You are on page 1of 25

Todos conhècem os "índios Xavante",

mas poucos sabem de uma ordem social Xa


vante. Falar de um povo por meio de uma
categoria como a de "índio", termo que jun
ta, pela névoa do preconceito e até mesmo
da discriminação mais abominável, muitas
realidades diferenciadas é o que fazemos habi
tualmente pela força de inércia cultural e
ideológica que ainda nos move, mesmo
nestes tempos de esperanças. Uma outra coi
sa, porém, é abandonar as generalizações
para estudar sociedades e culturas diferèntes.
Já não se diz mais "o índio", mas se fala em
Tupinambá, Tapirapé, Karajá, Krahò e Xa
vante. Descreve-se uma realidade diferente
da nossa em língua, moralidade, sistema le
gal e cosmologia não mais como um apêndi
ce do nosso sistema, mas como um universo
em si mesmo, algo que tem sua própria digni
dade, riqueza e especificidade histórica e so
ciológica.
E precisamente assim que a realidade Xa
vante é descrita, analisada e interpretada nes
te livro. Assim, em A Sociedade Xavante,
David Maybury-Lewis, da Universidade de
Harvard e um dos pioneiros do estudo mo
derno das sociedades tribais brasileiras, bus
ca desenvolver uma perspectiva integrada e
coerente dos Xavante, tomando como ponto
de partida as próprias categorias nativas; ou
seja; como é que os Xavante, eles próprios,
ordenam e vivem sua própria realidade LIVRARIAS
social. Longe de ser um trabalho "funciona-
lista" onde a realidade social é apresentada
#
Lojas;
CURITIBA
Av. Luiz Xavier, 78
como algo encaixado e estático, A Socieda Av. Getúlio Vargas, 651
de Xavante fornece a possibilidade de reali Rua Presidente Faria, 175 ' A SOCIEDADE
Rua XV de Novembro, 8701
zar um estudo das dificuldades e conflitos Rua Marechal Deodoro, 275 XJmNTE
estmturais que os Xavante são obrigados a Rua Voluntários da Pátria, 20í
enfrentar quando se confrontam com as nor- Distribuidora de Papéis e Livros
Av. Mal. Floriano Peixoto,;1508/1530
nías morais de seu próprio sistema. Por tudo Fone: 223-9257
isso, esse trabalho de David Maybury-Lewis
COLEÇÃO ETNOGRAFIA BRASILEIRA
Coordenação de Roberto da Matta Danêd
Msqfixay-LesuAs

ASOOEDADE
X/S/ANTE
Tradução
Aracy Lopes da Silva
Universidade de São Paulo

PFrancisco
*
Alves
© 1974 by David Maybury-Lewis

Publicado originalmente com o título AKWÊ-SHAVANTE SOCIETY


por Oxford Univerãty Press, Inc.

Revisão de original: Roberto da Matta


Para Pia

Revisão tipográfica: Rita Ester Pereira,


Marco Antônio dos Santos Coelho e Henrique
Tamapolsky

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

1984

Todos os direitos desta tradução reservados à:


UVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S/A
Rua Sete de Setembro, 177 — Centro
20050 — Rio de Janeiro — RJ
SUMÁRIO

ÍNDICE DAS FOTOGRAFIAS


ÍNDICE DOS MAPAS
ÍNDICE DAS FIGURAS
nSÍDICE DOS QUADROS
PREFÁCIO À EDiIÇÃO BRASILEIRA 1
PREFÁCIO 12
AGRADECIMENTOS 16

INTRODUÇÃO 20
I. A RESPEITO DO XÁ VANTE 39
1. Dados Históricos
2. Aspectos Geográficos 43
3. As Comunidades Xavante 50
Xavante Ocidentais
Região do Xingu: 53
1. Batovi 53
2. Simões Lopes 53
Região do Alto Rio das Mortes: 57
3. Sangradouro 57
4. São Marcos •••• 57
Xavante Orientais 61
Região do Banco Rio das Mortes: • •• • ■ 61
5. Areões 61
6. Capitariquara ., 66
7. Santa Therezinha •• 67
8. São Domingos. 69
9. ÕTõ 72
10. Marãiwatsede 74
n. ECOLOGIA 75
1. Habitat •• 75
2. Atividades de Subsistência 78
Caça 78
Coleta ®7
Agricultura 93
Pesca. 97
3. Excursões de Caça e Coleta 98
4. A Exploração do Ambiente 105
III. o GRUPO DOMÉSTICO 107 VII. RITUAL 305
1. Introdução . 107 1. Oi'ó 305
2. Nascimento 108 2. Corridas de Toras 310
3. Infância 112 3. Iniciação 314
4. Casamento 120 4. Wai'á 321
5. Divórcio .. ■ 139 5. O Significado do Ritual 336
6. O Gmpo Doméstico 143
VIII. COSMOLOGIA 341
IV. O SISTEMA DE CLASSESDEIDADE 153 1. Feitiçaria 341
1. A Casa dos Solteiros .. 153 2. Morte 345
2. Iniciação 164 3. Cosmologia 349
Primeira Fase 164
Segunda Fase 166 \X. A SOCIEDADEXAVANTE 359
Terceira Fase 175 1. Estmtura Social 359
Primeiro Dia: Tebe 175 2. Qrganização Dual 362
Segundo Dia:Pahõri'wa 176 3. Análise Comparativa 367
Terceiro Dia: Toibo. 180
Quarto Dia: corrida cerimonial 182 GENEALOGIAS 377
Quinto Dia: a nova classe de idade 186 APÊNDICES 378
3. Rapazes , 188 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 394
4. Homens Maduros 193
5. A Posição das Mulheres. 199
6. Propriedades do Sistema. . 207

V. O SISTEMA POLÍTICO 220


1. Clãs e Linhagens 1 220
2. As Facções de São Domingos 229
3. A Resolução das Disputas • • 238
4. A Posição do Chefe 250
5. Relações entre Aldeias 266

VI. O SISTEMA DEPARENTESCO 276


1. Terminologia 276
2. Papéis 287
3. Emprego dos Termos 295
4. Nomes 296
5. Propriedades do Sistema. 301
índice das FOTOGRAFIAS: 3. Areões(1962) 63
3a. Genealogia esquemática de Aréões(1962) 64
Homens cantando na mata durante o wflz"á(Frontispício) 4. São Domingos(1958) 7/'
1. Homens retomam da caça depois de capturar um porco-do-mato. 5. ÒTõ(1962) 73
2. Mulheres ao redor de um forno de terra. 6. O grupo doméstico 146
3. Mulheres carregadas no momento da partida para uma das excur 7. Terminologia de parentesco empregada pelos homens em relação
sões de caça e coleta que caracterizam o período de nomadismo. aos membros de seu grupo doméstico afim 286
4. Homensfazem uma esteira de dormir. ,
5. Casa em construção. INDICE dos QUADROS:
6. a) Iniciandos percorrem a aldeia em "procissão conduzidos por 1. As Comunidades Xavante 52
um rapaz mais velho; 2. Algumas das raízes que constituem a base da dieta Xavante 88
b)Homens dançam na mata com as máscaras wamhõrõ. 3. Atividades sazonais 90
a) Meninos na casa dos solteiros durante um dos períodos de no 4. Casamentos poligínicos de homens proeminentes 123
madismo; 5. Poliginiá 125
b) Rapazes recém-iniciados cortam as pontas dos cabelos dos 6. Poliginiá sororal 138
membros da classe de idade que passará a ocupar a casa dos 7. O sistema de classes de idade 154
solteiros.
8. Iniciação 165
8. Rapazes dançam diante das casas da aldeia. 9. Categorias de idade 202
9: O conselho dos homens maduros de São Domingos reúne-se ao 10. Relações entre as classes de idade 204
amanhecer.
11. Classificações Xavante 226
10. a) Apõwê, chefe de São Domingos, unta o corpo dos meninos an 12. Clãs e linhagens 228
tes de uma cerimônia; 13. Asfacções de São Domingos em 1958 230
b) Apõwêao amanhecer, reúne-se com sua "corte". 14. Flutuações na composição das comunidades Xavante 267
11. Os Pi'u dançam agressivamente, "contra" os rapazes, no clímax 15. Categoria de parentesco 277
do waVá

GRAFIA DAS PALAVRAS XAVANTE

Na transcrição das palavras Xavante, foram utilizadas as seguintes


índice dos MAPAS: convenções: *

1. Localização das principais tribos mencionadas no texto 19 N. da T. — Na presente edição brasileira, as palavras Xavante foram grafadas
2. Localização das comunidades Xavante 38 de acordo com uma proposta de uniformização elaborada por salesianos e
3. As migrações dos Xavante 100 membros do Summer Institute of Linguistics, reunidos para esse fim por ini
ciativa da FUNAI, em 1977. Trata-se da ortografia "oficial", utilizada por
grande parte dos próprios Xavante e.empregada nas obras mais recentemente
publicadas a seu respeito (vide bibliografia).
fNDICE DAS FIGURAS: Em relação à grafia originalmente utilizada por Maybury-Lewis, notem-se as
seguintes equivalências:
1. Simões Lopes(1962) 35 (®)= (o): pronuncia-se como o e não acentuado da palavra inglesa the.
2. São Marcos(1964) 59 (s)= (ts): tem som sibilante e se assemelha a um x muito suave.
(~) sobre uma vogai, torna-a nasalisada
(') . indica oclusão glotal
(w) é pronunciado como no inglês
(ts) tem som sibilante e se assemelha a um x muito suave
(h) é aspirado, como no inglês
(nh)é pronunciado como em português
(r) é sempre brando
(b) pronuncia-se como o e não acentuado na palavra inglesa the
As vogais e demais consoantes aqui não especificadas são pronun
ciadas como em português.
Prefácio à
Edição Brasileira

Qualquer Autor com um mínimo de vaidade e envolvimento


com seu trabalho que seja convidado a preparar uma nova edição de um
de seus velhos livros, fica profundamente tentado a reescrevê-lo por
completo òu, ao menos, a acrescentar alguns capítulos com os quais
possa deixar seus críticos desconcertados. Felizmente, não tenho
tempo para reescrever A Sociedade yca.va.nte. Além disso, parece-me que
os dados que apresenta são ainda úteis e que suas análises estão ainda
basicamente corretas. Neste Prefácio tentarei, portanto, esclarecer
certos pontos que parecem terficado obscuros para leitores da primeira
edição e indicar de que modo k Sociedade Xavante se relaciona com o
trabalho feito desde sua publicação.
Antes de mais nada, é preciso lembrar ao leitor quão distantes e
inacessíveis os Xavante eram na época em que minha esposa e eu
fomos morar com eles, no final da década de 50. Através dessa minha
pesquisa (1965)ficou-se sabendo que, muito provavelmente, os Xavante
teriam abandonado seu território tradicional à margem esquerda do rio
Tocantins, em meados do século XIX, dirigindo-se a sudoeste. Haviam
mudado para longe dos colonos que, naquela altura, começavam a
chegar a Goiás em números muito altos. Os Xavante procuíavam a paz e
o isolamento que, comparativamente a Goiás, Mato Grosso lhes ofere
cia. Foram ali redescobertos pelo mundo exterior na década de 30. Os
Xavante defenderam-se e logo criaram, na imprensa, uma tal reputação
de belicosidade que meu mestre na Escola de Sociologia e Política de
1 Timbira Orientais tinha atraído a atenção dos teóricos da Antropologia
São Paulo, Professor Herbert Baldas, sentiu que era necessário redigir e instituído uma anomalia na região do Brasil Central. Não sabiam
um artigo desafiando tal visão (1951). Nesse trabalho, afirmava que os como classificar povos que dispunham de uma cultura material tão
Xavante não eram agressivos: lutavam, simplesmente, contra aqueles
simples, de uma agricultura aparentemente tão escassa e de sistemas
que, a seu ver, estavam invadindo o seu território. Mesmo assim, na
sociais de tal modo complexos. Além disso, toáos esses sistemas sociais
época em que iniciei meus estudos de Etnologia do Brasil soba orien
pareciam ser variações so bre o tema da organização dual — tipo de siste-
tação do Prof. Baldus e resolvi fazer pesquisa de campo no Brasil rna encontrado no mundo todo mas que, até então, não havia sido satis
Central, aos Xavante ainda era atribuída essa belicosidade, de acordo
fatoriamente explicado. Fomos, portanto, aos Xerente e aos Xavante na
com o princípio estabelecido na velha canção francesa:
esperança de poder compreender a organização dual dos Jé Centrais
"Cet animal est três méchant
para, dessa maneira, contribuir tanto para a resolução da "anomalia do
Quand on Vattaque, il se défend".
Brasil Central" quanto para a solução de um problema fundamental da
Ainda assim, mesmo para nós que nos solidarizávamos com os
teoria antropológica.
Xavante nessa questão, sua situação nos colocava problemas,já que nos
Assim, é importante reiterar que A Sociedade Xavante /az parte
propúnhamos ia fazer pesquisa de campo junto a eles. Sabíamos que não
de uma investigação comparativa sobre as sociedades indígenas do Brasil
fdav'am português e nos havíamos preparado para trabalhar entre eles
Central. Deste modo, o leitor deve ter em mente que, embora possa ser
convivendo com os Xerente - cuja língua é bastante próxima à dos
lido por si só e como uma monografia autocontida, õ livro foi pensado
Xavante - durante um período de pesquisa de campo. Nossa esperança
como contribuição a um estudo comparativo muito mais amplo. As
era que, podendo comunicar-nos com eles e indo na condição de conclusões teóricas desse estudo estão ainda em fase de elaboração e
uma família(minha esposa e eu levamos ao campo,conosco, nosso filho
recomenda-se aó leitor a leitura das obras que estão sendo publicadas,
de um ano de idade), eles permitiriam que vivêssemos com eles algum
no caso de desejar conhecer as conclusões a que o conjunto dessas
tempo. Não podíamos, porém, ter certeza de como seria a nossa
■pesquisas nos está conduziná). (Veja, especialmente, Maybury-Lewis,
recepção nem as condições em que iríamos trabalhar. Na verdade, não
o/;?., Dialectical Societies,i979/
sabíamos nem mesmo se a pesquisa seria de todo possível.
É preciso enfatizar o fato deste trabalho constituir um ensaio
Mesmo assim, estávarrios decididos a tentar, pois o estudo dos tra
elaborado sob a forma de uma análise estrutural. Lida com questões
balhos de Curt Nimuendajú nos havia convencido tanto do fato de as
colocadas por Lévi-Strauss em uma série de trabalhos relativos às socie
sociedades indígenas do Brasil Central serem extremamente interessan
dades indígenas do Brasil Centraf e é contra o pano de fundo dessa
tes qumto de que mereciam ser melhor estudadas. Nosso trabalho com discussão que deve ser lido. Dizer simplemente, porérn, que tentei fazer
os Xerente conseguiu aguçar ainda mais a nossa curiosidade. O corítato uma análise estrutural esclarece muito pouco. Procurarei, portanto,
com os Xerente era, com certeza, ainda bastante difícil. Naquela época,
explicar o que entendo por análise estrutural. Trata-se de uma análise
só se conseguia chegar até eles pelo Tocantins, em barco a motor, via que lida, em primeiro lugar, com as categorias culturais em termos das
Carolina, no Maranhão. Essa viagem levava de três a sete dias, depen
quais um povo determinado organiza sua própria experiência; procura,
dendo das condições. Deixando o barco, seguia-se a pé ou a cavalo. em seguida, relacionar as regras da sociedade em questão e os padrões
Apesar dessas dificuldades, sabíamos que- os Xerente haviam vivido de ação óbservados em seu contexto àquelas idéias. Toda análise estru
junto a colonos não-índios durante a maior parte deste sécffb. O que
tural procura, acima de tudo, determinar os princípios subjacentes a
não sabíamos era até que ponto esse convívio havia afetado sua cultura esse agregado de idéias, regras e ações e relacioná-los mutuamente de tal
tradicional. Sentíamos que a chave para a compreensão da civilização
modo que possa demonstrar as relações cruciais da sociedade estudada.
dos povos de língua Jê — habitantes, desde sempre,doPlanalto Central
- deveria ser descoberta por meio do estudo dos grupos que estavam,
naquele mornento, sendo còhtatados. ' Especialmente os reunidos na Seção dedicada à organização social em seu
livro Antropologia Estrutural (Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro)
O trabalho de Nimueridajú entre os Xerente, os Apinayé e os
3

i
o procedimento baseia-se claramente em certos pressupostos relati argumentação: sempre que a análise estruturalfica assim restrita, toma-
vos à coerência interna das culturas. Supor ou insistir que a análise estrutu
se estéril. Relacionar categorias culturais a regras sociais e padrões de
ral deva necessariamente partir da suposição de que todas as culturas são ação foi algo que fiz bastante deliberadamente e mostra que meus mo
totalmente coerentes é, no entanto, postura gratuitamente polêmica. A delos estruturais permeiam não apenas vários níveis da cultura e do pen
única suposição necessária relaciona-se à existência permanente, em samento Xavante mas também ultrapassam o mero rearranjo daquilo
qualquer cultura, de certa sistematização, a qual vale a pena estudar. que afirmo ser as idéias Xavante. A crítica de Shapiro desconsidera a
Parto desse pressuposto que, no meu entender, não requer qualquer questão fundamental do estruturalismo e, incidentalmente, a do meu
defesa. livro. Isso fica extremamente claro graças ao seu aparente pesar pelo
A análise estrutural procura, porém, compreender essa qualidade fato de eu dedicar tanta atenção às facções e à facciosidade. Ainda
sistemática da cultura sem pressupor que não apresente também áreas assim, meu livro mostra claramente que a facciosidade é um fato irredu
de ambigüidade e inconsistência. A estrutura produzida por urna análise tível da vida Xavante, assim como a dualidade de sua classificação
deste tipo deveria ser entendida como uma hipótese a respeito da social. Só uma análise pobre, estrutural ou não, deixaria de chamar a
sociedade e não como sua anatomia descritiva - o que, aliás, afirmo no atenção para essefato.
capitulo final. Disse, ainda, que esta seria apenas uma, dentre várias O ponto a ser ressaltado aqui é que o pensamento Xavante, no
hipóteses possíveis. É igualmente importante perceber o que não se que diz respeito à composição de grupos sociais, se exercita em termos
encaixa no modelo quanto notar qual a extensão dos dados que a daquilo que chamei de "facções". Trata-se de agrupamentos políticos
análise toma compreensíveis. temporários cuja formação tem por referência categorias que permeiam
Insisti, aqui, nas qualidades de uma boa análise estrutural porque todo o pensamento Xavante. Essas categorias são dicotomias presentes
há, nos escritos antropológicos, muita confusão a esse respeito. O que em todos os níveis, os clãs e as linhagens (subdivisões de todos os clãs),
defendo (e que procurei pôr em prática em A Sociedade Xavante^ é um em termos das quais se processa toda a discussão das relações da comu
tipo de análise que relaciona princípios culturais e instituições sociais nidade. Para compreender minha argumentação e, na minha opinião,
para, então, examinar a dialética existente entre, de um lado, princí para compreender os próprios Xavante, é.preciso entender a relação
pios e instituições e, de outro, entre estes e as ações. Trata-se, portanto, entre as categorias de seu pensamento.,e os grupos que se forrnam e inte
de algo bastante diverso do tipo de análise da estmtura socialfeita por ragem em termos dessas categorias. Tal compreensão exige uma apre
Radcliffe-Brown e seus seguidores. É, na verdade, também diferente da ciação da natureza contextual das distinções classificatôrias e socioló
análise estmturalista tal como é levada a efeito por Lévi-Strauss e seus gicas.
seguidores, por conter uma preocupação muito maior com a relação Os Xavante, diferentemente de tantos antropólogos, não vêem
entre a teoria social e a prática social. Preocupa-se, além disso, com a nisso qualquer dificuldade. Assim, Ortiz, por exemplo^,ignorou toda a
apresentação e a avaliação das evidências empíricas necessárias ^ara a minha discussão do pensamento contextual Xavante e do relaciona
formulação de afirmações confiáveis relativas às teorias sociais correntes mento entre os vários modelos dos Xavante a respeito de sua própria
em sociedades diversas daquela de onde provém o investigador. sociedade e as ações dos mesmos índios, e centrou sua atenção na série
Este ponto foi totalmente incompreendido, por exemplo, por básica de antíteses que apresento, à guisa de sumário, no Capítulo IX.
Shapiro^ que, numa resenha da primeira edição deste livro, criticou-me Foi este sumário que Ortiz entendeu como sendo o "meu modelo" da
por misturar estilos de discurso estrutural e sociológico e por confundir sociedade Xavante. Ela acredita, ao que parece, que introduzi toda a no
dados culturais e comportamentais em A Sociedade Xavante.-A análise ção do dualismo nesta análise visando a mostrar de que modo a estrutura
estrutural, no entanto, não deve se prender exclusivamente a categorias da sociedade Xavante era dedutível de algum principio lógico, tido
culturais. Era esse, exatamente, o ponto que quis enfatizar em minha como básico e geral Digo o contrário e ofereço provas em apoio de

^ "Structuralism versas Sociology"in Mankind Jane 1972. Resenha de Akwê-Xavante Society in Man 2(4):650, 196 7.
minha posição: trata-se, simplesmente, do modo pelo qual os Xavante São essas as questões, entre outras, que nossa investigação comparativa
pensam: Concebem a maior parte de suas atividades cruciais - rituais ou procurou responder.
técnicas — em termos da dicotomia entre waniwimhã(nós)e watsiré'wa Discorri longamente^ no entanto, para mostrar as evidências empí
(eles). Trata-se aqui de categorias, e não de grupos, e sua conotação ricas a partir das quais construí esSe modelo. Procedi desta forma
precisa depende do contexto. Além disso, uma compreensão integral porque uma das dificuldades da análise estrutural é estabelecer a relação
dos Xavantç implica em relacionar essa dicotomia, que é a principal, a entre a inferência e a evidência. Tentei'explicitar meus métodos e os
outros princípios, duais ou não, que operam em outras áreas, tais como dados nos quais minhas conclusões se baseiam. Os puristas, que ainda se
o sistema de classes de idade, a importante cerimônia do wai'á e assim sentem insatisfeitos e que insistem em dizer que a avaliação de um rela
por diante. O leitor fica, assim, prevenido contra a aceitação fácil das tório de pesquisa de campo só é possível quando o leitor conhece inti
antíteses apresentadas porque,representam, de alguma forma, o meu mamente a personalidade do investigador, gostariam, talvez, dè consul
modelo da estrutura social Xavanté. Aquele sumário é apresentado tar The Savage and The Innocent Nesse livro escrevi, de modo mais
como recurso mnemônico e deveria ser lido tendo-se sempre presentes^ livre, a respeito do estilo de vida Xavante tal como o observei entre
as discussões contextuais contidas nos capítulos anteriores. 1958 e 1964. No presente volume, a etnografia detálhada foi delibera-
A utilidade de tratar-se o sistema Xavante como sendo um caso de damente dividida e subdividida, com indicações no índice, de modo que
organização dual foi agora inquestionavelmente firmada pela pesquisa o leitor possa maisfacilmente usar o livro para testar minhas conclusões
de meus colegas que trabalharam também no Brasil Central: Ainda e verificar as suas próprias hipóteses.
assim, cabe dizer que, no presente livro, esforcei-me por mostrar que Na presente edição brasileira,foram feitas pequenas modificações
isso não significa que o pensamento ou que a sociedade Xavante sejam de modo a evitar a identificação de certos indivíduos Xavante no curso
estruturados em termos de um dualismo "esmagador", que tudo da análise de disputas políticas internas. Essas alterações não afetam, de
perpassa, se pudermos dizer assim. Discuto longamente aqui as limi modo algum, a qualidade das análises e não diminuem a possibilidade de
tações do modelo dualista e chego à conclusão de que o modelo diádico usar-se o livro para analisar a estrutura da sociedadé Xavante, Evitam,
pode não nos dizer tudo o que precisamos saber sobre os Xavante. Por simplesmente, a possibilidade de exacerbação de conflitos entre os
outro lado, porém, não podemos dizer que "conhecemos"algo a seu Xavante e a revelação de informações que rheforam dadas ern confiança.
respeito sem tomar esse modelo como o ponto de referência básico. Quantó à cerimônia esotérica do wai'á, o problema foi resolvido pelos
próprios Xavante na medida em que me permitiram filmá-la.
Uma dificuldade real surge quando se procura estabelecer até que
As implicações teóricas,de A Sociedade Xa.v2Lntsforam discutidas
ponto esse modelo é, de alguma forma, explicativo. Afirmei que é expli
detalhadamente em trabalhos subseqüentes,realizados em conexão com
cativo, em um nível preliminar, com base no fato de que toma compre
nosso estudo de sociedades do Brasil Central e que agora estão sendó
ensível um certo número de idéias, regras e ações. Forríèce-nos uma
publicados. Alguns deles, porém, devem ser mencionados aqui, ainda
teoria social Xavante que nos toma capazes de compreender o porquê
que brevemente. Leacock assinalou,com surprésa, numa resenha sensí
da organização, tal qualfeita pelos Xavante, de suas categorias cosmolô-
vel^, que: "Os Xavante parecem ter uma sociedade organizada de modo
gicas e sociais; o porquê do modo pelo qual se dão os alinhamentos
muito maisfluido e livre do que os outros gruposJê até agora descritos."
:faccionários e que considerações os próprios Xavante tecem ao planejar
O trabalho de meus colegas mostrou que, na verdade não se trata disso.
suas estratégias de ação social. O modelo não nos diz, porém, a razão
Todas as sociedades Jê são organizadas de modo mais fluido e menos
pela qual os Xavante adotam tal teoria ou as razões pelas quais eles
rigidamente do que a.'teoria antropológica tradicional poderia jamais
lutam, afinal. São esses os axiomas irredutíveis da cultura Xavante, que
supor. Ás conseqüências dessa descoberta têm longo alcance. Não
não podem ser explicados a não ser por meio de análises comparativas.
apenas nos conduzem a urrtíi revisão da etnografia do Brasil Central
Veja Rivière, "Binary Matrix and Xavante Society"Man 3 (2): 315, 1968, como também indicam a. necessidade de umà revisão dç nossas idéias
para uma boa discussão dessa questão. relativas à estrutura social em outros pontos do mundo. Parece provável

In American Anthròpologist 70:581-2, 1968..


que os sistemas altamente estruturados descritos em outras obras, partes do mundo. O que procuro demonstrar aqui, porém, é que-a
incluindo-se os que se baseiam em descendência unilinear, resultam de questão não se reduz a sistemas de metades ou a sistemas de aliança
um tipo de fluidez organizacional tal como a que descrevi entre os explicáveis em termos das teorias da descendência ou da aliança. Lida
Xavante, Este alto grau de estruturação é, na verdade, um artificio pro mos, pelo contrário, com teorias sociais e suas conseqüências e foram
duzido pelos modelos antropológicos. Quando nos preocupamos em estas ideologias que contribuíram, mais do que qualquer outra coisa,
documentar não apenas as regras mas as várias estratégias empregadas para a instituição da "anomalia do Brasil Central". Tal anomalia advém
em sua aplicação, bem como as suas diversas conseqüências, percebemos do fato de os Xavante, assim como outros povos do Brasil Central, á
que essa "perfeição" mascara um grau considerável de flexibilidade. despeito da simplicidade de suas tecnologias tradicionais, terem desen
Fica assim demonstrado que minha insistência, no sentido de que uma volvido teorias sociais dialéticas semelhantes às que se encontram nos
boa análise estrutural deva lidar tanto com as regras quanto com seus principais sistemas religiosos e filosóficos elaborados tanto no Oriente
resultados, tem uma importância teórica digna de nota. quanto no Ocidente.
Minha análise das categorias sociais dos Xavante também coloca / Na primeira edição deste livro, apresentei apenas um esboço ini
em questão certas visões defendidas tenazmente e há muito tempo, rela cial do pensamento social dos Xavante mas o trabalho serviu como
tivas ao papel do parentesco nas sociedades tribais. Claro está que as ponto de partida para uma compreensão cada vez mais profunda da cul
categorias de parentesco Xavante não se referem à rede de relações, tura dos povos indígenas do Brasil Central. Enfatizo-o aqui com orgu
biológicas. Constituem, pelo contrário, um sistema de classificação que lho, principalmente porque, em anos recentes, o valor de trabalhos
deriva de uma teoria da dialética social e do lugar do indivíduo nessa "acadêmicos" tais como este tem sido questionado, ocasionalmente, no
teoria. Brasil. Sugere que os antropólogos devam dedicar-se à assistência e à
Para compreender tal teoria e, na verdade,para compreender os resolução dos problemas dos povos indígenas ao invés de estudar suas
sistemas Jê de classificáção, é preciso perceber que eles advêm de teorias culturas. Rejeito categoricamente a idéia de que as duas atividades
sociais que, por sua vez, dependem do modo pelo qual estão ordenados sejam mutuamente exclusivas e creio indefensável a insistência doutriná
certos conceitos fundamentais. Expressam a relação entre as esferas de ria em qualquer uma delas. Não aceito o estudo dos povos indígenas no
existência pública e privada, entre o fórum e o grupo doméstico, entre Brasil sem que seus problemas e suas possíveis soluções sejam também
masculinidade e feminilidade enquanto conceitos teóricos. Tais noções, do interesse do investigador. Por outro lado, uma profissão de fé na
talvez tanto quanto quaisquer idéias formuladas a respeito das relações atuação indigenista acompanhada de desinteresse pelo estudo das cultu
genealógicas, parecem ser os elementos essenciais dos seus assim ras dos povos indígenas (que é o que permite a compreensão de seus
chamados "sistemas de parentesco". Esta afirmação será aqui demons modos de ser específicos) é algo de extremamente paternalista. Nossa
trada para o caso Xavante; no caso dos demais Jê, a demonstração dívida para com esses povos nos exige que os levemos a sério e isso
deverá ser buscada em Dialectical Societíes (vide bibliografia). Minha significa dizer que devemos fazer todo o possível tanto para compreen
idéia é que essa afirmação provavelmente seja verdadeira para uma dê-los em seus próprios termos quanto para defender seu direito de
grande variedade de outras sociedades para as quais nossos métodos tra viver no Brasil multiétnico do jundo. Ofereço, portanto, este livro,
dicionais de análise — através da caracterização e da classificação de sis como parte de minha contribuição à compreensão dos Xavante, um
temas de parentesco - mostram-se tanto inadequados quanto ultrapas povo que cheguei a conhecer bem e a respeitar ainda mais.
sados. Minha contribuição ao estudo e resolução dos problemas enfren
Ao mesmo tempo, a organização dual que postulo aqui para os tados pelos Xavante e por outros índios brasileiros não está compreen
Xavante pode agora ser vista como uma variação do tema maior:a civili dida neste livro. Faço-a especialmente através das publicações de Cxííta-
zação do Brasil Central. Significa mais, porém, do que mera curiosidade ral Survival, uma entidade que fundei nos Estados Unidos (em Cam-
relativa aos Xavante ou à etnologia do Brasil Central pois váriasformas bridge, Massachusetts). Não cabe aqui, portanto, analisar a história
de organização deste tipo podem ser encontradas em muitas outras recente dos Xavante ou as suas relações com a sociedade mais ampla.
Esses são tópicos que abordarei em um outro trabalho. qual seja: a de encontrar uma pessoa capaz de fazer avançar a pesquisa
Cabe aqui, no entanto, a expressão de minha profunda alegria em que. se está pessoalmente engajado e que, ao mesmo tempo, saiba
pela publicação de uma edição brasileira de A Sociedade Xavante. permanecer uma coMoradora e uma colega verdadeira. Qqerò, por
Sempre considerei minha pesquisa entre os Jê como parte da Antropo tanto, agradecer a ela especialmente, não apenas pela preparação desta
logia Brasileira, não apenas pela razão óbvia, de falar de índios que tradução mas também pelas suas próprias contribuições à compreensão
vivem no Brasil mas, principalmente, porque tratou de tópicos que liga da sociedade Xavante.
ram a Etnologia Brasileira à corrente central da teoria antropológica e o
fez com a colaboração de uma nova gerüção de antropólogos brasileiros.
Cambridge, 1982
Essa colaboração, tanto intelectual quanto pessoal, foi uma das expe David Mqybury-Lewis
riências mais gratificantes de minha vida acadêmica. É-fne impossível
relacionar os nomes de todos os colegas brasileiros que me assistiram ao
longo das rhinhas pesquisas ou aqueles quê, com seus comentários sobre
meu trabalho, possibilitaram-me auxílio e estímulo. Seria injusto sele
cionar apenas alguns para menção especial. Sendo assim, expresso a
todos, coletivamente, a minha gratidão.
Há, porém, dois dentre eles cuja participação especial na prepara
ção da presente edição de Á Sociedade Xavante precisa ser reconhecida.
Sou muitíssimo grato ao Dr. Roberto da Matta, qúe fez as gestões
necessárias para que este livro fosse publicado no Brasil. Tenho uma dí
vida enorme com a Dra. Arácy Lopes da Silva, que pôs de lado, tempo
rariamente, suas próprias pesquisas entre os Xavante para traduzir este
livro. O tiabalho recente da Dra. Lopes da Silva(1980)tomou-lhe pos
sível aprofundar nosso conhecimento da sociedade Xavante em áreas
críticas tais como as da nominação e da amizade formal. Com base em
novos dados ela também corrigiu minhas interpretações de questões
como a cerimônia coletiva dos jovens inipiandos e o papel das mulheres
no sistema de classes de idade. Não incluímos,porém, essas novas inter
pretações no presente volume. Corrigimos, simplesmente, a transcrição
de certas palavras Xavante mas deixamos o texto essencialmente o
mesmo, tal como foi escrito originalmente. A intenção foi enfatizar,
através desse procedimento, que a análise e a compreensão da sociedade
Xavante (assim como a de qualquer outra sociedade) ê um processo
continuo e não um momento isolado e único que pode ser capturado
por um artigo ou por um livro específicos. Se a edição origirud de A
Sociedade Xavante estabeleceu osparâmetros do processo,ele,porém,
continua. E não apenas em meu próprio trabalho mas, de modo ainda
mais importante, no trabalho de colegas tais como Aracy Lopes da
Silva. É por isso, portanto, que termino este prefácio enfatizando sua
contribuição. São raros os estudiosos que tiveram a boa sorte que tive.

10 11
Haekel refutou essa interpretação(1952)embora afirmasse que o desen
volvimento dessa complexidade social pelas tribos Jê não poderia ter-se
dado de modo independente. Reafirmava, portanto, uma tese que mais
de dez anos antes havia apresentado (1939), de acordo com a qual o
"Zweiklassensystem"no Brasil Central tinha suas origens nos centros de
difusão do altiplano andino ou mesmo da América Central. Lowie,
em um pequeno resumo interpretativo das comunicações pessoais de.
Nimuendajú, feitas desde o campo(1941), argumentava, na ausência de
qualquer evidência em contrário, em favor do desenvolvimento autô
nomo das instituições das tribos Jê.
Na época desse tumulto causado pelas especulações sobre as
Prefácio origens das instituições Jê, houve alguns poucos que dedicaram muita
atenção e atividade acadêmica ao estudo de seu funcionamento real,
Jules Henry, que já havia experimentado as dificuldades da pesquisa de
campo junto a bandos dos "Kaingang"(Aweikoma), Macro-Jê, no sul
do país (1941a), ressaltou, em uma resenha perspicaz de The Apinayé
As Monografias de Nimuendajú sobre certas tribos de língua Jê (1941b), que o esquema elaborado por Nimuendajú a respeito do siste
(1939, 1942, 1946) são marcos importantes da Antropologia Brasi ma matrimonial não fornecia informações sobre certos pontos cruciais.
leira. Fornecem não apenas relatos etnográficos detalhados — infeliz Tipicamente, porém, foi Lévi-Strauss quem primeiro tentou analisar o
mente inexistentes no caso da maior parte das tribos brasileiras — material de Nimuendajú. Mencionou o sistema de descendência para
baseados em convivência íntima e prolongada com os povos em lela que havia sido descrito por referência aos Apinayé (1949: 61-62,
questão; mas também constituem o primeiro conjunto de estudos mu 287) e prometeu elucidá-lo em um trabalho posterior. Mais tarde, em
tuamente relacionados a ser realizado no Brasil. Nimuendajú trabalhou comunicação breve mas densa, feita-ao XXIX Congresso Internacional
entre os Apinayé (Timbira Ocidentais) e junto aos aglomerados de de Americanistas (1952), apresentou uma análise esquemática dos
tribos Timbira Orientais (veja Mapa 1), pertencentes ao ramo Seten dados de Nimuendajú, acompanhada de uma discussão dos Bororo, cul
trional da família lingüística Jê. Publicou também um estudo sobre os tural e lingüisticamente próximos aos Jê.' Concluiu dizendo que havia
Xerente que, com os Xavante, podem ser consideradbs os Jê Centrais. necessidade de novas pesquisas, a serem realizadas com vistas a um
Nos últimos anos de sua vida, dedicou-se ao estudo dos Kayapó, muito estudo comparativo das instituições Jê.
L
próximos aos Apinayé. Veio a falecer, porém, antes que os resultados Os Jê Setentrionais e Centrais são tão intimamente relacionados,
do trabalho fossem publicados. do ponto de vista lingüístico, que Greenberg (1960) classificou-os, a
Os Americanistas ficaram fascinados e, ao mesmo tempo, perple todos, simplesmente como Jê, sem nenhuma discriminação posterior.
xos com as sociedades que ele descrevia. Caracterizavam-se, de um lado, Compartilham um mesmo habitat há longa data. Alguns deles se dedi
por uma cultura de savana e por uma tecnologia rudimentar, ao passo cavam mais à agricultura do que outros mas todas as tribos estavam bas
que, de outro, por uma complexidade institucional ligada a várias tante próximas do estereótipo de caçadores e coletores. Além disso, as
formas de dualismo. Lévi-Strauss defendeu a idéia da ocorrência de uma
expulsão desses povos da área de florestas que originariamente habita
' Greenberg (1960) identificou uma subfamília Macro-Jê, parte da família
vam. Para ele, cada uma das culturas descritas por Nimuendajú "... re lingüística Jê-Pano-Caribe. Essa subfamília foi, então, subdividida em três
presentava uma réplica atenuada — dado o novo ambiente geográfico grupos: Macro-Jê, Bororo e Karajá. Os Jê constituem o tronco principal do
desfavorável — da vida mais elevada na área de floresta" (1944:46), grupo Macro-Jê.

13
12
infoimações sociológicas fornecidas por Niinuendajú sugeriam uma tal tomarem-se cada vez mais elegantes às custas, ou melhor, na ausência de
variação institucional que, inevitavelmente, relembravam aos antropó dados etnográficos. Por outro lado, sinto que uma ênfase demasiada na
logos as tribos australianas. Essas sociedades ofereciam, assim, uma Etnografia pode, a longo prazo, mostrar-se pouco produtiva. Em nosso
oportunidade única para a realização de análises comparativas contro trabalho com os Jê tentamos, portanto, formular hipóteses estmtürais
ladas, que não deveria ser desperrÚçada. passíveis de algum tipo de verificação.
Tal comparação não poderia, porém, ser levada a efeito sem uma Essa preocupação nos impôs certas restrições, pois o material Jê
compreensão mais profunda do funcionamento das sociedades Jê que provavelmente mostre-se pelo menos tão fascinante quanto os dados
aquela que os relatórios de Nimuendajú deixavam entrever. Dispüs-me, australianos. Além disso,, presta-se sobremaneira a análises formais. Se
portanto, a dar prosseguimento ao trabalho, entre os Jê Centrais. Rees- uma pessoa imaginasse que os Jê estivessem, por si mesmos, fazendo
tudei os Xerente,visando a complementar o material de Nimuendajú e a experiências com os vários arranjos sociológicos possíveis mereceria,
preparar-me para pesquisar os Xayante. Visitei-os, em seguida, e tive a sem dúvida, ò perdão, tal a variedade de combinações com que temos
oportunidade de observar um povo Jê cuja organização social não havia nos deparado.
ainda sido profundamente modificada por contatos com o mundo exte Este livro surge, portanto, como a primeira de uma série de publi
rior. Em 1962, graças a uma dotação dó National Institute of Hèalth, cações relacionadas entre si, dedicadas aos Jê. Concentrar-me-ei, aqui,
pude organizar novas pesquisas entre os Jê do Norte. Os trabalhos até na descrição e análise das instituições Xavante com um mínimo de refe
agora realizados em conexão com esse projeto são os seguintes: rências' ao material não publicado, colhido por meus colaboradores. No
capítulo final, procuro situar minha análise, da sociedade Xavante em
seu contexto comparativo.

Desde 1962,Joan Bamberger(Ph.D.por Harvard, atualmen


te lecionando na Brandeis University) trabalha junto aos Kayapó Oxford. 1967.
Setentrionais; Roberto da Matta (Ph.D. por Harvard, lecionando
agora no Museu Nacional, no Rio de Janèiro), com os Apinayé;
Júlio César Melatti (Doutor em Antropologia Social pela USP,
lecionando agora na Universidade de Brasília),com os Krahó e
Terence Tumer (Ph.D. por Harvard, professor da Universidade de
Chicago),com os Kayapó Setentrionais.
Á partir de 1963, Jean Carter Lave (Ph.D. por Harvard,
lecionando na Universidade da Califórnia-lrvine) e Dolores
Newton (Ph.D. por Harvard, pròfessóra da State University of
New York,Stony Brook)têm trabalhado coih os Krikatí.
Desde 1964, Christopher Crqcker (PhD. pçr Harvard,e,
atualmente, professor da Universidade de Virginia) vem traba
lhando com os Bororo.
■j ^

Atribuo especial importância a essa realização simultânea de pes


quisas de campo e análise de gabinete. Tem havido, ultimamente, na
Antropologia, uma tendência no sentido de as análises estmtürais

15
14
Roberto Cardoso de Oliveira deu-nos (e continua a nos dar) acolhida
amiga e apoio irrestrito. Quando todas as outras instituições haviam
esgotado suas possibilidades de vir em nosso auxílio, descobrimos que
podíamos ainda contar com o Cônsul Geral da Dinamarca em São
Paulo, Sr. Adam von Bülow, para a resolução de nossos problemas.
Somos profundamente gratos a ele e à sua esposa, D. Virgínia von
Bülow, por sua extraordinária hospitalidade.
Na verdade, durante todo o tempo que permanecemos no Brasil,
dependemos tão completamente de nossos amigos, que esse simples
agradecimento parece-me inadequado e algo ridículo, diante da exten
são da ajuda que nos proporcionaram. O Prof. Herbert Baldus, do
Agradecimentos Museu Paulista, com quem estudei Etnologia do Brasil, foi sempre
amigo e conselheiro incondicional. O Sr. Donald Darling, durante a sua
estadia em São Paulo, cuidou de nossos bizarros problemas com habi
lidade, bom-senso e perseverança. Ao Sr. e Sra. Anders Glens agradece
mos a inesquecível hospitalidade. O Sr. Manuel Klabin socorreu-nos
Este Livro baseia-se em pesquisa inicialmente financiada pela Fun quando mais precisávamos. Dr. Vera Konigsberger fez o mesmo. Ao Sr.
dação Horniman, através de uma Emslie Horniman Studentship que me Robert Parry, gentilíssimo mentor, agradeço os esforços graças aos
foi concedida em 1957. A partir de 1962, meu trabalho fez parte de uih quais pude dar prosseguimento ao meu trabalho em São Paulo. Harald
projeto (n9 MH 06185) financiado pelo Public Health Service dos Schultz e sua esposa, Wilma Chiara, orientaram-nos em nossas andanças
Estados Unidos. Sou extremamente grato a ambas as instituições por pelo sertão; por sua generosidade, recebemos conselhos, auxílio e hospi
seu auxílio generoso. Gostaria também de agradecer o apoio do governo talidade. O Sr. e a Sra. Frantiseck Schur estiveram sempre prontos a nos
brasileiro por uma contribuição que cobriu parte de minhas despesas de ajudar e a nos hospedar, assim como a Srta. Astrid Sternberger que
pesquisa, em 1958. virtualmente se transformou, ela própria, no comitê encarregado de
Agradeço profundamente à FAB. Foi a boa vontade de seus pilo nossos problemas. A todas essas pessoas temos uma profunda dívida de
tos, no sertão, em transportar-me e à minha família a locais remotos,em gratidão. A última versão da redação original foi concluída no Center
condições muito difíceis, que nos possibilitou concluir com sucesso a for Advanced Study in the Behavioral Sciences,em Stanford, durante o
nossa tarefa. A Missão Salesiana do Mato Grosso foi também extrema período de vigência de um fellowship que desfrutei ali, em 1964-65.
mente hospitaleira e muito generosa ao ceder-nos suas informações Sinto uma saudosa gratidão aos membros desse Centro, por seu auxilio
sobre os Xavante. Quero agradecer ao Padre Mario Panziera particular e pelo "refúgio acadêmico" que me proporcionaram.
mente, por sua assistência, e ao Mestre Adalbert Heide que muito me Mais difícil é especificar todos aqueles a quem devo orientação e
auxiliou no trabalho com os textos em Xavante. Dada a ausência de estímulo intelectual. Tantas pessoas me influenciaram ao longo de meu
material relativo à língua Xavante, procurei fazer o melhor, dentro de trabalho, nos últimos anos, que seria impossível nomeá-las todas. As
minhas possibilidades mas desejo expressar um agradecimento especial a idéias deste livro foram discutidas em seminários em Harvard e no Rio
Ruth McLeod, Joan Hall e Eunice Burgess do Instituto Lingüístico de de Janeiro com os outros membros do Harvard-Central Brazil Project.
Verão (Summer Imtitute of Linguistics) que, generosamente, puseram Quero agradecer aos meus colegas pela colaboração no processo de fazê-
seus dados lingüísticos preliminares à minha disposição durante as fases las tomar forma. Dr. Rodney Needham, da Universidade de Oxford, foi
finais de minha pesquisa. A Divisão de Antropologia do Museu Nacional o meu orientador na época em que redigi a primeira versão. Agradeço
do Rio de Janeiro e, em especial, o seu diretor,na época, Prof. Dr. profundamente seu constante interesse e sua orientação desprendida.

16 17
Ele não só influenciou o meu pensamento como definiu um padrão ana
lítico que procurei atingir. Por fim, deve ficar claro para os meus leito
res, que devo muito ao Prof. Lévi-Strauss. È-me particularmente agradá
vel reconhecer minha dívida para com ele pois já discordei dele em
outras ocasiões e volto a fazê-lo neste livro. Mesmo assim, minha argu
mentação deriva de seu trabalho pioneiro no campo da Antropologia
Brasileira. O trabalho do Harvard-Central Brazil Project é,em certo sen
tido, um diálogo com o Prof. Lévi-Strauss. Estamos imensamente cons
cientes de nossa boa sorte por tê-lo como nosso interlocutor.
CANELLA

kayapoTS'^'''''^*^'
kayapo^a^aye
KRAHO
to/
{ tapWe/ I •51 SHERENTE
r I ü. í) ? Ilha
^Bananal
NAHBIKWARa"^ á^ARAJA
Cuíobo*
BORORO
6ros*lio
Goíonto•
li
r>KÂDIWEU

Rio de Janeiro

v\KAINGANG

Mapal
Localização das principais tribos mencionadas no texto.

18 19
quanto em algum outro lugar: numa cidade próxima, por exemplo. Da
mesma forma, nem sempre mencionam outros detalhes pertinentes
destes contatos. Nem sempre somos informados de como o pesquisador
foi recebido pelas pessoas que ele estudou e de como ele coletou sua
informação. Dificilmente se sabe se ele se hospedou com as pessoas
que foi estudar ou ocupou uma moradia independente na mesma comu
nidade ou a alguma distância dali ou, ainda, se ele fez sua base nurna
comunidade totalmente diferente e viajava para fazer sua pesquisa.
De fato, é a qualidade da interação que importa e não a quantidade.
Um bom pesquisador de campo pode obter melhores dados em seis,
Introdução meses do que um pesquisador inativo em um período de dois anos.Da,
mesma forma, refeições diárias com as pessoas que estuda não compen
sarão a falta de percepção do antropólogo. É por isso, principalmente,
que se insiste em que a qualidade desta experiência seja descrita tão
detalhadamente quanto possível, de modo que os leitores estejam
adequadamente situados para avaliar o conteúdo do relato que se segue.
Os Antropólogos'costumam ser reticentes a respeito das circuns Tais descrições podem chegar a ser embaraçosas. Os antropólogos
tâncias em que realizam seu trabalho de campo. Acho lamentável que freqüentemente relutam em admitir o quanto se perderam ou foram
assim seja. É, sem dúvida, tão importante conhecer as condições nas incapazes de compreender seus informantes. Alguns de nós talvez nem
quais foi feito um estudo dè campo quanto saber as condições de um gostem de admitir para si mesmos que tipo de imagem as pessoas que
experimento. RecoiAecidamente, as "condições" do trabalho de campo estudamos fizeram de nós e certamente não gostaríamos de ver o assun
são difíceis de serem registradas. Para muitos antropólogos, procurar to sendo discutido imparcialmente por nossos colegas. Concordamos,
um erivolvimento total de mente e personalidade com as pessoas que portanto, publicamente com a convenção de que as afirmações de um
estudam é uma experiência cracial, algo bastante estranho às ciências físi- pesquisador de campo só podem ser alvo de desafio nos seus aspectos
caSí„ Certamente não gostaria de subestimar este aspecto empáticò da teóricos ou por serem inconsistentes; nunca porque temos boas razões
empresa. Empatia por si só, no entanto, não basta. Um pesquisador de para acreditar que tal pesquisador não estivesse em condições de fazê-
campo pode sentir que' conhece algo a. respeito do povo que estudou las. Tais sugestões são tabu e, portanto, relegadas ao plano dos comentá
mas deve mostrar a seus colegas o modo pelo qual conheceu(ou pensou rios à boca pequena no círculo dos antropólogos onde ocupam,segundo
conhecer) tal população. Isso só pode ser conseguido através da tentati tenho notado,um lugar proeminente.
va de descrição do modo peculiar pelo qual o pesquisador chegou ao Sugiro que é chegado o momento de abandonarmos a mística que
que ele agora pede aos leitores que aceitem como sendo "conheci envolve o trabalho de campo e tornarmos convencional a descrição,
mento". com algum detalhe, das circunstâncias de coleta de dados, de modo a
Estou ciente de que tais descrições dificilmente satisfazem a estarem tão sujeitas a exame minucioso quanto os dados propriamente
todos. Esta, porém, é uma razão insuficiente para justificar sua omissão ditos. Isto poderia melhorar o padrão científico dos trabalhos antropo-.
ou, pior ainda, para fomecer um resumo inadequado das circunstâncias lógicos, já que estaríamos menos inclinados a tomar os escritos de
em que foi realizada uma pesquisa específica. Atualmente, a maior nossos colegas em confiança'; poderia também eliminar um pouco
parte dos relatos antropológicos especificam o tempo de permanêhcia
do autor no campo mas nem sempre indicam quanto deste tempo foi ' Evans-Prjtchaid tem reafirmado, consistentemente, que os antropólogos não
empregado de fato no contato diário com a população estudada e são críticos no uso de suas fontes documentais o que, naturalmente, inclui
relatórios de campo (cf. 1962:50).

20
21 !
dos chavões nos relatórios de campo. Vendo-se o trabalho de campo uma língua a partir da outra. Devo esclarecer que minha formação em
desapaixonadamente, poder-se-ra perceber que há situações de campo nível de graduação havia sjdo obtida na área de letras^, Quando vim
que são mais ou menos difíceis, assim como há línguas muito difíceis e ao Brasil, em 1953, falava um espanhol fluente mas nada de português.
línguas mais.fáceis. ■Não há,porque, então, estigmatizar o antropólogo Por volta de 1954, já conseguia dominar o português e, durante dezoito
cujos dados, colhidos em circunstâncias difíceis, são menos "ricos" do meses, estudei Etnologia na Escola de Sociologia e Política da Universi
que aqueles de seus colegas, contanto que não se façam reivindicações dade de São Paulo, com o Professor Baldus. Nesta época, li todo o
ou se tirem conclusões exageradas a partir deles. Ao que tudo indica, material disponível sobre os Xerente e os Xavante. Eu já falava portu
seria melhor ter poucos fatos bem atestados do que uma massa de fatos guês quando füi ao campo pela primeira vez.
estabelecidos ambígua ou impropriamente mesmo que, com muita fre Minha esposa e eu trabalhamos durante sete méses entre os
qüência, os antropólogos julguem um relatório de campo em termos de Xerente. Fomos, depois disso, obrigados a deixá-los devido à falta de
quantidade ao invés deste tipo de qualidade. verbas e conseqüentes problemas de saúde". Naquela época, havia
Pode parecer que este preâmbulo é oferecido aqui com a intenção pouco material lingüístico Xerente disponível e nada que se aproxi
de desarmar a crítica ao relatório de campo que estou prestes a apresen masse a uma gramática ou dicionário da língua. Tive, portanto, que
tar. De fato, eu considero realmente difíceis as circunstâncias de meu aprendê-la à medida que convivia com ela., No final de nossa estadia eu
trabalho entre os Xavante, segundo os padrões antropológicos normais'. conseguia entender conversas em Xerente e sabia expressar-me com uma
Especifico-as, no entanto, tao bem quanto me é possível, por uma fluência razoável à respeito dè um número limitado de assuntos. Com
questão de princípio. Estou bastante coiisciente de algumas impro- um pouco de ajuda, era-me possível compreender qualquer coisa que
priedades em meus dados e eu não creio que mascará-las sirva a qual fosse dita em Xerente mas só apanhava a essência das conversas rápidas
quer propósito acadêmico. Pelo contrário, chamarei a atenção do leitor ou dos discursos formais que os Xerente fazem com freqüência.
para elas sempre que for possível. Finalmente, caso minha especificação Em dezembro de 1957 nós voltamos ao Brasil com a intenção de
das condições nas quais este trabalho foi feito for considerada insatisfa passarmos aproximadamente um ano entre os Xavante. Infelizmente,
tória posso, pelo menos,' alegar que tive poucos modelos nos quais me dificuldades burocráticas (das quais a maior foi a recusa, durante três
basear. , meses, da alfândega brasileira em liberar nosso equipamento) impediram
Riz cinco viagens ao campo, no Brasil Central. Em 1955-6, traba que chegássemos ao campo com a presteza que desejávamos e que tivés-,
lhei entre' os Xerente e os Krahó voltando a passar o verão entre os semos uma permanência tão longa quanto havia sido planejado.
Xerente, em 1963. Neste meio tempo, trabalhei entre os Xavante em, Efn fevereiro de 1958, viajei pela Força Aérea Brasileira, âo F^osto
1958, tendo voltado no verão de 1962 e, de novo, em 1964, pára uma do Serviço de Proteção aos fndios em São Domingos,no rio das Mortes",
visita curta. Este livro tráta sobretudo dos Xavante e são as circuns numa viagem preliminar de reconhecimento junto aos Xavante. Desço- .
tâncias de minha pesquisa entre eles que passo agora a descrever. bri que este. grupo Xavante havia se estabelecido a uma distância do
Esta pesquisa foi planejada em 1954. Nesta época, os primeiros
Xavante tinham mal e mal estabelecido suas primeiras relações pacíficas
com o mundo exterior e não parecia ser aconselhável o trabalho de Não em Lingüística, porém. Tenho bom ouvido e uma cérta facilidàde para
antropólogos entre eles. Além disso, não se podia esperar que os lindas. Quando cheguei ao Brasil, falava francês, alemão e espanhol com
fluência, falava bem. o dinamarquês e bastante bem o russo. Graduei-pie em ,
Xavante falassem português. Esperava ser capaz de aprender Xerente a espanhol e russo pela Universidade de Cambridge.
partir do português ao mesmo tempo que adquirir alguma-experiência Nossa verba para o ano todo, incluindo todas as despesas rio campo, era o
no Brasil Central, antes de embarcar na pesquisa Xavante, qúè seria mais equivalente a 650 libras esterlinas. Não levamos, portanto, alimentos para o
campo. Infelizmente, os Xavante tàmbém não tinham fartura;. O-resultado
difícil. Supus, também, que um conhecimento de Xerente me tornaria foi que .nossa saúde foi afetada, especialmente a de minha esposa, que ficou
apto a aprender Xavante uma vez no campo. doente por estar subnutrida.
Todó o projeto dependia do progresso feito'na aprendizagem de Veja o mapa 2.

22 23
Posto perccrrível em quinze minutos de caminhada. Só me foi possível
t haviam sido enviados rio acima, de canoa, para comprar comida. Eu
ir definitivamentente para o campo em começos de abril. Fui, então, de precisava de farinha de mandioca para ter o que oferecer aos Xavante
avião para o mesmo Posto, acompanhado por minha esposa e meu filho, em retribuição à minha presença em suas terras e também para que eu
que tinha acabado de fazer seu primeiro aniversário®. pudesse ter um estoque suplementar de comida.Entretanto,trabalhei
Logo que chegamos a São Domingos, fomos hospedados em uma com uns poucos Xavante, inclusive o chefe (que havia permanecido na
casa junto ao Posto; Vários Xavante da aldeia tinham vindo ao campo aldeia) e procurei melhorar o meu conhecimento de sua língua.
de pouso logo que nosso avião aterrissara e ajudaram a carregar nossa
bagagem até o Posto. Eles a colocaram aos pés de um homem idoso, que A farinha chegou cinco dias depois. Parti, então, cóin um só
viemos a saber ser o chefe da aldeia. Ele demonstrava claramente espe Xavante que me guiaria até os demais. Viajei com eles durante todo o
mês de maio e o de junho, enquanto minha esposa e filho ficavam na
rar que abríssemos os baús ali mesmo para distribuir seu conteúdo. Foí-
nos difícil recusar-lhe isso,já que estes Xavante haviam se acostumado a aldeia. Quando voltei a São Domingos, soube que meu filho estava
serem cortejados com presentes. Não fazia ainda cinco anos que oficiais doente, precisando de cuidados médicos. Para nossa sorte, um missioná
de altas patentes do Exército e da Força Aérea haviam tido por bem rio que vivia rio acima (em relação ap Posto) decidira fechar sua missão
e vender seu barco. Ele tinha, portanto, que fazer a viagem descendo o
voar até o.Brasil Central, visitar estes índios recém-pacificados, oferecer- rio das Mortes até a sua foz e subir o Araguaia até Aragarças, onde ele
lhes presentes sofisticados em nome do govemo e tirar fotos em abraços poderia entregar o barco a seu comprador. Ele concordou em levar
afetuosos com dignitários tais como este chefe. minha esposa e meu filho até Aragarças, onde eles poderiam conseguir
Conveiici-o, afinal, de que faríamos uma grande distribuição de um avião que os levaria até São Paulo, com a condição de que eu os
presentes tão logo mudássemos para a casa que eu esperava que seu acompanhasse. Fizemos, então, uma viagem de doze dias, Araguaia
povo construísse para nós na aldeia. A casa ficou pronta aproximada acima.
mente duas semanas depois de nossa chegada e pudemos, então, mudar De Aragarças voltei imediatamente a São Domingos, pela FAB.
para a aldeia. Neste meio tempo, eu havia descoberto que havia uma Estávamos em meados de julho. Entre os dias 16 e 28,acompanhei um
diferença entre a língua Xavante e Xerente, principalmente com relação grupo de caçadores à procura de carne para o ponto alto das festas da
à pronuncia, diferença esta suficiente para dificultar muito a minha iniciação. Voltamos à aldeia, onde as cerimônias chegaram ao fim por
compreensão do que era dito. Havia também, no entanto,semelhanças volta de 4 de agosto.
suficientes para que eu pudesse me fazer entender de uma maneira No dia sete de agosto, a comunidade partiu novamente para uma
elementar. expedição de caça e coleta. Viajei, por terra, até a missão salesiana de
Quatro dias depois de nossa mudança para a aldeia(no fim da ter Santa Therezinha, onde havia üm outro grupo Xavante. Descobri,
ceira semana de abril), a comunidade partiu em luna expedição de caça porém, que esta comunidade também partira numa dessas expedições.
e coleta através da região da Serra do Roncador. Não os acompanhei Havia, no entanto, uns poucos Xavante que haviam ficado e eu pude
pois estava esperando a chegada de uma encomenda de farinha de man então trabalhar com eles. Gostariam especialmente das fitas que eu ha
dioca que havia feito. O avião de suprimentos que deveria,ter visitado via gravado em São Domingos, que ouviram fascinados. Não apenas as
São Domingos não havia chegado' e alguns dos trabalhadores do Posto explicaram para mim como também comentaram livre mas desfavoravel-
mente a respeito dos acontecimentos daquela comunidade..
Um relato das circunstâncias em que realizamos nossa pesquisa de campo No começo de setembro, um avião particular trouxe um passa
entre os Xerente e os Xavante foi divulgado em outra obra; Maybury-Lewis
1965a. ' geiro até a missão e eu pude, então, voltar a Campo Grande e, de lá a
Estas expedições são discutidas exaustivamente no Capítulo II. São Paulo.

Este avião de suprimentos foi tirado da rota em conseqüência da necessidade Duas semanas mais tarde consegui junto à FAB transporte para
de apoio aereo durante à construção de Brasília. Ele não desceu em São • minha família e para mim até São Domingos. Os membros desta
Domingos durante nossa permanência nenhuma vez. comunidade estavam apenas começando a repovoá-la, voltando de sua

24 25
expedição. Fiquei com eles até o fim de novembro, quanto parti defini
tivamente. Eu havia permanecido no campo durante pouco mais de sete idiossincrasia e c.ostumavam pigarrear raidosamente, fingindo que iam
meses no total(excluído o tempo em que estive longe dos Xavánte) cuspir sempre que queriam chamar minha atenção, por exemplo,
quando eu estava tentando tomar minhas notas. Mais sério era o fato de
_ Nos períodos em que os Xavante estavam em sua aldeia-base de que era impossível conseguir ter uma conversa em particular com qual
Sao Domingos, minha família e eu vivíamos numa casa pequena, vizinha quer Xavante. Ocasionalmente eu conseguia conversar com um deles
a do chefe. Nosso grupo doméstico diferia dos demais apenas por abri apenas ap ençontrá-lo só em sua casa. Estes encontros, porém, nem
gar uma so família. Nossa casa, porém,estava longe de ser nosso Jastelo sempre podiani ser antecipados e não aconteciam necessariamente com
Os Xavante entravam e saíam o dia todo, com mais liberdade do que o a pessoa certa. Ao mesmo tempo, era muito difícil conseguir.privaci
fariam nas casas uns dos outros. Eles normalmente entram e saem das dade suficiente para fazer minhas anotações, quanto mais analisar meus
casas de seus consanguíneos mas evitam as de seus afins. Uma vez que o dados. Eu poderia naturalmente fazê-lo com ós Xavante presentes mas
chefe me tratava como um filho e se dirigia a mim usando o termo cor isso significava uma pressão considerável. Fazê-lo tomou-se virtualmen
respondente, éramos automaticamente tratados como parentes consan te impossível durante o período em que a casa do,chefe foi recoberta
guíneos pelos membros de seu clã. Os membros de outros clãs não me de palha. Todos os seus ocupantes mudaram-se para nossa casa enquan
viam realmente como um afim. Estávamos portanto numa posição que to a sua estava sendo recuperada. Como choveu torrencialmente nos
exigia que mantivéssemos a casa aberta a toda a comunidade. Esta dias que se seguiram, o trabalho de cobertura da casa foi interrompido
situaçao tinha suas vantagens pois ficamos conhecendo a todos mas e ficamos confinados com dezessete pessoas e.seus bichos de estimação
tmna,também,suas desvantagens.
numa casa do tamanho de üm quarto pequeno; .
As.pessoas que eram mais propensas a passear em nossà casa eram Nos primeiros dias de minha estada em São Domingos,fiz o plano
geralmente as que tinham menos a dizer e sua presença inibia outros da aldeia que, na época, continha dezesseis casas além da casa dos soltei
Xavante nas raras ocasiões em que eles pareciam dispostos a conversar. ros. Tentei, então, definir quem morava em cada casa. Fazê-lo não foi .
Alem disso, os muitos filhos do chefe eram nossos "parentes" mais pró tão fácil quanto parece. Os Xavante não estavam acostumados a serem
ximos tanto espacialmente quanto conceitualmente. Em conseqüência-, visitados em suas casas e, na ocasião, deram-me claramente a entender
eles praticamente viviam sob o nosso teto. Eram os Xavante. mais
diíiceis de se lidar e os.que mais exigiam presentes e favores. Eram, de que não era bem-vindo. Eles se ressentiam com as minhas perguntas e
certa forma, os informantes que nos ajudavam menos mas, ao mesmo suas respostas eram relutantes e incompletas. Antes que eu tivesse
tempo, eu tinha a tendência de me identificar com eles. Esta situação chegado a conhecer todos os habitantes da aldeia, para não falar em
criava sentimentos de ciúme e hostilidade coiii relação a mim nas definir sua residência, a comunidade dividiu-se em três grupos e partiu
numa expedição de caça e coleta.
mentes de outros. Xavante cuja companhia eu teria, várias vezes,"
preferido. Viajei com um destes grupos durante, aproximadamente, cinco
A falta completa e perpétua de privacidade exerceu sobre nós semanas. Neste período, vivi num abrigo ocupado pelos filhos do chefe
uma pressão que se tomou quase intolerável à medida que os meses (meus irmãos), sua filha e seu genro. Estes abrigos dão cobertüra ao
passaram. Sempre havia alguns Xavánte descansando,ou dormindo em espaço mínimo suficiente para que seus ocupantes se deitem muito
nossa casa. Alguns deles passavam a noite conosco, invariavelmente- juntos, como sardinhas em lata. Se há muitas pessoas num abrigo, como
outros vinham passar as horas mais quentes do dia sob nosso teto,' no nosso caso, todos os seus ocupantes não podem dormir de costas ao
mesmo tempo; caso contrário, os que dormem nas pontas são pressio^
. cochüando e nos pedindo coisas, alternadamertte. Isto criou vários pro nados de encontro à palha da cobertura lateral. Se um homem alto esti
blemas. Alguns deles, pessoais. Nós não nos. incomodávamos com a
ca suas pernas, seus dedos dos pés ficam para fora, na entrada do abrigo.
Xavante mas fazíamos, de fato, objeção Levei algum tempo para aprender a dormir nessas cabanas pois eu tinha
ao hábito de cuspirem no nosso pedacinho de chão óu de expelirem seu
catarro na palha de nossa casa. Eles se divertiam muito com essa nossa forçosamente que deitar entrelaçado às outras pessoas e permanecia
acordado pela contenda de seus joelhos e cotovelos ou por tê-los.dor-
26
27

L
mindo.sobre mim. Os Xavante me davam a impressão de serem capazes acharam muita graça nisso tudo e estavam, com toda certeza, se diver
de empurrar-se uns aos outros sem acordar. Além disso, os companhei tindo com a minha ignorância generalizada e a minha incompetência em
ros eram sempre muitos ao meu redor pois eu tinha cobertores e as viver no seu habitat.
noites chegam a ser dolorosamente frias no Planalto Central. Os Este sentimento se cristalizou no dia em que acompanhei um
Xavante costumam dormir até que a friagem os acorde irremediavel grupo de caçadores e me perdi, não conseguindo voltar para o acampa
mente. Saem, então, para acocorar-se perto do fogo até o nascer do sol. mento. Saí com eles bem cedo uma manhã,logo que gritos excitados de
Em meu abrigo havia, invariavelmente, pelo menos três pessoas ^ue pre "Porco, porco! Depressa, atrás deles!" tinham feito com que todos os
feriam um pedaço de meu cobertor a esta outra alternativa. homens saíssem correndo de seus abrigos. Também corri, espingarda na
Durante o dia, eu acompanhava os homens nas suas várias ativi mão, com a impressão de que uma vara de caititus estava ali por perto.
dades até sentir que já sabia aproximadamente o que todos estavam O que aconteceu, porém, é que me vi incluído num grupo de caçadores
fazendo e como o faziam. Depois disso, eu costumava passar o dia indo que, aí por volta do meio-dia, não tinha matado nenhum porco ainda
a vários lugares e conversando com pessoas diferentes. Eu os achei mais mas já vira pegadas suficientes para estimular seu apetite. Planejaram,
comunicativos do que quando estavam-na aldeia. então, prolongar a caçada por dois dias ou mais. O programa era exte
Eles estavam intrigados com o fato de eu os estar acompanhando nuante e desconfortável. Pior ainda: era improdutivo. Eu já havia acom
na expedição pois nenhum estranho o havia feito até então. Este fato panhado muitas caçadas e meus companheiros ficavam sempre muito
provocava sua curiosidade a meu respeito, principalmente a das mulhe ocupados e, por isso, não comunicativos. Procurei escapar sem perder a
res. Eu tinha me tomado persom grata junto aos ocupantes do abrigo moral. Surgiu a oportunidade quando mataram um veado e queriam que
ao dar-lhes metade do meu estoque de farinha de mandioca logo que- alguém o carregasse de.volta ao acampamento. Ofereci-me para a tarefa.
cheguei. Depois disso, sempre que eu preparava minha comida, dividia-a No caminho, porém, perdi-me na mata fechada.
com mais duas ou três pessoas da casa. Eram várias misturas dos meus Devo ter ficado perdido durante uma hora e pouco mas a expe
quatro ingredientes: leite em pó,sopas instantâneas, açúcar e farinha de riência foi desagradável. Eu tinha tirado minha roupa para que ela não
mandioca. Em retribuição, eu recebia uma porção do alimento que che ficasse endurecida pelo sangue e pelas entranhas do veado e o resultado
gava até nossa cabana. Chegava com menos regularidade do que eu esta foi que fiquei muito arranhado e com vários cortes enquanto tentava
va acostumado e eu ainda não havia desenvolvido o hábito Xavante de descobrir a saída. Tentei entrar num córrego até que ele cruzasse uma
comer prodigiosamente quando havia comida e depois seguir em frente, picada mas, de repente, tornou-se fundo e eu submergi, com veado e
sem me alimentar. Em conseqüência, eu pedia e recebia uma porção tudo. Durante o episódio, minha faca de caça foi lançada para fora da
menor que a dos outros. Essa atitude não desagradava os meus anfi bainha e eu a perdi. Quando cheguei ao acampamento^ portanto, eu
triões.
estava marcado fisicamente pela experiência e os Xavante notaram
Durante a expedição eu percebi que estava sendo, cada vez mais, (antes de mim) que a faca tinha se ido. Esses detalhes foram todos
identificado com o papel de bobo não da corte mas do acampamento iinbricados uns aos outros de modo a formar uma história a meu respei
ou, talvez, de mascote. O Xavante que havia sido meu guia e me acom to que garantidamente provocava gargalhadas no círculo dos homens e
panhado desde São Domingos apresentou-se ao conselho dos homens, que era contada de novo sempre que possível.
como era costume, na tarde de nossa chegada. Fez, então, um relato ESsas minhas excentricidades, porém, produziram um tipo de
detalhado de nossa caminhada de dois dias e meio,imitando tal qual um tolerância divertida a meu respeito entré os homens que eu considerei
especialista o meu Xavante desajeitado e contando absolutamente tudo muito mais produtiva do que a áspera hostüidade de antes. Se brincáva
o que eu havia dito e feito roz/íe,incluindo tudo o que eu tinha mos às minhas custas, ao menos brincávamos e podíamos,então, come
deixado de ver. Incluiu também o fato de eu não ter sido capaz de, çar a conversar sobre outras coisas. Meu domínio do Xavante, no entan
certa manhã, encontrar a mula de carga que, apesar da pela, tinha to, era ainda tão mdimentar que a conversa não ia muito longe. Não
vagado por vários quilômetros no cerrado durante a noite. Os Xavante conseguia fazer muito mais do que observir, anotar a composição do
28
29
1 I

grupo e as relações entre seus membros para entrar em discussões preli mente, invariavelmente os inibia completamente. Eles chegavam mesmo
minares sobre as instituições Xavante, das quais eu tinha apenas a noção a reagir negativamente a qualquer suspeita de uma "entrevista", de
mais obscura.
modo que todo meu trabalho teve de ser conduzido à base de conversas
Algum tempo depois eu fui ao encontro de um outro dos grapos informais com uma pessoa ou outra.
de São Domingos. Vivi na casa dos solteiros que era,se possível, mais O que frustrava mais era escutar, todas as noites, a oratória
desconfortável ainda que o outro abrigo onde eu já havia estado. Os impressionante dos homens em seu conselho,sem ser capaz de entender
meninos que o ocupavam é que o haviam coberto de palha, trabalho mais do que a essêricia do que era dito. Se eu pedia explicações para os
feito pelas mulheres em todos os outros casos. Estava tão malfeito que meus vizinhos, eles geralmente não ajudavam muito pois os Xavante, na
a casa era banhada pelo sol e cheia de insetos durante o dia e, à noite, quela época, líão tinham nenhuma experiência nem com traduções
ventava dentro dela e dormia-se ao luar. Além disso, os rapazes me aju nem com paráfrases. Ou repetiam o que tinha sido dito, às vezes um
daram a acabar com a provisão de farinha imediatamente, de modo que pouco mais alto, ou "explicavam"-no, dizendo:"Ele está muito bravo"
tive que viver à base da dieta Xavante.
ou ""Ele falou muitas coisas". Havia certas orações reconentes que
Uma vez obtidos os dados a respeito da composição destes dois aprendi de tanto ouvi-las em seus contextos e tentar descobrir seu signi
gmpos, pude saber a do terceiro, por eliminação. Quando voltamos a
São Domingos no fim de junho, portanto, eu tinha os dados essenciais a ficado — um processo extremamerite lento.
respeito da comunidade e estava em condições de fazer perguntas inteli De qualquer modo, os Xavante tinham uma desconfiança aguda
gentes, se bem que ainda sem expressá-las adequadamente. dos brancos, o que fez com que os estágios iniciais de minha pesquisa
Esta barreira lingüística foi a mais.difícü de todas e eu nunca a ■fossem ainda menos produtivos do que poderiam ter sido. Mesmo
superei satisfatoriamente. Não^havia como aperfeiçoar.meu conheci quando tínhamos conseguido superar, até certo ponto, esta reserva, nós
mento a não ser pelo método direto. Ainda não.havia gramáticas ou os achávamos naturalmente tão calados que eu às vezes perdia a espe
dicionários de Xavante® e as poucas listas de palavras já publicadas eram rança de conseguir informações com eles. Grande párte do seu e do
antiquadas e sem utilidade. Além disso, não havia nenhum Xavante nosso tempo era dedicado, de qualquer forma, a atividades tais como
nesta comunidade que falasse ao menos um pouco de português. Quase caça, obtenção de alimento e viagem, atividades pouco propícias à con
no fim de minha permanência em campo,fiz o possível para encontrar, versa.

num povoado próximo, um Xavante que era conhecido como sendo No fim de junho de 1958, tínhamos estabelecido com os Xavante
bilíngüe. Seu português consistia de umas poucas palavras e era muito de São Domingos o que se pode considerar uma relação satisfatória para
pior que o meu Xavante. Da mesma forma, os únicos brancos que fins de pesquisa. Eles haviam aceito nossa presença e nos incluído em
conheci e de quem se dizia que "falavam Xavante" dominavam apenas suas atividades. Tinham chegado mesmo a aceitar que entrássemos em
algumas noções da língua, menos do que eu mesmo conhecia. Não suas casas para conversar, do mesmo modo que procuravam a nossa. A
tinha, portanto, outra opção a não ser ir aprendendo a língua no decor presença de meu filho foi-nos de grande ajuda neste sentido. Ele brinca
rer de meu trabalho. Os Xavante de São Domingos não eram, rio entan va com as crianças da aldeia e, assim, introduzia-nos em casas onde não
to, bons professores. Tinham ainda uriia vida ativa e estavam pouco éramos ainda bem-vindos. Quando minha esposa precisou levá-lo para
incliriados ao tédio que é ensinar sua língua a um estranho. Eu não con- São Paulo, os Xavante pareciam realmente consternados e perguntavam
I .
seguia nem que eles me contassem histórias. A visão do meu microfone, insistentemente quando eles estariam de volta. Foi principalmente por
quer deixado descuidadamente por perto, quer oferecido a eles aberta-' isso que decidimos trazê-lo de volta ao campo quando ele se recuperou.
Foi nos dias que se seguiram à volta de minha esposa e filho, em setem
bro, e à entrega dos presentes recém-trazidos por eles, que comecei a
sentir que nossa presença não era totalmente aborrecida para nossos
anfitriões. Pela primeira vez, os Xavante vinham nos.visitar sem ficar pe
tate^f Xavante estavá sendo preparada pelo Summer Insti- dindo ou exigindo alguma coisa. Pela primeira vez, também, eles conver-
30
31
1
savam livremente comigo, ao invés de precisar fazer-Ihes perguntas o Mortes, num lugar chamado Õ Tõ(Água Parada). Além disso, os Xavan
tempo todo. r o . «
te de São Domingos tinham aprendido a gostar dos produtos do mundo
H ados
A coados em São também
Domingosjápor
tinha umadovisSo
causa melhor dos
meu trabalho meus
em Santa dos brancos. Tornavam-se, portanto, mais acessíveis aos estranhos que
lhes traziam presentes. Creio, porém, que eles se lembravam de ftós,
Therezmha. Consequentemente, a essência da compreensão que tinha principalmente de minha esposa e de meu filho, de forma favorável.
dos Xavante, em 1958,foi adquirida durante os meses de outubro e no
I ' I
M
vembro, antes de precisar voltar à Inglaterra. Baseei minha tese de Aliás eles se mostraram muito desapontados por eu ter voltado só. De
i , '1
doutoramento nestes dados. qualquer forma, o chefe construiu um abrigo para mim, com suas pró
i' ' I
prias mãos e eu não me lembro de nenhuma noite em que menos de
Pude voltar ao Brasil em 1962 e visitar novamente os Xavante. Os doze pessoas tivessem dormido ali comigo.
I objetivos da viagem eram: dar assistência a um grupo de geneticistas Passei onze dias em São Domingos e, neste tempo,fiz uma viagem
durante sua pesquisa sobre os Xavante;observar as modificações ocorri a O Tõ. Seus habitantes estavam todos fora, numa expedição de caça e
das desde 1958; e, sobretudo, coletar material em outras comunidades coleta, mas pude fazer um plano da aldeia. Meu guia foi um habitante
I I I
XavMte para checar minha conclusões tomadas a partir do estudo em de O Tõ que, coincidentemente, fora visitar São Domingos. Ele me
Sao Domingos.
falou os nomes de tantos habitantes de cada casa quanto ele conseguia
Fui para São Domingos de avião no dia 17 de julho,com os gene lembrar, de modo a que eu pudesse ter uma idéia de composição da
ticistas. Lá, fm recebido carinhosamente pelos Xavante e,imediatamen
te, passei a viver na aldeia, enquanto o gmpo de médicos se alojava no comunidade e estimar sua população total.
De São Domingos, voltei a Aragarças num avião da FAB. Daí,
Posto do Serviço de Proteção aos Lndios'. Nesta ocasião, não houve tòmei um táxi aéreo e fui para a missão salesiana de São Marcos, onde
problemas de relacionamento. Muitas coisas haviam mudado desde passei dez dias. Neste período, fiquei na missão e passei todos os dias
1958. Os Xavante não eram mais arrogantes ao tratarem com estranhos.
trabalhando na aldeia, situada a cerca de cem metros da sede da missão.
Suas terr^ tinham sido invadidas. A população da aldeia havia sido Fiz um censo aproximado e marquei a filiação residencial e faccional
reduzida à metade devido a epidemias e a guerras mortais. Vários de das pessoas nesta aldeia. Consegui obter muita informação a respeito
seus habitantes haviam cindido e ido morar do outro lado do rio das dos Xavante das comunidades que eu havia estudado anteriormente pois
eram vigorosamente hostilizados em São Marcos onde havia muita dis
O encarregado do Posto de São Domingos deixou bem claro, nesta ocasião posição para falar sobre os seus aspectos negativos.
Ao mesmo tempo,recebi valiosa"assistência por parte de Adalbert
Tnn H receber-me em seu Posto. Isto não interferiu no meu Heide, um irmão leigo que estava com os Xavante desde 1958. Foi o
Santo ® apresentaram quadro tão real primeiro não-Xavante que eu conheci com um bom domínio da língua.
LlSa
estivera em Tão n'
Sao Domingos pesquisa. Tratava-se
como encarregado, durante da mesma
minha visitapessoa que
anterior
Quando deixei os Xavante, em 1958. nossas relações erS S Sas de Generosamente, forneceu-me glossários iingüísticos, textos e outras
mha parte, os ressentimentos não eram tão fortes quanto obviamente o anotações, que me possibilitaram esclarecer vários pontos. Na atmosfera
TnSe tlsl
RrLu ao 1' ♦
as^difer^tTe havia
relevante notar que os agentes do órgão oficial rio
da missão, mais sedentária, os Xavante idosos eram mais facilmente per
suadidos a contar histórias e, assim, tive oportunidade de gravar várias
áreas■ 9
ot ^Iropologos
anTonóio® sociais permanecem
Presença dos
umantropólogos
longo temposociais em suas
no camno e fitas.
consequentemente, mtroduzem um elemento externo- e não bem-vindo -à Saindo de São Marcos, fui de avião até Xavantina, onde tentei
lista
hsta amador °com ® aos
relaçao '"dios- Se de
índios o encarregado
seu Posto, oseantropólogo
pretende um então
especia-é conseguir um barco que me levasse até a aldeia Xavante de Areões. Isto
também uma ameaça neste sentido. Dado que os antropólogos trazem consi custou um pouco pois, por incrível que pareça, Xavantina não dis
go autorizações expedidas pela agência central do órgão oficial teoricamente
o encmegado deveria assisti-los.Isto,porém,nem sempre acontece A ^atór punha, quando ali cheguei, de nenhum barco aproveitávei. Consegui,
p^te dos antropologos dá-se por satisfeita se o encarregado não dificulta efe afinal, alugar uma canoa e visitar Areões, apenas para constatar que seus
tivamente o seu trabalho, como já aconteceu algumas vezes. habitantes estavam fora, numa expedição. Fiquei, porém, no Posto do

32
33
Serviço de Proteção aos índios e obtive a ajuda de um informante Xa-
vante que, por coincidência, voltara à aldeia. Pude, então, fazer o que Minha última visita aos Xavante aconteceu em março e abril de
fizera em O Tõ:um mapa da aldeia, acrescido dos nomes dos ocupantes 1964. Eu estava no Brasil nesta época, engajado num outro estudo e
de cada casa. Consegui, também, obter informações a respeito de sua- aproveitei a oportunidade para passar dez dias em São Marcos. O objeti
filiação faccional, importante pelo fato de que esta comunidade,recém- vo era elucidar outros pontos de minha anáUse das instituições Xavante
formada, se constituía num amálgama de vários grupos que tinham esta com o auxílio de informantes Xavante. Escolhi, então,São Marcos, pois
do envolvidos em guerras rio abaixo. esperava poder contar com a habilidade lingüística de Adalbert Heide e
Voltei, então, para Xavantina e esperei uma semana, até obter encontrar ali alguns Xavante suficientemente sofisticados para explicar-
me certos conceitos.
uma caminhonete para fazer a viagem — difícil — até Aragarças. Fiquei
preso em Aragarças durante mais de uma semana porque o avião que me Adalbert Heide não estava na missão mas consegui satisfazer meus
levaria a Cuiabá não podia voar devido a problemas no motor. Chegan propósitos literalmente promovendo seminários Xavante na missão.
do a Cuiabá, fretei um táxi aéreo que me levou ao Posto Simões Lopes. Pude contar com a participação de três Xavante mais idosos e lhes apre
O posto era vizihho, de um lado, de uma aldeia de Bakairl muito sentei questões a respeito dos assuntos com os quais eu tinha muita difi
aculturados e, de outro, de uma aldeia dos Xavante que estavam ah culdade. Eles os exphcavam da melhor maneira possível e eu gravava as
desde 1956. Eles pareciam ser mais aculturados que qualquer outro discussões. Eu, então, ouvia as fitas na companhia de jovens Xavante
grupo Xavante que eu já conhecera. que sabiam parafrasear e que me ajudavam a compreendê-las totalmente'..
Fui alojado numa espaçosa casa de hóspedes, pertencente.ao Ao mesmo tempo, pude fazer algumas observações concementes
Posto e a cerca de cem metros das casas da comunidade Xavante. Ia e às mudanças que tinham ocorrido em São Marcos entre 1962 e 1964.
vinha da aldeia com toda a liberdade embora tomasse minhas refeições Tive também a sorte de encontrar um grupo de Xavante que havia saído
no Posto. A casa que eu ocupei havia sido usada, duVante algum tempo, de São Domingos, ido para Õ Tõ e, finalmente, fugido de lá para São
por lingüistas do Summer Institute of Linguistics que estavam engaja Marcos. Alguns deles eram pessoas que eu tinha conhecido bem e que
das no estudo da língua Xavante. Elas não estavam em Simões Lopes tinha visto em 1958 e em 1962.Pude, portanto, observar(com todos os
durante, minha estadia mas foram muito gentis em me emprestar parte dados relevantes em mãos^ o modo pelo qual foram assimilados à comu
nidade de São Marcos.
de seu material analítico numa outra ocasião. Em conseqüência de seus
esforços, estes Xavante estavam acostumados a sentarem-se e conversar
durante longo tempo com pesquisadores de campo. Aliás, os homens
estavam ansiosos por fazê-lo já que as pesquisadoras haviam trabalhado
principalmente com informantes mulheres. Nesta época eu estava inves-
tigando principalmente o faccionalismo Xavante e sua relação com o sis
tema de parentesco, de modo que eu preferia homens como infor
mantes . Eu estava também interessado em obter gravações de histó
rias ou de discussões, pelos Xavante, de assuntos que me intrigavam.
Consegui fazer algumas horas de gravação. Por fim, pude também obser
var os estágios finais das cerimônias de iniciação. Depois de dez dias em
Simões Lopes, precisei voltar para chegar a Harvard em tempo para o
começo das aulas.

As mulheres Xavante não se envolvem nas questões políticas.

34
35

i 1

You might also like