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A INDUSTRIA DE REFINACAO DE ACUCAR NO PORTO UM PERCURSO AMARGO E DOCE * JORGE FERNANDES ALVES (Faculdade de Letras da U.do Porto) © Porto, pela sua profunda ligagdo ao Brasil, foi ao longo do século XVIII um importante entreposto do aguicar brasileiro, aqui se descarregando muitas barticas de melago que ajudaram a criar 0 mercado interno e externo neste sector & a responder & procura entretanto suscitada, Dada a proliferagio da cana-sacarina noutras colénias, o agticar brasileiro perdeu rapidamente a importancia mundial que momentaneamente desempenhara, mas 0 Brasil foi durante dois séculos 0 principal abastecedor do mereado portugués. Nesses contactos coloniais radica a indtistria de refinagdo do Porto, ja que esta actividade se circunscreveu na metrdpole praticamente aos dois portos onde podiam ser desalfandegad: mercadorias desde os tempos pombalinos — Lisboa e Porto, uma concentragao geogritica derivada dos condicionalismos de transporte. as As refinarias do Porto «Pequena indtistria», assim se cl lassificava a refinagdo de agucar no Porto nos documentos oficiais do século passado, quando se referiam aos 22 pequenos estabelecimentos existentes em 1881. ou aos 23 inventariados para 1890. Esta- belecimentos de refinaria que na globalidade nao atingiam 100 trabalhadores (exactumente 93, em 1890) e estavam apenas equipados com caldeiras € fornalhas, pois s6 um dispunha desse equipamento elementar que cram os filtres para a calda. Algumas refinarias trabalhavam mesmo «a feitio», ou seja, refina- vam 0 agticar de outros, incapazes total ou parcialmente de organizar uma pro- dugao propria. Este retrato breve mostra a incapacidade de renovagao de um sector de actividade que remontava aos tempos coloniais, com perfodos de importancia tal que levaram alguns historiadores, como Liicio de Azevedo, a estabelecer um ciclo do acticar na cronologia da histéria de Portugal. Mas, nos finais do século passado, os refinadores de acticar pareciam constituir um sector residual, inca- pazes, por exemplo, de articularem uma voz reivindicativa no mar de represen- tacdes proteccionistas que se levantou a partir da década de 90. E no entanto havia razoes para esclarecer alguns procedimentos no que respeitava a procedimentos oficiais. As importagoes de agticar nao refinado do Brasil tinham decafdo drasticamente, passando as importagdes a derivarem de portos ingleses ¢ de Hamburgo, dado o melhor prego face ao mercado brasileiro. E, sobretudo de Hamburgo, chegavam diversas qualidades do produto, entre clas o «agticar mofdo», na realidade agdcar refinado por processos diversos dos utilizados em Portugal e que por isso passava nas Alfandegas por agdicar nao refinado, concorrendo directamente e em melhores condigdes de preco com o 395 JORGE FERNANDES ALVES dito refinado em Portugal. Pedia-se, entdo, debilmente para que se cumprisse a lei pautal, definindo-se claramente 0 que era o agticar refinado e o nao refirado, pois desse esclarecimento derivaria a possibilidade de voltar a importar agticar brasileiro mais rico em forga sacurina, mas mais caro. Um problema de classifi assim 0 referiam os inquiridores de 1881, conhecidos pela sua forte vocagio proteccionista, mas aqui incapazes de sugerir qualquer elevagio de direitos para um género que se tornara de primeira necessidade, face a wma inddstria em que «o salério 6 minimo, os bracos poucos, os processos primi. livos. a condicao do trabalhador quase infima, semelhante a um bruto de carga», pois a «utilidade social da industria nao compensaria a elevagao do prego de Gonsumo!, Uma situagio amarga para os produtores de um género que pela sua docura se tornara um elemento integrante da dieta ocidental, Por virtude da lei de 21.10.1863, que inclui a refinagao do acticar na 2 classe da tabela das induistrias insalubres, perigosas ou incémodas. 0 funcionamento das refinarias e a construgao de novas instalacdes ou alteragdes de equipamento, bem como 0 reinicio de laboracao de unidades entretanto paralisadas constituem Situagdes que so objecto de processo administrativo, que implica requerimento € indicagoes téenicas, aviso ptiblico, perfodo de reclamagdes ¢ vistorias do dele. gado de satide como condigdes prévias & concessao de alvara pelo governo civil Daqui decorre a existéncia de um niicleo documental que cobre o periado de 1865-1915 © nos permite observar de perto 89 processos relativos a refinagdes de agticar, alguns dos quais vieram a ser indeferidos. Na linha das representagées fornecidas pelo inquérito de 1881, a ideia geral retirada da Jeitura dos processos é a de um profundo arcaismo numa indtistria ligada a alimentagdo ¢, portanto, com Gbvias repercussdes sobre a satide publica. As caracteristicas domésticas imperavam, sendo minimo o recrutamento de pessoal exterior, pois as maiores refinarias ndo ocupavam mais de 9 trabalhadores. Os proprietarios eram fundamentalmente negociantes com loja aberta ¢ que decidiam, aqui como noutros sectores, apostar em fabrico proprio para abastecer o seu prdprio estabelecimento comercial, produzindo em Pequena escala, com um investimento minimo. Alguns emergiam do nucleo de Operdrios das proprias refinarias, sendo de notar que havia varios galegos Proprietarios de refinaria As instalagdes eram, de um modo geral, constituidas por anexos nas traseiras da moradia do proprietario, lojas térreas ou caves, ou barracdes nos Fespectivos quintais, frequentemente com dormitérios anexos para os operarios, Bois o horario habitual era de 16 horas por dia no vero. A maioria das refinariag situavam-se no Bairro Oriental do Porto, ou seja, na zona histérica, na malha urbana densa ¢ antiga —Viela da Neta, rua do Bonjardim, Corpo da Guarda, Biquinha, Largo do Aljube, ruas do Sout, de D. Pedro, Laranjal, Congostas, Liceiras, Escura, Almada, Loureiro, Caldeireiros, Mouzinho da Silveira. Sé nos finais do século se alarga a geografia das refinagdes, surgindo algumas em S. Dinis, Campo Ategre, Cedofeita, em Gaia. A maioria nao sao instalagdes de raiz, surgem contiguas a casas de habitagio, constituindy por isso um perigo potencial por incéncio ou insalubridade, dados os maus cheiros e a escorténcia de esgolos para os canos ptiblicos. Apesar disso cram geralmente licenciadas ou Porque justificavam existéncia anterior ou porque ficavam sujeitas a um conjunto restrito de obrigagdes sunitiirias: clevacao da chaminé acima das casas de habi- lagio, separago do combustivel das zonas de combustio, lajeamento do solo, 396 4 INDUSTRIA DE REFINACAO DE AC “AR NO PORTO algumas recomendagdes sobre a limpeza das instalagdes ¢ vasilhame e do uso de colheres de pau para mexer as misturas, como indicagdes gerais; pontualmente a utilizagao da agua da companhia por conhecimento de inquinacio das aguas de poco; para os finais do século a interdigdo aqui ¢ ali de sangue de vacu no processo de refina ublinhe-se que as refinarias eram apenas considerada cémodas», pelo que podiam subsistir ou criarem-se no interior de povoagoes, salvaguardadas algumas condigoes de instalagao (evitar fumos e cheiros), apesar dos frequentes protestos dos moradores. No que se refere & higiene, temos de esperar por 1912 para encontrar exigéncias da Delegagao de Satide no entido da proibicdo de conservar ao servigo empregados doentes ou suspcitos de doenga, bem como essa recomendacao elementar de que 0s operiirios deviam ter a cabeca e 0 tronco convenientemente resguardados enquanto estivessem nas operacoes de refinagaio, bem como jo de filtros para a égua, O processo de fabrico generalizado era elementar: em caldeiras colocadas nas fornalhas. normalmente fornecidas a carvao de pedra, fervia-se agticar mascavado em Agua, com claras de ovo (ou sangue de vaca), carvao animal, & Acido sulfirico em pequena quantidade, cuja calda assim obtida era depois filirada em panos de linho para novos vasos, que ferviam de novo até o produto quebrar por evaporagio. Era entio retirado, mexido e batido até se desfazer em p6, sendo depois peneirado, No que respeita & utilizagao das novas formas de energia, sublinhe-se que s6 em 1872 surgia um pedido por parte da Companhia Unido Comercial para estabelecimento de uma fabrica na travessa do Bolhdo com equipamento a vapor — uma méquina de 20 cavalos. Foi impugnado pelos proprictirios de fabricas cireundantes (de estamparia, de fundigao, de aguardente, de moagem de ssos). com o argumento da proximidade da rua de Santa Catarina, impugnagao nilo aceite pois encontrava-se dentro dos principios de licenciamento, devendo apenas obedecer aos requisites suplementares inerentes a utilizagao do vapor (instruges de 21.3.1853). Esta fabrica ainda surge no ulmanaque de 1875, mas om 1881 j4 Joao Ribeiro Pereira, o principal interessado. apresenta a refinagdo considerada a mais importante da Cidade na rua Mouzinho da Silveira. Em 1880 € solicitada autorizacao para outra fibrica com maquina a vapor de 10 cavalos a instalar em Canidelo, V. N. de Gaia, por Penny & Routh, negociantes ingleses da praca do Porto. Em 1891, surge o pedido de Monteiro, Silva & C.*, uma’ sociedade em comandita, para uma refinaria com o «sistema portugues apli- cando-se aparelhos a vapor», a instalar na rua da Vitéria: © projecto apresen- tado concebia as operagoes tradicionais (apurar, cour, filtrar, concentrar, cristalizar © pencirar), j& com algum automatismo através de canalizagdes entre varios depésitos e a utilizagao de um batedor cm agitagio continua, climinando assim varias operacdes manuais ¢ de trabalho bragal, embora a instulagdo se fizesse no pavimento térreo de um armazém. Em 1904 ¢ 1905, surgem mais trés pedidos de instalagSes a vapor (A. Torcato Almeida Brando, em Cedofeita, utilizando para o efeito o equipamente ja instalado para uma destilaria; M. Silva Cruz em Dinis, Pereira & Duarte no Campo Alegre. anexa a uma fébrica de capsulas) Em 1908, Lemos Morais & C.* requerem na mesma linha para o cais de Santo Anténio do Vale da Piedade, em V. N. de Gaia. Mais dindmicas continuam, no entanto, a ser as refinarias que utilizavam exclusivamente a forga bragal, que vio surgindo, a mostrar que os procedimentos mecanizados nao tinham aqui lugar relevante, 397 JORGE FERNANDES ALVES Numa actividade subsididria a montante da refinacao de acticar, encontram-se 0S produtores de carvao animal, derivado da queima e pulverizactio dos ossos do gado abatido nos matadouros da cidade, cujos operdtios eram conhecidos por Poeiras. «Poeiras e refinadores sio em geral galegos, porque portugueses hio aturariam>. diz-nos o Inquérito Industrial de 1881, em referéncia a um «trabalho duro, violento € constante, deixando apenas intervalos indispensaveis para comer e para dormir» Algumas informagdes mais sistemiticas sobre a condigSo operiria nas Tefinagoes de agticar podem obter-se através da «Inquirigao pelas associagdes de classes sobre a situagdo do operariado ~ Apuramento das respostas 20 questio. nario da Reparticiio do Trabalho», publicado em 1910, ao qual respondem as di sociagdes de refinadores — a de Lisboa e a do Porto?, Sublinhe-se, desde logo. a existéncia de duas categorias profissionais entre os refinaderes ~ o colherao. © «operario que nas bancas transforma o agticar que vem da fornalhs quida em po», ¢ 9 fornalheiro, «0 que a fornalha derrete o acucar em rama, Prepara as caldas, filtra-as, ete.», sendo que na altura, por tabela publicada em 1901. os primeiros auferiam 0 salatio de 750 réis e os segundos o de 950 rein mas o dia de trabalho ficava indexado produgio de 225 Kas, havendo contude industriais que elevavam essa produgdo a 300 e 325 Kgs sem contrapartidas salariais. Por 1910, a etise no sector parecia geral, alribuindo os operdrios alguma responsabilidade As novas refinarias mecinicas (duas em Lisboa. ¢ dune no Porto ~a do Ribeirinho ¢ a C.* Portuguesa de Refinagao), 20 grande consumo de agticur mascavado (nao refinado),..na mistura de agticar mofdo no refinado feita por industriais e merceciros, ¢ nos direitos diferenciais de 50% de que gozava a Companhia de Mocambique. Atribufa-se ao direito pautal entao vigente sobre as ramas o efeito de quadruplicar 0 prego do aguicar. apesar de reconhecido 0 acticar como género de primeira necessidade. Nessa altura hordrio normal era de dez horas em Lisboa e de doze no Porto, nao havendo, em geral, menores ou mulheres nas refinarias, existindo industriais que dispen- savam os operdrios por varios dius sem saldrio, logo que o agticar produzido nao livesse a safda prevista, Neste contexto, nao admira a existencia de conil \walidade, apesar da dimensao diminuta das refinarias, com alguma agitaco operiria, Protestava-se contra 0 excesso de trabalho, contra a adopgiio de moinhos Wituradores, contra a adigo de agticar moido ao refinado e. evidentemente, reivindicava-se aumento de saldrio. CoalisGes ou greves veriticaram_se em 1902, 1903, 1905. em 1907 em algumas refinarias, ocorrendo uma paralisagto de 10 dias em 1909, estendida a7 fabric As dificuldades de modernizacao A modernizacao mecdnica, que em Portugal sé aparece como uma atitude sistemitica, ainda que ligeira, por parte dos empresdrios nos inicios do século XX Para a maioria dos sectores de actividade, teve, pois, dificuldades inusitadas no campo da refinagdo do agticar. Quer por que era atacada pelos operdrios, quer pelos préprios proprietérios de refinarias manuais, que tinham na pulverizacao na exploracao do operariado 0 campo adequado para sobreviverem. Numa curiosa carta ao jornal O Sécuio, publicada em 16.1.1913, 0 presidente da Associagdo de Refinadores de Agticar de Lisboa (Emidio de Oliveira) expde amargamente as dificuldades encontradas pelos esforcos dos que tentaram 398 A INDUSTRIA DE REFINACAO DE ACUCAR NO PORTO modernizar o sector ¢ predizia que a indtistria mecdnica no nosso Pais nao conseguiria aniquilar a indtistria manual: [..] @ primeira fabrica de refinagdo pelo sistema mecanico, que foi montada no Porto, os fabricantes manuais fizeram-lhe uma tal guerra que ao fim de trés anos apreceu incendiada, sem até hoje se saber a causa do sinistro. A principio as companhias de seguros ndo queriam pagar os prejuizos, mas como nao houvesse provas de gue 0 fogo fosse propasitadamente langado, as companhias pagaram ¢ a meia diizia de capitalistas salvou, pelo menos, metade dos seus capitaes, porque de contrario ndo receberiam nada, visto que a producao da faébrica estava reduzida 43 ou 4 dias por semana. A 2." fabrica foi montada em Lishoa, acabando com prejutzos incalculdveis. ‘A 3.4 foi também montada no Porto e ao fim de 3 anos suspendeu a sua taboragdo com mais de 50 contos de prejutzo, vindo mais tarde a ser aproveitada para acticar pilé, dando muito bom resultado por ser a tnica no género em Portugal. A 4." foi ainda fundada no Porto e denominava-se Companhia Portuguesa de Refinacao. Fez uma guerra de morte durante mais de 6 anos as fabricas manuais, mas acabou por ser vencida, pois durante esses seis anos nunca dew lucros remunera- dores aos seus accionistas. A maioria desses industriais aderiu a essa companhia para constituir 0 trust do agiicar, mas nem assim conseguiu derrotar as poucas fabricas manuais, ‘A 5.*foi também posta no Porto com ifttlo A Lutadora, mas apenas funcionow durante trés meses, abalando os seus proprie- térios para o Brasil, onde se estabeleceram com uma fabrica manual em que tiveram a desforra dos prejuizos que tinham sofrido no Porto. A 6." foi a Sociedade Portuguesa de Aguicares em Lisboa. A esta fébrica aderiram todos os industriais da industria manual & excepedo de trés dos mais pobres. Montaram o trust € no primeiro ano tiveram Iucros remuneradores por nao terem quem lhes fizesse concorréncia, mas as fabricas manuais comegaram a aparecer é esses lucros transformaram-se em prejuizos, estando os industriais ansiosos que acabe 0 contrato para reabrirem as suas fabricas, ndo se importando com os 200 conios que 1em sepuliados em Alcéntara, A 7.4 fébrica mecanica foi a Refinaria Colonial que ja chegou a paralisar a sua laboragao. O agicar refinade mecanicamente & 20% mais caro que 0 manual. Ora aqui tem, sr. redactor, os lucros que tém dado as refinarias mecdnicas. Agora, desejaria que alguém me dissesse quantos industriais com fabricas manuais quebraram em Lisboa nos tiltimos 20 anos, ou quanios deram cabo da sua fortuna, que eu cd estou para dizer aos leitores do Século quantos tém arranjado fortunas fabulosas neste periodo. 399 AORGE FERNANDES ALVES Nao é 86 produzindo muito agticar que se arranja fortuna: & preciso ver metodicamente as quebras que ele produz na ocasido em que se refina. E é neste ponto que a indiistria mecénica se tem perdido, O agicar quanto mais quebrar, mais forga sacarina perde. Para quein & esse prejufzo? E para o industrial e para quem 0 compra. Este pode ter a certeza de que 0 adquiriu 20% mais caro que o manual. Quanto a favoritismos é preciso ndo os admirir dentro do regimen republicano, quer a nacionais, quer a estrangeiros Também o que vale aos sindicateiros do agticar é 0 bénus de 50% nas 6000 toneladas do acticar de Mocambique, porque, de con. travio, hd muito tempo que teriam sido derrotados pela indtistria manual. Assim mesmo terdo que gastar mais de 20 mil contos para destruirem as 20 fabricas manuais do Porto ¢ Lisboa Alé enldo a legislagdo portuguesa neste dominio, tfpica de um Estado liberal, tinha-se limitado a arbitrar impostos alfandegatio @ suas restituigées Ros casos de reexportagiio, para nos inicios do século se mostrar claramente imtervencionista, O favorecimento dos acticares de Angola e Mocambique tinha sido levado & efeito por um decreto de 2.9.1901, assegurando-se um difereneial de 50% nos direitos pautais, até ao montante de 6 000 toneladas para cada col6nia. sendo ainda assegurada a isengdo de direitos na importacio de maquinas e instrumentos para o fabrico de agticar ¢ na importagdo de sacaria de origem nacional para Angola e Mogambique. Em 1903, faz-se uma protecea idéntica aos agticares dos Agores exportados para o Continente do Reino, alargando-se esse beneficio ao alcool extraido de produtos sacarinos. em especial da beterraba. Em 1914, foi prolongado 0 regime de protecgao dos agticares coloniais por mais 20 anos, alargando-se aos de Cabo Verde, este num total de 100 toneladas, Em 1919 (dec. de 2 de Maio), regulamenta-se a fabrica de agticar ¢ alcool na Madeira, desde que este ultimo fosse para uso exclusivo do tempero dos vinhos, rateando-se « quantidade necessaria de dlcool pelas varias fibricas de agucar (55 litros de alcool por cada pipa de 500 litros de vinho), passando a exportagao de agticar para o Continente a ser livre de impostos Por um periodo de 5 anos, entre outras prescrigdes minuciosas. Na mesma altura (dec, 10.5.1919), procura-se estimular a produgdio de beterraba sacarina, a exemplo do que acontecia no estrangeiro, pois paises como a Alemanha, a Austria, a Franca ¢ a Russia com longa tradigao. e¢ a Espanha e a Italia, com pritica recente, tinham-se libertado das pesadas importagées coloniais. Apresentava-se a beterraba como uma alternativa agricola a ter em conta, de cuja produgiio bruta se poderia extrair 10 a 14% de agticar. A sua tegrar-se em rotacao do afolhamento com o trigo, pratica esta que se dizia favorecer a produtividade do tigo (da colheita média de 8 sementes talvez se pudesse passar para as 12 a 15 sementes, segundo o exemplo de outros pafses europeus), além da reserva forraginosa que a beterraba libertava na sua utilizacdo industrial, favorivel & pecuaria. Na pretensdo de se estimular a producio ¢ fabricagdo da beterraba criaram-se alguns incentivos fiscais e estabeleceram.se circunscrigdes regionais, segundo as quais se faziam as concessdes para a criagdo de fibricas, Medidus utépicas, sem qualquer aplicagdo prittica, renovada Nos anos 50 deste século, para s6 nos tempos actuais se coneretizar. 400 A INDUSTRIA DE RE. NACAO DE ACUCAR NO PORTO. Entretanto no final do ano de 1919 (dee. 13 de Novembro), ¢ na ressaca da guerra mundial, jé se reconhecia a incapacidade de abastecimento nacional de agiear, agravada pela insuficiéncia dos transportes maritimes, e se autorizava © governo a importar directamente agiicar para regularizar 0 mereado. Pouco depois estabelecia-se um tipo tinico de acticar nacional (o amarelo-claro. fabricado com ramas das colénias) € tabelava-se-Ihe 0 prego. como forma de criar uma qualidade mais acessfvel ao grande publico. Mas 0 acticar escasseava e 0 prego dispa crise de subsisténcias se manifesta ubiqua. A legislagao multiplica-se. anula-se, contradiz-se. renova-se sem resultados. palp: . Estabelecem-se contingentes de exportacdo ¢ intimam-se os produtores das coldnias africanas a enviarem para a Metropole determinadas quantidades de agticar em ramas a pregos tabelados, 86 depois poderiam enviar agdcar branco bastante mais curo (0 umarelo devia correr a $40/Kg ¢ 0 branco a 1$18/Kg). obrigando-se deste modo os coloniais a minorar a grave crise de subsisténcias, mas obtendo, com a fixagao dos pre contingentagoes. o desanimo ultramarino. Da contingentagao ¢ da fixagao de pregos 2 liberalizacdo total vai um passo, com 0 Governo a reconhecer que as medidas recentes nada resolviam, incapaz de apanhar © rumo nesta questo, na sucessiva legislacao de 1920 e 1921 Nio admira, assim, que a questao do agticar seja apresentada pela Ditadura do 28 de Maio como uma das provas do nosso «desnorteamento administrativor, pois as importacdes do estrangeiro rondariam as 500.000 libras anuais com a consequente saida de ouro para o exterior. Procura-se entio que «0 mercado interno se abastega tanto quanto possivel. com agticar colonial», endo em vista o Governo «nao s6 a melhoria econémica que dat resultara para o continente, como as vantagens indiscutfveis que derivam dum mais intenso intercimbio mereantil com as coldnias ¢ a sua benética influéncia no sancamento monetirio dessas mesmas colénias», diz um decreto de 8.9.1927 ao estabelecer novas regras ¢ direitos. em cuja lista ministerial responsdvel ainda nao constava Salazar, mas onde ja se prenunciava o futuro «pacto colonial». E Salazar nao desdenhara pouco depois de impor uma taxa de salvagdo nacional de $03 Kg no agticar de qualquer tipo (paralela a de $02 por litro na gasolina). As quesides do agticar, do alcool ¢ da aguardente passam entio a ser extremamente complexas, em razao dos novos regimes adoptados. particularmente para os Agores ¢ Madeira, minuciosamente intervencionistas, pelo que niio poderio ser objecto de explanagao numa comu- io com tempo limitado como € esta, embora o feixe de leis que regularam a situagdo na Madeira seja bastante elucidativo da metodologia estadonovista na 1 de precos. As expectativas das primeira medidas ditatoriais tiveram resultados quase nulos face & ebuligdo da crise mundial: a legislagao de 1930 fala de uma «uma indtistria ameacada de completa ruina», tanto para os Agores como para as colénias. © proteccionismo com contingentes, rateios © bénus, acompanhada de adicionais alfandegarios, foi o sistema utilizado para equilibrar gradualmente a situagdo da produgao de agucar nas [has e Colénias, assegurando-the o mercado da Metrépole. Em 1936, a produgao de agiicar colonial ja excedia o consumo metropolitano. Ea intervengiio administrativa para fixar tectos de produgao e outras regras limitativas ficou consagrada internacionalmente com 0 «Acordo internacional sobre a regulamentacao da producao ¢ distribuigio do agticar», assinado em Londres pelos paises produtores (1937). No periodo subsequente & 2. Guerra volta-se a importar acticar do estrangeiro, pois a produgio ultramarina , por esta altura em que a bse intervengio econdmica, face A retraccao do consume e baix 26 401 é FERNANDES ALVES J4 ndo satisfuzia o acréscimo de consumo (cobria apenas 78%), dados os efeitos da interveneao, que estabelecendo contingentes © precos, ndo permitiram o investimento ¢ os lucros esperados nas empresas coloniais de acuicar, muitas das quais se viravam plantacées mais rentéveis. A situacdo voltou a norma- ligarse no decorrer dos anos 50, mediante a fixagao de novos pregos e reforcos a0 incentivo de produgio, mas nunca mais se atingiu a plena autosuficiéncia, A ligagiio as coldnias foi, entretanto, determinante para o crescimento das refinarias mecanizadas, bastando dizer que antes de 1914 as ramas vinham quase na totalidade do estrangeiro, passando depois as coldnias a conquistar o mercado metropolitano e, no caso de Mogambique. a exportar mais de metade da sua exportagdio. Com a maior facilidade no acesso as importacdes, as {Hbricas mecanizadas vao conseguir finalmente sobreviver. As refinagdes manuais, que durante a Grande Guerra de 1914-18 tinham assegurado exclusivamente 0 mercado nortenho, comegaram depois a decair: tendo chegado ao ntimero de 28 unidades, eram em 1940 apenas doze unidades (11 no Porto ¢ | em Braga) ntretanto, inaugurara-se em 1.3.1924 a Refinaria Angola, que implementou logo instalacées modernas, a que seguiram depois a Relinaria de Matosinhos ¢ uma unidade da Sociedade de Importacao3 Condicionamento ¢ reorganizagio industrial Nos anos 50, 0 panorama na refinacdo do agticar era claramente dualista uo lado de algumas unidades fabris bem apetrechadas. subsistia a indistria manual ou uma industria mecanizada mas deficiente ¢ obsoleta, Em 1960 eram 14 as unidades no Porto, 7 em Lisboa, 1 em Braga e 1 em Aveiro, pelo que o dualismo se contiuava praticamente a manter também no dominio geoerdtico, Em muitos casos era o regime de condicionamento 0 obstiiculo a ultrapassar, medida em que inserir novas miquinas ou concentrar unidades. por exemplo, estava dependente de autorizagio governamental, A Associagio Industrial Portuense dizia-o claramente (1958 «Temos de reconhecer que 0 condicionalismo existente (que assegura ndo $6 0 fornecimento das ramas en funcdo da capacidade de refinagdo, como também a colocacao de produtos no mercado, independemente da sua qualidade) néo & de molde a incentivar reequipamento da indistria, que exige 0 emprego de capitais elevados. Por outro lado, 0 condicionatismo legal visa impedir 0 aumento da capacidade de producdo, ¢ qualquer renovacdo que se venha a operar implicaré uma alteragao dessa capacidade, No entanto, til modificagao é imprescindivel para obter wna melhoria na qualidade do acticar obtido». O sector nao fugiu, entretanto, ao movimento de reorganizacdo industrial, Jangado por Ferreira Dias através da lei 2005. Por portaria de 2.8.1947 foi criada uma comissio para o estudo da reorganizagio do sector. tendente a conferir viubilizacao ao sector ¢ terminar com a dita «industria de vao-de-escada» que Ferreira Dias tanto apostrofara. Mas uma década depois, a comissio continuava @ nfo apresentar resultados, sendo renovada a missio por nova portaria de 7.5.1960. Por essa via de inactividade, 0 governo mantinhu na expectativa 402 4 INDUSTRIA DE RE PINAGAO DE ACUCAR NO PORTO alguns empresdrios do sector, receosos de avangar com novos investimentos ou reorganizagOes: por todas as raz6es. a refinagio do agticar no Porto continuava a ser das que apresentava piores condigdes de trabalho, de localizacgao, dispersa pela cidade, e maiores dificuldades de apetrechamento. A via da concentraco fabril era entao a solugao apresentada como a Ginica forma de criar unidades fortes, concorrenciais, dotadas de capital necessdrio para fazer face aos gastos de investimentos com novos equipamentos e responder 20 aumento crescente de acticar para consumo, Em 1962 ha, finalmente, uma movimentagao clara de oito industriais do Porto que projectam fusionar-se numa s6 unidade de apetrechamento moderno, vindo a constituir uma empresa que acabou por agregar nove fabricas, dando origem 4 RAR - Refinarias de Agicar Reunidas. Para além das necessirias melhorias a nivel das condigdes sanitirias de fabrico e de trabalho, estavam em causa noves problemas, como os de criar condigdes econdmicas ¢ logisticas para armazenar durante largo tempo tanto as matérias-primas como o produto acabado e resolver novas exigéncias como as da embalagem de uso fami os de novos produtos, como o acticar verdadeiramente refinado ¢ nao o tradicional «areado» (impropriamente dito refinado), sendo que para os novos padrdes de fabrico era necessario instalar evaporadores para recristalizagio, apetrecho que nenhuma fabrica portuguesa entdo possuia. A adesio A EFTA, nos finais da déeada de 50, alertava-nos para estas insuficiéncias, passando 0 acticar portugues a gozar temporariamente de um estatuto especial face 4 Convengao de Estocolmo, como forma de ganhar tempo para a necessiria modernizacio®. Em 1966, face & inoperancia das comissdes de reorganiz: dio, 0 Minis- trio da Economia solicitou 0 estudo do sector a uma missao técnica da OCDE que forneceu pareceres extremamente pessimistas face & realidade, avangando-se entio para uma reorganizagio que, das 23 unidades entdo existentes, ficariam a funcionar apenas quatro, duas no Porto e duas em Lisboa, mas em novos moldes de produgio e distribuigdo, nomeadamente seguindo a normalizagao dos tipos de agticar a nivel internacional (agticar granulado). Isto implicava o desay mento dos acticares ditos correntes, 0 que para os novos padrdes de refinaca implicava um acréscimo de matéria-prima estimado em $% para produzir as. mesmus quantidades pelos processos anteriores (do tipo «transformacao sem, perdas», pois os melagos finais eram recuperados para areado amarelo), com necessdria repercussiio nos pregos Foram entdo concedidas autorizagoes de concentragéo que no espago de tre anos deveriam estar a funcionar nos novos moldes exigidos. No Porto, subsi tiram a velha Refinaria Angola e a nova RAR. A evolugao posterior fez com que, na realidade, a industria de refinagio viesse a constituir depois um duopdlio, com uma unidade no Norte —a RAR, e outra na zona de Lisboa — a Alcantara, A RAR A RAR ~- Refinarias de Aguicar Reunidas €, pois, 0 resultado do movi mento de concentragdo que em 1962 levou A fusado de nove unidades de refi- Jo do Porto, desenvolvido no contexto de reorganizago industrial acima referido, mas representando uma atitude de antecipagao 2 lei que revelou o reconhecimento por parte dos industriais portuenses da necessidade e virtualidades da fusio industrial. Foi constituida por eseritura de 20 de Margo de 1962 (D.G.. III série, de 3.4.1962) 403 JORGE FERNAND! ALVES como sociedade andnima, com um capital social de 9 746 contos, distributdo por accdes de mil escudos cada. O capital inicial foi subscrito da seguinte forma: Mauricio Macedo & C* Se 3 641 000800 Sociedade de Importagio, SARL. 0.2... 0.2.62... 2640 000800 Refinaria Portuense, Lda. 26 0O0$00 Cardoso, Rego, & C.", Lda 704 000800, Refinagiio de S$. Marcos, Lda. ....... 660 000800 Refinaria de S, Vitor, Lda. wee 495 000S00 Cardoso & Martins, Lda. . 330 000S00 Artur José Pinto, Lda. 22.2.0... ss 330 000800 Joao Macedo Silva See sows 11 G00S00 Dr. Francisco Macedo even 110 000$00 O primeiro ConseTho de Administracao, eleito por um tignio, foi constituide por Dr. Francisco Macedo, Joao Macedo Silva e Refinaria Portuense (através de Carlos Tomiis Cardoso). Entretanto, 0 capital foi elevado em 1966 para 44.300 contos Em 1967, a RAR inuagurava as suas novas instalagdes da nova zona entretanto criada pela Camara Municipal do Porto, a Via Rapida, com uma capacidade de produgao anual de 25 000 toneladas. Logo em 1967, as suas vendas atingiam as 22 000 toneladas, 0 que representava uma parcela de 11,78% do consumo nacional da altura. No ano seguinte, em 1968, Jodo Macedo Pinto adquiriu a maioria do capital da sociedade, e 0 crescimento da nova empresa enirou num ritmo acelerado: em 1972, a RAR jai vendia 25% do agdcar consumido no Pais. Quando em 1973 integra, por compra, a Refinaria Angola, estabelecida desde 1924 em Matosinhos, a sua quota de vendas no mereado nacional passou para os 45%. nivel que tém mantido até hoje. O efeito de con- centracao industrial aqui desenvolvido, permitindo garantir mercado e optimizar investimentos, possibilitou uma renovacdo completa na inddstiia do agticar: cresceu © ntimero de operdrios, cresceu a especializagio técnica, garantiu-se a higiene ¢ qualidade do produto, padronizou-se 0 fabrico ¢ a distribuico pelos modelos europeus. Entretanto, com a participagao activa em outros tipos de investimento desenvolveu-se 0 grupo RAR, o que levou & constituigao da RAR — Sociedade de Controle (holding), 8.A., a qual passou a deter, entre outras, as participagdes da RAR —Refinagdes de Agtcar Reunidas, $.A.9, Conclusiio Com este fio condutor ao longo da histéria da refinagdo do agticar no Porto, vemos como a arcaica ¢ obsoleta inddstria de refinaria, que parecia residual face & heranga colonial e incapaz de se reconverter, acabou por dar lugar a um importante grupo industrial, reconhecidamente um dos mais modernos, activos € humanizados grupos empresariais do Norte. 404 A INDUSTRIA DE REFINACAO DE AGUCAR NO PORTO NOTAS ® A presente comunicagiio Timi a-se a enunciar algumas linhas da evolugio das retinag’ no Porto € seu enguiadramento para upresentucdo no coldquio «A Inhistria Portuense em Persp Histirica», a realizar no F Bolsa, dias 4.¢ $ de Dezembro de 1997, mas integra projecto mais vasto de investigagiio em desenvolvimento. clive © nun 1, inquérito Industrial de 1887. Visita is Pabricas do Distrito Administrative do Posto. Lisboa, 1881, pp. 218-220. 2. Bolerin dr Trabatho Industrial 02 49, p. 76-84, 3. A Indiistria do Norte n° 245-247. pp. 91-96 4. AIP — Reiatorio e Contas da Direcgdo, 1958, pp. 115-116. 5. AIP — Relatéri ¢ Contas, 1962, pp. 299-301 6. RAR ~ Relatério e Contas, varios anos 405

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