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A “Pajelança Ecológica” de “Rosa Azul”,

uma Xamã na metrópole da Amazônia


(Belém-PA)

Gisela Macambira Villacorta

Resumo: Este artigo é resultado de uma reflexão, que em parte, foi feita em
minha tese de doutorado sobre a trajetória de uma xamã, Roseana
Gil, sendo este percurso o fio condutor para a minha problemática
sobre a pajelança cabocla no contexto da Nova Consciência
Religiosa. Porém, pretendo tratar aqui pontualmente a
característica mais marcante desta xamã: o seu discurso ecológico,
isto é, de “preservação e proteção da natureza” a partir de uma
“pajelança ecológica”, termo que ela mesma passa a utilizar após
sua inserção no universo da Nova Era recebendo o “nome
iniciático” Rosa Azul. Dessa forma, este trabalho inicia com o que
chamo na tese de desfecho da cena etnográfica, com Roseana Gil
atuando como uma xamã urbana na cidade de Belém, metrópole
da Amazônia, acentuando a sua tendência para a “errância” e
“mobilidade” religiosa, deixando sempre uma possibilidade de
abertura para o acaso e a improvisação.

Palavras-chave: Pajelança Ecológica; Xamanismo Urbano; Misticismo Ecológico.

Abstract: This article is the result of a consideration that, in part, was made
in my doctoral thesis on the trajectory of a shaman, Roseanna Gil,
this topic leading my study on the caboclo shamanism in the context

Revista Estudos Amazônicos • vol. XI, nº 2 (2014), pp. 79-95


the New Religious Consciousness. However, I want to address
here punctually the most striking feature of this shaman: its
ecological discourse, "preservation and protection of nature" from
the standpoint of an "ecological shamanism”, a term she herself
began to use after her insertion in the universe of New Age, where
she received the "initiatory name" Blue Rose. Thus, this work
begins with what I call, on my thesis, the outcome of ethnographic
scene, as Roseanna Gil acted as an urban shaman in Belém, the
metropolis of the Amazon, emphasizing her tendency towards
"erratic wandering" and religious "mobility", always leaving the
possibility open to chance and improvisation.

Keywords: Ecological Pajelança; Urban Shamanism; Ecological Misticism.

Situando o leitor sobre o contexto da pesquisa

Os dados aqui apresentados são frutos de uma pesquisa que data de


1993, quando eu ainda estava dando meus primeiros passos no universo
da Antropologia como bolsista de iniciação científica pelo CNPq, se
estendendo até 2006 quando ingressei no doutorado. Dessa forma, no
trabalho de Conclusão de Curso fiz uma etnografia sobre as crenças e
práticas da pajelança cabocla em uma ilha de pescadores (Nordeste do
Pará), chamada Colares, levando em consideração outros elementos que
estavam atrelados a mesma, como benzedeiras e parteiras. A pajelança
cabocla é uma forma de xamanismo muito praticada na Amazônia
paraense, existindo uma considerável bibliografia antropológica sobre o
tema, que se inicia com Galvão.1 Segundo Galvão, a mesma tem origem

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na pajelança dos índios dos grupos tupis, que é resultado da reelaboração
de crenças e práticas católicas, kardecistas e africanas, recebendo
posteriormente forte influência da umbanda. Foi com este modelo de
pajelança que iniciei a pesquisa na ilha de Colares, e que em grande parte
ainda se mantinha, porém após três meses de trabalho de campo, morando
em Colares, um registro no meu diário de campo destoava bastante das
observações de pesquisadores “clássicos” sobre o tema.
Durante minhas primeiras pesquisas2 pude identificar em Colares seis
curadores, sendo que um deles, mais precisamente uma curadora, era de
fora da localidade, mas já residia na ilha há vinte anos, uma mulher de mais
ou menos quarenta e cinco anos, apontada pelos colarenses como “a
melhor na arte de curar”. Sua fama, no entanto, não se restringia só a
Colares, pessoas vindas de Belém, assim como de outras capitais do Brasil,
se dirigiam a cidade em busca de tratamentos de doenças com ela, ou
simplesmente para conhecê-la. Roseana Gil, ou “tia Rose”, como a
chamavam os colarenses, era uma pessoa muito querida por todos, por ser
considerada pessoa muito humana e “bondosa”, assim como “ensinou
muita coisa” para os colarenses sobre “como preservar a natureza”.
Depois de estar um período considerável no campo, hospedada em sua
casa ou em seu sítio, pude ter acesso a sua trajetória como xamã que
explica os motivos que a levaram sair da cidade de Belém (Pará/Brasil), e
ir morar em uma pacata ilha, e ainda, que nos seus “trabalhos” (pajelança
cabocla), segundo os colarenses, “ela usava de tudo um pouco”, sendo esta
observação relacionada principalmente aos elementos da chamada Nova
Era.
Apesar de esses elementos atravessarem sempre os meus dados, eu
segui com o objetivo de fazer uma pesquisa sobre o xamanismo dos
curadores locais, não deixando, porém, de fazer uma comparação com esta
curadora que se diferenciava das demais. Somente no doutorado é que
retomo vários dados sobre a pajelança cabocla praticada por Roseana Gil

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e sua relação com a Nova Era. Ao iniciar o doutorado, eu já havia escrito
alguns textos sobre esta temática, mas minha ida ao campo estava prevista
para depois de pelo menos concluir parte dos créditos, quando fui
surpreendida ao saber que Roseana Gil havia contraído uma doença rara
no pulmão e, mais, que os médicos haviam dado a ela apenas uma semana
de vida. E, a partir deste momento, ocorreu o que chamo de minha
“entrada involuntária no campo”, já que fui “intimada”, como enfatizava
a própria Roseana Gil, a registrar os seus últimos dias de vida. E é assim
que esta xamã que conheci em 1992 na ilha de Colares, se torna
protagonista na tese de doutorado, por ser o fio condutor da minha
discussão sobre a pajelança cabocla no contexto da Nova Consciência
Religiosa.

Interpretando a trajetória de Rosa Azul através do


“movimento místico ecológico”

Sabe Gisela, se tu está querendo sabê sobre a minha


ligação com Colares, ela é muito forte, vai além do
que eu vivo hoje aqui. Hoje eu estou cumprindo o
meu carma. Mas primeiro, antes de tudo, tu tens que
saber de uma coisa. Eu vou te contar uma história,
e que fique bem claro, é uma história verdadeira
(alguns minutos de silêncio) Era uma vez uma índia
Tupinambá, a filha mais querida do cacique da tribo,
que se chamava Tabajara. Um belo dia um
pesquisador francês, que estudava sobre sons de
pássaros, chegou até a tribo Tupinambá e se
apaixonou pela filha mais querida do cacique

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Tabajara. Sendo correspondida a paixão, o
pesquisador e a índia fogem da tribo. O pesquisador
leva então a índia para morar com ele em um lindo
casarão na França. Porém, logo o pesquisador teve
que partir para mais uma viagem de pesquisa,
deixando a índia no belo casarão esperando a sua
volta. Mas a índia, não se adaptando ao seu novo
lugar de morada, morre apaixonada com saudades
da tribo Tupinambá. (...) Esse é o meu carma, na
vida passada, eu neguei minhas raízes indígenas, eu
era uma índia, hoje eu tenho que afirmar essas
raízes. Como? Eu já te disse que pra tu saberes das
curas, das crenças, tudo que envolve Colares, as
perguntas não bastam, é preciso viver essas coisas.
Mas o fato de eu hoje morar em Colares, o meu
trabalho aqui, não é por acaso. Mas isso já é outra
história, que não é só do passado.3

A frase “era uma vez uma índia Tupinambá” faz parte da


narrativa de Roseana Gil para demarcar o seu “dom xamanístico” e
a decisão de ir morar na ilha de Colares. Apesar de esta narrativa ter
fortes semelhanças com o romance Iracema de José de Alencar, era
a música Relicário de Nando Reis que Rose citava ao fazer
referência as suas “raízes indígenas”. No dia 10 de novembro de
1994, foi a primeira vez que Roseana Gil me narrou sobre sua vida,
era a porta de entrada para a compreensão de sua trajetória como
xamã. Era desta forma que a mesma demarcava de início as suas
“raízes indígenas”.

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Em certa noite, Roseana Gil me relatou “a outra história, que não
é só do passado”, mas sim do presente, isto é, “desta vida”. Deu
então uma entonação de nostalgia no seu relato e o olhar se tornou
distante:

Desde os sete anos de idade eu trabalho com a linha


da encantaria, eu, eu sempre fui uma criança
diferente das outras, eu chorei no ventre da minha
mãe, e aí com sete anos uma amiga da minha mãe
foi quem me orientou sobre os meus dons de cura
[alguns minutos de silêncio]. Como você sabe, eu
sou de Belém, eu tinha vinte e seis anos quando isso
aconteceu, eu trabalhava como funcionária pública
e tinha uma boa remuneração, eu conhecia Colares
já há algum tempo, através de um amigo que tinha
um sítio aqui [novamente silêncio]. No caminho pra
chegar no sítio do meu amigo, tinha um outro sítio,
só estar nesse caminho, eu já sentia alguma coisa
diferente, a mata, os sons dos pássaros, eu sentia a
presença de todas as energias. Mas quando eu
passava em frente desse sítio, ele me chamava
atenção pela energia forte que eu sentia, era um
aperto no coração, uma saudade, uma lembrança.
Foi quando numa das vezes que eu ia passando na
frente desse sítio, eu vi numa árvore a primeira letra
do meu nome, entendi logo a mensagem. No local
daquele sítio, havia sido habitado pela tribo
Tupinambá. Voltei pra Belém com a certeza de que

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eu ia comprar esse sítio. Conheci a dona do sítio,
nos tornamos amigas, um belo dia ela me diz que
quer vender o sítio. Voltei pra Belém, vendi tudo o
que eu tinha, juntei minhas economias, e comprei o
sítio. Foi quando eu vim morar em Colares. Na
época as pessoas não entenderam toda essa
mudança na minha vida, mas eu sabia, são vinte
anos morando em Colares, trabalhando com a cura,
ajudando o meu povo. As pessoas aqui são
descendentes diretos dos índios Tupinambás. Eu
estou aqui para resgatar as minhas raízes indígenas,
conscientizando as pessoas para a preservação da
natureza. Os caruanas, encantados do fundo,
guardam esses lugares, mas os encantados da mata
também, principalmente os espíritos de índio. Para
nós, a natureza é sagrada. O meu ex-marido, na
outra vida, era aquele francês pesquisador, por isso
ele está aqui até hoje, também está cumprindo o seu
carma. Quem sabe tu também não está resgatando
alguma coisa por aqui? Essas crenças, esses rituais,
tudo isso são heranças indígenas.4

A trama na primeira narrativa (que descrevo acima em forma de


epígrafe) gira em torno da sua trajetória na “vida passada”, em que
ela era uma índia que “negava suas raízes”. Nesta segunda
narrativa, falando sobre “esta vida”, ela se apresenta com os traços
característicos de uma pajé de nascença,5 para em seguida
combinar passado e presente, ou ainda “vida passada” e “esta vida”,
quando narra, por exemplo, a sua mudança de Belém para um sítio

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em Colares para “resgatar as suas raízes indígenas”, que se traduz
em “conscientizar as pessoas para a preservação da natureza”.
Dessa forma, apesar das pessoas na época não compreenderem
“toda essa mudança” na sua vida, ela dá um sentido para este
acontecimento.

Sônia Maluf faz considerações interessantes para pensar nossa


narradora Roseana Gil. Discutindo sobre autobiografia e narrativa
de vida, a autora observa que são principalmente as narrativas de
vida que trazem mais enfaticamente esse aspecto de
desvendamento e revelação da pessoa, dando um sentido a sua
experiência. Continuando ainda sua discussão, chama atenção para
o fato de que:

As autobiografias que relatam trajetórias


terapêutico-espirituais se articulam em torno de
uma mudança pessoal. Starobinski (1970),
discutindo a questão da interpretação e da narrativa
autobiográfica, percebeu que, para existir um
motivo suficiente para se fazer uma autobiografia,
seria preciso passar por uma ‘transformação radical’:
‘conversão, início de uma nova vida, irrupção na
graça’. Essa necessidade de contar é
fundamentalmente um ato interpretativo, onde o
indivíduo reflete sobre sua própria história e lhe dá
um sentido.6

Esta forma de Roseana Gil contar essas “histórias de sua vida”


pode ser pensada como uma narrativa autobiográfica, em que ela
passa por uma “transformação radical”, quando aos vinte e seis

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anos “trabalhava como funcionária pública e tinha uma boa
remuneração”, vendeu tudo o que tinha e foi morar em Colares, e
mesmo que as pessoas não entendessem, ela enfatiza: “mas eu
sabia, são vinte anos morando em Colares, trabalhando com a cura”.

Estas narrativas estão presentes em outros artigos que escrevi


que discuto de forma mais detalhada em minha tese de doutorado. 7
Porém, a compreensão sobre essas imbricações entre religiosidades
e o universo de práticas ecológicas se restringem a discussão feita
principalmente, que utiliza o conceito de “Misticismo Ecológico”
para pensar o que ele denomina de “Culturas Alternativas”
presentes nas classes médias altas cidade do Rio de Janeiro, para
este autor o mesmo é uma derivação da Nova Era que possui
relações históricas com o movimento ambientalista. 8 No entanto,
neste artigo procuro ampliar um pouco mais o meu entendimento
da “pajelança ecológica” de Rosa Azul, como algo que está de
alguma forma atrelada ao “movimento místico ecológico” que João
José de Santana Borges apresenta em sua tese de doutorado, onde
busca compreender as relações entre visão de mundo, estilo de vida
e atitude política de um movimento que ele denomina como
“místico ecológico”.9

O místico ecológico, para o autor citado a cima, é um movimento


transnacional de contestação cultural, onde entre as características
estariam uma experiência subjetiva e a maioria dos sujeitos que
compõe o mesmo, teriam um posicionamento de engajamento
político marcado pelas ideias dos movimentos ecológicos, como
também críticas ao consumismo exacerbado.

Durante o trabalho de campo realizado na ilha de Colares e


também na cidade de Belém, entre os que eu denomino de
“Alternativos”, pude observar e registrar pessoas que faziam parte

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de movimentos ecológicos e ambientalistas oriundos de várias
capitais brasileiras e alguns eram estrangeiros.10 Dessa forma é
perceptível o contato de Rosa Azul com este universo mais amplo
que faz uma interessante conexão com a sua experiência mística,
ainda que esta xamã não fizesse parte de um determinado
movimento ambientalista, o seu engajamento, como ela mesma
enfatizava era “através da pajelança ecológica”.

Os protagonistas da “Pajelança Ecológica”: “Espíritos de


Índios” como “Encantados da Mata”

Após essas duas narrativas, ao longo do trabalho de campo,


Roseana Gil sempre reservava um momento para me contar mais
uma história, que de alguma forma reforçavam o seu “resgate
cármico” de conscientização da preservação da natureza, sendo a
natureza diretamente ligada à imagem do índio representado como
o grande protetor da natureza. No entanto, em certo momento da
pesquisa, Roseana Gil me surpreendeu dizendo que “vou continuar
falando da minha vida pra você, mas tu não vai mais gravar, hoje é
a última vez” e, em seguida, partiu para sua narrativa:

Há vinte anos eu deixei o conforto da cidade, o meu


emprego (silêncio) há vinte anos vivo em Colares, e
aqui tô acompanhada também dos encantados da

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mata, são os índios que se encantaram e agora me
ajudam a preservar a natureza, os nativos me
entenderam e respeitam muito esses encantados, tu
viste, eu tenho mais de cinqüenta afilhados que eu
tratei e curei. Nesse processo de curar sempre falei
que para o homem está bem, sendo organicamente,
sendo espiritualmente, ele precisa estar em
harmonia com a natureza. O homem precisa das
energias da natureza, mas ele também precisa das
suas ervas, dos seus frutos, dos seus rios, igarapés,
olhos d’água. Se não, como ele vai viver? Por isso
não podemos destruir a natureza. É preciso lutar
contra isso. Sabe, vários jornalistas já vieram me
procurar para eu falar do meu trabalho, mas tu
vistes, eu não dou entrevista, os encantados, as
entidades não permitem, o que eu preciso é no meu
dia a dia viver em harmonia com a natureza e
repassar isso pras pessoas, principalmente aqui em
Colares. Essa é a minha vida, a minha história.11

A primeira narrativa que cito acima, e que tem semelhanças com o


famoso romance de José de Alencar (“Iracema”), pode ser pensada como
uma “teia de significados”, como nos mostra Geertz, isto é, um texto a ser
lido e interpretado, como uma “piscadela significativa”.12 Assim, o que
pode parecer uma simples historinha, que nos lembra um romance
indianista, enche-se de significados, ao levarmos em conta o que Rosa azul
considera como sua história de vida. Para entendê-la, é preciso pensar
através da sua lógica, sendo também necessário remeter-nos às crenças
religiosas do espiritismo, especificamente ao chamado kardecismo.
Basicamente é importante considerar, destas crenças, as concepções de

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“reencarnação” e de “carma”, ou seja, uma pessoa não tem apenas uma
vida, e sim várias, estando, em suas muitas existências, num processo de
aperfeiçoamento espiritual e numa espécie de purificação.13
Partindo das concepções de uma “vida passada” e uma “vida
presente”, é que se pode iniciar uma interpretação para a narrativa de
Roseana Gil. Em “sua vida passada”, era uma “índia Tupinambá”, que
fugiu com um estrangeiro, abandonando sua tribo e morrendo, depois,
apaixonada e com saudades do seu povo. Para Roseana Gil, o seu “resgate
cármico” significa retomar algo que deixou de cumprir quando era uma
índia, pois, em outro tempo, negou suas raízes indígenas, ao fugir com um
estrangeiro. O que, para ela, permite reverter essa situação, na vida atual,
significa então “cumprir o seu resgate cármico”. Para isso precisa “afirmar
suas raízes indígenas nesta vida” e assim é que dá sentido ao fato de ter
“deixado tudo que tinha”, em Belém, tendo ido morar em Colares. Nesta
cidade ela retoma “suas raízes indígenas”, pois é uma pajé (isto é, um tipo
de xamã que, simbolicamente, relaciona-se com o índio idealizado dos
moradores das cidades e que de fato estão longe da realidade indígena)14 e
que, além de realizar curas, tem como objetivo “conscientizar as pessoas
para a preservação da natureza”. Aqui está a diferença da pajelança cabocla
praticada por esta xamã, que pude observar em campo, isto é, o seu
discurso ecológico explícito.
Esse discurso é aceito e compartilhado pelos colarenses com quem
conversei, pois o que lhe dava destaque era justamente essa “nova” versão
da pajelança: uma pajelança ecológica. Tal fato vai influenciar nas
reelaborações daqueles colarenses, no que diz respeito à pajelança e às
concepções sobre doença. Assim, a causa de uma doença não natural (mau
olhado, flechada de bicho, panemeira etc.) pode situar-se no fato de não
se estar preservando a natureza, como também a cura desse tipo de doença
pode ocorrer, com mais êxito, quando se tem ou se passa a ter esse

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compromisso explícito com a natureza. Fica evidente, porém, que, na
verdade, isso apenas aprofunda uma tendência que não está ausente nas
concepções tradicionais a respeito dos encantados, das doenças e da
pajelança.15
Foi possível observar, durante o trabalho de campo em Colares, rituais
de pajelança cabocla realizados por Rosa Azul e de outros pajés –
tradicionais moradores do lugar – em que “espíritos de índios” vinham
fazer a cura, mas também uma espécie de protesto, quando alguém poluía
um igarapé ou olho d’água, ou quando se derrubavam árvores (ação que
os mesmos consideravam desnecessária). Aqui, além do aspecto
“ecológico”, é importante notar a influência mais nítida de outras crenças
(espiritismo, umbanda), admitindo-se, nessas sessões, não somente a
presença de encantados, mas também de uma categoria especial de
espíritos (“de índios”), o que não é usual na pajelança cabocla da região
Nordeste do Pará.16

Considerações sobre a Pajelança Ecológica e a Mística Andina

Até certo período da pesquisa, da graduação ao mestrado, o meu olhar


estava centrado na pajelança cabocla local, portanto, meu lócus de estudo
era na ilha de Colares. No entanto, após concluir o mestrado, seguindo
ainda os passos de Roseana Gil, o meu objetivo era fazer pesquisa sobre a
Pajelança Cabocla no contexto da Nova Consciência Religiosa, pois
Roseana Gil havia traçado mais um capítulo da sua trajetória como xamã.
Segundo ela, havia chegado a hora de encerrar a sua “missão na ilha”.
Sendo assim, a mesma foi para Belo Horizonte, onde morou durante dois
anos. Quando ela retornou, retomamos contato, e entre muitas conversas
informais, Roseana Gil me afirmava que a sua “passagem por BH não foi
por acaso”. Por lá fez um curso em uma “universidade holística”, e agora

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a sua “missão” era retornar para a cidade de Belém e atuar no xamanismo
com a “pajelança ecológica”, pois, como ela sempre enfatizava “os centros
urbanos precisam se conscientizar, preservar a natureza”.
Desta forma, fiz um percurso de pesquisa para a tese de doutorado que
me levou a informações desta xamã, na década de 70. Roseana Gil era uma
mulher que vinha da classe média de Belém, que na década de 70 vivia,
juntamente com outros grupos, “os ecos” da contracultura no Brasil e
mais especificamente, na Amazônia paraense, frequentadora assídua da
ilha de Algodoal, local por excelência nesse período, de artistas e
intelectuais que buscavam intensamente viver este “espírito de época”.17
Através de conversas informais e algumas entrevistas, pude ter acesso a
informações sobre Rosa Azul. Uma primeira observação que era sempre
ressaltada, diz respeito à “beleza” e aos aspectos místicos que a mesma
possuía: uma jovem mulher dona de um corpo escultural, cabelos pretos
e longos, era sempre comparada com uma sereia. As roupas e acessórios,
no entanto, reportavam a elementos da cultura oriental, batas e vestidos
indianos, complementados com anéis, brincos e cordões no mesmo estilo,
faziam parte da sua identidade. Era considerada uma “mulher sedutora”,
não apenas pela “beleza física”, mas também por sua “personalidade
forte”, uma mulher “independente” e de muitos “conhecimentos
místicos”.
Quando conheci Roseana Gil na ilha de Colares, no início da década
de 90, ela era uma mulher com o peso bastante a cima do que pode se
considerar uma beleza física padrão. Tinha os cabelos compridos, pretos
e ondulados, e a forma de se vestir perfeitamente adaptada aos padrões
locais da ilha. Era comum ver Rose com um chapéu de palha na cabeça e
roupas que nada lembravam batas e vestidos indianos. Rose poderia ser
tranquilamente confundida com uma pessoa que nasceu e sempre morou
em Colares. Na realidade, depois percebi que ela se vestia de forma

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bastante semelhante às curadoras do local. Porém, algum tempo depois,
ela passou a morar em Belo Horizonte durante dois anos, e ao retornar, a
forma de se vestir volta a ter a característica marcante das roupas e
acessórios indianos, agora com forte ênfase nas suas práticas de cura, o
xamanismo urbano com forte ênfase, como ela mesma denominava, na
“pajelança ecológica”.
Tive acesso e pude observar rituais de Rosa Azul que interpretei e
discuti na tese de doutorado, como tipicamente rituais de “neo-
xamanismo”, mas a mesma praticava também rituais específicos da sua
“pajelança ecológica”, aonde “espíritos de índios” se tornavam
protagonistas e vinham “protestar contra a devastação da natureza”. As
pessoas, em geral, que participavam destes rituais, eram principalmente
pessoas ligadas direta ou indiretamente aos movimentos ecológicos. Este
material não foi analisado de forma mais profunda em minha tese de
doutorado, estando mais a margem da discussão central. Desta forma, o
meu objetivo com este pequeno artigo, é fazer as primeiras reflexões para
uma discussão e tratamento mais adequados que estes dados pedem, como
por exemplo, a relação que é possível fazer com a discussão de steill e
Sonemann no interessante artigo “Apropriações Indígenas pela Nova Era:
A Mística Andina no Brasil”, pois muitos dados registrados em meus
diários de campo e que não foram ainda utilizados em minhas discussões
sobre a “apropriação indígena” presente nas narrativas autobiográficas de
Rosa Azul, apontam para um forte diálogo entre a trajetória desta xamã e
os elementos da pajelança ecológica com a chamada Mística Andina no
Brasil, porém, me limito aqui fazer apenas esta referência deixando esta
problematização para um próximo artigo, já em construção. 18

Artigo recebido em setembro de 2014


Aprovado em dezembro de 2014

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NOTAS


Doutora em Antropologia, professora da UNIFESSPA. Email:
gisavillacorta@gmail.com
1 MAUÉS, Raymundo Heraldo & VILLACORTA, Gisela. “Pajelança e

Encantaria Amazônica”. In: PRANDI, Reginaldo. (Org.). Encantaria Brasileira: o


livro dos mestres, caboclos e encanatdos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2004. GALVÃO,
Eduardo. Santos e Visagens: Um estudo da vida religiosa de Itá, Baixo Amazonas. Coleção
Brasiliana. São Paulo: Nacional, 1955.
2 VILLACORTA, Gisela M. “Cura e protesto”: experiência xamanística em uma

população amazônica, Colares (nordeste do Pará). Trabalho de Conclusão de


Curso/Ciências Sociais. Belém: Universidade Federal do Pará, 1996.
VILLACORTA, Gisela M. As Mulheres do Pássaro da Noite: Pajelança e feitiçaria na
Região do Salgado (Nordeste Paraense). 2000. Dissertação (Mestrado em
Antropologia). Belém: Universidade Federal do Pará, 2000.
3 Entrevista concedida em 10 de novembro de 1994.
4 Entrevista concedida em 15 de novembro de 1994.
5 Trata-se de uma denominação bastante utilizada no contexto da pajelança

cabocla para os pajés que nascem com o “dom de curá”, ao contrário dos “pajés
de agrado” onde os sinais do dom surgem tardiamente quando um encantado se
“agrada” dos mesmos.
6 MALUF Sônia W. Antropologias, Narrativas e busca de sentido. Horizontes

Antropológicos. 5 (12): 69-82, 1999, p. 76.


7 MAUÉS & VILLACORTA. “Pajelança e Encantaria Amazônica”. Op., cit.
8 SOARES, Luiz Eduardo. “Religioso por natureza: cultura alternativa e misticismo ecológico

no Brasil”. In SOARES, Luiz Eduardo. O rigor da indisciplina. Rio de Janeiro: Relume-


Dumará, 1994.
9 BORGES, João José de Santana. Árvores de Budas: Alternativas do

Misticismo Ecológico e suas teias políticas. Tese de doutorado PPGCS da


universidade Federal da Bahia. Salvador 2011.
10 VILLACORTA, Gisela M. Rosa Azul: Uma xamã na metrópole da Amazônia.

Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Belém: Universidade Federal do Pará,


2011.
11 Entrevista concedida em 10 de agosto de 1995.
12 GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
13 CAVALCANTI, Maria Laura. O Mundo Invisível: cosmologia, sistema ritual e

noção de pessoa no espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.


14 Sobre o assunto, vale a pena referir o conhecido trabalho de Cardoso de

Oliveira (1978), que trata sobre as visões idealizadas do índio na sociedade


brasileira.
15 Aliás, esse aspecto foi também detectado pelos antropólogos Eduardo Galvão

(1955) e Mark Cravalho (1993), no baixo e médio Amazonas, e pelo geógrafo


Nigel Smith (1979, 1981 e 1996), que é também citado por Carvalho.

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16 Não obstante, já Eduardo Galvão, ao referir-se aos “companheiros do fundo”
(caruanas) dos pajés de Itá (Gurupá, Baixo Amazonas), os quais são definidos por
ele como “espíritos ou seres que se supõe habitar o fundo dos rios”, relata a crença
de “que o espírito de um Índio pode ocasionalmente tornar-se familiar de um
pajé”. E acrescenta, em nota de pé de página: “A crença nesse espírito de Índio,
que foge à concepção comum dos companheiros do fundo, é provavelmente uma
influência dos cultos caboclos dos grandes centros urbanos. Nas pajelanças desses
centros, onde se misturam elementos africanos e indígenas, os espíritos de
‘Caboclos’ ou ‘Índios’ têm função destacada” (cf. Galvão, 1955: 129).
17 BELLAH, R. A. Nova Consciência religiosa e a crise na modernidade. Religião

e Sociedade.13/2, 1986,18-37. GUERREIRO, Silas. Revista Nuresn.12-


Maio/agosto2009.Puc-SãoPaulo.
18 ESTEIL e SONEMANN: Apropriação Indígenas pela Nova Era: A Mística

Andina no Brasil. Religião e Sociedade, Rio de


Janeiro,33(2):78-101, 2013.

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