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Certamente é mais difícil caracterizar com esse pano de fundo a complexa contribuição de

Kant. Isso decorre do fato de parecer — pelo menos à primeira vista — mais árduo especificar qual o
interesse teórico central de Kant ou, em outros termos, a qual pergunta relevante a argumentação
kantiana sobre a justiça pretende responder. Em primeiro lugar, Kant parece fazer uma tentativa mais
consciente de construção categorial do sentido de justiça e da prioridade da razão prática em seu
interior. Em segundo, embora estejamos apenas nos referindo aos dois trechos antologiados, é fácil
ver que a reconstrução de Kant é caracterizada se não por uma ruptura, por uma oscilação muito
intensa entre uma perspectiva de teoria moral e outra mais explicitamente de teoria jurídica. Sendo
assim, na Fundamentação da metafísica dos costumes, de 1785, as questões de justiça parecem
ser tratadas de modo diferente em relação ao que ocorre na Metafísica dos costumes, de cerca de
doze anos mais tarde.
Sabemos que a razão prática de Kant é caracterizada em ambos os casos pela distinção entre
um aspecto formal, baseado, por sua vez, em características como universalidade e coerência, e um
aspecto material, que requer, no sentido específico da perspectiva kantiana, uma espécie de
realização progressiva da razão na história. Pode-se sustentar que o aspecto formal é privilegiado
em relação àquele material, e o modo em que a metafísica da moral é apresentada na
Fundamentação reflete diretamente essa distinção. O primado do imperativo categórico – que
desempenha aqui um papel central – implica o formalismo da lei moral, que, por sua vez, se realiza
na célebre prova negativa, que impõe o controle de qualquer máxima da ação à luz de um critério
de universalização.

Nos textos posteriores de Kant, a começar pela Metafísica, o imperativo categórico parece não
desempenhar mais um papel igualmente central. Pode-se considerar que o eventual
redimensionamento seja devido, ao menos em parte, à separação dos deveres que passam a
depender de duas fontes distintas, a virtude e a justiça. Mas o ponto que parece central é o modo
em que são concebidos os deveres de justiça. Eles funcionam como limites ou vínculos externos à
ação dos indivíduos, para evitar colisões entre suas liberdades. É por isso que, na teoria da justiça
de Kant, formulada na Metafísica, o respeito por essas obrigações assume uma natureza
essencialmente jurídica e concerne ao foro externo, em que não são relevantes as motivações
propriamente morais dos agentes. Considere-se, no entanto, que justamente em torno destas
últimas girava o argumento da Fundamentação, com o primado do imperativo categórico que
mencionamos. Desse modo, poderíamos sustentar que Kant formula duas versões da justiça,
independentes entre si, ou, se preferirmos forçar o texto, à primeira vista em contradi ção
recíproca.

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Houve inúmeras tentativas de unificar esses dois pontos de vista kantianos sobre a justiça. Por
um lado, pode-se fazer com que a possibilidade de comportar-se coerentemente com os ditames do
imperativo categórico dependa da presença de uma proteção ou tutela jurídica, como aquela dos
deveres de justiça da Metafísica. Por outro, pode-se buscar uma derivação dos deveres de justiça
do imperativo categórico, graças à prioridade da liberdade civil e política. Não podemos aqui
tratar desses complicados problemas interpretativos: o que nos interessa afirmar é que Kant nos
sugere ao menos dois tipos de questões para uma teoria da justiça. Uma teoria kantiana deve
concentrar-se no sistema das instituições (coerente com os deveres de justiça) e, de modo distinto
e mais ou menos unificado, deve visar à justificação moral. Sendo assim, ela se uniu à ideia de
autonomia (coerente com a tese sobre o imperativo categórico).

Em todo caso, o que ainda é importante para a nossa perspectiva é o fato de que, com a obra
de Kant, o problema da justificação adquire uma fisionomia completa e distinta, culminando por
constituir ao longo do tempo a base para uma alternativa teórica padrão à posição de Hume.

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IMPERATIVO (in. Imperative, fr. Impératif, aImperativo Imperatiu, it. Imperativo). Termo criado
por Kant, talvez por analogia com o termo bíblico "mandamento", para indicar a fórmula que expressa
uma norma da razão. Kant diz: "A representação de um princípio objetivo, porquanto coage a vontade,
denomina-se comando da razão, e a fórmula do comando denomina-se IMPERATIVO" (Grundlegung
zur Met. der Sitten, II). Para o homem, norma da razão é uma ordem, pois a vontade humana não é a
faculdade de escolher apenas o que a razão reconhece como praticamente necessário, ou seja, como
bom. Se assim fosse, a norma da razão não teria caráter coativo e não seria uma ordem. Isso acontece
com os seres dotados de vontade santa, de uma vontade que está necessariamente de acordo com a
razão e que só pode escolher o que é racional. Mas, como o homem pode escolher também segundo a
inclinação sensível, a lei da razão assume para ele a forma de ordem e por isso sua expressão é um
IMPERATIVO (Crít. R. Prática, I, cap. III). Portanto, a palavra imperativo não passa de outro nome
para a palavra dever (v.). Kant distinguiu os imperativos em hipotéticos e categóricos. O imperativo
[1] hipotético ordena uma ação que é boa relativamente a um objetivo [1.1] possível ou [1.2] real. No
primeiro caso, ele é um princípio [1.1] problematicamente prático; no segundo caso, é um princípio
[1.2] assertivamente prático. O imperativo [2] categórico ordena uma ação que é boa em si mesma,
por si mesma objetivamente necessária, sendo, portanto um princípio [2] apoditicamente prático. Os
imperativos problematicamente práticos são os de [1.1] habilidade (p. ex., as prescrições de um
médico). Os imperativos assertivamente práticos são os da [12] prudência: seu objetivo é a felicidade.
Os imperativos categóricos são os da [3] moralidade. Os primeiros poderiam denominar-se
imperativos [1.1] técnicos ou regras, os segundos, imperativos [1.2] pragmáticos ou conselhos, os
terceiros são imperativos [3] morais ou leis da moralidade (Grundlegung, cit., II). Essas observações
de Kant foram sobejamente aceitas na filosofia moderna e contemporânea. Isto não quer dizer que a
ética kantiana do dever também tenha sido tão aceita, sobretudo na forma proposta por Kant (v.
ÉTICA). O problema de poder ou não considerar as normas morais como imperativos é fundamental e
muitas vezes teve resposta negativa. Toda a tradição utilitarista constitui um exemplo de semelhante
solução negativa. A ética de Bergson é outro exemplo. Conceber a norma moral como imperativo (ou
dever) significa julgar, como Kant, que ela seja um "fato da razão" um sic volo sic íubeo (Crít. R.
Pratica, cap. I, § 7, Escol.): coisa que nem todos se mostram dispostos a admitir.
A partir da obra de OGDEN e RICHARDS, The Meaning ofMeaning (1923), o IMPERATIVO,
sobretudo o IMPERATIVO moral, foi frequentemente considerado uma "proposição emotiva", ou seja,
destinada a produzir ação, mas desprovida de significado cognoscitivo. Essa teoria, cuja melhor forma
se encontra em Ayer (Language Truth and Logic, 2- ed., 1948) e Stevenson (Ethics and Language,
1944), após breve sucesso deixou de ter defensores (STROLL, The Emotive Theory of Ethics,
Berkeley, 1954).

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ÉTICA. [...] Pelo fato de a concepção moral de Kant corresponder às características fundamentais da
doutrina do móvel, está claro que deve ser inserida nessa tradição. Em primeiro lugar, Kant julga
que "o conceito do bem e do mal não deve ser determinado antes da lei moral (cujo fundamento
aparentemente deveria ser), mas depois dela e através dela" (Crít. R. Prática, I, 1, 3). Isto quer dizer
que Kant compartilha a concepção (2) do bem, que corresponde à ética do móvel. Em segundo lugar,
é justamente com base nos móveis (Bestimmungsgründe) que Kant classifica as diferentes concepções
fundamentais do princípio da moralidade (Ibid., I, 1, § 8, nota 2). Em terceiro lugar, Kant considera a
lei moral como um fato (Factum), porque "não pode ser deduzida de dados precedentes da razão,
como p. ex. da consciência da liberdade", mas se impõe por si mesma como um sic volo, sic iubeo
(Ibid., § 7). Desse modo, Kant transferiu o móvel da conduta do "sentimento" para a "razão",
utilizando o outro lado do dilema proposto pelos moralistas ingleses. Com isso, quis garantir a
categoricidade da norma moral, ou seja, o caráter absoluto de comando graças ao qual ela se
distingue dos imperativos hipotéticos de técnicas e prudência. Em vista dessa exigência, a ética
kantiana sem dúvida compartilha com a concepção (1) da ética a preocupação básica de ancorar a
norma de conduta na substância racional do homem. Mas, deixando de lado essa preocupação
absolutista (que deve ser explicada pelo "rigorismo" kantiano), a ética de Kant tem grande afinidade
com a ética dos moralistas ingleses do séc. XVIII (pelos quais, aliás, nas obras iniciais Kant não
escondeu sua simpatia), não só na formulação fundamental como também nos resultados. Se o
sentimento, ao qual recorriam os moralistas ingleses, era a tendência à felicidade do próximo, a
razão, à qual Kant recorre, é a exigência de agir segundo princípios que os outros podem adotar.
Conquanto essa fórmula possa parecer mais rigorosa e mais abstrata que as empregadas pelos
filósofos ingleses, seu significado é o mesmo. O que ambas pretendem sugerir como princípio ou
móvel da conduta é o reconhecimento da existência de outros homens (ou, como queria Kant, de
outros seres racionais") e a exigência de comportar-se em face deles com base nesse reconhecimento.
O imperativo kantiano de tratar a humanidade, tanto na primeira pessoa quanto na pessoa do
próximo, sempre como fim e nunca como meio, não passa de outra expressão dessa mesma
exigência, que os moralistas ingleses chamavam de "sentido moral" ou "sentido de humanidade".
Infelizmente, a evolução sofrida pela filosofia moral de Kant a partir de Fichte teve como ponto de
partida mais frequente o seu arsenal dogmático e absolutista do que suas colocações fundamentais e a
substância de seus ensinamentos morais. Tanto esses ensinamentos quanto a postura de que dependem
estão de acordo com a ética setecentista, com a diretriz moral do iluminismo, mas com esta não se
coaduna a contraposição estabelecida por Kant entre o mundo moral e o mundo natural e, portanto,
entre a ética e a ciência da natureza. Essa oposição ingressa na doutrina de Kant a partir do arsenal
absolutista de sua ética, ou seja, a partir do aspecto que a transformou em menina dos olhos dos
metafísicos moralistas do séc. XIX, em pretexto para inumeráveis (e inoperantes) perquirições a
respeito do caráter absoluto do dever, bem como do acesso que ele permitiria a uma Realidade
superior e in-condicionada (a do "númeno"), sem nenhuma relação com a realidade fenomênica e
condicionada da natureza. Ainda hoje, muitas vezes amigos e adversários da ética de Kant veem nela
exclusivamente esse aspecto; os primeiros para exaltá-la como ancoradouro seguro de todas as certezas
referentes à vida moral, os últimos para condená-la como baluarte das ilusões metafísicas no campo
moral. Mas uma consideração dessa ética que se subtraia a tais alternativas e a veja no quadro da ética
setecentista, cuja postura compartilhou, ao mesmo tempo em que pretendeu fundamentá-la com
necessidade rigorosa, talvez permita apreciá-la mais adequadamente. Pode, efetivamente, abrir
caminho para a utilização das análises kantianas com vistas à formulação da ética como técnica da
conduta, independente de pressupostos metafísicos.

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CRITICISMO (in. Criticism; fr. Criticisme, ai. Kritizismus; it. Criticismo). Doutrina de Kant, nos
pontos básicos pelos quais agiu na filosofia moderna e contemporânea, e que podem ser assim
resumidos:
1- Formulação crítica (v.) do problema filosófico e, portanto, condenação da metafísica como
esfera de problemas que estão além das possibilidades da razão humana.

2- Determinação da tarefa da filosofia como reflexão sobre a ciência e, em geral, sobre as


atividades humanas, a fim de determinar as condições que garantem (e limitam) a validade da
ciência e, em geral, das atividades humanas.

3- Distinção fundamental, no domínio do conhecimento, entre os problemas relativos à origem e


ao desenvolvimento do conhecimento no homem e o problema da validade do próprio
conhecimento, isto é, distinção entre o domínio da psicologia (Kant disse "fisiologia", Crít. R.
Pura, § 10) e o domínio lógico-transcendental ou lógico-objetivo, onde tem lugar a questão de
iure da validade do conhecimento, insolúvel no terreno de facto. Essa distinção equivale à
descoberta da dimensão lógico-objetiva do conhecimento que deveria inspirar a filosofia dos
valores, a Escola de Marburgo, o logicismo de Frege e, através de Bolzano, a fenomenologia de
Husserl. Em geral, pode-se dizer que a polêmica da matemática e da lógica moderna contra o
psicologismo (v.) tem origem histórica no C. kantiano;

4- Conceito de moralidade fundada no imperativo categórico e conceito de imperativo categórico


como forma da razão em seu uso prático.

Esses pontos constituem as características comuns de todas as formas de C. e de neo-criticismo. Não


constituem, porém, traços característicos ou dominantes do C. os fundamentos da doutrina kantiana de
arte, teleologia e religião; sobre eles, v. verbetes correspondentes.

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