Em estudo sobre as redes de sociabilidades estabelecidas através da


música, no bairro de Madureira, Ana Paula Alves Ribeiro identifica um perfil das
principais famílias que, em momentos diferentes, tornaram-se referência na
organização e na difusão de alguma das manifestações culturais na região, tais
como o jongo e o samba. Através da bibliografia disponível, a autora especifica cinco
troncos familiares: os Costa, os Santos, os Oliveira, os Cardoso e os Monteiro.
Durante o processo de realização desta pesquisa, tanto através da
bibliografia, quanto nas entrevistas e nas conversas informais, quando os microfones
estavam desligados, houve a constatação do registro recorrente da participação do
núcleo familiar, conforme destacado por Ribeiro. Com participação direta das
famílias, em maior ou menor grau, de maneira positiva ou como geradora de
tensões 230 , a relação deste núcleo de famílias ou da rede de famílias apresenta-se
em sua dinamicidade.
Não se pode desconsiderar a participação de alguns elementos das demais
famílias, mas em relação ao Império Serrano, no que se refere à sua fundação e
posteriormente à sua administração, este núcleo formado pelas cinco famílias
destacadas foi determinante para a extensão da rede de sociabilidade que se
irradiava no convívio dos participantes da escola de samba.

                                                            
228
 Localizado no Bairro de Madureira, compreendia o espaço contornado pela linha férrea ao fazer a volta em
uma grande curva, em direção às estações do centro da cidade, que ficava onde hoje é a Praça Patriarca, em
Madureira. A estação de Dona Clara foi inaugurada em 1897. Ficava num curto ramal que tinha a forma de um
círculo, retornando à linha principal (Linha do Centro) percorrendo cerca de um quilômetro apenas. Esse ramal,
existiu até 1935, quando foi extinto, assim como o bairro. Disponível em:
<http://www.estacoesferroviarias.com.br/efcb_rj_linha_centro/donaclara.htm>
229
 DIAS, Hélio Antero. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro, 30 de Nov.
de 2011. 1º CD (9:50min). 

230
  Como o caso dos Costa, de Alfredo Costa, na condução da Escola de Samba Prazer da Serrinha.

 
  81

A partir da ligação das famílias com o Império Serrano, identifica-se uma


rede que, em momentos diferentes, foram determinantes para a fundação e para a
administração da escola de samba. Esta pesquisa não se propõe ao estudo
minucioso sobre as famílias da região, mas se interessa por identificar as cinco
famílias citadas e suas ligações entre si, a partir das práticas culturais, como
reuniões e diferentes festas locais, e suas respectivas ações na fundação do Império
Serrano.
A origem da família Costa é da região de Minas Gerais, tendo como núcleo
Alfredo Costa , de profissão guarda-freios do trem noturno da Estrada de Ferro
Central do Brasil, casado com Araci Costa, conhecida como Dona Iaiá. Eles
chegaram à Serrinha com o seu bloco Cabelo de Mana, que deu origem à Escola de
Samba Prazer da Serrinha, provavelmente, segundo registros e depoimentos dos
entrevistados, fundada no final da década de 1920. A relação dos Costa com o
carnaval foi determinante, segundo os discursos locais, para a fundação do Império
Serrano.
A família Santos se instalou na Serrinha no ano de 1926, vinda do Andaraí,
tendo como núcleo Paulino dos Santos e Teresa Benta dos Santos, pais de Antônio
dos Santos, o Mestre Fuleiro. Dona Teresa era assídua dançarina de jongo. Seu
filho foi um dos fundadores do Império Serrano, casando-se com uma das sobrinhas
de Dona Iaiá da Costa, reforçando os laços entre as famílias. Mestre Fuleiro ficou
conhecido como o apito de ouro ao comandar toda a harmonia da escola de samba,
sozinho e somente com o uso de seu apito.
A chegada da família Oliveira ao Morro da Serrinha se deu através de
Francisco Zacarias de Oliveira, funcionário da Companhia de Limpeza Urbana,
casado com Etelvina Severa de Oliveira . Tiveram 10 filhos. Francisco Zacarias
organizou quatro blocos na região: o “Primeiro Nós”, “Bloco da Lua”, “Dois Jacarés”
e o “Três Jacarés”. Os Oliveira ficaram conhecidos no Morro da Serrinha por seu
espírito festivo. Os filhos Eulália, Sebastião, João Gradim, Maria da Glória e
Simplícia – mais que outros – herdaram do pai o gosto pela promoção das festas no
local. Foi na casa de Eulália que se fundou o Império Serrano, sob a liderança de
Sebastião e alguns vizinhos, tendo como primeiro presidente João Gradim. Maria da
Glória é conhecida, ainda hoje, na região, como Tia Maria do Jongo, referência do
jongo no Morro da Serrinha.
  82

A família Cardoso deslocou-se do Morro da Mangueira para o Morro da


Serrinha. Seu núcleo era composto por Augusto Cardoso, trabalhador da Central do
Brasil, e Juci Cardoso, que trabalhava em um hospital. Ribeiro destaca que uma das
questões deste ramo familiar era o incentivo aos estudos, levando a uma
preocupação futura com as crianças da região. Entre os Cardoso, estão profissionais
da música que fundaram uma escola de samba preocupada com a formação das
crianças do morro, a Escola de Samba Mirim Império do Futuro. Em relação a alguns
membros da família, declara Ribeiro:

Entre seus filhos estão profissionais da música, Arandir, careca passista e


militante de escola de samba e um dos fundadores da Escola de Samba
Mirim Império do Futuro), Iraci (antiga filha de santo de vovó Maria e mãe de
Valdemir, também militante de escola de samba e um dos fundadores da
Escola de Samba Mirim Império do Futuro) 231

A família Monteiro era formada por Pedro Francisco Monteiro, carregador da


empresa Lloyd Brasileiro, e Maria Joana Monteiro, referenciada como Mãe de Santo
da região, conhecida como Vovó Maria Joana, nascida em Valença, onde aprendeu
a dançar o jongo. Participante da Escola de Samba Prazer da Serrinha, ela passou a
componente do Império Serrano ainda na sua fundação, e cedia sua residência para
a costura de parte das fantasias. Por ser composta de sambistas e jongueiros
dedicados aos cultos afro-brasileiros, a família Monteiro representava os diferentes
encontros culturais da região. Sobre estes aspectos Valença e Valença afirmam:

Maria Joana Monteiro, a Vovó Maria Joana Rezadeira, que reúne em si as


heranças do culto afro-brasileiro da macumba, da dança do jongo e do
samba, é hoje, na Serrinha e arredores, figura das mais representativas por
ser, a um só tempo, mãe-de-santo, jongueira e sambista. 232

A rede de famílias, estabelecida de maneira informal, estruturou-se


posteriormente em torno de uma instituição formal: o Império Serrano. A fundação
do Império acrescentaria um caráter institucional às relações entre as famílias, que
passariam a ter sua ação e seus objetivos em favor da agremiação e da comunidade

                                                            
231
RIBEIRO, Ana Paula Alves. Samba São Pés Que Passam Fecundando O Chão... Madureira: Sociabilidade e
conflito em um subúrbio musical. 2003. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003, p.53-55. 

232
 VALENÇA, Rachel & VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha Serrano: O Império do Samba. José Olympio,
1981. p.12. 
  83

de maneira legitimada. A reunião dos indivíduos estaria inserida em uma dinâmica


direcionada ao desenvolvimento e à perpetuação da instituição, Império Serrano. A
escola de samba, por sua vez, seria um mecanismo pelo qual os interesses da
comunidade faziam-se representar.
Um exemplo da ação da rede de famílias na administração do Império
Serrano pode ser encontrado na narrativa de Dona Vilma Machado. Diante da
constante afirmação do aspecto democrático na administração da escola de samba,
foi perguntado à entrevistada como funcionava esta questão, à qual responde:

Os que tomavam conta podiam dar opinião, todos. Tinha reunião também
para dar opinião, “Vamos fazer esse carnaval assim”. Era bonito e todo
mundo saia, juntavam e faziam o carnaval. Todos podiam, podiam falar. O
pessoal da Serrinha ajudava muito para fazer esses enredos. Para escolher
o enredo era tudo aqui, depois que foram arranjar um lugar e ai foram
aumentando os carros, os carros eram todos pequenos e bonitos, a gente
saia do largo que tinha ali e fazia. Fazíamos os carros todos ali. Depois
cobríamos e botávamos aquelas lonas e ainda ganhávamos em primeiro
lugar. Até três anos a seguir o Império ganhou em primeiro lugar... 233 (grifo
da entrevistadora)

Dona Vilma indica uma importante questão sobre a prática da democracia


dentro do Império Serrano, a qual teria sido exercida pelos que “tomavam conta”. A
participação de todos era apontada em diversos discursos 234 , mas as tomadas de
decisão em relação ao carnaval parecem ter sido exercidas pelas famílias ligadas
diretamente à fundação e à administração da escola de samba.
Entendem-se tais famílias como troncos centrais da rede familiar
estabelecida no morro, cujas relações decorrem, num primeiro momento, das
dificuldades financeiras. Não obstante, conforme verificado através das entrevistas,
são perpassadas por uma grande e forte teia: a do lazer. As manifestações culturais
e os espaços de lazer aproximavam pessoas e famílias, no sentido de congregarem,
nos momentos de diversão, pessoas com as quais se nutriam certas afinidades.
A manutenção da rede de famílias no Morro da Serrinha pode ser vista
como forjada pelas relações estabelecidas a partir das dificuldades, assim como

                                                            
233
MACHADO, Vilma dos Santos. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro,
30 de agosto de 2010. 1º CD (40:17 min). Anexo A, p.119-120.  

234
Além das entrevistas concedidas a autora, ver: VALENÇA, Rachel & VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha
Serrano: O Império do Samba. José Olympio, 1981. p 30-31; VASCONCELLOS, Francisco. Império Serrano:
Primeiro Decênio: 1947- 1956. Ensaios de Carnaval nº 2. Rio de Janeiro, 1991. OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de &
SILVA, Marília T. Barboza da. Silas de Oliveira : Do jongo ao samba-enredo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981.  
  84

mantida pela liga que congregava as manifestações culturais locais: as festas de


jongo, as ladainhas, os pagodes, os blocos e as escolas de samba.
Quando inquirida sobre o cotidiano das pessoas e como se divertiam no
Morro da Serrinha em sua mocidade, Dona Vilma Machado discorre sobre alguns
momentos nas casas das famílias:

Eu não lembro muito não, não tinha escola de samba, era muita pobreza,
éramos todos carregando água, ali não tinha muitos espaços, não. Tinha
mesmo que correr pelo morro mesmo, ali pelo morro mesmo, tinha muito
pombo, minha madrinha tinha pombo. Íamos para casa da Tia Eulália, tinha
o Jongo todo ano, a Tia Eulália fazia aquelas festa. Festa de Jongo, do
marido dela, gostava muito. A vida da gente era esta. A minha madrinha
levava a gente para rezar ladainha. Tinha ladainha a beça, cada dia
arrumava um lugar que íamos rezar a ladainha, a gente gostava, aí
madrinha: “- Hoje tem ladainha para rezar, quem rezar mais alto vai ganhar o
primeiro bolo!” era tudo assim, e eu gritava muito! A madrinha mandava
segurar o santinho “– Segura o santo!” A gente tinha que segurar a santinha
ai “- Jesus, Santa Maria.” (cantando) eu ainda lembro, a minha madrinha era
tão boa! “- Orai por nós” (cantando) ia eu segurando a santinha. E a vida da
gente era assim, aí depois que fundaram o Império, aí todos começaram a
se dedicar, ali ao Império. 235

Dona Vilma Machado, que no momento da fundação do Império Serrano


estava com aproximadamente dez anos de idade, revela que não se lembra de
participar quando criança de muitas festas, e que os espaços partilhados eram
poucos, pois não havia muitos lugares aonde pudessem ir, mas se lembra de uma
festa grande ligada ao jongo, que acontecia todos os anos na casa de Tia Eulália.
Cabe ressaltar, no entanto, que em festas de Jongo as crianças não participavam,
eram espaços de participação apenas de adultos. Isto posto, infere-se que a
entrevistada não participava diretamente deste evento que entrou na história
local 236 , ficando reservada, por ser criança na época, aos bastidores e a alguns
eventos nos quais as crianças pudessem participar, como era o caso das ladainhas.
Não se pode perder de vista que o processo de institucionalização da rede
familiar do Morro da Serrinha não anula as relações anteriores à fundação da
agremiação, pois se percebe o caráter fluídico e multidimensional que as redes
familiares podem assumir. Pode-se encontrar em um mesmo espaço a convivência
de dois tipos de rede, a informal e a institucional, mas o que se ressalta é o fato de
                                                            
235
MACHADO, Vilma dos Santos. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro,
20 de out. de 2011. 1º CD (23:07min). Anexo A, p.126-127. 

236
  Festa em comemoração ao aniversário de Senhor Nascimento, marido de Tia Eulália, que acontecia todos os
anos. Ver: GANDRA, Edir. Jongo da Serrinha: do terreiro aos palcos. Rio de Janeiro: GGE: UNI RIO, 1995.
BOY, Dyonne Chaves. A Construção de um centro de memória na Serrinha. Rio de Janeiro: Dissertação de
Mestrado Profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais – FGV/CPDOC, 2006.  
  85

esta rede informal, no Morro da Serrinha, ter encontrado uma forma de ampliação de
sua ação através da fundação de uma escola de samba.
A escola de samba, além de ter sido criada com o objetivo de ser um
espaço de lazer e de representação do carnaval local, indicava em seu estatuto
alguns interesses dos moradores da região. A rede de famílias, através do estatuto
da escola de samba, colocara no papel, isto é, formalizara parte dos seus objetivos.
À rede informal, que funcionava de maneira espontânea, baseada nos costumes, foi
acrescentada uma hierarquia de funcionamento, com ações dependentes umas das
outras, e nem sempre espontâneas.
Ao analisar o primeiro estatuto da escola de samba, percebem-se aspectos
desta transposição dos interesses da rede de famílias. Através do Império Serrano,
a rede familiar expunha seu dinamismo na busca de seus interesses.
O Império Serrano foi fundado como “Grêmio Recreativo Esportivo Escola
de Samba” 237 , demonstrando uma clara intenção de fazer da escola de samba mais
do que uma agremiação carnavalesca. Entre as suas finalidades, figuravam nos
artigos 2º e 3º a motivação assistencial. No artigo 2º, o que se destaca é a intenção
não só de dar assistência social e financeira aos moradores e participantes do
Grêmio, mas de oferecer uma “maior assistência moral”.
O caráter de ajuda mútua da rede familiar figurava o artigo 2º, no que se
refere à ajuda social e financeira, mas o que não fica claro é como se daria e qual
tipo de ajuda a escola se propunha a oferecer a seus integrantes.
No artigo 3°, tem-se como objetivo a criação de centros de instrução
primária. Desta forma, a escola de samba se propunha a extrapolar o espaço de
lazer para exercer, ainda, a função educativa na região. No referido artigo, o
desenvolvimento de esportes e a recreação teriam, após a criação da agremiação,
espaço reservado na quadra da escola. Com este artigo, o caráter assistencialista
da escola de samba não se restringe somente aos integrantes da agremiação, mas
a todos os moradores da região.
Como um centro de desenvolvimento, ampliando o caráter de ajuda mútua
da rede informal de famílias, a escola de samba se ergue na região. Os artigos 2º e
3º do primeiro estatuto do Império Serrano propõem:

                                                            
237
Estatuto o Império Serrano. 1948. Cf. VASCONCELLOS, Francisco. Império Serrano: Primeiro Decênio: 1947-
1956. Ensaios de Carnaval nº 2, Rio de Janeiro, 1991, p.43. 
  86

Art. 2º - Dar maior assistência moral, social e financeira à Escola de Samba,


na organização e execução dos seus programas de festas recreativas,
carnavalescas e de beneficência social.
Art. 3º - Fundar na sede da “E. de Samba” ou em lugares adequados,
238
centros de instrução primária, esportiva e recreativa.

No primeiro regimento interno, aparece ainda a intenção de fazer da


agremiação um modelo assistencial conforme ocorria em certos clubes de serviço
239
. Através da criação de órgãos como o Departamento Social Recreativo e do
Departamento de Assistência Social, seriam oferecidas assistência médica, jurídica
e funerária. A execução deste projeto chama atenção, pois, para tanto, seria preciso
contratar ou criar parcerias com indivíduos ou grupos fora da comunidade. Dessa
forma, existem indicativos de que há intenção de ampliar a ação da rede de famílias,
atendendo a questões mais complexas e diversificadas, como o oferecimento de
serviços que não chegavam à comunidade:

Art. 21º - São órgãos técnicos, imediatamente subordinados à


Presidência da Diretoria:

a) o Departamento Social-Recreativo, ao qual ficam afetadas as


atividades sociais e recreativas;

b) o Departamento de Assistência Social, ao qual ficam afetadas de


auxílio-funerário.

c) todas as atividades de amparo e benefício aos associados com


as seguintes divisões:

gabinete médico

gabinete odontológico

gabinete jurídico

serviço

d) o Departamento Cultural, ao qual ficarão subordinadas todas as


atividades culturais, com as seguintes divisões:

I – Divisão Musical e Artística

II – Divisão Literária

III – Divisão Educacional 240

                                                            
238
 Estatuto do GRES Império Serrano, 1948. Cf. VASCONCELLOS, Francisco. Império Serrano: Primeiro
Decênio: 1947- 1956. Ensaios de Carnaval nº 2. Rio de Janeiro, 1991, p.43-45.  

239
 Como o Rotary Club, que se destina a promover serviços assistenciais para as comunidades de todo o
mundo. 
240
Regimento Interno do GRES Império Serrano. 1947. Apud. VASCONCELLOS, Francisco. Império Serrano:
Primeiro Decênio: 1947- 1956. Ensaios de Carnaval. nº 2. Rio de Janeiro, 1991, p.47. 
  87

A análise de alguns artigos do primeiro estatuto e do regimento interno do


Império Serrano sinaliza uma intenção de seus fundadores de criar uma estrutura a
partir da escola de samba. A agremiação serviria como uma instituição dedicada a
suprir as dificuldades de acesso a serviços que seriam de responsabilidade do poder
público. No entanto, tal iniciativa não saiu do papel. Segundo os entrevistados, as
condições da comunidade não foram modificadas após a consolidação do Império
Serrano no carnaval. O Império, que se colocava como “O Império Rico”, é apontado
como uma contradição entre a fantasia do carnaval e a realidade da sua
comunidade. Dona Pedrina explica como se dava esta contradição:

[...] nós éramos assim ricos, tanto é que nosso apelido era Império Rico,
porque nos mostrávamos riqueza no carnaval, mas ao mesmo tempo nós
éramos pobres, nós éramos simples, éramos pobres, nós éramos luxuosos
para sair no carnaval, era uma vaidade nossa de carnaval, nós éramos
pobres, a gente era simples, mas as coisas mudaram muito, nós temos que
ir evoluindo de acordo, nós não pode ficar parada naquilo, então nós
perdemos muita coisa de quando a escola nasceu nós perdemos sim,
241
ganhamos e perdemos.

Indagada sobre a origem da riqueza do Império Serrano, Dona Pedrina


indica ainda uma relação do Morro da Serrinha com o comércio local:

No Livro de Ouro, quando começamos tinha Livro de Ouro, para todo o


comércio desde Vaz Lobo, Madureira e Irajá. E as pessoas que ajudavam o
Império, assim como Nora Nei, Paulo Goulart, a Marlene do rádio, as
pessoas que ajudavam, davam as coisas para a gente, nós não chegámos a
ser pedintes, nós ganhávamos coisa. O Livro de Ouro que ajudava muito, o
Livro de Ouro ajudava muito, os comerciantes botavam um bom dinheiro. [...]
Era Irajá, Madureira, Vaz Lobo, o falecido Natal que ajudava muito o Império,
sempre ajudou financeiramente, era um homem de poder e ele ajudava a
nossa escola sempre. 242

Em sua narrativa, Dona Pedrina comenta algumas questões. A imagem que


o Império Serrano e seus integrantes conseguiam construir durante o carnaval era a
de um Império Serrano Rico, que possivelmente refletia na imagem que as pessoas
tinham da comunidade. No entanto, a imagem de riqueza restringia-se ao desfile da
escola de samba no carnaval, não era propriamente de sua comunidade. O
entrelaçamento entre as identidades irradiadas pela escola de samba e as
                                                            
241
 ROCHA, Pedrina. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro, 07 dez. 2010.
1° CD (31:11 min); 2°CD (12:24 min). Anexo A, p.107. 
242
 ROCHA, Pedrina. Entrevista concedida a Alessandra Tavares de S. P. Barbosa. Rio de Janeiro, 07 dez. 2010.
1° CD (31:11 min); 2°CD (12:24 min). Anexo A, p.107. 
  88

identidades locais evidencia-se exatamente na contradição entre a riqueza da escola


de samba no carnaval e as dificuldades financeiras da comunidade, o que talvez
reflita um aspecto intrínseco ao conceito do carnaval e mesmo à sua realização, com
a suposta suspensão das diferenças sociais nos dias em que acontece.
A ajuda dada por pessoas famosas, bem como o financiamento do comércio
local conseguiam apresentações de um carnaval com imagem de riqueza e de luxo.
Neste processo, as questões assistenciais do estatuto tornavam-se secundárias,
possivelmente por se dar à conquista do campeonato uma certa prioridade.
Os projetos propostos no primeiro estatuto e no regimento interno do
Império Serrano são demonstrações da preocupação e da relevância dada pela rede
de famílias com o objetivo de criar estruturas para a comunidade. O fato de o grupo
tomar a iniciativa de utilizar a criação de um espaço de lazer local (o Império
Serrano), a fim de transpor as dificuldades estruturais da comunidade, mesmo não
tendo acontecido neste primeiro momento 243 , não anulou seu caráter empreendedor.
A busca de melhores condições para a comunidade demonstrou a ampliação de
seus interesses para além das manifestações culturais da região, as quais lhe
serviram de brecha.

                                                            
243
 Nas entrevistas não foi mencionado nenhum tipo de assistência dentro da quadra do Império Serrano
enquanto esta se localizava no Morro da Serrinha. No entanto, há alguns trabalhos hoje de desenvolvimento com
parcerias junto ao Serviço Social da Indústria (SESI) que oferecem cursos para a comunidade, entre outros
serviços.

 
  89

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A segregação espacial de diferentes grupos sociais é uma realidade em


espaços urbanos. De maneira imposta ou autoimposta, os processos de segregação
traçam certo perfil de algumas regiões na cidade do Rio de Janeiro. Madureira pode
ser visto como um exemplo da intervenção cultural dos grupos sociais que ali se
fixaram. Considerada como a capital do samba e do subúrbio por conta das
diferentes manifestações musicais, essa região foi identificada por seus moradores
como possuidora de um perfil delineado pelas tendências festivas dos grupos da
localidade. Tal concepção contempla as transformações dos espaços físicos em
lugares onde laços afetivos são estreitados e objetivos são traçados. Neste caso, o
espaço urbano seria considerado como resultado de um processo cultural que se
realiza em variadas formas de comunicação entre os grupos sociais que compõem
estas regiões.
Através das escolas de samba, parte de uma célula social se liga ao local de
maneira afetiva. Esta relação com o local é o que nos primeiros momentos do
surgimento das escolas de samba levou-as a ganhar força, gerando uma coesão
entre os moradores ligados às práticas culturais engendradas pela realização do
carnaval. A comunidade aqui não é entendida somente como espaço físico
geográfico, mas como parte constituinte da identidade coletiva. Assim, a questão
local ganha complexidade quando, em dado momento, as escolas de samba
adquirem maior importância e tornam-se elementos a serem considerados em
direção às construções de identidades dos próprios locais. Em uma relação dialética,
o local é parte da identidade coletiva das escolas de samba e de seus componentes,
assim como é constituído destes mesmos componentes e escolas de samba.
A partir da análise de aspectos culturais dos grupos que se deslocaram para o
Morro da Serrinha, identifica-se um processo de deslocamento familiar baseado na
atração exercida inicialmente por amigos. A aproximação entre as famílias locais é
motivada não somente pela supressão das carências físicas da localidade, mas
  90

também pelas afinidades. Através de um calendário de festas, casamentos e


batizados, amizades foram sendo aproximadas, famílias foram sendo estendidas.
Na bibliografia que estuda a Escola de Samba Império Serrano e/ou a região
de Madureira, o aspecto cultural é destacado como sendo apenas um espaço de
congraçamento festivo. Nesta pesquisa, os aspectos culturais foram reconhecidos
como meios para a negociação da realidade da comunidade, considerando-se que
os espaços de sociabilidade criados em torno do lazer foram definidores de
aproximações entre pessoas, levando ao desenvolvimento de táticas para o
abrandamento das necessidades apresentadas pelo cotidiano. Haja vista os
movimentos de táticas para obtenção de melhorias nas condições de vida, seja
através da moradia compartilhada (como o caso da família de Dona Vilma Machado,
que foi morar na casa de sua madrinha, Vovó Maria Joana), ou para aquisição de
melhorias no espaço físico (como a construção da bica pública no sopé do morro,
por intermédio de colaborações externas e/ou internas).
Neste sentido, as táticas engendradas pelas oportunidades do cotidiano,
como em Certeau, adquirem outro teor. O lugar de memória delineia-se a partir dos
recursos mnemônicos, na construção de uma narrativa legendária, repetida ao longo
da história da escola de samba, o que provavelmente inaugura as tradições que
exaltam os eventos antecedentes à fundação da escola e aqueles que a
consolidaram através dos carnavais em que fora campeã.
Assim, aos conceitos de táticas e estratégias acrescenta-se, para a
compreensão das organizações ligadas à fundação da escola de samba, o conceito
de “projeto” utilizado por Gilberto Velho, uma vez que houve a formação de projetos
liderados por algumas famílias da região, observados nos discursos e nos
documentos relacionados à escola de samba. Foram desenvolvidos no Morro da
Serrinha, muitas vezes a partir de táticas elaboradas no ambiente privado do
cotidiano local, projetos estruturados pela escola de samba, na extensão dos
interesses das redes de famílias locais.
Por esse viés, pode-se pensar como os aspectos culturais estão ligados às
diferentes estruturas que dão sentido à vida social. O carnaval das escolas de
samba adquiriu um significado que vai além da festa popular. É possível contemplar
os caminhos estabelecidos pelos populares em direção ao diálogo entre os aspectos
culturais, políticos e sociais, em uma espécie de extrapolação das festividades e do
  91

carnaval como diversão. A escola de samba tornou-se uma ferramenta na direção


da negociação.
A construção das identidades dos moradores do Morro da Serrinha baseou-
se na memória de práticas culturais, entendida, também em Pollak, como
constituinte da identidade. Festas de aniversários e ladainhas seguidas de jongo e
pagode, em homenagem aos santos de devoção, eram comemorações em que os
laços se estreitavam e que atingiam maior dimensão nos dias de carnaval, quando
os moradores se faziam representar para além dos limites da comunidade, atuando
em seus blocos ou escolas de samba. Dessa maneira, em direção à construção de
um lugar social para a região e para os seus moradores, as práticas culturais, antes
dispersas nas casas das famílias, passaram por um processo de adaptação e
centralização.
Houve no Morro da Serrinha um processo de associação de uma narrativa
que evoca a memória da fundação da Escola de Samba Império Serrano a outra que
se liga a um projeto orientador da construção de identidades de seus moradores. A
articulação entre projeto e memória “ao dar significado à vida e às ações dos
indivíduos, em outros termos, à própria identidade” 244 , foi um caminho de ação dos
grupos da região para atrair o olhar, mesmo que passageiro, de políticas públicas
e/ou de ações individuais externas que pudessem favorecer a comunidade.
Como mecanismos que possibilitam a relação entre os indivíduos em grupo,
memória e identidade são categorias que permitem que os espaços individuais
sejam compartilhados em uma experiência coletiva na construção de identidades,
levando ao reconhecimento de um pertencimento que promove coerência individual
ou coletiva. Trata-se de um passado histórico lembrado em suas práticas culturais,
gerando uma identificação da região e da sua comunidade como possuidores de
uma história/memória particular que os diferencia dos demais moradores das favelas
cariocas.
A história da fundação da escola de samba passou por um processo que se
fez reconhecido e reproduzido pela comunidade através da participação coletiva do
grupo. A fundação do GRES Império Serrano, inserida em uma narrativa de ruptura

                                                            
244
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: Antropologia das Sociedades Complexas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003, p.101.

 
  92

das relações individuais, acabou por aglutinar os discursos e, por conseguinte, os


grupos, dando coerência a uma espécie de sentimento identitário para a
comunidade local.
O samba e o carnaval, no Morro da Serrinha, foram práticas locais utilizadas
na construção de identidades socioculturais para a região. O samba passou por um
processo de centralização e/ou institucionalização que se deu através da fundação
do GRES Império Serrano, em 1947. Diante da centralização das práticas culturais,
através da fundação da escola de samba e dos seus títulos de vencedora do
carnaval, o Morro da Serrinha e seus moradores foram sendo visto pelos grupos de
fora da comunidade como participantes de um processo de edificação da cultura não
apenas restrita ao local, mas expandida ao âmbito nacional. A presença no cenário
público dos segmentos populares representou parte de um movimento que legitimou
a identidade destes grupos através do carnaval, os quais passariam a ser
considerados atores sociais participantes da vida pública do Rio de Janeiro.
A fundação da Escola de Samba Império Serrano trouxe uma marca
institucionalizada à comunidade local e que sustenta o seu discurso identitário. A
identidade relacionada à ideia de pertencimento encontra visibilidade e perpetua a
existência do grupo ou da comunidade. A participação das famílias no carnaval pode
ser percebida como um conjunto de práticas que levam a um reconhecimento ou
identificação própria do estar no mundo.
  93

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NASCIMENTO, Braúlio. Sem título. Rio de Janeiro1951.

OLIVEIRA, Antenor Rodrigues de. Sem título. Rio de Janeiro 1947.

OLIVEIRA, Sebastião. Quase que chorei. Rio de Janeiro, 1947.

OLIVEIRA, Silas e Orlando. Sem título. Rio de Janeiro. [entre 1947 e 1948].
SEM AUTOR. Madureira, eterna capital do samba. Rio de Janeiro. 1972.
  99

ANEXO A – Transcrições das entrevistas

Observação: Optou-se nesta transcrição pelo respeito às particularidades da linguagem oral, que
confere ao contexto deste trabalho uma especial autenticidade, procedendo-se, contudo, a algumas
adaptações com vistas ao melhor entendimento do conteúdo.

Entrevistada: Pedrina Rocha (Secretária da Velha-Guarda do Império Serrano) (P)

Entrevistadora: Alessandra Tavares (E)

Data: 07/12/2010

Local: Quadra de Ensaios da GRES Império Serrano

CD - 1

E- Vamos iniciar a entrevista com Pedrina Rocha, na quadra do Império Serrano.


Dona Pedrina é secretária da Velha Guarda...

P- No camarote da...

E- Estamos aqui no camarote da tia Eulália Oliveira Nascimento, fundadora do


Império Serrano.

P- Exato, isso é importante.

E- Dona Pedrina, a Senhora lembra qual foi o primeiro contato que teve com o
samba e com o carnaval? Qual a primeira lembrança que a senhora tem?

P- De samba ou de carnaval?

E- De carnaval, e depois de escola de samba.

P- De carnaval, a história é a seguinte: minha mãe morava em Niterói, nós éramos


quatro irmãos, agora nós somos dois. A mais assanhada era eu mesmo, dançava
muito, ia para esse negócio de baile, isso quando eu era mocinha, com essas
minhas primas – de quem vou falar ainda – que moravam na Serrinha. Meu pai não
foi um pai de acordo e quando a minha mãe se separou, veio para cá, para o Rio,
com emprego e tudo, então nós viemos depois. Quando eu fiz dezesseis anos, nós
já morávamos em Vaz Lobo. Existia uma escola na época, a República Dominicana,
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onde minha mãe trabalhava e nós morávamos na esquina, logo ali na esquina da
Rua Lambari, que hoje em dia leva o nome do.... oh, meu Deus do céu...Mestre
Fuleiro! A rua agora é Mestre Fuleiro, - as ruas daqui são assim, tem a Silas de
Oliveira, tem a Mano Décio da Viola, agora tem a do Fuleiro. Agora estão botando
os nomes das ruas todas assim. Lá em cima na Serrinha tem uma rua que eles
botaram, como é... do Jongo, por causa daquele menino que era do jongo e que
faleceu. As pessoas que morreram, (quando eu morrer eu não sei onde vai parar o
meu nome...), vão ficar em algum lugar. Aí, o que acontece? Eu nunca morei na
Serrinha. As pessoas às vezes perguntam: “Você já morou na Serrinha?”. Eu nunca
morei na Serrinha. Eu vivia lá, o meu fim de semana era lá, eu ia para lá na sexta e
voltava na segunda. O porquê? Porque minha família ainda mora lá. Agora lá é área
de risco e para você ir lá é ruim. Tem a tia Ira, a minha prima, os meus primos todos,
tio Augustinho, que também foi um dos fundadores, tio Careca, tio Irapuã, que
também foi um dos fundadores desta época. Aí eu comecei... eu era pequena, a
mamãe comprava aquelas roupinhas, a gente ia para Vaz Lobo, para Madureira,
aquelas coisinhas de criança... Nisso fundaram o Império. Fundaram o Império
como? Eu ia lá com as minhas primas, a gente saía para os bailes e coisa e tal,
mocinhas assim de catorze, quinze anos, porque eu era muito alta, aparentava até
mais idade. Quando o Império fundou-se, tinha um bloco lá na Serrinha, que era o
Prazer da Serrinha. Aí acabaram com ele e fundaram o Império Serrano, lá na
Serrinha mesmo, na casa da Dona Eulália. Ela mandou fundar na casa dela mesmo
– nesta ocasião ela morava em cima, na rua da Balaiada, que é uma rua de subida,
e lá em cima tinha a última casa, que era da Dona Eulália. Depois vinha a da vovó
Maria Joana, mais em baixo a do meu tio. Aí fundaram o Império! Quando fundaram,
foi aquele alvoroço para a moçada, para meninada... todos queriam sair, todos: “Vai
sair?!” A Serrinha inteira naquela coisa, foi um deus nos acuda! Verde e branco e tal,
e fomos... Neste negócio, a primeira vez que desfilei no Império, eu tinha dezessete
anos e a primeira ala em que saí foi da falecida esposa do Molequinho; depois eu
passei para a ala da Eva, muitos anos... (também faleceu e tudo). Fundaram o
Império, fomos para lá e ganhamos quatro anos seguidos! Não sei se você sabe
disto: primeiro, segundo, terceiro, quarto anos. Até tinha uma música que dizia
assim: “Imperial, primeiro ano, segundo ano, terceiro ano imperial, esse é o
campeão dos campeões, com três anos de existência são três anos de vitória, isso
para nós é a grande glória”. Foi a gente sempre subindo... agora nós estamos com
 101

esse negócio, mas sempre em cima, sempre em cima. Nós, eu digo mesmo, nós do
Império, veja bem, quando o Império surgiu, escola nenhuma botava o veludo, nós é
que fundamos o veludo, ninguém botava veludo. E bateria? O agogô foi fundado
dentro da nossa escola, saiu da gente e foi para as outras escolas e outras coisas
mais... Passo marcado? Não tinha; o primeiro passo marcado foi na ala Sente o
Drama, no Império, e as outras escolas foram copiando, entendeu? Eu não sei se a
gente é muito querido, ou se a gente é muito invejado, porque muitas coisas nós
ensinamos quando nós nascemos, para começar por aí. Tinha a vovó Maria Joana,
a quadra era em frente... (essa já morreu, a Balbina, senão eu apresentava para
você, mas Deus já levou). Na época, a quadra não tinha escada direitinho. Sabe
pedra? Uma aqui e outra ali... Para você subir era assim: um quadrado, um
quadrado pequeno, chão batido... era eu, Vilma, que você já entrevistou, a falecida
Balbina, a minha prima e mais quatro, e a gente é que varria aquilo e dava batidinha
no chão e não tinha com que enfeitar. Pegávamos as folhas no mato e botávamos
enfeitando, porque naquela época, no Império, quem frequentava era Jorge Goulart,
Nora Nei, Marlene do rádio, aquela que ainda está até hoje com a gente, como é...
esqueci o nome dela, ela fazia muito televisão... acho que é Miriam Rios, eu não
estou certa, mas eu acho que é Miriam Rios. Eram nossos convidados e naquela
época eles eram grandes artistas. O Jorge Goulart, a Marlene do Rádio, e a gente
fazia aquilo tudo porque vinham convidados, subiam naquelas pedrinhas e lá iam...
Assim que começou o Império. Eu podia ter trazido umas fotos minhas, que eu tenho
do tempo em que comecei novinha. Tinha aquelas roupas rodadas, muito rodadas,
de veludo, não tinha aquele negócio assim de “ah, vai fazer onde? vai fazer não sei
onde...”, nós mesmo que fazíamos na casa da vovó Maria Joana. Eu trabalhava,
saía do trabalho e ia para lá, passava a noite bordando, botando paetêzinho, aquela
coisa toda a gente é que fazia. A vovó Maria Joana era muito exigente “ –Vovó, está
bom assim? – Não, minha filha, não. Ah, filha, mais um brilho, o carnaval é cor, é
brilho, bota mais um pouquinho”. Aí a gente botava. As roupas ficavam umas coisas
de louco! A gente desfilava, o desfile na cidade foi primeiro na Avenida Antônio
Carlos; foi o primeiro desfile nosso da escola de samba. Depois fomos para a
Candelária, da Candelária fomos para a Praça Onze, na Praça Onze é o
sambódromo. Era dentro de corda na cidade, não era assim... mas aqui tinha muito
carnaval, nós saíamos lá da Serrinha, entendeu, andando direitinho! Mestre Fuleiro,
falecido, era o diretor de harmonia, (antigamente não tinha esse monte que tem
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agora, era um diretor de harmonia só), depois foi o Otací, o meu primo que já
faleceu, e o Gregório, e o falecido Carlinhos. E não tinha uma porção, era um só
para dirigir a escola toda. O Fuleiro não falava, ele tinha um apito e ele apitava, e
você já tinha que entender o que era, e ele olhava assim, e você já entendia tudo.
Onde era o distrito policial, agora é o Madureira Atlético Clube. Antes, ainda tinha a
linha do trem, toda escola tinha que passar rápido por causa do trem. Aí ele deixava
a gente, a gente tinha que ir assoviando o samba, desde a Serrinha até chegar ao
clube, que era para chegar no clube e soltar a voz... E eu que não sabia assoviar?
Era um horror! Eu não sabia, ele apitava toda hora. E vinha com a corda mesmo, e
se roçava na corda, e vamos se embora que era para ninguém invadir o nosso
carnaval! E a gente sempre na glória, a gente sempre por cima, e sobre a gente era
sempre sucesso. Tinha a Portela... Tem um samba que diz assim: “Só se falava na
Mangueira... Estação Primeira...”, como é...? Só sei que só se falava na Portela, na
Mangueira, na Estação Primeira de Mangueira, e não se falava nunca no Império;
não existia o Império. Quando o Império apareceu, no início tinha muita rivalidade;
um portelense não chegava nem perto de um imperiano, não tinha como é agora,
aquela união... Era brabo! Eles não se chegavam. Lá na Serrinha só tinha uma
família que era imperiana (quis dizer “portelense”). Faleceu a Doca da Portela, e a
família dela era da Portela. Eram quatro pessoas de uma família que eram da
Portela. Você sabe que a Serrinha toda era Império. Eles saíam escondido, não era
porque alguém iria fazer alguma coisa, era para não envergonhar, não criar
constrangimento entre os integrantes da Serrinha por serem da Portela. Aí, quando
fundaram o Império, eles continuaram saindo escondido.

E- A senhora participou do período em que ainda havia a Prazer da Serrinha? A


senhora lembra como era antes?

P- Eu lembro que era um bloco. Não era só na Serrinha, tinha bloco em tudo que era
canto: em Vaz Lobo, em Madureira, em Irajá... Era um bloco comum, não tinha
assim essas coisas... e desse bloco resolveram formar uma escola de samba. Deu
certo! Nós éramos muito vaidosos... As primeiras alas do Império foram Amigos da
Onça, Baluarte e Milionário. Milionário... acho que... Amigos da Onça, Baluarte e
Milionário. Os nomes eram estes. Tinha de mulheres, tinha a da Eva, tinha a Comigo
Ninguém Pode, eram as primeiras alas, nós éramos muito vaidosos naquela época.
Não tinha aqueles carros de capota arriada? A gente, para se exibir, colocava as
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nossas roupas bem rodadas e jogava assim para trás... Para se exibir a gente se
arrumava cedo, alugava aqueles carros, todas posudas naqueles carros,
passávamos e incomodávamos todo mundo, inclusive a ala da Portela. Nós
passávamos, ficávamos passando... Também o trânsito não era como é agora,
senão nós não podíamos, né? Antigamente era tudo diferente. E depois disto o
Império sofreu muito, sofreu muito depois que o Império saiu do morro, (eu também
não sei por que nós saímos lá do morro), e nós ficamos sem quadra. Nós ensaiamos
em Vaz Lobo, ensaiamos em Madureira, ensaiamos em um terreno, ali onde é um
hotel, aqui mesmo na Edgar Romero. Ali morava uma senhora que tinha um quintal
onde deixava a gente ensaiar. Nós erámos pedintes para ensaio e ficamos assim até
que conseguimos isto aqui. Também não sei como conseguimos, aqui era o
Mercado de Madureira, o mercado deu isto aqui para a gente, agora é nosso, mas
antes disto nós sofremos, não tinha onde ensaiar, nós ensaiávamos em qualquer
lugar... Primeiro foi assim (lá vai eu falar mal da escola...): venderam uns títulos que
o falecido meu marido comprou - eu sou viúva duas vezes, o meu segundo marido
era daqui. E você comprava este título pra quê? Era para fazer uma quadra lá na
Serrinha. O campo está lá embaixo, mas, minha filha, não fizeram nada! Sumiu o
dinheiro e não fizeram nada, e ninguém sabe de nada, e nós ficamos para lá e para
cá, igual a um não sei o quê, mas Deus sabe o que faz... Você sabe a bandidagem
do jeito que está..., sabe atualmente como é que é... A gente quase nem pode ir até
a Serrinha. Eu podia até falar para você entrevistar minha prima, mas eu não vou
fazer isto; ela não vai vir aqui para ser entrevistada e eu não vou mandar você ir à
Serrinha. Eu não quero ir lá, então eu vou mandar alguém ir lá? Antes não tinha
esse negócio todo, essa bandidagem, mas eu estava falando de outra coisa, sobre
isso me perdi...

E- A senhora estava falando o porquê de a quadra mudar de lugar.

P- Exato.

E- Aí a senhora passou a falar dos títulos. A senhora se lembra de quando a escola


era lá no morro da Serrinha e de quando a escola veio para cá, se houve mudanças
na forma como a escola se organizava?

P- Mudanças até houve, porque as coisas mudaram muito também, e a gente tem
que seguir. É como uma moda: “ah, está se usando isto agora”, aí você vai e segue.
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Houve muitas mudanças. Lá nós éramos assim... ricos; tanto é que nosso apelido
era Império Rico, porque nós mostrávamos riqueza no carnaval, mas ao mesmo
tempo nós éramos pobres, nós éramos simples; nós éramos luxuosos para sair no
carnaval, era uma vaidade nossa de carnaval; a gente era simples, mas as coisas
mudaram muito. Nós temos que ir evoluindo de acordo, nós não podemos ficar
parados naquilo, então nós perdemos muita coisa de quando a escola nasceu; nós
perdemos sim; ganhamos e perdemos.

E- E como funcionava isto, Dona Pedrina? A senhora está falando que o Império era
muito rico. Onde estava essa riqueza do Império?

P- No Livro de Ouro. Quando começamos tinha Livro de Ouro, para todo o comércio
desde Vaz Lobo, Madureira e Irajá. E as pessoas que ajudavam o Império, assim
como Nora Nei, Paulo Goulart, a Marlene do rádio, davam as coisas para a gente,
nós não chegámos a ser pedintes, nós ganhávamos coisas. O Livro de Ouro ajudava
muito, os comerciantes botavam um bom dinheiro. Era Irajá, Madureira, Vaz Lobo, o
falecido Natal, que ajudava muito o Império, sempre ajudou financeiramente, era um
homem de poder e ele ajudava a nossa escola sempre. Eu, quando mocinha, (olha
o que a gente faz quando mocinha...), a roupa já estava lá, certinha; ele era bicheiro,
ficava ali em frente da estação. “- Vamos lá, vamos lá pegar um dinheiro com ele,
vamos, vamos!”. Aí nós três juntávamos, nos apresentávamos... “– O que o
imperiano quer aqui? – É a nossa roupa, a gente não conseguiu fazer ainda... –
Quanto é mais ou menos? – Ah, a gente precisa de tanto. – Vai fazer a roupa!”.
Entendeu? Até isso a gente fazia (risos), ficávamos com o dinheiro porque a roupa
já estava pronta, então a gente tinha grandes ajudas, ele dava muito mesmo,
naquela época, com qualquer pedacinho de pano você fazia um carro, não é como
agora, tudo é o peso do dinheiro.

E- A senhora estava falando que ajudava a fazer as alas...

P- Cada um fazia a sua roupa...

E- Lá na casa da vovó Maria Joana. E como era isso? Quem assumia as alas, como
vocês participavam?

P- Por exemplo, a ala era da filha dela, aí tinha os colegas. Era bastante
componente, como agora, juntavam todos, iam para lá, uma cortava, quem sabia
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costurar, costurava, quem sabia bordar, bordava, aí fazia tudo; era assim que
fazíamos, entendeu?

E- E tinha carnavalesco na época?

P- Tinha, tinha.

E- Já em 1948 em 1949?

P- É, alguém já ditava aquilo, ditava aquilo que tinha que ser feito, era o
carnavalesco, já tinha enredo, tinha carnavalesco, eu só não posso dizer assim
quem foi o primeiro, quem foi o segundo, que tenho tudo escrito porque eu não
gravo, mas tinha, mas tinha tudo isso.

E- A Dona Vilma me falou que a ala da tia Eulália era...

P- Ala das Damas.

E- A ala das Secretas. As alas iam se formando, iam costurando, fazendo as


fantasias, mas as outras alas não sabiam.

P- É, naquele tempo era a ala das Secretas.

E- E como é que se fazia um carnaval de acordo com o enredo, com todas as alas
combinando, se ninguém sabia como era a ala do outro?

P- Olha, vou falar uma coisa para você: era mais vaidade, porque a ala dela era
secreta, o nome já dizia, mas a nossa não; a gente não queria que a outra visse por
pura vaidade da gente: “A nossa não, não diz... A nossa tem esse bordado aqui, o
nosso chapéu é assim... Não, não, ninguém pode saber”. Uma ala não passava para
a outra, não queriam de jeito nenhum, mas era vaidade, uma vaidade da gente. Eu
acho que por essas vaidades todas é que o nosso Império ficou no auge, sabe? Por
causa desta vaidade toda, agora você vê, bota aí na quadra a ala e todo mundo vê,
né? Aquela coisa toda, naquela época tinha isso: todo mundo no seu canto,
guardadinho, e no dia, pá! Estourou. Era bem melhor...

E- Vamos voltar um pouquinho no tempo. A senhora falou que quando ia lá na


Serrinha, mocinha, visitar a sua família, havia...

P- Passar o fim de semana de segunda a sexta![sic]


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E- Havia o bloco Prazer da Serrinha. Como era? A senhora saía no Prazer da


Serrinha? Como eram os espaços? Havia outras escolas lá, como funcionava isso?

P- Não, já existia Portela, Mangueira, Salgueiro...

E- E na Serrinha, como funcionava? Antes da fundação do Império Serrano lá na


Serrinha, as pessoas iam aonde?

P- Era esse bloquinho só que tinha para a gente sair, não tinha mais lugar nenhum,
era esse bloco, deu a noite não tinha mais folia; se ia para o palanque, que tinha nos
comércios, e só isso; só tinha aquele bloco.

E – E a senhora se lembra do que aconteceu para as pessoas fundarem o Império


Serrano?

P- Aí eu não sei... por que eles fundaram, não sei. Houve uma reunião entre os mais
velhos na época, então eles fundaram o Império. As próprias pessoas do bloco
foram lá, engancharam dentro da escola, aí foi crescendo cada vez mais.

E- Uma das coisas que a senhora declarou foi que já mocinha, com os seus catorze,
quinze anos, participava do carnaval, e as pessoas apontam que, nesta época, na
década de 40, as mocinhas não participavam do carnaval...

P- Não participavam, faziam as roupinhas. Mas é aquela coisa: dava dez horas, nós
já estávamos em casa. Tinha o bonde que fazia a volta aqui; a gente brincava no
bonde o dia todo, pendurada nele. Eu era a mais abusada, ia no degrau do bonde.
Uma vez levei um tombo ali na curvinha, nunca mais fui ali. A brincadeira nossa era
assim, aí quando chegava a noite, a gente colocava aquela roupinha que às vezes a
nossa mãe fazia, íamos para o palanque, mas dez horas já estávamos em casa,
ninguém ficava igual essas meninas ficam agora até tarde, naquela época o juizado
era brabo, não tinha criança muito pequenininha não, era brabo!

E- E como a senhora começou a sair no Império Serrano? A sua família deixava?

P- A minha mãe deixava, só tinha a minha mãe para dizer pode ou não pode. Minha
mãe deixava, e os meus irmãos não gostavam, ninguém gostava, só eu que
gostava. As minhas duas irmãs não gostavam, quero dizer: uma já não tinha mais,
quando o Império fundou. A minha irmã não gostava, o meu irmão também não
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gostava, só eu que gostava, aí a minha mãe liberava. Se eu estava com parente, ela
liberava. O tio Augustino era como o meu pai, aí ela liberava, mas liberava assim,
sem liberdade, tinha que ir embora cedo, entendeu como que era? Era isso.

E- A senhora lembra como eram as festas na quadra, quando o Império Serrano era
no morro?

P- Não tinha muitas.

E- Como vocês organizavam?

P- Quase não tinha nada, a maioria era no carnaval, não tinha muita coisa, não tinha
como fazer praticamente nada, feijoada eu só lembro depois que fizemos essa
quadra aqui.

E- A senhora disse que várias pessoas importantes iam lá no morro...

P- Iam, mas eles eram recebidos só no samba. Tinha samba sábado, durante a
noite toda. Aí era dia de receber e a gente fazia o que pudesse.

E- E como era esse dia na Serrinha? As pessoas ajudavam a arrumar?

P- Quem arrumava era a gente: eu, a falecida Balbina, Vilma e a minha prima; nós
que arrumávamos. As quatro descíamos e carregávamos água para botar lá, que
não tinha água. Tudo isso nós fazíamos. Festividade não tinha, éramos tão pobres lá
que não dava para dar festividade, e quando chovia, quando chovia então, não
podíamos dar nada, não tinha cobertura, não tinha nada e se escorregasse, você
caía.

E- E quem frequentava nestes dias de samba?

P- Eram os fundadores e os seguimentos das famílias. Ia a mãe do Helton, que já


era moça feita, o pai também ia, a família de quem fundou... Aí a gente vinha
puxando, puxava uma amiguinha, puxava outra... Ali é uma região que tem muitas
ruas, né? A Serrinha tinha muita gente, quer dizer, todos subiam o morro, não tinha
outro lugar para ir, era só aquilo, aí enchia. Todos iam para lá por não ter outro lugar
para ir, ficavam a noite toda, tinha samba, tinha tudo;era assim.
 108

CD- 2

E- E a senhora se lembra dos preparativos para os primeiros carnavais, quem fazia


o samba, como era que isso era decidido?

P- Desde que fundaram o Império, nós conhecemos só um compositor, não tinha um


monte de compositor, era só um, que era o Silas de Oliveira; sempre foi ele. Depois
começaram a botar uma porção... Tudo era um só: era um diretor de harmonia, era
um compositor só, quem comandava o Império era justamente quem fundou, quem
determinava uma coisa ou outra. Saíam com o Livro de Ouro, baixavam e
assinavam. O Livro de Ouro dava um dinheiro... Imagina agora! Mas eles ficam
assim: “não fica bem...” e não sei o quê... Não fica bem? Se colocassem um Livro de
Ouro agora, com esse comércio todo que tem, Nossa Senhora, naquela época não
tinha nada e a gente fazia um dinheirão de Irajá até Madureira! Imagina agora
quanto não ia render...

E- E quem trabalhava para arrecadar esse dinheiro?

P- Tinha uma comissão, tinha uma pessoa só para isso, um dos fundadores, um
deles só para essa finalidade. Não tinha sócio, sócio só passou a ter quando a
gente saiu do morro, por isso “inventaram” aquele, um tal de... como é? Falei no
início que não deu em nada para fazer a quadra...

E- Título.

P- É, o título. Mas não deu em nada este título, se dependesse do título nós
estávamos na rua ainda, porque não deu em nada.

E- A senhora falou das vitórias do Império nos primeiros quatro carnavais. A senhora
lembra como foram os impactos destas vitórias no pessoal da Serrinha? As vitórias
mudaram o jeito com que as pessoas da Serrinha se relacionavam com o Império?

P- Não, não, não.

E- Logo no início, a Serrinha era toda imperiana ou só depois da vitória?

P- Não, não toda. Só tinha quatro pessoas desta família que não era Império.
 109

E- E por que a senhora acha que isto acontecia? Porque havia outros blocos e
outras escolas lá: Unidos de Congonhas, Tamarineira...

P- Não, eram muito fraquinhas.

E- Tinha a Prazer da Serrinha.

P- Prazer da Serrinha era bloco. Justamente. Você agora falou... O pessoal da


Congonhas, que existia quando o Império foi fundado, veio ficar com a gente.
Acabou, não teve mais, vieram todos para ficar com a gente, tanto é que nós temos
Velha Guarda que morava na época no morro da Congonhas. Mudou tudo,
Congonhas ficou com a gente, aí ficou tudo uma coisa só. O que tinha de escola
renomada aqui era só Portela, mais nenhuma. Quando o Império nasceu só se
falava mesmo de Mangueira, Portela e Salgueiro, as outras foram consequências.
Se bem que a primeira escola de samba mesmo que surgiu aqui no Rio foi a Vizinha
Faladeira. A Vizinha Faladeira foi a primeira escola de samba, hoje em dia não é
nada, não evoluiu, mas a primeira foi ela, aí depois parece que foi aquela de
Botafogo, acho que foi a São Clemente, depois Portela, Salgueiro e Mangueira. Só
se falava nestas três. Quando o Império nasceu, aí já viu, né? Essas outras foram
consequências; vieram depois da gente.

E- A senhora disse que o Império era rico, que o Livro de Ouro era muito rico. A
senhora lembra se essa riqueza do Império trouxe alguma melhoria para a
comunidade?

P- Não, na verdade eu não acho que trouxe melhorias para a comunidade. Naquela
época a comunidade não precisava de muita coisa não, era pobre, era pobre e se
mantinha pobre e cada um vivia dentro do seu mundo. Todos trabalhavam, tinha
funcionários, a maioria era da “Loyd Brasileiro” e lá, na época, ninguém ganhava
pouco, então não tinha família tão pobretona, eram todos assim, médio.

(Ela para e cumprimenta uma pessoa que passa.)

E- Nós estávamos falando sobre o Império e as suas vitórias, se trouxeram


melhorias para a comunidade. A senhora estava falando que era um Império rico,
mas a comunidade era pobre.
 110

P- É como eu falei com você, mas a riqueza que a gente trazia no carnaval não era
a riqueza que tinha lá. Era tudo muito simples, mas não era assim tão pobre. Eram
pessoas simples. O meu tio, por exemplo, trabalhava na Central do Brasil. Viajava
para São Paulo, pra lá e para cá, as pessoas tinham o seus empregos para terem
seu dinheiro, criarem a sua família, tanto é que na época não tinha barraco, só tinha
casa; a Balaiada, que a rua era Balaiada, não tinha barraco só tinha casa; cada um
melhorava a sua casa como podia...

(Interrupção.)

E- A senhora dizia que todos na Serrinha eram Império Serrano. Depois que a
quadra saiu de lá, esta relação continuou?

P- Continuou. O pessoal acompanhou...

E- E a forma com que organizavam o carnaval continuou?

P- Do mesmo jeito...

E- A senhora falou que se organizavam as alas nas casas das pessoas. Continuou
existindo essa mesma organização?

P- Continuou o mesmo, porque é aquele negócio: éramos unidos, mas tínhamos


vaidade: “Só vou mostrar no carnaval!”, e antes também não procuravam ver as
outras alas. “Bom, eu vou ali para ver se vejo alguma coisa...”. Não, um respeitava o
outro. Se lá na casa de fulano estão fazendo a fantasia tal e eu era de outra,
também não ia até lá. Também dava tudo certo por causa disto, ninguém invadia o
canto do outro. Então quando chegava o carnaval era um impacto para todo mundo,
para quem vinha nos assistir e para a gente mesmo; um olhava para o outro e, “ihhh,
ihhh”, e achava que estava sempre melhor que todo mundo. Assim ia...

E- E agora, só para encerrar, Dona Pedrina, fala um pouquinho para a gente como é
esse trabalho da senhora na Velha Guarda, porque a senhora está no Império
Serrano desde mocinha, desde o início, e até hoje continua trabalhando para o
Império Serrano. Fala um pouco sobre o que a senhora faz na Velha Guarda e qual
o papel dela no carnaval e na vida da escola de samba.
 111

P- Olha, a Velha Guarda é quem carrega o nome da escola; em qualquer lugar que
você chegue e tenha uma Velha Guarda, é ela quem leva o nome nas costas. Nós
fazemos a apresentação da escola em qualquer lugar que a gente vá, então nós
temos que ter uma postura. Velha Guarda não pode brigar, tem de ficar junto, não
pode falar palavrão, muita coisa Velha Guarda não pode. Porque é como se fosse
uma etiqueta essencial... então é aquela hierarquia, um respeita o outro, a diretoria é
muito respeitada, eu sou muito respeitada porque sou a secretária e também faço
um trabalho do conselho de postura de disciplina. A gente sai muito, então nas
saídas, eu, como secretária, também tenho que ficar olhando, como seu eu fosse
olheira, vendo se fulano se portou, o que sicrano está fazendo, porque ninguém é
chamado a atenção na hora; se você olhar e a pessoa entender, muito bem; mas às
vezes eu sou obrigada a chegar aqui e falar: “– Presidente, você viu, presidente? Eu
vi isso, isso... –E aí, o que você achou disto tudo? –Eu achei que não estava
certo.”. Então a pessoa recebe uma primeira punição, porque na Velha Guarda você
recebe uma primeira punição, na segunda você é expulsa e não volta mais! Nós
temos pouquíssimas pessoas expulsas, pouquíssimas. Desde que eu sou secretária
da Velha Guarda, vai fazer uns três anos, só duas expulsões, e uma delas já
morreu. Duas só, porque todo mundo segue à risca como deve ser, entendeu, que é
para evitar de ser expulso, que não pega bem. Uma Velha Guarda fazer feio?!
Podem falar de qualquer pessoa do Império, não pega nada, mas se falarem que a
Velha Guarda foi em um lugar e fez isso, pega mal para a escola. Por isso que a
gente tem uma postura diferente dos outros. Por causa do nome da nossa escola,
porque na Velha Guarda todo mundo é imperiano, todos somos sócios da nossa
escola, todos somos é remidos, a gente não faz nada que venha sujar o nome da
nossa escola. Meu trabalho é este. Ler a ata... Por exemplo: tem qualquer coisa que
desagrade, um membro que tenha saído, eu vou escrevendo... depois passo para a
ata, o presidente lê, assina, e na reunião aquilo é lido para todos que estão ali, doa a
quem doer! Se tiver que pegar para fulano, vai pegar, não tem essa “ah, não! para
fulano, não!”... Todo mundo sabe que tem uma hierarquia , todo mundo sabe qual é
o comportamento da Velha-Guarda. O trabalho da gente é este, nós temos uma
diretoria, nós temos o presidente e um vice presidente, e quando o presidente não
pode atuar é o vice que atua. Nós temos três para conselho deliberativo, nós temos
o tesoureiro e a secretária. É uma estrutura que nós temos. Agora, não precisava ter
essa eleição... mas o nosso presidente gosta que seja assim! Tem eleição da escola
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agora em maio, daqui a um mês vai ter da Velha Guarda. Quem tiver três anos de
velha guarda pode se candidatar para ser presidente da escola, mas não tem
necessidade, ele podia continuar por toda a vida, só por causa de morte ou caso de
roubo para ele sair. Mas ele quer que haja uma eleição para ver quem quer, quem
não está satisfeito... Não tinha necessidade, mas ele quer que tenha! E é isso o
trabalho de secretária, é praticamente um braço direito do presidente, a gente está
sempre do lado com um papelzinho. Agora a gente está largando assim de lado
porque vai ter eleição, mas antes eu trazia sempre meu bloquinho, toda reunião eu
assisto, escrevo tudo, aí chego em casa passo aquilo a limpo, leio para ele e ouço
“está tudo bem, isso não, isso é aqui, isso está errado...”, chego mais cedo, passo
para o livro de ata, leio o livro de ata... Na Velha Guarda não tem uma exigência
muito grande para você entrar, só entra com cinquenta anos, com menos de
cinquenta você não entra, e também você tem que ser sócia da escola, se você não
é, você vai ter que ser. Na Velha Guarda não tem ninguém que não seja sócio da
escola. É bem desagradável você ser Velha Guarda e não ser sócia da escola. Isso
não existe, né? Ser sócio é um orgulho que a gente tem. Não é como ala, ala sai
quem quiser, chegou aí “eu quero ser desta ala”, sai e depois vai embora, só
aparece ano que vem, como turista. Já Velha Guarda não é assim, a Velha Guarda
tem que ser. Toda escola tem uma Velha Guarda só, como a nossa é uma Velha
Guarda só, mas tem uma ala, a ala dos Cabelos Brancos, que tinha um presidente
(já retirado) que achava que ele também era Velha Guarda e nos imitava em tudo.
Por exemplo: ala não tem bandeira, ele botou uma; bandeira e Porta Bandeira, ele
recebia convites para ir a algum lugar e ia igual a Velha Guarda, com Porta Bandeira
e tudo; chegava ao ponto de ele ir em algumas festas e dizerem que era a Velha
Guarda, aí quem não sabia anunciava, e para a gente tirar isso foi difícil, mas nós
conseguimos. Eles ainda se acham Velha Guarda, mas não, é a ala dos Cabelos
Brancos. Essa ala nasceu sabe como? No tempo que eu era mocinha, ali no
Cajueiro. Tem aquele campo de futebol... naquela época aquilo ali era assim: aos
domingos, quem jogava era o pessoal da ala que está aqui, então tinha um grupo de
rapazes (vinte ou vinte e poucos anos, eram jovens), terminava o jogo, tinha um
botequinzinho no posto de gasolina, eles iam para esse botequim, comiam, batiam
um papo: “vamos formar uma ala?” , “como é que vai ser?”. Aí formaram a ala dos
Cabelos Brancos, registraram aqui, e vieram para cá, aqui no Império, mas tudo ali
na Serrinha. Nessa ala não sai mulher, só homem. Depois que viram que na nossa
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Velha-Guarda também saía mulher, botaram mulher também. Quando querem


debochar da gente, eles falam assim: “eu nuca vi, só a escola de vocês que tem três
Velhas Guardas”, mas não tem três Velhas-Guardas! Não tem! É Cabelos Brancos
que quer ser Velha-Guarda, e Baluarte que quer ser Velha-Guarda. Baluarte são
esses rapazes que pode ter mulher também, que eu já vi, que foram da bateria, que
já estão cansados, que já estão idosos, então saíram da bateria e formaram essa
ala. Porque Baluarte existia quando o Império nasceu, depois acabaram com os
baluartes, aí então eles pegaram e chamaram Baluarte estes que foram da bateria e
que não aguentam mais nada e acham também que são Velha-Guarda.
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Transcrição de entrevista 2

Entrevistada: Vilma dos Santos Machado (Porta-Bandeira da Velha-Guarda) (V)

Entrevistadora: Alessandra Tavares (E)

Data: 30/08/2010

Local: Vaz Lobo (Casa da entrevistada)

E- Dona Vilma, a senhora foi porta-bandeira do Império Serrano. Pode contar como
foi?

V- Comecei aos quinze anos; dos quinze anos até os vinte e três anos.

E- Foi mais ou menos em que ano que a senhora começou a ser Porta-Bandeira?

V - Comecei a ser porta-bandeira acho que foi em 1956 para 1957, em 1959 me
casei, então passei aquele ano, depois só em abril.

E- Quando a senhora começou a frequentar o Império Serrano?

V- Com dez anos. Ele nasceu em 1947 e em 1949 eu comecei a sair com a minha
madrinha, a vovó Maria Joana. Ela que me levava, mandava a gente ficar
sentadinha para aprender a costurar a bateria do Império. A casa ficava cheia no
morro, dali eu comecei a sair. Ela fazia aquelas roupas de sobra, antigamente era
assim, não tinha muito negócio de luxo. Era de veludo e cetim, usava muito.
Comecei a sair aos quinze anos, saía na ala com doze anos, com quinze fui pegar a
bandeira e fiquei. Aos dezessete anos eu fui rainha das escolas de samba. O
primeiro presidente do Império Serrano foi o falecido Elói, Elói Dias.

E- A senhora lembra como era o carnaval? Como pensavam o carnaval na época da


fundação?

V- Eu via alguma coisa, porque o Mano Décio chamava as meninas da costura, as


pastoras, para ajudar a fazer o samba, na casa dele. O nome era Rua Itaúba, agora
que é Mano Décio de Oliveira. Nós íamos para casa dele, um monte de patos no
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quintal... horrível! E saía aquele samba bonito, juntavam ele e Silas de Oliveira e
todo mundo no quintal, Dona Ivone Lara...

E- Então o carnaval começava com a escolha do samba?

V- É, escolhia o enredo primeiro, depois iam fazer a sinopse do samba, aí começava


aquela euforia.

E- A senhora lembra se nesta época já existia carnavalesco?

V- Tinha o pessoal aqui da Serrinha, mas depois começou vir os carnavalescos.


Juntavam jornais e iam na casa dos outros. O enredo era feito aqui mesmo, era tudo
no larguinho que tinha ali. Pegavam aquele jornal com goma e faziam aquelas
coisas todas. Depois que a quadra caiu, foi melhorando, com o aparecimento dos
carnavalescos. Aí começou a andar de pé em pé.

E- A senhora se lembra de quando e como a quadra caiu?

V: A quadra caiu acho que foi em 1955, por aí. Era na Serrinha, na Balaiada. A casa
da minha madrinha era cento e vinte quatro e a da Tia Eulália era cento e trinta. Era
um terreirão, depois surgiu o Império na casa dela, depois foi para casa da mãe
dela, fizeram a quadra com aqueles paus. Mas era bom. Tudo pobre, humilde, e não
tinha essas confusões que tem agora.

E- Naquela época, quando a senhora era moçinha, com seus dez até os seus
dezessete anos, como era para se divertir?

V- Eu trabalhava muito. Com nove anos eu já trabalhava tomando conta de criança,


lavava louça na casa das pessoas para ganhar cinco reais. E com aqueles cinco
reais eu fazia milagre. Uma pobreza horrível! Quando tinha festa no Império
juntavam aquelas crianças todas para carregar água naquelas latas para poder fazer
feijoada. Quando vinha Dalva de Oliveira, todas as crianças iam trabalhar. Era muito
bom!

E- E antes do Império, havia espaços para vocês se divertirem na Serrinha?

V- Tinha um morro lá na serra. A gente ia pra lá pra brincar, mas eu não brincava
muito porque sempre trabalhei.
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E- Quando a quadra era lá no morro, havia dias de festas?

V- Sim! Fizeram a quadra no terreiro da mãe da tia Eulália e usavam aquela quadra.
Desmancharam as casinhas velhas e fizeram o cercado. Ficou muito bonito. Eu não
achei foi o tempo, mas outro dia vou deixar contigo o retrato de onde era a quadra.
Eu queria tanto te mostrar...

E- A senhora lembra se alguma coisa mudou para a Serrinha, para a comunidade,


depois da formação do Império Serrano?

V- Mudou. Agora não, agora está péssimo. Naquele tempo, quando a sede era lá em
cima, era uma coisa ótima. Era tudo mais humilde, não tinha essas violências de
agora. O Império Serrano veio aqui na procissão e estava aquela violência...

E- Lembra se houve mudanças na comunidade com a fundação do Império


Serrano?

V- No começo, né? Era muito bom.

E- Existia no início a mobilização da comunidade para fazer o carnaval?

V-A comunidade participava muito! Era mais a comunidade do que gente de outros
lugares. Agora não, agora vem gente de tudo quanto é lugar. Antigamente não tinha
muito branco no samba. Era só gente da nossa cor e aqui todo mundo ia lá pra
Grota. Todos saíam; hoje em dia não; só gente mais de fora.

E- A senhora estava falando sobre a questão da cor da pele das pessoas que
frequentavam o Império Serrano, a senhora pode falar mais um pouco sobre essa
questão? As pessoas que frequentavam eram negras? A senhora lembra se isso era
uma questão somente do Império ou se ocorria no samba de forma geral?

V- Eram mais negros que saíam no samba. Aqui na Serrinha, tinha muita gente.
Mulato assim... Tinha muita gente negra. A família da tia Eulália era toda escura.

E- A senhora lembra por que as pessoas vieram morar na Serrinha?

V- Porque era aonde elas acharam o lugar pra construir. Todo mundo pobre. Olha
como tem casa de pessoas do nordeste... Não tinha casa onde eu morava. Agora
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você vê casa ali; tudo em volta está cheio de casa. Ainda tem a casa lá: Balaiada,
cento e vinte e quatro.

E- A senhora se lembra de onde vinham as famílias? A sua, por exemplo, veio de


onde?

V- Daqui mesmo, porque foi aqui que eu nasci. Não tinha ninguém de fora, não!

E- A senhora falou que todos participavam, ajudavam a fazer. Lembra como era a
participação?

V- Chamavam. A tia Eulália ia à casa do pessoal chamando para ajudar. E todos


vinham ajudar com o maior prazer.

E- A senhora lembra como funcionavam as alas?

V- Tinha uns números para separar as Alas da Arte, dos artistas, alas das Secretas.
Cada componente tomava conta.

E- Eram os componentes ou as famílias que ficavam com responsabilidades de


tomar conta das alas?

V- Não eram as famílias. Escolhiam quem tinha mais amor e responsabilidade. Tinha
cada dama antiga linda! A tia Altair tomava conta da Ala das Secretas. Era cunhada
da tia Eulália. Da Ala das Artes era a Eva que tomava conta, filha da minha
madrinha, irmã do Darci do Jongo da Serrinha.

E- A senhora lembra se nesta época existia a mistura entre o jongo e o samba, se as


pessoas frequentavam os dois espaços?

V- Tinha, mas jongo era jongo e samba era samba. Agora que eu vejo até criança
aqui no jongo. Mas era mais as senhoras, tia Tereza, o marido da tia Eulália e
aquela gente toda lá. No samba não, era até gente de idade também; no Jongo é
que não tinha criança.

E- Como eram as festas lá na quadra do Império? A senhora lembra como eram as


mobilizações?

V- Todo mundo trabalhava, os trabalhadores... todos ajudavam. Era aquela união,


sabe? Tinha feijoada, a gente carregava água para poder fazer as feijoadas com
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aqueles panelões, com aquelas latas de doce e de leite. Assim, na pobreza, nós
tínhamos aquela união.

E- A senhora lembra como era a participação da mulher? Homens e mulheres


participavam da mesma forma?

V- Não, os homens ficavam de um lado e as mulheres de outro, e no ensaio ficavam


juntos, porque tinham que dançar, mas um ficava do lado e o outro, do outro. Porque
era a tia Eulália que mandava, e ela gostava assim. Quando a gente tinha que
ensaiar no meio da roda, primeiro ela chamava a ala de fulano. Aí entrava a ala pra
fazer aquela evolução... Hoje em dia é todo mundo junto que faz aquela evolução lá
na quadra, mas antigamente não era. “Vilma, agora está na hora de dançar!”. Aí eu
vinha porque tinha chegado a minha hora de ensaiar. Era tudo completamente
diferente de agora.

E- Em relação aos rumos da escola, lembra quem podia participar, dando opinião
sobre o carnaval, sobre as alas?

V- Os que tomavam conta podiam dar opinião, todos. Tinha reunião também para
dar opinião. Era bonito e todo mundo saía, juntavam e faziam o carnaval. Todos
podiam, podiam falar. O pessoal da Serrinha ajudava muito para fazer esses
enredos. Para escolher o enredo era tudo aqui, depois que foram arranjar um lugar e
aí foram aumentando os carros. Os carros eram todos pequenos e bonitos, a gente
saía do largo que tinha ali e fazíamos os carros todos ali. Depois cobríamos e
botávamos aquelas lonas e ainda ganhávamos em primeiro lugar. Até três anos
seguidos o Império ganhou em primeiro lugar.

E- A senhora disse que trabalhava desde muito cedo. Quando saía do Império e
vinha trabalhar aqui fora, e dizia que era ligada ao samba, como as pessoas de fora
lidavam com essa relação da senhora com o carnaval?

V- Não, eu não ligava não. Hoje em dia, que o samba tem muito nome, tem muita
coisa... Você vê que hoje uma porta-bandeira tem pagamento todo mês, mas
naquele tempo não; a gente tinha que fazer aquelas capas, e eu gostava da minha
capa bonita! Às vezes eu até emprestava a minha para a Primeira Porta Bandeira, a
Jacira, porque a minha era a mais bonita. Eu gostava de ficar sentada lá pra bordar,
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como até hoje! Eu bordo e vem tudo da minha cabeça. Ali tem um quartinho onde eu
fico bordando com a máquina.

E- Como a senhora aprendeu a ser Porta Bandeira? Existia um preparo dentro da


escola?

V- Não, não tinha nada disso. Eu fico assim olhando porque eu aprendia a ser Porta
Bandeira, não tinha escola, como hoje tem. Hoje em dia tem projeto. A gente pegava
a bandeira e ia lá dançando, com o cabo da vassoura, como é que pode não é?
Porque também naquele tempo não tinha essas rodas de maluquices todas; hoje em
dia se a Porta Bandeira não rodar muito não serve. Eu vi a minha sobrinha rodar, e
ela ia ali em cima e voltava e aquilo foi bonito, eu gostei. Mas não tinha isso, tinha
mais cadência. A gente se arrumava para apresentar a bandeira, o mestre-sala não
podia bater na bandeira... O Everaldo foi o Primeiro Mestre Sala que fundou o
Império Serrano. Ele não encostava na bandeira, duvido que ele iria encostar com
aquele leque dele, e ele só dançava com o leque na mão. Era tão bonito...

E- A senhora saía daqui do morro para trabalhar lá fora, e chegava, e falava pras
pessoas: “Olha, eu sou Porta Bandeira do Império Serrano” ?

V- Não, não tinha isso não. A fábrica era ali na Borborema. Hoje é que tem um
bocadinho de pessoas que conhecem. Está muito esquecido o Império. Pena, pois já
teve mais no auge... O samba era meio discriminado. Claro, estava no começo. Meu
pai não gostava que eu dançasse. Ele falava que isso era coisa que não prestava,
ainda mais que ele era da Marinha, mas ele também era levado... antigamente os
velhos eram levados... Depois uma filha dele, minha irmã por parte de pai, veio sair
no Império Serrano; uma que era chefe do hospital aqui, desse posto de Madureira.
Aí eu fui descobrir que tinha uma irmã! Ela começou a vir para o Império Serrano, a
sair de destaque num carro, meu pai viu, foi falar ... Era aquela coisa...

E- A senhora lembra se essa resistência era só por parte dos pais, com medo de
deixar suas filhas saírem no carnaval?

V- Minha mãe não falava nada, não. Ela sabia que eu estava com a minha madrinha
e com todo mundo mais velho; nós não saíamos sozinhos à noite, não íamos para o
samba sozinhas; todos tomavam conta um do outro. Mas hoje em dia minhas netas
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não querem mais sair comigo, porque eu já estou velha, elas gostam de sair com as
colegas. No tempo da gente, a gente gostava de sair com gente mais velha.

E- E como era na hora de namorar, os rapazes se aproximavam das meninas? Os


rapazes de fora se colocavam como o seu pai?

V- Não, porque nós não saíamos daqui. Eu me casei com meu marido, irmão do
Aluísio Machado. Ele me conheceu no samba, namorei três anos e quando ia fazer
quatro anos eu me casei. Então não tinha preconceito porque ele me conhecia do
samba; ele vivia saindo no Império Serrano. Eu tinha vinte anos quando ele
apareceu no Império.

E- A senhora falou que era bonitona, que namorou muito. A senhora lembra se o
fato de estar envolvida com o samba fez os rapazes acharem a senhora diferente?
Como isso funcionava?

V- Não, porque eu era a Porta Bandeira e todos queriam me namorar. E eu


namorava mesmo! Mas o namoro não era igual agora. A gente dava beijinho e então
estava namorando. Agora não quer assumir e é por isso que eu acho ruim pra minha
neta.

E- A senhora se lembra de alguma coisa sobre a fundação do Império?

V- Eu não lembro não, porque quando fundaram o Império nós ajudávamos muito a
carregar as coisas e pedíamos as coisas na rua para ajudar a escola. Então eu não
lembro. A comunidade ajudava muito, os comerciantes daqui... todos ajudavam.

E- E como a sua família ajudava?

V- Minha madrinha fazia a roupa da bateria e do Mestre Sala, que era o filho do
Everaldo. Tinha dois Mestres Salas, o segundo, quando fundaram o Império, foi
Francisco Colinho e o Everaldo. Fundaram o Império com dois Mestres Salas, e eu
tava com oito a nove anos.

E- O que a senhora lembra sobre essa mobilização?

V- Eu sei que eles se reuniram e fizeram. Tia Eulália chamou todos para a casa
dela. Devido àquela confusão que teve com a Prazer da Serrinha, foram para lá,
fazer o fundamento. A cor da bandeira foi feita lá na casa dela. Eles combinaram,
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buscaram, porque Silas de Oliveira era uma pessoa muito inteligente, sabe? O pai
dele era professor dali de Cascadura, daquelas escolas. Ele bebia muito, mas era
muito inteligente. E ela fundou lá, na casa da tia Eulália. Entraram ela, os irmãos e
todo mundo; Senhor Agostinho também era vizinho e todos ajudaram. Tudo
combinado e saiu a escola de samba Império Serrano. A bandeira da Serrinha era
rosa, aí escolheram essa cor, verde e branco.

E- A senhora lembra como foi a mobilização para o primeiro carnaval?

V- Antigamente não tinha muitas alas; depois foi melhorando... Antes eram só umas
três e pronto.

E- Lembra como era esse negócio de alas secretas da tia Eulália?

V- Não podíamos ver até o dia; a da tia Eulália era secreta mesmo! Hoje em dia
todos vêem, mas antes não tinha esse negócio de botar na quadra para todos verem
e escolherem. Era aquele figurinozinho e tinha que ficar guardando, porque era tudo
secreto. E quando comprávamos o pano e todos falavam “Vem ver!”, ela dobrava os
panos e não deixava. Era mania do tempo, agora mudou; era para ter surpresa
mesmo, porque no carnaval todos olhavam: “A dela está assim e a minha está
assim”. Aí todos tinham aquela surpresa, aquele impacto, mas era muito bom
também.

E- Naquela época, quem fazia o figurino para os desfiles? Eram elas próprias
responsáveis pelas alas que faziam?

V- Não, aí já tinha os carnavalescos, esses carnavalescos pobrezinhos... Daí, eles é


que arrumavam; depois é que foram criando os nomes dos carnavalescos. Aquele
carnavalesco que morreu era do Império Serrano. A surpresa era muito boa, mas
agora eu acho tudo ali. Abertamente, eu gostava mais da surpresa. Eu fazia a minha
roupa e ninguém sabia; quando a Jacira via a minha, às vezes estava mais bonita do
que a dela, mas ela era a primeira e eu tinha que emprestar. Eram umas perucas
bonitas que nós usávamos só de um lado, não era como eles saem hoje, não. Uns
chapéus bonitos... De vez em quando eu olho para o Mestre Sala e agora eles não
saem com nada na cabeça. Tem alguns que saem...
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E- E quando o Império começou a ganhar esses primeiros carnavais, a senhora


lembra se ajudou a melhorar a condição de vida da Serrinha?

V- Entrou dinheiro para escola, mas pra Serrinha, não! Eu nunca ganhei dinheiro.
Eles melhoraram a quadra, que era de pauzinho. Foi aí que começaram a vir as
pessoas de fora. Eu lembro porque todos começaram a ajudar e começou a crescer.
Tinha aquelas roupas de veludo, aqueles ternos, era cada terno lindo... A ala mais
bonita dos homens era a ala dos Amigos da Onça. Era um colete, um chapéu.
Botaram o nome da ala de Amigo da Onça, era a primeira ala de homem no Império.

E- A senhora disse que conseguiram melhorar a estrutura da quadra. E em volta da


quadra, no morro, para melhorar o acesso à quadra? Eles arranjaram ajuda pra
melhorar?

V- Não, isso não. Aquela escada escorregava e tinha que subir. Quando chovia,
então, era cada escorrego que a pessoa levava... Ajudavam na quadra porque tinha
muita pobreza naquele tempo. Tinham que ajudar a escola. O que eles arrumavam
era para a escola. Depois começaram a dar roupa do Mestre Sala.

E- Dona Vilma, a senhora pode contar sobre essa relação de família no morro?
Parece que todos são parentes...

V- Tem muita gente que não é parente de sangue; é parente daquele tempo que a
gente chamava de vovó, falava “benção, tia!”, era aquele respeito... Pedrina me
chama de parente e eu aceito, porque nós fomos criadas junto, daqui do tempo. Ela
dançava muito quando era novinha.

E- E essa relação se deve ao samba ou à comunidade mesmo?

V- Eu acho que é mais pela comunidade, porque no samba não tem tanto respeito
como antigamente. Porque todos nascemos aqui; era tio, avó, aquelas velhinhas, a
mãe do falecido Fuleiro e outras que você já ouviu falar. Então era aquela amizade...
As velhas tomavam conta, não tinha nada de creche; hoje tem. Eu nunca gostei de
café, e acho horrível até hoje! Então tinha uma velhinha que me dava o leite.
Quando eu recebia dinheiro, cinco reais, eu comprava aqueles quartos de leite.
Passava aqui na Serrinha aquele burro puxando a carroça; quem tinha dinheiro para
comprar um litro comprava; quem não tinha comprava um quarto, meio litro, era
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assim. E quando estragava? Eu tinha que trabalhar o dia inteiro assim mesmo na
fábrica. Eu era muito pobre, mas a minha madrinha me ajudava muito, porque já era
melhorzinha, tinha mais situação; o marido dela trabalhava no Cais do Porto. Eu não
tinha pai e fiquei muito com minha madrinha. Minha mãe, não... minha mãe ficou
cega, precisava que olhassem ela. Tinha a minha irmã mais velha, que morreu com
setenta e três anos; tem dez anos morta. Minha mãe tinha cinco filhos, morreram
todos e só resta eu. Aí nós tivemos que ir cedo trabalhar. Nenhum dos meus irmãos
nunca se meteu em coisa errada, nada disso. Tinha um que era jogador, que ia
melhorar, caiu do trem e morreu com dezoito anos. Ele tinha dezoito e eu tinha
dezesseis.

E- A senhora falou que a sua madrinha tinha uma situação financeira melhor por
causa do marido que trabalhava no Cais do Porto. Lembra se existia ali na Serrinha
uma diferença entre as famílias dos homens que trabalhavam no Cais?

V- Os homens dali eram quase todos do Cais do Porto. Muita gente. Zacarias... e um
bocado de presidente do Império!

E- Aqui é distante do Cais...

V- Mas eu acho que o Cais dava essa oportunidade para eles trabalharem. Porque
eu ainda vejo um monte de gente que se aposentou pelo Cais do Porto; a condição
era melhor lá dentro. O marido da minha madrinha já era melhorzinho, tanto que
dava pra ela ajudar a gente. Geladeira? Quem tinha geladeira era ela, de pau! Aí
botava o gelo no papel, no jornal, e todo mundo chamava “Vó Maria, me dá um
pouquinho da água gelada da senhora?”. A tia Eulália tinha geladeira também; tudo
enrolado! Primeiro as geladeiras eram de pau. Iam comprar lá em Vaz Lobo e
faziam. O geleiro às vezes ia lá em cima pra levar o gelo.

E- O Cais do Porto é distante daqui da Serrinha. Segundo a senhora, as famílias


ligadas ao porto tinham melhores condições financeiras. Mas essas famílias teriam
condições de saírem para morar em outro lugar que não fosse a Serrinha?

V- Tinham, mas muitos tinham amor! O Felício ainda mora aqui na Serrinha até hoje,
está com oitenta e quatro anos e tem mais de dez casas; isso porque ganhava mais
lá dentro. Ele é cunhado da primeira Porta-Bandeira do Império, e Lacir, que é a
mulher dele, está com oitenta anos. Eles nasceram e namoraram aqui na Serrinha;
 124

um conheceu o outro pequenininhos. Moram na rua Silas de Oliveira e não queriam


sair daqui do lugar. Compraram casa lá embaixo, e eu também comprei essa casa
aqui, mas eu queria comprar lá! Eu me casei e fui morar em Ricardo de
Albuquerque. Depois, (eu gosto é de Madureira!), um dia o meu marido morreu, eu
vim e comprei essa casa aqui.

E- Essa relação com a comunidade, a senhora pode nos dizer se isso era somente
entre as pessoas do local ou tinha a ver com a escola de samba?

V- A gente desfilava aqui mesmo na Serrinha para o pessoal e os moradores verem.


Botávamos aquela corda e a gente desfilava aqui dentro, todos se conheciam,
estavam vendo que eu era porta-bandeira porque eu desfilava aqui dentro. Primeiro,
para nós sairmos, tínhamos que dar a volta aqui dentro, descer a rua Doutor Juvenil
e ir andando até Vaz Lobo e Madureira. Era com o maior amor e carinho. O pessoal
ficava no portão, todos em pé, vendo desfilar e batendo palmas. Era muito bom. Era
a união que tinha. Eu tinha orgulho. Eu tenho o maior amor à essa bandeira! Eu lavo
todo ano, eu passo e às vezes o presidente fala “Vilma, se você não puder, se sentir
alguma coisa, eu arrumo uma pessoa pra tomar conta da bandeira”, mas o pessoal
não toma conta igual a mim! Ontem eu poderia ficar na festa; mas gastei um
dinheirão de táxi ontem, porque fui lá no meu afilhado Vanderley, dei um abraço nele
e levei o presente dele em Rocha Miranda. Ele perguntou se eu queria ficar, mas
eles vêm com a bandeira toda ruim, aí eu não gosto. Não gosto mesmo! Porque eu,
desde pequena, tenho amor à bandeira do Império Serrano. Ninguém queria ir à
festa porque a Jacira, primeira porta-bandeira, ficava bebendo. Então seu Elói falava
“Vilma, minha filha, vamos, porque essa daí não pode ir”. Eu ia, pegava aquela
bandeira e ia pra todos os lugares. O seu Elói era um presidente velho, gordo. Havia
ciúme e tudo, mas eu não ligava, sempre foi assim. Até hoje lá na Velha Guarda as
meninas têm ciúmes. No dia da festa, quando eu fui com essas roupas novas, elas
falaram “Hum, chegou a Vilma toda metida”. Escuto as meninas, mas nem ligo. Eu
gosto de ver que eu estou bem vestida. Agora eu mandei fazer um sapato verde e
branco para botar com esse vestido. Foi cem reais. O moço mandou eu ir lá que já
tá quase pronto. Mandei fazer uma tira branca e uma verde. Eu até queria que
pintassem uma coroa do Império, mas na próxima eu vou!
 125

E- Vocês sempre estavam juntos nessas festas ligadas ao carnaval. A senhora


lembra se de alguma forma isso fazia com que as pessoas acabassem se
conhecendo?

V- É, essa menina que eu conheci é costureira da Beija-Flor por intermédio da festa


da Velha Guarda. Eu peguei uma amizade imensa a ela e ela a mim; uma telefona
para a outra... só nunca fui à casa dela; ela teve oportunidade de vir aqui. Gosto
muito dela! Quando a gente chega, comemoram: “Chegou o Império Serrano! Vai
entrar a Vilma agora!”, então a gente pega amizade. Não tem aquelas brigas e nem
aquele negócio de escola; são todos unidos. Você vai vê lá na festa dia doze: todos
terão suas mesas, tudo para sentar e almoçar. O Império vai oferecer a comida, (eu
acho que vai ficar gostosa...). Quando eu fui, saí daqui com uma fome... Cheguei lá
e falei: “Será que a comida é boa?”. Olhei assim..., todo mundo comeu e disse que é
bom. Aí eu comi, comi mesmo, e estava muito bom!

CD2

Entrevista com a Senhora Vilma Machado

Entrevistada: Vilma Machado (V)

Entrevistadora: Alessandra Tavares (E)

Data: 20 de outubro de 2011

Local: Madureira (casa da entrevistada)

E- Por favor, Dona Vilma, a Senhora pode nos contar um pouco do seu trabalho hoje
no Império Serrano?

V- Hoje eu saio na Velha-Guarda, sou a Porta Bandeira da Velha Guarda, carrego a


bandeira da Velha-Guarda... E no carnaval, trabalho no barracão, trabalho com
dinheiro, sem dinheiro, sem nada. Eu trabalho por amor! No ano passado, eu
trabalhei à beça, trabalhei muito.

E- Que tipo de trabalho a senhora faz no Barracão?


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V- Costura. E vou também para adereçar. Este ano o menino me chamou “Ah, tia...
eu quero que a senhora vá para o barracão para ficar comigo”. Foi o vice-presidente
do Império. Aí eu vou ver o que eu vou fazer...

E - Como começou a sua história no Império Serrano?

V- Começou porque eu morava lá na rua Balaiada, fui nascida ali, criada com a
minha madrinha, a vó Maria Joana. Morávamos eu e mais os meus irmãos, todos ali
com ela, eu com dez anos... O Império foi fundado em 1947 e em 1948 comecei a
sair. Minha madrinha emendava aqueles paninhos, me botava sentada perto dela
para ajudar, fazia aquelas roupinhas e me levava para sair no Império.

E- A senhora lembra como a sua família foi morar lá Serrinha?

V- Foi a minha madrinha; ela chamou a minha mãe; ela tinha uma casinha nos
fundos, onde fomos morar. Minha madrinha era mãe do primeiro mestre sala do
Império Serrano, o falecido Everaldo. Éramos todos dali: Everaldo, Jacira... Depois o
outro filho dela foi o segundo Mestre Sala, o falecido Culim, que saía com a filha da
tia Eulália. Eu estava crescendo, aí com os meus quinze anos, e comecei a sair de
Porta Bandeira também, até os meus vinte e três anos. Casei com vinte, lá em cima,
onde meu marido me conheceu.

E- A senhora lembra como era a vida de vocês antes do Império Serrano? Como
eram os espaços para vocês se divertirem lá no morro antes do Império Serrano?

V- Eu não lembro muito. Não tinha escola de samba, era muita pobreza, éramos
todos carregando água, não tinha muitos espaços, não. Tinha que correr pelo morro
mesmo, tinha muito pombo, minha madrinha tinha pombo. Íamos para casa da Tia
Eulália, tinha o Jongo todo ano, e ela fazia aquelas festas... Festa de Jongo, do
marido dela. Eu gostava muito. A vida da gente era esta. A minha madrinha levava a
gente para rezar ladainha. Tinha ladainha à beça! Cada dia arrumava um lugar para
rezármos a ladainha. A gente gostava: bolo!”. Era tudo assim, e eu gritava muito! A
madrinha mandava segurar o santinho, “Segura o santo!” e a gente tinha que
segurar a santinha, “Jesus, Santa Maria.” (cantando). Minha madrinha era tão boa!
“Orai por nós” (cantando), ia eu segurando a santinha... E a vida da gente era assim.
Depois que fundaram o Império, aí todos começaram a se dedicar a ele.
 127

E- E as festas nas casas das famílias? Mesmo depois da fundação do Império


Serrano elas continuaram a acontecer?

V- Aconteciam. Tinha a falecida Dona Marta, que era a madrinha do pai do Jorginho,
do Décio. Ela era destaque do Império. Quem também gostava era uma velhinha
que gostava de sair de destaque... Depois apareceu aquela que foi o primeiro
destaque no Império, porque as outras escolas não tinham destaque, não... Era a
Olegária! Ela foi quem fez a minha primeira saia de armação: “Vilma, vou te dar uma
saia de armação para você parar um bocado com este negócio de goma”.
Antigamente era goma... Olegária mora em Vaz Lobo agora. Ela foi o primeiro
destaque do samba e está bonita até hoje!

E- A senhora falou das festas nas casas das famílias da Serrinha antes da fundação
do Império Serrano. Lembra como ficaram estas festas depois da fundação?

V- Depois que foram morrendo as famílias, as coisas foram mudando. O primeiro


presidente foi o irmão da Tia Eulália, o João Gradim. Depois que ele se foi, faleceu o
sogro, que também ajudou a fundar o Império, era pai do Hélio e se chamava Éloi
Antero Dias. Eu fui rainha das escolas de samba todas com ele. Ele era quem me
levava, era o meu cabo eleitoral, aquele velho gordo, igual ao Hélio! Ele que vinha
andando, e as meninas não queriam... E eu? “Eu vou assim mesmo”. Quando eu
ganhei foi aquela emoção... Era lá na Praça Onze. Até pouco tempo eu ainda tinha a
faixa guardada; foi com meus dezessete anos, mas com este negócio de mudar...

E- A senhora comentava sobre uma questão bem diferente do que a gente ouve
falar em relação ao samba; falava de um período em que era muito jovem e já
participava dentro da escola de samba. Em muitos lugares a gente ouve dizer que
as mulheres não participavam tanto porque ficavam mal vistas no samba... Fale
sobre isso.

V- Ah... O meu pai era separado da minha mãe e não gostava; dizia que quem saía
em samba não prestava, mas eu nunca liguei, porque eu sempre saía com as
senhoras. Eu não achava nada de mais ali dentro. Mas muita gente era mal vista
quando saía no samba e muitas famílias não deixavam os filhos irem. Agora não;
agora acabou tudo.
 128

E- A senhora acha que lá no morro era diferente daqui de baixo, com as famílias
participando?

V- Tinha família lá no morro que não gostava, não eram todos que eram do samba.
A mãe da Pedrina não gostava que ela fosse lá em cima. O tio dela era diretor, com
a tia Eulália. Depois é que uma vez ou outra ela ia, mas não ia sempre, porque ela
morava na estrada. A mãe dela trabalhava na escola. Ela fala que foi criada (no
samba), mas não foi mesmo... Depois, com mais idade, foi que ela começou a ir,
porque gostava à beça de dançar. Ela trabalhava em hospital. E é isso, minha filha:
o samba era melhor...

E- Quem trabalhava nas festas?

V- Nós. Quando erámos meninas nós trabalhávamos para carregar água, aí vinha a
Tia Eulália e nos mandava: “Meninas, vamos fazer bandeira”. Nós fazíamos
bandeiras e aquele morro ficava lindo! Depois vinha a Marlene. Aquele tempo era
bom; era pobreza, mas era bom...

E- As festas eram só para receber as pessoas importantes ou havia festas


periodicamente, como a feijoada de hoje?

V- Faziam às vezes a feijoada para receber o pessoal, mas quase sempre era para
receber estes artistas, essa gente importante que ia lá. Todo mundo trabalhava
naquela quadrazinha de pau lá em cima. Agora mudou, não é?

E- Uma das formas hoje de a escola de samba conseguir arrecadar capital para
fazer o carnaval é fazendo estas festas. Naquela época, como era?

V- Ganhamos também pelas associações, e é um dinheiro bom. Antigamente não, a


gente procurava jornal para fazer aqueles enredos (refere-se às alegorias), e fazia
tudo assim (bate as mãos como se moldasse), tudo de jornal, até conseguir aquelas
formas. Era assim, minha filha, às vezes ali na rua, e o Império ganhava em
primeiro lugar, não é?

E- E como eles conseguiam dinheiro para fazer...

V- Ah, tinham Livro de Ouro. Eles iam aos comércios, todos ajudavam. Às vezes o
falecido Natal, mesmo com raiva, também ajudava. Sem um bracinho... Mas quando
 129

o Império ganhava, ele ficava danado porque a Portela perdia! Era aquele
“brigueiro”... Aí ele ia lá na Serrinha, dava tiro pro alto, e a gente, criança, corria! “Pá,
pá!”. E a gente: “Vem ele!”. E Tia Eulália: “Corre Crianças!” (risos). Era tempo da
pobreza, mas era bom... Não era como agora; com este negócio de dinheiro...
Aonde que eu ia ganhar dinheiro para sair de Porta Bandeira no Império Serrano?
Não tinha isto, minha filha. Nós trabalhávamos, eu saía da fábrica com aquele
dinheirinho e comprava aqueles vestidinhos de chita, que era para botar roupa nova!
Hoje se ganha dinheiro... Eu queria ser nova agora, pois hoje tem pagamento, não é
menina? Quem mora mais longe tem o dinheiro da condução e ainda ganha por
mês. Minha sobrinha que joga a sorte fora, garota...

E- A senhora lembra como foi a organização das pessoas para fundar o Império
Serrano. A senhora testemunhou alguma coisa?

V- Eu não lembro porque eu era muito pequena. Sei que eles se juntaram na casa
da Tia Eulália. A reunião era lá em cima, na casa dela.

E- Conta a história que eles saíram às ruas falando, avisando, como uma primeira
demonstração do Império Serrano...

V- Era um bloco, aquele bloco com a corda. Depois se juntaram todos e virou....,
Prazer da Serrinha morreu. O Senhor Antenor se ajuntou com o pessoal para fazer o
Império Serrano, aí escolheram a bandeira assim, e a Tia Eulália sempre a frente, aí
se ajuntaram lá. Eu escutava falar eu ainda era pequena na me envolvia muito nisso,
depois que eu fui crescendo é que eu fui vendo como é que era. Era um bloco,
aquele bloco com a corda, o Prazer da Serrinha. Ele acabou e depois todos se
juntaram com o Senhor Antenor e escolheram a bandeira com a ajuda da Tia
Eulália, sempre à frente! Eu não me envolvia muito nisso porque era pequena;
depois fui crescendo e vendo como era.

E- E logo no carnaval de 1948 o Império sai como campeão...

V- 1947,1948,1949.

E- Já começa saindo campeão...

V- É.
 130

E- A senhora acha que isso mudou alguma coisa nas pessoas em relação ao
carnaval e à escola de samba, ou até mesmo em relação à vida lá na Serrinha?

V- A vida foi melhorando, foi melhorando muito mais.

E- Melhorando como?

V- No aspecto das fantasias... Tudo. Foram mudando o enredo, as pessoas... aí já


estávamos todos gamados: “Eu sou Império Serrano!”. Então começaram a sair
aquelas alas com todos de terno... Era cada ala bonita... Tinha a Ala dos Amigos da
Onça, tinha a Ala das Artes, a Ala dos Pretos Ricos...

E- E quem saía nos desfiles nesta época?

V- As pessoas iam para lá para saírem. Vinha gente de tudo que é lugar porque o
Império criou nome. Primeiro ano: Campeão; Segundo ano: Campeão; Terceiro ano:
Campeão. Aí tem “Primeiro ano: Imperial; Segundo ano: Imperial; Terceiro ano:
Imperial” (canta). Lindo, lindo! Então começaram a fazer aqueles sambas... Essa
Dona Ivone Lara ela não saía; ela era da Prazer da Serrinha; depois ela foi também
para o Império; foram todos. Ela já está velhinha...

E- Dona Vilma, a senhora lembra como foi o processo de transferência da sede do


Morro para cá para o asfalto?

V- Ih, o Império andou à beça...

E- O que aconteceu para a transferência?

V- Caiu, a chuva jogou no chão a quadra; perdemos tudo. Cada hora ensaiávamos
em um lugar; ensaiamos em Vaz Lobo, depois no Madureira. Aí fomos correndo, até
que achamos um mercadão. Era sujo... Você não era nascida, não é? Ali era um
mercado e estamos lá até hoje.

E- A senhora acha que mudou a relação das famílias da Serrinha com o Império
Serrano depois que o Império saiu de lá? A senhora declarou que todo mundo
ajudava, mas esta relação mudou quando o Império foi para o asfalto?

V- Quem era Império ajudava, porque continuaram passando aqueles Livros de


Ouro por bastante tempo. O comércio todo ajudava. O que mudou é este negócio de
 131

associação, não sei... o “lerj”. Tem uma porção de coisas que ajudam: quem alcança
o primeiro lugar ganha, quem é do primeiro grupo ganha um dinheiro bom para
ajudar a escola, agora quem está no grupo A (quis dizer o B) já ganha menos. Eu
saí lá na Cabuçu e ganhei dois Estandartes de Ouro; o desfile da Cabuçu no ano do
Roberto Carlos foi bonito à beça! Mas nunca deixei de sair na minha escola, no
Império Serrano. As escolas pequenas tratam a gente muito bem, mas as escolas
grandes esquecem da gente, não sabem que nós fomos fundadoras, que nós fomos
criados ali. Agora tudo é na base do dinheiro.

E- Vamos falar um pouquinho sobre a vida lá no Morro...

V- Era uma pobreza.

E- A senhora se lembra das famílias? As pessoas falam muito das famílias lá do


morro, que todos são ligados... tanto que se tratam por “tio”, “tia”, “vovó”...

V- Ah, isso é... Eu tinha tia, tinha avó, de quem se beija na mão, e até hoje aquelas
velhinhas todas são minhas tias.

E- E por que isto acontecia?

V- A educação era assim. Todos eram tias, avós... Era respeito, minha filha.
Respeito mesmo! Se fizessem alguma coisa errada com uma daquelas velhinhas ali,
chamavam a nossa atenção. Tinha uma velhinha, a mãe do falecido Fuleiro, também
falecida, a Vó Teresa. Eram muitos parentes! Todos eram parentes daquele tempo.
Agora não existe mais isto. A gente gostava. Era “minha filhinha”, “minha filha do
peito”... Um realmente ajudava o outro.

E- Em que sentido era a ajuda?

V- Em tudo. Se você fosse mais pobrezinha e se já tivesse água na casa dela, ela já
dava. A minha madrinha, então, chamava todos para almoçar na casa dela. A
geladeira, a minha madrinha tinha geladeira de pau, aí botava aquele jornal e o gelo.
Aquilo era a felicidade para quem tinha geladeira. Não tinha nada de televisão, não
tinha nada disto; era rádio, fogão de carvão... Eu pegava o ferro para passar a minha
roupa, porque estava em alta este negócio de linho... aqueles ferros pesados para
eu por em pé, aqueles vestidos de linho muito rodados... era o que a gente usava.
 132

Eram cinco metros, assim. E cada roda... tinha que estar assoprando aquele ferro de
carvão. Hoje em dia a gente vive como rico, mas a pobreza era muita...
 133

Transcrição de entrevista 3

Entrevistado: Senhor Cidiomar Clóvis Barbosa (Presidente da Velha Guarda) –


Senhor Mazinho (M)

Entrevistadora: Alessandra Tavares (E)

Data: 07/12/2010

Local: Quadra de Ensaios da GRES Império Serrano

E- Senhor Mazinho, pode nos contar como foi o seu primeiro contato com o samba?
Como o samba entrou na sua vida?

M- O samba entrou na vida por intermédio do Império Serrano mesmo. Eu nunca


mudei. Desde garoto, quando nós esperávamos a Portela, a Unidos de Congonhas,
nós ficávamos até de madrugada sentados, na beira da calçada; os pais, com a
gente pequeno, para ver o Império, a Portela e a Unidos de Congonhas passarem.
Ali eu fui tomando gosto pela beleza do Império, porque o Império foi uma escola
muito linda... Estou dizendo que foi porque tudo tem a sua a época. Quando
pequeno fiquei deslumbrado... então comecei a fugir de casa para ajudar aquela
escola que eu tinha escolhido por gosto, por torcer por ela. E por quê? Pela beleza
que o Império apresentava, e o samba que o Império tinha. Eu dizia assim: “Agora
eu vou ter que fazer parte de alguma maneira!”. Naquela época não era como é
hoje, com desfile de passarela. A escola de samba era sustentada por corda. O que
hoje o pessoal vê, aquele time empurrando a alegoria, era antes a gente puxando
por corda! Quem gostava da escola puxava por corda: “Vamos, fulano!”. Dali para
cá eu fui puxando corda, puxando corda, apanhando quando chegava em casa e
aprendi a gostar da escola desta maneira. Depois fui fazendo catorze anos,
completando quinze, e daí já fui entrando para a bateria, e já naquela época quem
saía numa bateria já estava fazendo uma grande coisa! Depois da bateria veio a ala
e até hoje estou no Império. Nunca mudei. Fui convidado, dei uma forçazinha a uma
escola lá de Bangu, mas nunca saí daqui.

E- O senhor se lembra de como foi a fundação do Império Serrano para esta região?

M- O Império Serrano foi fundado por uma dissidência da Prazer da Serrinha. O


presidente de lá era muito austero. Ele era o presidente, ele era isso, ele era tudo,
 134

ele mandava muito! Em um determinado ano houve um aborrecimento sobre o


samba que seria cantado na avenida. Ele queria que o samba que fosse
apresentado no desfile lá em baixo fosse um, mas alguns que pertenciam à diretoria
queriam outro samba e acabou valendo o dele, mas a escola teve uma péssima
colocação; se eu não me engano, foi um décimo primeiro, e acharam que uma das
causas foi essa. Estou querendo me lembrar do nome deste homem... mais tarde
eu lembro! Então juntou o Fuleiro, a Eulália e o Molequinho, – todo mundo sabe que
o apelido dele é Molequinho; tá com mais de noventa anos, mas é Molequinho
(risos) – e Zacarias: uma plêiade de gente boa que fundou o Império Serrano lá na
casa da tia Eulália. Convidaram também uma pessoa que era presidente do
sindicato dos arrumadores para fazer parte da fundação do Império, pois estava
faltando grana. E essa pessoa é esse moço aqui (aponta para o desenho de Elói
Antero Dias, patrono do Império Serrano, existente na beira do palco). Elói Antero
Dias era presidente lá do sindicato dos arrumadores, então ele ajudou a fundar o
Império e todos aqueles que queriam trabalhar no Cais do Porto tinham que assinar
e dar 50 mil réis, o dinheiro da época: “Quer trabalhar? Quer? Nós estamos
fundando essa escola e você vai ter que dar 50 mil réis” (risos). Fazia aquela
chantagenzinha, né? E o Império veio com aquela força! É por isso que dizem que a
origem do Império é o Cais do Porto. O Império nasceu rico, com dinheiro, mas de
trabalhador, não foi de banqueiro! Ficou até um apelido quando eles esnobavam. Na
sexta-feira, quando está todo mundo solto, quando chegava o pessoal do Cais do
Porto na Central do Brasil, era aquela euforia: “Chegou o Império rico! Chegou o
Império rico!”. Era chopada para tudo o que é lado, mulher bonita e nego todo cheio
de dinheiro, nego tudo cheiroso, está me entendendo? Assim veio o Império. O
Império foi fundado em 23 de março de 1947, na primeira reunião na casa da tia
Eulália. João Gradim, Molequinho... E em 1948 foi logo sendo campeã! 1949 e 1951.
Aí tinha uma divisão de Federação e União 245 e me parece que no quarto ou quinto
ano juntaram as duas, agora não me lembro mais... Sei que o Império foi campeão
quatro vezes seguidas: 1948,1949,1950,1951.

                                                            
245
Federação das Escolas de Samba e União das Escolas de Samba promovendo dois concursos de escolas de samba no Rio 
de Janeiro.
 
 135

E- O senhor falou de versões sobre a fundação, que a versão mais comentada é de


uma dissidência.

M- É que a Prazer da Serrinha era a única lá!

E- O Senhor se lembra de outras versões desta época?

M- A versão principal foi esta da dissidência. Todos estes que eu citei eram da
Prazer da Serrinha, e foi neste aborrecimento que houve com o presidente (quase o
dono, poxa, meu Deus, estou com o nome dele... é o cara mais conhecido...) que
então houve a fundação. Juntaram o João Gradim, a família Oliveira, e existiram
mais outras uniões..., fulano, sicrano, mas os principais eram estes: a Eulália e este
aqui (aponta para o desenho de Elói Antero Dias). Como fundar uma escola de
samba que já começa ganhando? Elói tinha um poder... e além do poder era
macumbeiro, era feiticeiro, era o homem que Natal tinha medo. O Natal o chamava
de feiticeiro: “Não quero conversa com aquele nego, não! Aquele nego é feiticeiro”,
(risos). Então foi este aqui, o Elói, o precursor de tudo. Hoje em dia a gente fica
sentado aqui, olhando... Ai, meu Deus do céu, o tamanho da quadra, isto aqui é um
campo de futebol... olha lá, olha daqui do palco e olha lá para o início... que lugar
que a senhora vê, qual a quadra que a senhora vê que tem a dimensão dessa
daqui? É, dá uma tristeza, sabe?

E- Senhor Mazinho, lembra-se do primeiro carnaval em que o senhor teve contato


com o Império Serrano?

M- Olha, meu contato é desde os treze, catorze anos, empurrando, puxando corda...

E- O senhor lembra em que ano foi isso, em que carnaval?

M- (Silêncio) Eu tenho tudo lá em casa... Foi Marcílio Dias... Exaltação a Tiradentes


foi o primeiro. Eu sei que foram três: de Guerra Naval do Riachuelo, Tiradentes, e
Ana Nery. 1948, 1950, 1951. Eu sei que era assim. Tenho tudo no computador, mas
aqui de cabeça, são muitos...

E- O senhor pode nos falar sobre os primeiros carnavais do Império Serrano na sua
vida?
 136

M- O que marcou, vamos dizer assim, foi o “Os cinco bailes da história do Rio”. Para
mim foi o melhor carnaval da minha vida no Império. Acho que nem a Aquarela do
Brasil me empolga tão dentro, tão mais do que esse “Os cinco bailes do Rio”. Eu
nem aguento cantar porque choro! Mas a política já estava no meio desse carnaval
do Império... O Império amargou pela primeira vez o meio ponto. Eles não tinham
como tirar o carnaval do Império... Não gosto nem de lembrar... O Império lindo,
lindo, lindo, mas lindo mesmo! Cantou naquela época um puxador, o Jorge Goulart,
não sei se você já ouviu falar... Jorge Goulart com uma bocarra que não tinha mais
tamanho na avenida: “Carnaval, doce ilusão!”... Ih, Nossa Mãe! Aí Carlos Lacerda
quis porque quis dar o campeonato para o Salgueiro. Meio ponto, o Império perdeu
aquele carnaval. A imprensa toda escrita e falada, todo mundo: “O Império isso, o
Império aquilo, o Império lindo, e blá, blá, blá...”. Mas o homem queria o Salgueiro!
Naquela época não tinha essa imprensa assim, essa repercussão, mas foi
emocionante... Aquilo me marcou mesmo. Tivemos outros grandes carnavais,
bonitos, mas o que mais marcou a mim e acho que a 90% da escola hoje, dos quem
têm a minha idade ou uns dez anos a menos, e que desfilou em 1965, foi “Os cinco
bailes do Rio”! Samba lindo, lindo, lindo! O Império conforme o apelido: o Império
rico, rico de trabalhadores, não era rico com dinheiro do bicho, não! É isso que me
cativa até hoje: o Império foi rico, e os homens do Império andavam numa linha que
quando saía do Cais do Porto parecia até rei... (risos). Era todo mundo cheio do
dinheiro, trabalhavam, viravam a noite, essas coisas todas, mas na sexta-feira
quando o Império chegava na Central do Brasil, Nossa Senhora...!

E- O Senhor falou que aos seus doze anos já fugia de casa para ir...

M- Já fugia e apanhava na volta!

E- O senhor se lembra de como eram as movimentações para fazer o carnaval?

M- Ah, sim! Era um negócio muito salutar, porque cada membro levava um pouco da
roupa para casa, para ajudar; o negócio é que fulano fazia vinte, o outro fulano fazia
mais vinte... era tudo dentro das casas, não tinha nada de atelier, não tinha nada
deste negócio de barracão, de Cidade do Samba, cada um levava um bocado para a
casa do outro, levava mais um bocado para casa, aí fulano ganhava um dinheiro, a
outra costureira ganhava mais um dinheiro, e a outra... era aquele montão de troço
 137

dentro da sala dos componentes: “Não pisa aí, não!”. Hoje em dia, não... cada
escola tem seu atelier.

E- E as festas? Hoje em dia nós temos as feijoadas, os shows... O senhor lembra


como eram as festas naquela época?

M- O Império sempre me marcou com uma data tradicional: o dia quinze de


novembro, Proclamação da República. No Império tinha um famoso piquenique em
Paquetá, na praia da Moreninha, e ficou famoso durante anos e anos... inclusive
pessoas que foram presidentes da escola tiveram a coragem de manter esta data
por mais de 40 anos. Então esse 15 de novembro foi acabando... e você nem
adivinha por que foi acabando... As escolas foram até proibidas de fazerem
piquenique lá em Paquetá, porque as senhoras brigavam muito por causa de
namorado (risos). A briga começava na barca para lá, continuava durante o
piquenique e na volta para o Rio de Janeiro, aqui para a cidade. Era aquela
brigalhada, um pega daqui, pega dali, nos cômodos, nas pousadas, que eram
alugadas com antecedência, pois quem gostava de ir para lá tinha que alugar para
um dia antes, para ir na sexta ou no sábado. Era um tal de mulher dar flagrante em
marido na pousada com outra (risos), era um pega para capar! Eu sei que a
prefeitura proibiu o piquenique dançante na praia da Moreninha, aí passamos para a
Mocanguê, na saída da ponte. Lá também houve uma brigalhada; sempre as
mulheres... Naquela época era danado! O comandante lá da Mocanguê mandou
suspender. Como agora surgiu na Velha-Guarda um movimento para visitação às
escolas co-irmãs, o dia quinze ficou reservado à Imperatriz. Ainda ontem, por
exemplo, estivemos no Salgueiro. São encontros especiais... Então nós da Velha
Guarda mantivemos novembro, mas escolhemos o terceiro ou o quarto domingo
para fazemos um piquenique dançante na Ilha do Governador, na praia Belo Jardim,
antes do aeroporto. Neste ano, nosso piquenique dançante cai até em uma data
boa, dia 20, em que se comemora Zumbi dos Palmares, e você está convida desde
já, sendo que antes acontecerá nossa festa de encontro das Velhas-Guardas aqui.
No ano passado foi um sucesso! Graças a Deus contamos com a colaboração e a
presença de Arlindo Cruz... o Nilson das Neves compareceu... Foi muito bonita e
emocionante. Então é isso: a Velha-Guarda é que está segurando!
 138

E- O senhor estava falando das festas das mulheres. Lembra-se de como eram as
festas quando a quadra era lá no morro?

M- Ah, lá foi o auge, na Balaiada. Foi a época do Império rico, em que tinha esse
jargão: “O Império Rico”. Foi lá na Balaiada, nos ensaios aos sábados, naquelas
ruas em que nove, dez da noite não dava mais pra chegar de carro. Era difícil para
ir lá em cima, ao Império; era um barracão lá no morro.

E- O Senhor se lembra de como eram as organizações para as festas, de quem


trabalhava...?

M – Naquela época, cada ala tinha uma data dentro da escola para dar a sua festa.
Ala da Corte, Ala dos Impossíveis, Ala dos Amigos da Onça, Ala do Estado Maior...
cada uma tinha uma data para reverter o dinheiro para a roupa; não era a escola e
nem nego que ajudava, eram as alas que davam as festas. Dia vinte e pouco do
mês, a ala escolhia as atrações, botava cerveja... Tinha baile dançante, piquenique
dançante... Toda ala tinha uma data durante o ano, está me entendendo?

E- Naquela época existia um conselho fiscal para administrar o dinheiro da escola?

M- Sempre existiu, porque o Império, com todos os defeitos que pode ter hoje, é
uma escola de quadro democrático. Vai ter eleição, por exemplo. O presidente
sempre foi eleito, e talvez sejamos uma das poucas escolas que fazem isto hoje. E é
gostoso a gente viver em um ambiente democrático; todos pagam a sua
mensalidade, todos querem chegar no dia da eleição e votar... Então você fica
pensando nas outras que não fazem eleição, que são “mão de ferro”. Onde elas
estão? Estão lá em cima, lá no topo. Quando alguém vai mexer em alguma coisa lá
(nas escolas comandadas por “mãos de ferro”) nós pensamos duas vezes, porque lá
vai acontecer alguma coisa...

E- Retornemos à época do “Império Rico”. Lembra-se de como funcionava a


administração, da organização para decidir o enredo e o carnaval como um todo?

M- Vou dar um pincelada rápida, porque muitas coisas vão fugindo... Vou falar dos
anos em que o Império ou era campeão, ou era vice, ou terceiro, porque roubavam
do Império... O Império até pouco tempo era a escola que mais tinha vice. Tem uma
piada aí: “Vamos tomar um troço? – De quem? De quem? De quem?” (risos). “Jacó,
 139

vamos tomar um troço? – De quem? De quem? De quem?”. Ninguém tinha dúvida


de quem era: do Império. Vamos tirar alguma coisa de quem então era do Império.
Assim o Império vem sofrendo há anos, justamente por causa disso, justamente por
causa da democracia, porque o Império era carnaval, carnaval bonito, bem bonito,
que o homem ali, o falecido Natal, que já tinha um poder econômico, mandava e
desmandava no carnaval. Ele mandava! Tanto é, vê bem o que eu vou falar agora,
tanto é que a escola teve vinte e um campeonatos na era dele! Quando ele morreu,
246
nunca mais . Está entendendo como funciona o troço? Nós também tivemos um
presidente que dava gosto, ele era muito bem quisto no meio, fazia muitas benesses
para muitas autoridades e nós também vivemos uma época ótima, a do falecido
cheiroso, Jamil Salomão Marufi, criado aqui em Madureira, filho de gringos, um
imperiano daquele jeito mesmo... Foi uma época de beleza no Império! E isso foi
em meia e tal, setenta e tal, oitenta e tal, aonde chegava o Império era aquela
euforia, porque tinha um presidente muito bem quisto por todas as escolas de
samba. Ele era um empresário da pesca, mas o apelido de Cheiroso não era por
causa do fedor de peixe, não... Muita gente associava o apelido ao fato errado. Ele
era cheiroso mesmo! (Ele interrompe para falar com alguém). Então ele faleceu em
noventa e cinco ou noventa e seis. Foi um dos últimos carnavais dele, até acho que
foi o pior carnaval da época do Jamil. Eu não gosto de falar Jamil por falta de
costume: o Cheiroso! Acho que foi o pior carnaval que o Império botou com ele, eu
acho que até que quem fez foi aquele Renato Lage, com a primeira mulher dele, a
Lilian Rebelo, nunca mais esqueci o nome dela, porque foi uma tristeza... Eu não sei
se ali ele (o Cheiroso) estava se despedindo, porque um ano e pouco depois ele
morreu. Foi um dos tempos mais gostosos; todo mundo aqui sente falta, todo mundo
é Cheiroso aqui!

E- Ele não esteve desde o início, no Império?

M- Não, ele entrou para o Império na década de setenta e pouco...

E- O senhor lembra como o Império colocava o carnaval, se havia reuniões?

                                                            
246
  Refere‐se à Escola de Samba Portela.
 
 140

M- Havia uma diretoria, sempre houve uma diretoria, nunca houve aqui um “bam
bam bam”. Tinha uma pessoa que se destacava: Antônio dos Santos, o Fuleiro, que
era o diretor de harmonia naquela época; diretor de harmonia era ele e mais um,
hoje em dia diretor de harmonia tem trinta e poucos, trinta e poucos diretores de
harmonia e a escola vai uma “M” lá em baixo (risos), e naquela época tinha diretor
de harmonia com banca mesmo, tanto aqui como em outras escolas, e o presidente
lá da época quando o Império foi campeão foi presidente também aqui da Velha-
Guarda; eu que substituí ele, o senhor Hugo Mocorongo: um negro bonito, deste
tamanhão e tal, um negro bonito mesmo. O nome dele era Hugo Pinto, mais
conhecido no meio do samba como Hugo Mocorongo. Depois tivemos Zacarias dos
Santos Avelar, que foi o meu guru; ele me ensinou na gestão dele o que eu sei de
Velha-Guarda; ele foi presidente aqui da escola no bicampeonato de cinquenta e
cinco e cinquenta e seis; foi Hugo Mocorongo e Zacarias presidente [...]. Este
campeonato foi uma forra que eles deram para o Império de 1965; vieram dar a forra
em 1972; o Império não tinha carnaval para ganhar, pra ser campeão com Carmem
Miranda de jeito nenhum, não tinha, eu estou te falando, muita gente sabe disto, o
Império não tinha.

CD2

Entrevistado: Senhor Cidiomar Clóvis Barbosa (Presidente da Velha- Guarda) –


Senhor Mazinho (M)

Entrevistadora: Alessandra Tavares (E)

Data:

Data: 07/12/2010

Local: Quadra de Ensaios da GRES Império Serrano.

Continuação do CD1:

M- Em 1985 o Negrão de Lima mexeu lá as bolas dele, que era para dar este
carnaval ao Império; esse carnaval da Carmem Miranda foi dado! Então veio o auge.
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Depois vem em 1982 o Bumbum, aquela maravilha! Tudo o que o Aluízio Machado e
Beto Sem Braço falaram estava acontecendo, tudo ali: as super escolas de samba,
as super alegorias, “escondendo gente bamba, que covardia”, tudo do bumbum
Paticundum! Para você ver a cabeça deles, desses dois, Beto Sem Braço e Aluízio
Machado. Então o Império é isso; teve esta época boa mesmo...

(Interrompe para cumprimentar um amigo.)

M- Nestes quatro anos que o Império foi campeão, eu tenho tudo lá batidinho, tudo
certinho, até os compositores, até os autores, até o carnavalesco. Até quando eu
vejo alguns nomes de carnavalescos que já passaram por aqui, como o Fernando
Pinto, oh! que saudade...

E- O Senhor está falando dos carnavalescos, nestes primeiros anos após a


fundação do Império Serrano, nos campeonatos de 1948 até 1951. Quando o
Império foi campeão, o senhor lembra se já havia carnavalescos?

M- Não, era uma comissão da própria escola, às vezes...

(Cumprimenta outra pessoa.)

M- Às vezes, até compositor ajudava na confecção da alegoria; davam uma mão.

E- O Senhor lembra como as pessoas decidiam sobre as alegorias, as fantasias, e


como faziam um carnaval como o Império sempre quis, com o enredo e as alegorias
contando a mesma história?

M- Renato Lage já esteve aqui, esse Renato Lage do Salgueiro; ele é um pouco do
Império, mas é profissional; Lage foi na época de Fernando Pinto; já teve o Clóvis
Bornai... o Evandro já desenhou para aqui. Então se pedia para esses grandes
artistas, coreógrafos, uma ajuda e eles ajudavam; não tinha essa pompa de hoje;
carnavalesco hoje é aquilo, mas naquela época eles ajudavam. Aquela Maria
Augusta, ela é sofredora também; é imperiana. Pamplona é um Salgueirense, mas
de coração verde e branco, ou imperiano com coração salgueirense; Pamplona
adorava isto aqui; ele dizia: “Se eu fosse dono de uma escola de samba eu botava
este nome, mas que nome pomposo!” (risos); ele cansou de dizer isso para mim:
“Império Serrano, mas que nome mais pomposo”. E eu digo que não tem mais nada
disso mais (risos).
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E-Sr. Mazinho, eu vou pedir para o senhor contar um pouquinho sobre o trabalho
que o senhor faz de levar o nome do Império Serrano através da Velha- Guarda, o
que representa a Velha-Guarda dentro de uma escola de samba, e que trabalho ela
desenvolve.

M- Na Velha-Guarda, entre 90% e 98% são oriundos da escola, aqueles que vieram
desde garoto, puxando corda, apanharam de mãe, porque naquela época quem
falava de escola de samba apanhava mesmo. Aqui nestas redondezas as mães não
deixavam as filhinhas de dezesseis, dezessete, dezoito anos saírem nas escolas de
samba por aí, não! A primeira escola de samba em que passaram a sair por aqui
mocinhas de dezesseis, dezessete, foi o Império, porque a mãe via a beleza do
desfile e não era mal falada como as outras escolas...

E-O senhor lembra por que o Império era diferente?

M- Naquela época que eu estou te citando, samba e escola de samba eram mal
vistos, não é como hoje que artistas pagam para sair, sem contar com outros
segmentos da sociedade.

(Pessoas interrompem para cumprimentar o Sr. Mazinho.)

M- O Império foi onde começaram a sair as filhinhas de mamãe desta área e tal,
tinha sempre alguém para tomar conta, “toma conta da minha filha, toma conta da
minha filha”. Já tinha algumas escolas que já tinham mulheres vividas, bailarinas,
dançarinas e coisa e tal, então o Império foi na minha época a que as mães tinham
mais coragem de dizer: “vai sair no Império porque fulano de tal vai tomar conta”.

E- O Senhor acha que isso foi devido às pessoas que frequentavam?

M- Sempre que entrava alguma menina tinha alguém que dizia: “Eu sou
responsável, a senhora pode deixar, ela vai sair na minha ala, vai sair na ala da
minha mulher, a senhora pode deixar que eu tomo conta”. Então o Império foi bom
nisto.

E- Umas das características que são sempre apontadas em relação ao Império


Serrano é esta questão da família, o surgimento do Império Serrano no seio das
famílias...
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M- É, ela foi muito ligada a isso.

E- O senhor lembra se essas famílias contribuíam para que essas moças fossem
autorizadas a frequentar um espaço que não era bem visto?

M- Eu acho que também era a beleza que a escola apresentava, aquilo chamava
muita atenção, as roupas, as vestimentas, as alas... naquela época, ala de homem
era ala de homem, ala de mulher era ala de mulher, então tinha ala aqui que era um
deus nos acuda! A Amigo da Onça era de um personagem tirado da revista “O
Cruzeiro”, que é a maior revista da América latina. Então com os homens todos
vestidos de Amigo da Onça, com paletó, mas tudo em linho, sapato de duas cores e
gravata. Tinha a ala do Estado Maior, com nego que fora do carnaval já andava bem
vestido, sem ser desfile, sem ter nada. Eu vim a ser imperiano por causa disto, dos
homens que eu via, que para mim eram meus ídolos.

E- E quem eram essas pessoas que frequentavam o Império, quando a sede ainda
era na rua da Balaiada?

M- Era Dalva de Oliveira, Jorge Goulart, Nora Ney, e quem mais...? Blackout,
Roberto Silva, o ministro José Gomes Talarico... foi ministro de Getúlio Vargas, foi
Ministro do Trabalho... e mais gente, muitas autoridades, esse que dá o nome daqui,
o Ministro Edgar Romero. A família toda dele é daqui, onde agora é uma igreja.

(Interrompe para cumprimentar outra pessoa.)

E- O senhor lembra se essa movimentação em torno do Império Serrano trouxe


impactos para a comunidade?

M- Ah, sempre teve impacto muito grande, porque era um lazer na noite de sábado;
naquela época era bom porque não tinha horário de verão, então sete da noite
aquelas ruas já começavam, as pessoas vinham para fora olhar os artistas que
estavam chegando, os convidados que estavam chegando: Dalva de Oliveira,
Emilinha Borba, Marlene, todos visitavam lá em cima.

E- O senhor lembra se isso trouxe melhorias para a comunidade?

M-Melhor do que hoje.


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E-Pode apontar os impactos das movimentações em torno do Império Serrano para


a comunidade?

M-Para a comunidade... Acharam que o Império também não podia ficar lá no morro,
pois quando chovia era aquela dificuldade, e o Império já estava bem grandinho para
ficar lá em cima; era ruim para os artistas freqüentarem. O Império já esteve aqui do
lado do distrito, onde é o Mercadão, esteve em Vaz Lobo, em um terreno lá, para
descer do morro, aí depois é que fizeram aqui.

E- O senhor está lembrando o episódio da mudança da sede do morro para o


asfalto. Pode contar como aconteceu?

M- Porque já não estava dando o espaço, o espaço já era pequeno pela grandeza
da escola. Houve umas coisinhas:tinha um terreno lá em baixo, até venderam título
patrimonial de uma sede, mas não se fez sede nenhuma lá. tem até gente com título
patrimonial. É uma coisa que não existe, foram ficando pedindo emprestado aqui,
emprestado ali, até que fizeram isso aqui, o trem entrou aqui, nos anos 1980,
arrebentou um pouco, descarrilou ali, aí depois fizeram aqui. Mas estivemos em Vaz
Lobo, no Tênis Clube Madureira, naquela época o falecido Silas ainda era o cara,
mas depois eu falo dos compositores da escola, mas tem outra moça ali que a
senhora pode conversar...

E- O senhor ficou devendo falar sobre o papel da Velha-Guarda.

M- Ah, sim, vou dar um pincelada: na Velha Guarda são quase todos oriundos da
escola; uns outros que vieram de fora, os que hoje estão com uns cinquenta e
poucos anos e querem entrar para Velha-Guarda: veem o movimento como é que é,
e pedem para entrar. Então a Velha-Guarda são aqueles que desfilaram, puxaram
corda, igual a mim, porque hoje eu sou presidente, mas já puxei corda e hoje eu falo
isso com maior orgulho; sou presidente da escola de samba Império Serrano, mas
puxei corda com treze anos. Eu tenho muita história aqui dentro, até apanhei,
lembra? Saí na Velha-Guarda escondido de mãe, aliás saí na escola escondido de
mãe, e depois saí na Velha-Guarda escondido da mulher, mas aí depois ela
acostumou. Então a Velha-Guarda são aqueles que fizeram alguma coisa pela
escola em desfile, gastaram o dinheirinho das horas extras, e foram envelhecendo,
até que fundaram a ala dos Cabelos Brancos. Esse moço que passou de blusão por
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aqui também já foi presidente da ala dos Cabelos Brancos, o Sr. Ulisses; ele fundou
os Cabelos Brancos aqui na escola, estou falando do Império em 1957, porque em
1964 veio outra dissidência dentro da escola, na ala dos Cabelos Brancos, e dessa
ala fundaram a Velha- Guarda, em1964. Sr. Zacarias que foi fundador da escola, Sr.
Mocorongo, Sr. João Fabrício (um coroa que andava numa linha que Deus me
livre!), e mais umas quatro pessoas fundaram a Velha-Guarda em 1964. De 1990
pra cá começou a ter essas reuniões na casa de fulano, aí quando chegava o final
de ano, “ ah, vamos lá para casa, vamos fazer um feijão, vamos fazer um peixe”,
então nós íamos à casa de uma pessoa, na de um moço aqui em Vaz Lobo, na rua
Alice de Freitas, na casa de Sr. Silvio, eu me lembro do apelido, então íamos na
casa do Sr. Silvio e dali para outra reunião de fulano e sicrano, e fundaram a
associação para o encontro das Velhas-Guardas. Assim, quando é aniversário de
um cara e fulano vai dar uma comida, vamos até a casa dele, mas daí a casa ficou
pequena e começaram a dar (as festas) em clubes: alugavam clubes para o
aniversário do cara, aí não teve mais esse negócio de aniversário; cada Velha-
Guarda passou a dar um festinha para arrumar um dinheirinho; aí a Velha-Guarda
do Império veio nesta crescente, veio entrando gente, chegamos a ter noventa e
cinco pessoas só na Velha-Guarda, mas agora foram morrendo todos, e aqui é
lazer, não é só o desfile; a gente vem, damos esse piquenique, damos essa festa,
marcamos encontros, fazemos excursão, alugamos um ou dois ônibus, vamos beber
fora e quando a escola está nesta situação, ainda ajudamos, eu não vou dizer
como... a Velha-Guarda nossa ao invés de receber da escola, a gente ajuda a
escola!
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ANEXO B – Histórico da fundação.

Acervo Liesa, Império Serrano


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