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lOS SOBRE AS TEORIAS DO DESENVOLVIMENTO

""I'

Neste livro Fernando Hen-


rique Cardoso passa em revista
as teorias contemporâneas so-
bre o desenvolvimento: do pen-
samento da CEPAL às teorias
da dependência; do libertarismo
marxista nos países periféricos
às propostas de uma nova or-
dem internacional; das utopias
existenciais dos novos filósofos
às propostas de um "desenvolvi-
mento voltado para as necessi-
dades" e à noção de eco-desen-
volvimento. Examinando çom
poderosa visão crítica os impas-
ses teóricos e as deformações
, ideológicas do pensamento em
curso, Fernando Henrique Car-
doso não permanece apenas no
mundo das idéias. Os diversos
ensaios procuram examinar as
idéias e seu lugar, o pensamen-
to em confronto com a realidade
que pretende retratar, as pro-
postas de transformação diante
das sociedades contemporâ-
neas e de seus impasses reais.
Leitura indispensável para pro-
fessores e estudantes de ciên-
cias sociais, o livro interessará
também a todos os que se preo-
cupam, não só com o "por quê",
mas com o "para quê" e "para
quem" do desenvolvimento.
Fernando Henrique Cardoso é
Ministro das Relações Exteriores
desde o início do Governo Itamar
Franco (outubro de 1992). Sena-
dor da República, fundador do
Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB). Sociólogo,
Professor Emérito da Universida-
de de São Paulo, lecionou tam-
bém nas universidades de
Cambridge, Paris-Nanterre, Ber-
keley e Stanford. Publicou mais
de cem trabalhos entre os quais
destacam-se os livros: Capitalis-
mo e Escravidão no Brasil Meri-
dional, Empresário Industrial e
Desenvolvimento Econômico no
Brasil, Dependência e Desenvol-
vimento na América Latina
(com Enzo Faletto), Autoritaris-
mo e Democratização, As Idéias
e seu Lugar: Ensaios sobre as
Teorias do Desenvolvimento, A
Democracia necessária.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cardoso, Fernando Henrique, 1931 -


As idéias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do
desenvolvimento I Fernando Henrique Cardoso. -
Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

ISBN 85-326-0931-7

1. América Latina - Condições econômicas 2. Dependência


3. Desenvolvimento econômico I. Título.

93-0459 CDD-338.9

Índices para catálogo sistemático:


1. Desenvolvimento econômico 338.9
Fernando Henrique Cardoso

AS IDÉIAS
E SEU LUGAR
I

Ensaios sobre as teorias do


desenvolvimento

~
Petrópolis
1993
© 1993, Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
25689-900 Petrópolis, RJ
Brasil

Diagramação:
Daniel Sant' Anna
e
Rosane Guedes

ISBN 85-326-0931-7

Este livro foi composto e impresso nas oficinas da Editora Vozes Ltda. -
Rua Frei Luís, 100. Petrópolis, RJ - Brasil- CEP 25689-900 - Tel.: (0242)43-5112 -
Fax: (0242)42-0692 - Caixa Postal 90023 - Endereço Telegráfico: VOZES -
Inscrição Estadual 80.647.050 - CGC 31.127.301/0001-04, em abril de 1993.
Dedico este livro à memória de
José Medina Echevarrla e de
Gino Germani, por suas contribuições
às ciências sociais na América Latina.
:1
SUMÁRIO

Apresentação da nova edição, 9


Introdução, 13
I - Originalidade da cópia: a CEPAL e a idéia de
desenvolvimento, 27
II - A dependência revisitada, 81
III - O consumo da teoria da dependência nos Estados
Unidos, 125
IV - Por um outro desenvolvimento, 151
V - O desenvolvimento na berlinda, 179
-l' Adendo: Alternativas econômicas para a América Latina, 227
02SS-2.
APRESENTAÇÃO DA NOVA
EDIÇÃO

Na hora de reeditar um conjunto de ensaios publicadqs


no decorrer da década de 70, é de se perguntar se algum
sentido há nisso. A meu ver impõe-se, hoje, uma recoloca-
ção da temática do desenvolvimento econômico e da de-
pendência, e é bom termos, nós brasileiros e latino-ameri-
canos, alguma clareza a respeito das abordagens anteriores,
para analisarmos a situação contemporânea.
Tenho ocupado a maior parte da minha vida acadêmica
no esforço para compreender as possibilidades e os limites
do processo de desenvolvimento sócio-econômico da A-
mérica Latina e tendo, nos últimos anos, consagrado o
melhor das minhas energias para ajudar na reconstrução da
democracia no Brasil, sinto-me tentado hoje em aventurar-
me em temas mais amplos, sem cuja compreensão dificil[-
mente será possível integrar países em desenvolvimento
econômico retardatário às grandes correntes da transforma-
ção do mundo contemporâneo.
A primeira edição deste livro - Introdução e cinco
capítulos - oferecia um panorama do debate intelec~ual
sobre o desenvolvimento, desde a crença no Estado Ilumi-

9
nado dos Cepalinos até o utopismo do "outro desenvolvi-
mento", as idéias evoluindo ao sabor das lições da prática.
Acrescentei num Adendo o texto de uma conferência
bem mais recente. "Alternativas econômicas para a Amé-
rica Latina" que sintetiza os desafios postos no limiar do
Terceiro Milênio.
Ao lado do casamento entre ciência, tecnologia e liber-
dade, que faz com que Manuel Castells qualifique a nossa
sociedade contemporânea de "informacional", a grande
tendência do mundo moderno é a globalização da econo-
mia, ou, em outras palavras, é a unificação do processo
econômico em escala mundial.
Trinta anos atrás, para expressar o início deste processo,
falávamos em "internacionalização dos mercados", mas o
que ocorreu de fato foi a internacionalização do próprio
processo produtivo, apoiada na revolução tecnológica da
microeletrônica. A conseqüente reorganização dos merca-
dos financeiros mundiais provocou não apenas novas ondas
industríalizadoras no mundo (os Nics asiáticos e latino-a-
mericanos), como também a unificação de enormes espa-
ços econômicos, como o Mercado Comum Europeu. Hoje,
encontramos na Initiative Busch, de um só mercado nas três
Américas, um prolongamento dessa última tendência.
Saúdo, en passant, a memória de Prebisch que não
concebeu a integração latino-americana como um movi-
mento excludente de fechamento de mercados, mas como
a possibilidade de inserção dos blocos regionais na econo-
mia internacional, e se tornou um precursor na abertura de
caminhos trilhados hoje pelo MERCOSUL.
Os novos termos para qualquer discussão sobre o de-
senvolvimento são dados portanto pela revolução produti-
va - o amálgama entre ciência e produção - que continua
criando novos produtos e novas técnicas de processamento
da produção, e que acarreta a constituição de grandes

10
blocos regionais, donos de mercados de tamanho nunca
antes imaginado.
Essa marcha irresistível já derrotou as economias cen-
tralmente planificadas do Leste Europeu e provocou as
modificações observadas na China. Esses países deverão
caminhar dentro do seu próprio mundo, certamente com
muitas dificuldades, até encontrarem os resultados favorá-
veis do aggiornamento que farão.
E o Terceiro Mundo? Conceito confuso, de serventia
cada vez menor, ele qualifica mais hoje os países "ininte-
gráveis" aos grandes espaços econômicos regionais: a Áfri-
ca, especialmente a do Sahel, partes significativas da Amé-
rica Latina, especialmente no mundo andino e na América
Central, e regiões superpovoadas da Ásia meridional cons-
tituem o público alvo deste mundo da desesperança. e da
miséria.
Por certo países, continentais como índia, Indonésia,
Paquistão e Brasil, se não se integrarem ao sistema econô-
mico global, ainda disporão de alternativas com a explora-
ção de seus mercados internos fechando-se e mantendo
ilusões de "um outro desenvolvimento". O mais provável
é que desenvolvam uma estratégia dupla (ou ambígua)
abrindo-se às correntes econômicas internacionalizadoras
e, ao mesmo tempo, absorvendo aos poucos suas áreas mais
atrasadas através de políticas compensadoras que impeçam
a pura marginalização das massas rurais e das populações
periféricas das grandes cidades.
A revolução do nosso século: o casamento entre uni-
versidade, empresa e poder político, se não atingiu o con-
junto do nosso planeta, reduziu o alcance das grandes
utopias.
Depois do colapso do "Socialismo real", o mundo
parece defrontar-se com a dicotomia antiga entre o neoli-
beralismo triunfante e uma pálida socialdemocracia lutan-

11
do por sua sobrevivência como ideologia ainda "moderna",
sem ter, porém, o charme da utopia. Pois a única utopia
"viável" ou "utopia de alcance médio", para parafrasear
Robert Merton com suas middle range theories, que se
oferece para a esquerda, é a criação de um espaço público
no qual a idéia da justiça permita compatibilizar o élan do
coletivo com as liberdades individuais e permita, sem
substituir a antiga teoria política da democracia repre-
sentativa, institucionalizar formas de democracia partici-
pativa.
":(.' "
De fato, é preciso conciliar direitos e motivações indi-
r" ••••
viduais com o fato de os jndivíduos pertencerem a situações
comuns, coletivas; é preciso incorporar a angústia pela
sobrevivência da humanidade (lutas ecológicas e segurança
coletiva) e, sem menosprezar o espontâneo na vida social,
deve-se propor meios institucionais para a participação
direta (inclusive com a utilização da informática).
A questão do desenvolvimento econômico, hoje, no
Brasil e na América Latina, passa pela resolução da "absor-
ção" sócio-político-econômica de suas áreas atrasadas em
termos totalmente diferentes daqueles de vinte e cinco anos
atrás.
O Estado que, no começo da história do desenvolvi-
mento, era o "mocinho", tornou-se o "vilão", como conse-
qüência do estilo de desenvolvimento que prevaleceu. Ho-
je, para enfrentar a estagnação econômica, a dívida externa
e a inflação que nos afligem, tudo aquilo enfim que nos
impede de entrar na modernidade, o Estado precisa aplicar
mecanismos de correção à sua própria organização para
encontrar o respaldo da sociedade que o capacite a encon-
trar os mecanismos necessários à absorção econômica,
social e política dos setores marginalizados da população.
Fernando Henrique Cardoso
Dezembro de 1992

12
INTRODUÇÃO·

Faz algumas décadas que intelectuais, técnicos e polí-


ticos da América Latina repisam a tecla do desenvolvimen-
to. Não se pode negar que houve um avanço no plano
conceitual e também que houve avanço na transformação
das sociedades latino-americanas. Mas até que ponto as
modificações de colocação teórica foram mais do que
meramente verbais e até que ponto as mudanças ocorridas
em nossos países atingiram, de fato, os alvos proclamados
como desejáveis?
A questão do desenvolvimento na América Latina é
marcada por insights esclarecedores no plano teórico, por
algumas realizações espetaculares no plano econômico e,
ao mesmo tempo, por repetições cansativas de velhas
idéias, por algo de mistificação e de imitação das modas
culturais do mundo desenvolvido e pela persistência dos
problemas crônicos da miséria, do desemprego e da violên-
cia.

* Publicado originalmente em Inter-Regional Co-Operation in the Social Sciences


for Development, Paris, OECD (5), New Series, 1980.

13
Não obstante, já existe terreno sólido para fincar as
bases de uma compreensão razoável da questão do desen-
volvimento. Nesta exposição não analisarei diretamente as
questões práticas. Tentarei apenas esboçar como evoluiu o
pensamento sobre o desenvolvimento e a dependência eco-
nômica.
Repisando o já sabido: nos fins da década de quarenta
o ponto de partida latino-americano na análise dos princi-
pais problemas econômicos da região foi a teoria do comér-
cio internacional. Percebia-se o agravamento dos proble-
mas da região pelo reinício de um processo de endivida-
mento externo, depois do período de acumulação de divisas
por causa da guerra, e pelo gargalo que se formava graças
aos chamados "produtos gravosos", isto é, pela dificuldade
de manter competitivos internacionalmente os preços de
alguns produtos que, na fase anterior, haviam encontrado
saída no mercado externo.
Noutras palavras, finda a guerra mundial, o comércio
internacional se reorganizava e a velha ordem econômica
voltava a cobrar seus direitos sobre os recém-chegados à
corrida do desenvolvimento. Os donos do poder mundial
queriam obrigar os países de economia periférica a retro-
ceder. Que a Argentina exportasse carne e trigo e o Brasil
ou Colômbia, café, era considerado normal. Mas parecia
descabido que estes ou outros países latino-americanos
continuassem a exportar produtos não tradicionais, para os
quais as dificuldades da guerra tinham aberto ocasional-
mente um mercado. Mais descabido ainda seria promover
a industrialização maciça da periferia do sistema produtivo
mundial.
Foi nesse contexto que se afirmou a luta pela indus-
trialização na América Latina e pela reorganização do
comércio mundial. A CEPAL foi o grande forum deste
debate. As lutas políticas pela emancipação nacional deram

14
o "f1avor" de reivindicação popular às teses eruditas que se
sustentava.
Que teses eram estas?
Dizendo simplesmente: que as leis do livre-comércio
internacional baseadas nas vantagens comparativas da es-
pecialização da produção beneficiam os países industriali-
zados em detrimento dos países produtores de matérias-
primas e de gêneros alimentícios. E que, conseqüentemen-
te, haveria que industrializar a periferia e haveria que
estabelecer regras no mercado internacional que defendes-
sem os produtos agro-exportadores.
Por que dar-se-ia esta situação?
Porque os ganhos de produtividade das economias
centrais proporcionadas pela industrialização e pela tecni-
ficação agrícola não se transferiam aos países subdesenvol-
'vidos por intermédio da baixa relativa de preços dos produ-
tos importados. Os textos da CEPAL são claros: a transfe-
rência de ganhos de produtividade não ocorre porque os
trabalhadores dos países centrais se organizam e defendem . :.
seus salários e porque os produtores também se organizam
e defendem os preços. Não existindo de fato uma economia
concorrencial, mas sim uma economia oligopólica e tendo
os operários capacidade de luta, bloqueava-se a mola fun-
damental da justificativa ideológica do livre-comércio. Es-
se passou a ser defendido como um embuste para assegurar
a exploração nas trocas internacionais. Mais ainda: como
os trabalhadores dos países subdesenvolvidos, especial-
mente os do campo, não têm condições para defender os
salários, e como a produção agro-exportadora faz-se, em
geral, a partir de patamares tecnológicos baixos, dá-se ao
mesmo tempo a possibilidade de que os produtos indus-
trializados sejam trocados por produtos agrário-exportado-
res em condições de existência de um "deterioro de los
terminos de intercambio", sem que sejam afetados os ga-
nhos dos produtores locais.

15
Qual seria a receita para escapar dos males diagnosti-
cados?
Industrializar, aumentar o coeficiente técnico da produ-
ção agrícola e aumentar os salários das camadas traba-
lhadoras.
Como implementar esta política?
Àquela altura (década de 1950) os textos cepalinos
propunham, com variáveis graus de empenho, o apelo ao
capital estrangeiro - de preferência sob a forma de emprés-
timos intergovernamentais - para promover a rápida indus-
trialização; propunham também uma política fiscal adequa-
da, alterações substanciais no regime de propriedade da
terra e, sobretudo, propugnavam pela ação coordenadora
do Estado para conduzir o desenvolvimento nacional. Nis-
so consistiria, grosso modo, o desenvolvimento.
Tratava-se de obter na periferia resultados equivalentes
aos que se obtiveram nos países centrais, alterando-se a
posição relativa das economias periféricas no comércio
internacional, urbanizando-se a região (como conseqüên-
cia da alteração da divisão social do trabalho entre campo
e cidade), industrializando-se a economia e tecnificando-se
a produção agrário-mineradora.
Estes objetivos - que hoje parecem conservadores -
provocaram uma onda enorme de reações. As grandes
unidades capitalistas de produção (os trustes e cartéis)
opunham-se, então, à internacionalização da produção in-
dustrial. Os banqueiros internacionais estavam acostuma-
dos a fazer empréstimos para assegurar o controle de co-
mercialização agrária ou para explorar investimentos mi-
neradores ou de infra-estrutura (transportes, energia, etc.),
quase sempre com o aval dos Estados Nacionais e muitas
vezes com garantias que incluíam o controle de impostos
para assegurar o retomo dos juros de capital. E a possibi-
lidade de planejamento estatal ou de coordenação oficial

16
de investimentos (sobre os investimentos públicos em in-
fra-estrutura) para os defensores do statu quo tinha o cheiro
de sovietismo...
Não espanta, portanto, que as teses desenvolvimentis-
tas tivessem um tom polêmico. Polêmica que se tornou
ainda mais aguda quando, à esquerda, defrontaram-se teses
conflitantes na avaliação do sentido do desenvolvimento.
Boa parte da esquerda latino-americana engolfou-se na
corrente nacionalista. Esta via com satisfação o papel cres-
cente do Estado na economia, embora não fosse entusiasta
quanto aos outros aspectos do desenvolvimentismo cepali-
no, a saber, a reforma agrária e a redistribuição da renda.
Não faltaram, porém, opiniões minoritárias à esquerda que
criticassem o fortalecimento capitalista pela via do estado
e os efeitos perversos que tal tipo de desenvolvimento
provocaria na sociedade.
A partir de meados dos anos cinqüenta o contexto
internacional mudou. Não cabe nesta introdução discutir os
pormenores deste processo. Mas o fato é que o capitalismo
oligopólico refez as relações entre Estado e Empresa nas
economias centrais. Por outro lado, seja porque as políticas
nacional-desenvolvimentistas haviam dado frutos prote-
a
gendo os mercados locais e incentivando industrialização,
seja porque as Grandes Empresas internacionais passaram
a operar e a competir à escala mundial, começou a porces-
sar-se uma nova divisão internacional do trabalho.
Assim, o que fora o sonho da CEPAL veio a se con-
substanciar por intermédio da ação das Empresas Multina-
cionais. O momento de ápice desse reencontro inesperado
(e talvez não desejado) deu-se na conferência de Punta del
Este de 1961. Ardorosos tecnoburocratas cepalinos sur-
preenderam-se em posições coincidentes com a diplomacia
Kennediana. Até mesmo a reforma agrária e a reforma
fiscal - bandeiras avermelhadas do desenvolvimentismo

17

mais conseqüente - foram agitadas pela Aliança pelo Pro-
gresso.
Tanta coincidência favoreceu o despertar da consci-
ência crítica latino-americana a respeito dos males do pre-
sente e das esperanças do futuro: deveria haver algo de
podre no reino da Dinamarca. E foi o Che Guevara quem
denunciou em Punta deI Este a ··Revolução das Latrinas".
A denúncia era direta contra o reformismo. Tinha a
sustentá-la moralmente a saga das montanhas cubanas. Mas
trouxe consigo uma análise algo anacrônica: a de que o
imperialismo não promoveria a modificação estrutural
(embora capitalista) das relações sociais nos países perifé-
ricos. Não foi Guevara quem formulou assim, foi Regis
Debray. Mas o fato é que na crítica ao estilo de desenvol-
vimento abastardado que se pregava em Punta del Este
havia subjacente a concepção de que a relação Centro-Pe-
riferia continuaria a dar-se através da exploração de produ-
tos primários e da aliança latifúndio-imperialismo, que
seria salvaguardada pelos exércitos (de ·'ocupação", dizia-
se) e pelo Estado local.
Em meados da década de sessenta começou a ser arti-
culada uma argumentação algo diversa sobre o tema do
desenvolvimento. Refiro-me à corrente de opinião que
punha ênfase nas análises sobre a dependência. Esta sempre
fora reconhecida como característica das economias sub-
desenvolvidas. Nos estudos da CEPAL sobre o comércio
exterior sublinhava-se muito a dependência externa das
economias latino-americanas. Quando o processo de indus-
trialização se acelerou, depois da guerra, dizia-se que ele
substituiria as importações tradicionais de produtos indus-
trializados e que, para isso, seria preciso, ao mesmo tempo,
gerar divisas, via exportações tradicionais, pflta poder im-
portar máquinas e insumos industriais básiéos. Daí o gar-
galo que a deterioração dos termos de intercâmbio produzia
no processo de desenvolvimento. A vulnerabilidade das

18
economias latino-americanas às flutuações do comércio
externo, a fome de divisas e o aumento da dívida externa,
quando havia desequilíbrio entre geração de divisas e sua
necessidade, eram ciclicamente constantes.
A novidade das análises da dependência não consistiu,
portanto, em sublinhar a dependência externa da economia
que já fora demonstrada pela CEPAL. Ela veio de outro
ângulo: veio da ênfase posta na existência de relações
estruturais e globais que unem as situações periféricas ao
Centro. Os estudos sobre a dependência mostravam que os
interesses das economias centrais (e das classes que as
sustentam) se articulam no interior dos países subdesenvol-
vidos com os interesses das classes dominantes locais.
Existe pois uma articulação estrutural entre o Centro e a
Periferia e esta articulação é global: não se limita ao circuito
do mercado internacional, mas penetra na sociedade, soli-
darizando interesses de grupos e classes externos e internos
e gerando pactos políticos entre eles que desembocam no
interior do estado.
Este tipo de abordagem rompeu, portanto, com a tradi-
ção de análise que via a questão do desenvolvimento como
um processo de reposicionamento entre países na divisão
internacional de trabalho. Por certo, os cepalinos sabiam
que o desenvolvimento econômico capitalista supõe a ex-
ploração entre as classes, assim como os "dependentistas"
sabem que o Estado-Nação é uma instância político-econô-
mica pela qual passam necessariamente as relações de
classe. Mas a ênfase que antes era posta globalmente na
relação entre o externo (o imperialismo) e o interno (a
Nação) passou a ser mediatizada, nas análises sobre a
dependência, pelo processo de luta entre as classes. Dessa
forma, a questão do desenvolvimento deixou de ser uma
questão econômica para ser uma questão política.
Pode-se, por certo, criticar o alcance insuficiente da
abordagem política da escola da dependência: ela não

19
chegou a explicitar se o pólo oposto da dependência supu-
nha a "autonomia" ou o socialismo. Se fosse válida a
primeira hipótese, de qualquer modo, deveria mostrar quais
as classes e grupos capazes de tal proeza: a burocracia
estatal? Os militares? A burguesia? O proletariado? Uma
aliança entre eles? etc. Em caso contrário, demonstrada a
inviabilidade do desenvolvimento nacional autônomo, co-
mo se chegaria ao socialismo e quais os problemas para
relacioná-lo com o problema da Nação, embora, neste caso,
a relação entre o Estado e a Nação não passasse mais pela
burguesia e sim pelos trabalhadores e pelo povo? Pode-se
também criticar os "dependentistas" pelo fato de aceitarem
acriticamente (como o fizeram os cepalinos) o mesmo estilo
de desenvolvimento que a história do capitalismo ocidental
gerou, substituindo-se apenas os beneficiários dele. Não se
chegou a questionar na análise sobre a dependência os
estilos de desenvolvimento, nem se incorporou aos traba-
lhos a temática hoje em voga (principalmente entre os
intelectuais críticos da Ásia, da África e da Europa do
Norte) sobre estilos alternativos de desenvolvimento.
Mas não se pode dizer que os "dependentistas" hajam
negligenciado a caracterização do que lhes pareceu funda-
mental na análise estrutural do subdesenvolvimento: a in-
ter-relação entre as economias centrais e as periféricas
como fenômeno global.
Nesta linha, a contribuição principal dos latino-ameri-
canos foi a de mostrar que a partir de meados dos anos
cinqüenta, como eu disse, havia uma nova dinâmica no
capitalismo internacional, impulsionado pelas empresas
multinacionais, e que ela levaria a uma nova divisão inter-
nacional do trabalho. Estava em curso a internacionaliza-
ção da produção capitalista. A linha de separação entre o
mercado interno e o externo se redefinia: o imperialismo,
que fora obstáculo à industrialização da periferia, passava

20
a ser mola propulsora de um certo tipo de desenvolvimento
industrial.
Houve, é verdade, divergências de interpretação. Não
faltaram análises apressadas para mostrar que havia uma
tendência à estagnação econômica da periferia graças à
estreiteza dos mercados. Mas a linha predominante nas
análises academicamente sólidas foi outra. Ela tende a
mostrar que dependência e desenvolvimento capitalista
podem marchar paralelos.
É este o cerne da questão que se debate hoje: neste caso,
não se cogitaria antes da interdependência do que da de-
pendência?
Novamente, as análises disponíveis são claras. Que eu
saiba, nenhum autor do Terceiro Mundo, inspirado pela
escola da dependência, deixou mostrar que, se é certo que
os laços estruturais de dependência entre o Centro e a
Periferia se transformam com a industrialização depen-
dente-associada, mais certo ainda é que repõem, noutro
plano, a assimetria estrutural entre economias centrais e
periféricas.
Como?
A reprodução da dependência dá-se basicamente de
dois modos: aumenta o desequilíbrio crônico entre a gera-
ção de divisas e a necessidade de importações; por outro
lado, o funcionamento do sistema produtivo industrial na
Periferia continua a requerer a importação de equipamentos
e tecnologia que são fabricados e criados nos países do
Centro. Os dois fenômenos se inter-relacionam e derivam
da acentuação do que na linguagem cepalina se chamava
de "a insuficiência dinâmica da capitalização".
Noutras palavras: se é certo que a atual fase da indus-
trialização mundial requer a dispersão de partes do sistema
produtivo à escala mundial, os fundos de acumulação con-
tinuam centralmente retidos e o desenvolvimento de novos

.;J
21
I,

processos e técnicas produtivas faz-se monopolicamente


no Centro. Disso deriva que o relacionamento entre as
economias industrializadas do Centro e da Periferia é
"interdependente" mas assimétrico. É verdade que no pro-
cesso de expansão capitalista as Multinacionais requerem
a mão-de-obra e o mercado da Periferia e desenvolvem nela
partes substanciais do processo produtivo. Mas tanto o
guarda-chuva financeiro para assegurar a circulação das
mercadorias a nível mundial é retido pelo capital fInanceiro
internacional (controlado pelas próprias multinacionais e
pelos grandes bancos) como o elemento dinâmico do setor
de produção de bens de produção (que inclui a pesquisa e
o desenvolvimento de novas técnicas produtivas) continua
controlado pelos países do Centro. Neste sentido, de repo-
sição de assimetrias, sempre houve "inter-dependência"
entre as economias Centrais e as Periféricas. Mesmo no
mais puro colonialismo, o Centro "dependia" das matérias-
primas extorquidas.
Com este argumento não estou querendo negar que
houve modifIcações nas formas de dependência. O ponto
de vista sustentado pelos autores que caracterizam a emer-
gência de um estilo de desenvolvimento "dependente-as-
sociado" sempre foi o de que a industrialização da periferia
implica em modifIcações substantivas na forma de depen-
dência. À primeira vista, quando se toma o caso de uma
economia periférica que passa a ser integrada ao sistema
produtivo industrial internacional, tem-se a impressão de
que se trata de mera otimização dos custos comparativos,
especialmente da mão-de-obra. E nos casos das economias
industrializadas da Periferia que se constituem como "pla-
taformas de exportação" tem-se mesmo a réplica de uma
situação de enclave, tão comum nas economias agromine-
radoras do passado.
Mas essa caracterização é restrita: ela abrange apenas
alguns casos (Singapura, Coréia, por exemplo) e mesmo

22
neles os efeitos em cadeia dos elos para frente e para trás
("linkages forward and backward"), como os caracteriza
Hirschman, acabam por promover alterações que afetam o
conjunto da economia local. Com mais forte razão, quando
ocorre· a industrialização, como no caso da maioria dos
países latino-americanos, com mira principalmente à subs-
tituição das importações, o mercado interno toma-se o
canal principal da absorção da oferta. Mesmo que parte da
produção industrial seja exportada e que os "circuitos fe-
chados" intermultinacionais redistribuam entre si partes
dos componentes dos produtos finais, a expansão do mer-
cado interno passa a ser fundamental para permitir a circu-
lação das mercadorias e a continuidade do processo produ-
tivo do resto da economia.
A argumentação falaciosa que acreditava na estagnação
provável das economias periféricas industrializadas devido
à estreiteza do mercado interno, bem como a saída alterna-
tiva que consistiria na expansão das exportações e eventual-
mente na luta entre nações "subimperialistas" para as-
segurarem mercados, desfez-se na última década. De fato,
o crescimento do mercado interno de países como o Brasil,
o México ou a Colômbia foi o elemento fundamental para
permitir a absorção da produção crescente de automóveis,
máquinas, produtos de "línea branca" etc. De igual modo,
a industrialização dos produtos de alimentação e dos bens
de salário em geral encontrou mercado na expansão do
consumo de produtos industrializados pela classe média e
pela classe trabalhadora.
À base da fomia atual de industrialização dependente
existe portanto uma transformação de monta na estrutura
da própria sociedade: emergem setores novos nas classes
médias, expande-se o setor assalariado da mão-de-obra
rural e urbana.
Quer isto dizer que a nova forma de dependência resol-
ve os problemas do povo?

23
Obviamente não. Mercado não é sinônimo de popula-
ção. A expansão do mercado não significa a melhoria dos
níveis de vida do conjunto da população. Por certo, como
em todo desenvolvimento capitalista, certos segmentos da
sociedade ganham com a industrialização: o empresariado,
os segmentos gerenciais, setores técnicos e setores compos-
tos por profissionais liberais, por exemplo. Pode ocorrer
mesmo que parte do operariado industrial - dependendo de
sua capacidade de luta - ganhe com o desenvolvimento
econômico. Mas nada assegura que o piso da sociedade -
os trabalhadores rurais e o setor urbano que ganha salário
mínimo ou menos do que isso - obtenha uma melhoria. De
igual modo, na reciclagem das funções da "baixa classe
média" - os empregados de colarinho branco - podem
ocorrer até mesmo perdas de renda relativa e, em certos
momentos, absoluta.
Subsistem, portanto, na forma atual do desenvolvimen-
to dependente as questões centrais que haviam sido colo-
cadas pela opinião crítica latino-americana nas décadas
anteriores: desenvolvimento para quem? Qual o papel do
Estado neste processo? Em que termos se mantém a questão
daNação?
As respostas, entretanto, não podem mais ser as mes-
mas. A ninguém ocorreria hoje que o processo de interna-
cionalização da economia elimina a burguesia nacional.
Mas todos vêem que sua função e seu papel político se
redefmem: ela se associa às multinacionais, em função
sibordinada no processo da acumulação global. Luta e
esperneia; busca apoio no Estado, rechaça-o quando este
avança muito para cumprir sua função de sustentáculo geral
da acumulação e portanto de ordenador e protetor tanto das
empresas locais como das multinacionais. O Estado ao
mesmo tempo investe em áreas dinâmicas, cresce seu peso
na economia e exerce funções contraditórias, pois na mes-
ma medida em que estimula o setor privado compete com

24
ele. A velha crença de que o eixo do desenvolvimento
dar-se-ia através de uma relação entre empresariado nacio-
nal e estado versus empresas multinacionais ficou mais do
que abalada com a nova articulação econômica que solida-
rizou o crescimento do mercado interno com o dinamismo
das empresas multinacionais e do setor estatal.
E os trabalhadores e o povo?
Já que a "questão nacional" deixou de ser privilégio do
empresariado local e do Estado, talvez possa ser recolocada
do ângulo das classes populares. Mas para que isso se
cumpra, e para que o estilo capitalista de desenvolvimento
seja revertido, evitando-se a marginalização e a miséria, ao
invés da ênfase ser posta apenas nas questões da acumula-
ção, teria de ser posta, simultaneamente, na questão da
igualdade.
Deste ângulo, a análise da "interdependência" não de-
veria repor os temas da "autonomia" nos tennos antigos.
Seria preciso mostrar - tal como os dependentistas sugeri-
ram - que estamos em face de um problema estrutural e
global. Rever os padrões de dependência implica, por
conseqüência, em rever as fonnas de exploração entre as
classes e de dominação política.
É este o desafio da próxima década: ou temos a imagi-
nação, a coerência e a força política necessária para colocar
de fato no centro da questão do desenvolvimento a questão
operário-popular para, a partir desta, repensar a questão
nacional, ou continuaremos condenados a fazer anatomias
de estruturas de "interdependência", que podem até resol-
ver os problemas de alguns segmentos da população, mas
não resolverão os da maioria.

25
I

~
Capítulo I

ORIGINALIDADE DA CÓPIA:
A CEPAL E A IDÉIA
DE DESENVOLVIMENTO'
;,

I .

.-

Introdução

Entre os críticos da cultura na América Latina existe


um debate intermitente, mas não desinteressante, a respeito
dos efeitos da dependência sobre a produção das idéias.
Alguns dos mais argutos teóricos da literatura brasileira
(como Antônio Cândido de Mello e Souza e Roberto
','
Schwarz ' ) vêm procurando mostrar que a mesma idéia, uma
vez transferida dos centros de produção internacional de
cultura para a periferia, vira outra coisa. O exemplo clás-
sico talvez seja, como acentuou outro historiador das idéias,
o Prof. João Cruz Costa\ a transferência do positivismo
comteano para a América Latina. A nítida conotação con-
servadora do positivismo no século XIX europeu, como o
soberbo desprezo que tal corrente sempre ostentou, por

* Publicado originalmenle como "The originality of the copy: ECLA and the Idea
ofDevelopment", University of Cambridge, Center of Latin American Studies, Workillg
Papers 27,jun/1977.
Este trabalho não teria sido escrito sem a ajuda de José Serra, que me aconselhou
na seleção de textos e fez a indispensável pesquisa bibliográfica para timdamentar a
análise, além de sugerir pistas para a interpretação. Agradeço, também, a ajuda e as
criiicas de Winston Fritsch.

27
exemplo, diante da concepção marxista da luta de classes,
modificou-se bastante na América Latina. O inóspito!habi-
tat latino-americano, pontilhado de formas de relações
sociais e culturais produzidas por sistemas de vida que
mesmo quando enganchados na dinâmica da expansão
capitalista internacional resistiam à racionalização crescen-
te da sociedade e da economia, gerou uma deformação
simpática no positivismo. Tomou-o paladino da idéia de
progresso. A diferença de habitat cultural não pôde cortar
pela raiz a outra idéia da filosofia política positivista, a de
ordem. Mas, pelo menos, mitigou seus ímpetos uniformi-
zadores, dada a variedade e a desordem constitutiva de um
continente formado pela miscigenação de alguns modos de
produção assentados em princípios básicos conflitantes, e
tomou o positivismo ideologia mais reformista do que
reacionária. Os "políticos científicos" foram partidários da
República, contra a monarquia brasileira; foram eles tam-
bém os trombetistas do México iluminado (se não ilumi-
nista) de Dom Porfírio - coveiro, temporário é certo, do
Ancien Régime e precursor, malgré-lui, da Revolução Me-
xicana.
Nesta ordem de considerações, Roberto Schwarz escre-
veu atiladas páginas sobre o que ocorre com o consumo das
idéias importadas. Tomando um dos melhores, senão o
mais completo romancista brasileiro - Machado de Assis
- Schwarz fez a crítica do processo de absorção cultural do
pensamento europeu pelos "nativos". O liberalismo adota-
do chocava-se, por exemplo, com uma in~tituição tão anti-
liberal - e, sem embargo, um dos pilares da sociedade
brasileira da época - como a escravidão. Machado fez
sutilmente a crítica a este estado de coisas e sua novelística
se desenvolve num mundo do "como se". Roberto Schwarz
propôs, para caracterizar este tipo de "aculturação perver-
tida" de idéias, uma abordagem que ficou conhecida como
a das "idéias fora do lugar". Uma espécie de ecologia

28
cultural interessada nos efeitos dos transplantes de habitat
sobre as delicadas hastes da ideologia.
Houve, como é natural, reação a esta abordagem. Não
faltaram '"puristas" e' "rigorosos" para criticar a idéia do
'"transplante cultural", dado seu possível mecanicismo e
analogia indevida entre o mundo social e o natural. Naquele
as próprias relações estruturais são postas e repostas pela
prática dos homens e, portanto, ao serem re-criadas são de
algum modo sempre autóctones. Não interessa para os fins
deste ensaio aprofundar a discussão. Mesmo porque, entre
pessoas de mente treinada nos jogos do espírito fica sempre
subentendido que as teses são propostas cum grano salis.
De qualquer modo, eu quero ressaltar que farei o oposto
do habitual na história das idéias latino-americanas: discu-
tirei as idéias e seu lugar. De pretensão e água benta, diz o
ditado, cada qual serve-se à vontade. Mesmo assim, vale a
afirmação de que pelo menos algumas idéias sobre o de-
senvolvimento econômico são originais da América Latina.
Para evitar que o tom jacobino e meio narcísico preva-
leça, convém esclarecer que cuidarei também de mostrar
que mesmo as mais originais interpretações latino-ameri-
canas sobre o desenvolvimento econômico têm raízes ex-
tracontinentais. Contudo, não tomarei as idéias sobre o
desenvolvimento como meros "reflexos" do sol resplan-
decente do pensamento ocidental. Em matéria de idéias,
muitas vezes, o que é novo é, precisamente, o requentamen-
to, sempre que se junte algum tempero à água que se
adiciona para evitar que as velhas idéias fiquem estorrica-
das com o novo aquecimento.
A não ser assim, é muito difícil escapar da maldição dos
céticos: nihil novi sub sole.

29
I - A Cepal e o desenvolvimento

a. As idéias correntes sobre comércio internacional e


desenvolvimento
A Comissão Econômica para a América Latina (CE-
PAL) canalizou e difundiu um conjunto de teses a respeito
das causas, condições e obstáculos ao desenvolvimento,
I
II
tomando-se uma espécie de marca registrada do pensamen- ,
to econômico latino-americano.
Para mostrar no que consistiu a novidade das fonnula- I
ções cepalinas, convém, entretanto, resumir, primeiro, as
concepções que até então prevaleciam sobre o comércio
internacional e seu papel no crescimento das economias.
O ponto de partida da teoria do comércio internacional
é a "lei das vantagens comparativas" fonnulada por Ricar-
do. Em tennos simples, Ricardo assinala que o comércio
internacional levará a especialização da produção por paí-
ses de acordo com os custos relativamente menores da
mão-de-obra e que este processo gerará ganhos para todos
os países. Assim, segundo seu exemplo clássico, o custo
unitário da mão-de-obra para a produção vinícola e têxtil é
mais baixo em Portugal do que na Inglaterra; entretanto, a
vantagem comparativa dos custos da mão-de-obra é maior
no caso da produção de vinhos do que na de tecidos, e seria
portanto mais vantajoso, para ambos os países, produzir
vinho em Portugal e têxteis na Inglaterra.
Posterionnente, os economistas neoclássicos critica-
ram a teoria do valor proposta por Ricardo, baseada nos
custos da mão-de-obra. Afirmaram, no que tange à teoria
do comércio internacional, que os custos comparativos não
se limitariam aos custos do trabalho; os custos de outros
fatores de produção, como o capital e a terra -, constituem
também custos relativos no cálculo das vantagens compa-
rativas entre países. Com esta nova formulação, as teorias

30
neoc1ássicas do comércio internacional mantiveram a lei
ricardiana das "vantagens comparativas".
Bertil Ohlin oferece, possivelmente, a versão mais
completa da teoria neoc1ássica pura sobre o comércio in-
ternacional. Pretende explicar os ganhos do comércio e
analisar, ao mesmo tempo, o efeito do comércio interna-
cional sobre a remuneração dos fatores de produção. Como
corolário das teorias de Oh1in sobre a especialização da
produção e o aproveitamento dos fatores da produção de
acordo com os recursos disponíveis de um país, infere-se ~.

que o comércio pode levar à relativa equalização da remu- .-:.


neração dos fatores da produção entre os países. 3 '<
....
Por razões óbvias, essa aversão da teoria do comércio
internacional suscitou um debate mundial: o comércio se
transformava num instrumento adequado para reduzir as
desigualdades entre nações. Esta discussão não foi promo-
vida somente por Oh1in, já que sua hipótese ampliava .
outras formulações, especialmente os estudos de Hecksher4
sobre o mesmo tema. Desde então outras perguntas foram
colocadas: a suposta equalização da remuneração dos fato-
res produzida pelo comércio internacional seria relativa ou
absoluta, completa (isto é, seriam totalmente eliminadas as
diferenças entre as economias nacionais) ou parcial?
Oh1in aceitava somente uma tendência à equalização
relativa da remuneração dos fatores, conquanto a equaliza-
ção completa suporia a total mobilidade dos fatores. Esta
última hipótese não pode ser adotada pela teoria interna-
cional pura do comércio, pois implica a homogeneização
do espaço econômico com o qual destrói a razão fundamen-
tal do comércio internacional: a especialização da produ-
- 5
çao.
Foi principalmente Samuelson que deu um caráter ex-
tremo à teoria neoc1ássica do comércio internacional. Uti-
lizando um raciocínio matemático formal, ele demonstrou
que se um conjunto de hipóteses sobre o comércio interna-

31
cional fosse sustentado, ocorreria uma equalização comple-
ta e absoluta da remuneração dos fatores. 6 As conseqüên-
cias ideológicas da referida demonstração são notáveis:
uma vez aceito o raciocínio de Samuelson, ele possibilitaria
afirmar que o comércio internacional resolve as desigual-
dades econômicas entre as nações (o subdesenvolvimento
:'i.
o~o
seria reduzido mediante a especialização mundial da pro-
dução).
Em artigos posteriores, Samuelson não prosseguiu le-
vando as últimas conseqüências de sua hipótese. O seu
argumento inicial, entretanto, foi conservado pelos mais
ardentes partidários das "vantagens comparativas" e do
livre-comércio como panacéia para corrigir desigualdades
dos fatores de produção e da disponibilidade de recursos
entre os países.
Infelizmente, para os defensores desta versão extrema
(O:
da teoria pura do comércio internacional, alguns supostos
.. :..
do modelo de Samuelson são tautologias. Gottfried Haber-
ler, defensor dos mecanismos do mercado livre, assinalou
que Samuelson incluiu entre as condições de validez de sua
teoria certos supostos alheios à realidade, tais como a
homogeneidade das funções de produção em todos os
;.. ..:
países que realizam comércio (níveis similares de conheci-
(- mentos tecnológicos, de capacitação, de clima, de condi-
, .
•1.....;. ções físicas e sociais, etc.) cuja inexistência constitui a
ft(~ questão inicial das disparidades entre países. "Devemos

I
~!o
portanto chegar à conclusão de que a teoria Lerner-Samuel-
son, se bem que formalmente correta, se baseia em restri-
ções e supostos tão alheios à realidade que, dificilmente,
pode-se considerá-la uma contribuição valiosa para a teoria
econOImca
" •
.
" 7

Em síntese: a aceitação da tese que afirma haver uma


tendência para a equalização absoluta da remuneração dos
fatores através do comércio internacional não decorre dire-
tamente da teoria ricardiana do comércio. Esteve em moda

32
a partir do momento em que os supostos extremos (e
débeis) de Samuelson a respeito do comércio internacional
tiveram livre trânsito em certos círculos acadêmicos.
Também os economistas de inspiração marxista acre-
ditavam nos efeitos positivos do comércio internacional na
expansão do capitalismo na periferia. Corrigiram a pers-
pectiva ricardiana (que foi aceita, mais tarde, pelos margi-
nalistas e neoclássicos), pondo mais ênfase no próprio
mecanismo de expansão do capital e do sistema produtivo
do que simplesmente no comércio internacional.
De fato, a teoria marxista supunha a mobilidade plena
dos fatores no plano mundial, muito mais do que a teoria
ricardiana e seus continuadores. Marx não fez análises
teóricas do "subdesenvolvimento" - conceito inexistente
na época. Quando se referia à Índia, em algumas passagens
de seus artigos de jornaIS, demonstrava confiar que a ex-
pansão de capitais desenvolveria a periferia.
Rosa de Luxemburgo, mais de meio século depois,
continuou afirmando a inevitabilidade da expansão capita-
lista à escala mundial e a conseqüente industrialização dos
países que formavam a "retaguarda do capital". Hilferding
- contemporâneo de Rosa - acreditava mais na hipótese da
eficiência dos mecanismos do mercado internacional do
que o próprio Ricardo. Acreditava que as taxas de juros
diferenciais levariam à exportação de capitais para a peri-
feria, embora visse dificuldades para a generalização da
forma de trabalho assalariado como relação básica da ex-
ploração econômica. Bukharim e Lenin não fugiram à
regra: a exportação de capitais era uma condição inerente
9
à expansão imperialista.
Não obstante, o Lenin de 1920 já havia mudado de
posição: "as conseqüências progressistas do capitalismo,
pelo contrário, não se notam ali (nas colônias, apesar da
infiltração do capital estrangeiro). Onde o imperialismo
dominante necessita nas colônias um apoio social, une-se,

33

111
antes de mais nada, com as classes dominantes do antigo
sistema pré-capitalista, os feudais da burguesia comercial
e usuária, contra a maioria do pOVO".lO

b. As idéias da Cepal
Quais foram as idéias mestras sobre o desenvolvimento
propostas pela CEPAL? (e por que causaram tanta celeu-
ma?).
t-., O texto principal da CEPAL sobre as relações entre
.:....
. Centro e Periferia e, portanto, sobre desenvolvimento e
subdesenvolvimento, é o Estudio Econômico de América
,.I:.
.~
Latina, de 1949, publicado pelas Nações Unidas em 1951.
Fundamentação teórica idêntica sobre a análise do desen-
._.:.~ volvimento latino-americano encontra-se em artigo publi-
cado com anterioridade pelo Dr. Raul Prebisch - sem
< dúvida a grande figura de economista da CEPAL daquela
':
-' época - sob o título "EI desarrollo económico de la América
Latina y algunos de sus principales problemas", em abril
de 1950. 11
Nestes textos, que fundamentam o que veio a ser cha-
mado de doutrina Prebisch-CEPAL, há duas ou três idéias
básicas e, para o contexto em que se dava a discussão
econômica, inovadoras.
Opondo-se à idéia prevalecente nos meios liberais-or-
todoxos que aceitavam a premissa fundamental da teoria
de mercado relativa às vantagens comparativas da divisão
internacional do trabalho, Prebisch afirma que as relações
econômicas entre o Centro e a Periferia tendem a reproduzir
as condições do subdesenvolvimento e a aumentar o fosso
entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. A mão
invisível do mercado aparecia, para Prebisch, como ma-
drasta: em vez de corrigir distorções, acentuava-as.

34
Por que isso? Porque os países centrais se apropriam da
maior parte dos frutos do progresso técnico. Como? Pre-
bisch, a partir de evidências apresentadas em documentos
das Nações Unidas que mostravam uma tendência para a
deterioração dos termos da troca entre bens primários e
manufaturados, alinha os fatores causais desta estrutura
condicionadora de diferenças crescentes:
- a taxa de crescimento da produtividade na produção
manufatureira é mais alta que na produção de bens
agrícolas;

o aumento da produtividade deveria trasladar-se aos :.-::-
~~f.
preços dos produtos industriais, através do menor
valor incorporado a cada unidade produzida; ..~

entretanto, como nos países industrializados existe


pressão sindical para manter o nível dos salários e a
produção industrial organiza-se de tal forma que os
oligopólios defendem a taxa de lucro, os preços não
declinam proporcionalmente ao aumento da produ-
tividade. 12
Noutros termos, o que Prebisch chamou de os agentes
de produção - operários e empresários - dos países indus-
trializados, por sua força político-organizacional, blo-
queiam o funcionamento do mercado e produzem, no co-
mércio internacional, um efeito específico: a deterioração
constante dos termos de intercâmbio (terms oftrade). Esta
é a segunda idéia-central da teoria cepalina, decorrência
imediata da idéia anterior que mostra a inexistência de
vantagens universais do progresso técnico via sua transfe-
rência para a periferia: o preço dos produtos primários
tende a declinar como proporção do preços dos produtos
industrializados.
A síntese anterior demonstra que Prebisch partiu de um
suposto clássico fundamental. 13 Este predizia uma baixa
relativa dos preços internacionais dos produtos manufatu-

,
•• 0

35
_.
...... . .
:-
~
~

rados, em comparação aos produtos primários; se tal dimi-


nuição relativa ocorresse; poder-se-ia esperar, como resul-
tado, uma tendência para a equiparação internacional de
recursos (dado que os principais países produtores de bens
primários têm níveis de renda menores). É neste ponto (e
não em relação às opiniões contemporâneas neoclássicas
sobre o comércio mundial) que a análise de Prebisch con-
trasta com a reinterpretação das teorias de Hecksher e Ohlin
realizada por Samuelson. É útil recordar, todavia, que o
ponto de partida das contribuições de Prebisch não foi a
teoria neoclássica do comércio.
É clara a posição cepalina sobre as conseqüências da
tendência ao declínio dos preços dos produtos primários
em condições de oferta ampla de mão-de-obra e de aumento
da produtividade, enquanto o mesmo processo não ocorre
nos países desenvolvidos. Ela ocasiona uma menor capa-
cidade de acumulação na periferia, abrindo, portanto, o
debate em tomo da necessidade de uma política específica
_para promover a acumulação e o desenvolvimento.
Pode-se questionar, no raciocínio da CEPAL e de Pre-
bisch, a falta de maior desenvolvimento na análise do
mecanismo de exploração da Periferia pelo Centro, mas
não se pode dizer que ele descuidou do papel fundamental
da acumulação em economias de mercado, nem que falta-
ram referências às condições histórico-sociais específicas
que nos países capitalistas estão subjacentes à acumulação:
a maior capacidade de luta dos sindicatos dos países indus-
trializados por seus interesses de classe e a força político-
organizatória das grandes empresas capitalistas para impe-
dir a queda da taxa de lucro bloqueariam o automatismo da
transferência dos ganhos de produtividade suposta pela
teoria do comércio internacional.
Os supostos políticos e estruturais da análise cepalina
podem ser discutíveis em termos de uma análise econômica
que dê mais peso à "lógica do capital". Mas seria inade-

36
:".-=:.

quado sustentar esta última abstratamente, sem pensar nas


condições concretas da exploração social e parece-me in-
correto pensar que a CEPAL, bem ou mal, incorreu no
equívoco de crer que a exploração no mercado interna-
cional dá-se através de desigualdades nos termos de inter-
câmbio como se estes supusessem uma exploração mera-
mente ou principalmente comercial.

c. Reações criticas

As teses cepalinas sobre o comércio internacional e o


desenvolvimento não foram aceitas pacificamente. Longe
disto. Os setores de pensamento econômico mais ortodoxos
(tanto liberais quanto marxistas) criticaram sempre, e de
ângulos opostos, o que veio a chamar-se de "0 pensamento
da CEPAL". Para os defensores ardorosos de que a "lógica
do mercado" é o melhor mecanismo para promover o
verdadeiro desenvolvimento, a CEPAL sempre represen-
tou o cavalo de Tróia do esquerdismo. Por trás das pruden-
tes recomendações sobre a necessidade da intervenção
corretora do Estado, da defesa de políticas protecionistas,
da insistência sobre o caráter estrutural da inflação latino-
americana etc., os liberais ortodoxos sempre viram o risco
de um socialismo burocrático.
Com ardor não menor, a ultra-esquerda teórica também
"desmascarou" o caráter de classe das formulações cepali-
nas porque elas não põem a nu os mecanismos de explora-
ção social e econômica que mantêm a subordinação dos
trabalhadores à burguesia e desta aos centros imperialistas.
Em certa época - depois que a política de alguns partidos
comunistas e populistas passou a fazer coro aos clamores
cepalinos em prol da industrialização e do fortalecimento
dos centros internos de decisão sem criticar mais a fundo o
caráter de dominação de classe desses últimos - a ultra-es-
querda passou quase a acreditar que não fosse pela existên-

37
cia da CEPAL, dos partidos comunistas e do populismo, a
ansiada Revolução já teria libertado os povos do jugo de
classe e das peias do imperialismo. Tomaram, assim, a
visão cepalina, uma espécie de viseira que amortecia a
consciência dos povos, oferecendo-lhes a alameda de um
futuro próspero através da industrialização e do fortaleci-
mento do Estado.
Qual é o peso desta crítica?
A teoria Prebisch-CEPAL sustenta, como vimos, que o
progresso técnico somado a condições sociais específicas
produz conseqüências diferenciais entre o Centro e a Peri-
.....
., feria. Não parece correto, portanto, acusá-lo de simplismo
...
~

...: neste aspecto. O sistema explicativo deixa em aberto, en-


..
tretanto, alguns pontos: por que os empresários da periferia
não retêm os ganhos ocasionados pelo aumento da produ-
tividade do setor agrícola, apropriando-se eles mesmos das
diferenças derivadas do barateamento dos custos de produ-
ção e da baixa capacidade de pressão (nível pouco desen-
volvido da luta de classes) dos trabalhadores da periferia?
Existe um hiato explicativo no mecanismo de transfe-
rência de ganhos da Periferia para o Centro, que a noção de
"insuficiência dinâmica" do capitalismo periférico antes
obscurece do que explica. Falta uma análise das relações
internacionais de exploração - do colonialismo e do impe-
rialismo - para tomar mais consistente e transparente a
posição crítica inicial da CEPAL.
Sem ela, embora se reconheça as diferenças do avanço
das forças produtivas e a desigual capacidade de luta dos
trabalhadores do centro e da periferia, a alegada menor
capacidade de acumulação na periferia ou deriva da inca-
pacidade de concorrência empresarial dos produtores lo-
cais frente aos que fazem a comercialização internacional
ou decorre da "propensão ao consumismo" das elites locais.
Esta explicação é débil embora compreensível em vista da
pequena base de acumulação de que dispunham, então, as

38
economias periféricas. O consumo pessoal é proporcional-
mente irrelevante para explicar os reinvestimentos das
empresas e porque estes de fato ocorreram, na fase do
esforço concentrado de industrialização, que vai da Segun-
da Guerra até aos anos sessenta, mediante reinvestimentos
constantes de lucros. Isto mostra que o consumo pessoal
tem um papel bastante limitado na explicação do desenvol-
vimento capitalista.
Esta deficiência da teoria cepalina foi alvo de distorções
e de críticas. Do ponto de vista da explicação da relação
entre desenvolvimento e subdesenvolvimento ela é séria, ,

como adiante assinalarei. Mas quanto à constatação da


existência de uma relação de troca desfavorável à Periferia
e quanto aos efeitos deste processo sobre a teoria do comér-
cio internacional, as teses cepalinas são suficientemente
fortes para desqualificar as teorias até então vigentes.
Por que a tese da CEPAL sobre a deterioração dos
termos de intercâmbio se sustenta? Porque não tendo havi-
do redução de preços relativos a favor dos produtos primá-
rios (mesmo sem supor que a relação de intercâmbio tivesse
se deteriorado), teria havido "exploração", devido à distri-
buição desigual de lucros no comércio internacional, con-
siderando-se o aumento da produtividade dos países indus-
trializados.
As estatísticas da ONU mostravam que, até 1946-47,
partindo de 1876-1880, tinha havido uma tendência cons-
tante à deterioração dos termos de troca. Prebisch, para
sustentar seu argumento, reproduziu no artigo sobre "O
desenvolvimento econômico da América Latina e seus
principais problemas" os dados de um documento da ONU
de 1949 sobre os "Post War Price Relations" do comércio
internacional. Hans Singer, com menor elaboração expli-
cativa do que os documentos da CEPAL e o artigo de
Prebisch, havia chamado a atenção para a mesma tendên-
• 14
cla.

39
A base estatística do argumento foi considerada insufi-
ciente por parte de Haberler e outros. O documento das
Nações Unidas referia-se ao intercâmbio do Reino Unido
e a falta de comparabilidade entre os produtos industriais
,. do Reino Unido com os da Alemanha, Japão, Estados
. ,
Unidos e de outras economias poderia ter distorcido os
resultados. Até hoje perdura uma controvérsia a respeito
dos dados sobre a relação de preços do intercâmbio; entre-
tanto, e admitindo mesmo que por algum tempo os preços
do Reino Unido tivessem sido afetados pela baixa produti-
vidade e pela supervalorização da libra esterlina, a capaci-
dade permanente de exportar produtos depende da capa-
cidade de manter os preços aproximadamente dentro da
margem dos preços exógenos internacionais dados. Nesses
casos a regra de um único preço no mercado mundial deve
manter-se, pelo menos aproximadamente, para produtos
homogêneos. Sustenta-se, pois, o argumento básico sobre
a deterioração dos termos de troca, apesar das críticas.
.'

11 - Críticas e teorias alternativas às teorias da Cepa)

Q. Os "ortodoxos"

Não obstante, a resposta dos "ortodoxos" às formula-


ções da CEPAL não se fez esperar. O Prof. Gottfried
Haberler, de Harvard, negou peremptoriamente que os
economistas dipusessem "de qualquer lei que lhes permita
predizer as tendências dos preços a favor ou contra os
produtores de matérias-primas".ls Reconheceu a validade
de uma generalização grosseira sobre as variações de curta
duração em desfavor dos países subdesenvolvidos, pois
durante as fases de depressão econômica mundial os preços
relativos dos produtos primários tenderam a piorar (tendên-
cia, diga-se de passagem, não comprovada mais recente-
mente). Mas negou que se pudessem prever regularidades.

40
Haberler acreditava que havia sido exagerada a magnitude
da relação de intercâmbio desfavorável aos países exporta-
dores de produtos primários. Aconselhou os países subde-
senvolvidos a conviver com suas agruras, consolados pela
expectativa de que também os ricos passam por elas... 16
Não obstante a fragilidade das conclusões de Haberler,
este economista apresenta um argumento pertinente, em-
bora por vias equivocadas, ao tocar num ponto significativo
- e discutível- da teoria cepalina: a inevitabilidade do fosso
entre centro e periferia. Com efeito, Haberler argúi que a
piora nos termos de intercâmbio de um país com respeito
ao Comércio Internacional num dado período não significa
que este país, no fim do período, tenha seu bem-estar
econômico afetado desfavoravelmente Cp. 326).
Para demonstrar seu argumento, joga com a idéia de
"termos de intercâmbio de um só fator", em vez de tomar
como base para análise o valor do intercâmbio entre mer-
cadorias. Com isto - sem desmentir a tese Prebisch-CEPAL
- alerta para o dinamismo requerido para entender-se os
processos de desenvolvimento econômico. Dito de outra
maneira: pode haver transferência de recursos para o cen-
tro, via comércio exterior, e, ao mesmo tempo, graças aos
aumentos de produtividade, pode em tese haver crescimen-
to econômico e mesmo aumento do padrão de vida na
periferia. Assim pode alargar-se a brecha entre países de-
senvolvidos e em desenvolvimento, e o nível de vida, nestes
últimos, pode também aumentar em certos casos.
Haberler tentou também ferir os fundamentos da expli-
cação cepalina e negar a validade da idéia de que é por
intermédio de defesa dos salários e lucros dos países indus-
trializados que são bloqueadas as transferências das vanta-
gens do processo técnico. Argumentou que a concorrência
entre capitalistas e a quebra do monopólio do progresso
técnico exercida pela Inglaterra invalidaria o argumento da
CEPAL. Os produtores de matérias-primas, segundo Ha-

41
berler, sabem defender-se muito bem; quem sofre são as
·:J ....
camadas de rendas fixas dos países desenvolvidos(!).17 De
igual modo, criticou as interpretações dos esperados efeitos
da Lei de Engel sobre o comércio internacional, enfatizadas
-.....
.. ~. mais por Singer do que pela CEPAL. Se, diz ele, esta lei
poderia afetar os produtores de alimentos, seria, entretanto,
..,
inadequado generalizar suas conseqüências para o conjunto
dos produtores primários,já que não afetaria a produção de
minérios.
Os argumentos de Haberler, apesar de seus fundamen-
tos conservadores, apontam também para uma lacuna im-
portante nos trabalhos iniciais da CEPAL: a falta de maior
explicitação sobre o papel e a natureza dos ciclos econômi-
.. cos e sua distinção frente a tendências de piora constante.
Mais tarde, na pena dos epígonos, os efeitos das recessões
foram tomados como expressão de tendências irreversíveis.
A partir desta concepção imaginou-se uma piora contínua
1::1
.~ . e crescente não só da relação entre países desenvolvidos e
subdesenvolvidos, mas da própria situação de subdesen-
volvimento.
De certo modo, a perspectiva "catastrofista", que levou
mais tarde à formulação de teorias do "desenvolvimento do
.._~. i
subdesenvolvimento", estava incrustada na própria expli-
..
..";! cação cepalina. Seria incorreto, entretanto, supor que a
:... '\
ênfase da argumentação cepalina sobre as deficiências do
mecanismo de mercado internacional tivesse levado a for-
:...
;-: . mulações predominantemente estáticas ou catastrofistas.
.:..:.-:.
.~ . Estas, se estavam contidas nas formulações que critiquei,
.....
.'. continham-se mais virtualmente do que ao pé da letra.
.i.• Apareceriam somente se o campo teórico em que elas se
~.
situaram fosse plenamente desenvolvido. O documento de
1949 incorporava a idéia de ciclos. Mostrando a tendência
ao agravamento das relações de troca em prejuízo dos
países subdesenvolvidos, ele afirma que os preços dos
produtos industriais cairiam menos na recessão do que o

42
preço dos primários, enquanto no final dos auges os produ-
tos primários subiriam mais depressa; a resultante é que
seria negativa para os produtos primários. Seria inade-
quado, portanto, pensar que o diagnóstico cepalino basea-
va-se, como Herberler deu a entender, numa concepção
puramente estática das relações Centro-Periferia.
Prebisch tomou-se inclusive, em sua política econômi-
'-
ca, um forte defensor da criação de condições para diminuir
o fosso entre Centro e Periferia. O argumento teórico, 'õ:-"
entretanto, poderia dar margem a interpretações ambíguas
e foi delas que se valeu Haberler.
Outros economistas fizeram como Haberler: deram um
passo atrás no debate. Entre estes, destacou-se o Prof. Jacob
18
Viner. Repetindo suas palavras: "o que eu encontro nos
estudos de Prebisch e em outras publicações de caráter
similar provenientes das Nações Unidas e de outras fontes
é somente uma identificação dogmática entre agricultura e
pobreza, e a explicação da pobreza da agricultura por regras
inerentes à natureza e à história, segundo as quais os
produtos agropecuários tendem a entrar em relações de
intercâmbio permanentemente deterioradas se comparadas
com os produtos manufaturados; as populações agrícolas
não se beneficiariam do progresso tecnológico das manu-
faturas nem mesmo como compradores porque os preços
dos produtos manufaturados não baixam ao diminuir os
seus custos reais... ,,19 E, acrescenta o professor: "Isto não é
senão confundir uma simples conjuntura com leis de ten-
dências inexistentes". 20
Posto que não viu no raciocínio de Prebisch nada além
do exposto acima (como se em si mesmo isto não exigisse
maior atenção em vista dos dados das Nações Unidas, nem
levasse a uma mais completa reconsideração da teoria do
comércio internacional), Viner passou a "demonstrar" que
o problema real não era na agricultura como tal, nem na
industrialização como tal, e sim quanto "à pobreza e ao

43
r (

atraso". Como poderia, sem cair numa tautologia, apresen-


tar a pobreza e o atraso como causas de si mesmos? Em
todo caso se equivocava no comentário do raciocínio de
Prebisch, já que este se apoiava nas taxas diferenciais dos
aumentos de produtividade (ou do desenvolvimento das
forças produtivas) entre países desenvolvidos e subdesen-
volvidos.
A agricultura era oferecida como exemplo para salien-
tar que, como regra geral, na América Latina a produti-
vidade agrícola era baixa se comparada com a produ-
tividade do setor urbano industrial e que portanto a pobreza
era maior no campo. E como qualquer pessoa que soubesse
algo a respeito da agricultura argentina não poderia deixar
de lembrar, Prebisch sempre sustentou que uma maior
produtividade agrícola constituía um instrumento útil para
aumentar os níveis de vida.
Num terreno puramente teórico, entretanto, a evidência
de que Viner não entendeu o sentido do principal argumen-
to de Prebisch pode ser encontrada no seguinte trecho: "Se
afirma também que existe uma lei histórica de que o pro-
gresso tecnológico é mais rápido na indústria do que na
agricultura. Se assim fosse, se dita lei se expressasse por
uma queda relativa do custo real da produção de manufa-
turas, isto contribuiria para produzir um momento favorá-
vel e não desfavorável em relação aos preços dos produtos
agrícolas".21
Como já vimos, Prebisch tinha formulado sua crítica
justamente porque o intercâmbio internacional impedia o
funcionamento deste mecanismo clássico.

b. Os liberais "heterodoxos"
A ênfase na separação entre um possível viés teórico
das formulações cepalinas iniciais (que continham algo de
uma visão estática relativa à natureza do fosso entre Centro

44
e Periferia) e as proposições de uma ação prática para
diminuir este fosse ajudam a compreender parte da crítica
àCEPAL.
Convém ter presente que as formulações econômicas
então vigentes (descontando-se a análise marxista) a res-
peito de como quebrar o círculo de ferro do subdesenvol-
vimento punham toda a ênfase na formação de capital,
concebido este como um ··fator" que dependia de dois
mecanismos:
- a inversão estrangeira;
- as exportações geradoras de ··excedentes".
Note-se que no que diz respeito às exportações e im-
portações, a ênfase era posta em que, mesmo sem a indus-
trialização, a periferia poderia beneficiar-se com o pro-
gresso do Centro porque existiam mecanismos igualizado-
res no comércio internacional. E quanto aos investimentos
estrangeiros, ainda os mais ortodoxos proponentes de suas
vantagens, como Ragner Nurkse, reconheciam que eles
tendiam a concentrar-se nos setores colonial-exportadores
e que a estreiteza do mercado interno tornava-se um empe-
cilho para atrair investimentos industriais para os países
subdesenvolvidos.
Assim, de alguma maneira, as teorias vigentes sobre o
desenvolvimento ou repousavam nas vantagens do comér-
cio internacional, ou, de um modo ou de outro, acabavam
por aceitar o círculo vicioso da pobreza como elemento
limitativo fundamental das economias periféricas.
A formulação crítico-liberal mais prestigiosa sobre o
subdesenvolvimento, no início dos anos cinqüenta, provi-
nha de um discípulo de Wicksell, que rompeu com a
ortodoxia: Gunnar Myrdal. Com o olhar crítico treinado em
sua magistral obra sobre os negros americanos, Myrdal
incorporava as suas preocupações, desde An American
Dilema, uma perspectiva "estrutural". Suas análises foram

45
ganhando densidade política, como o atesta o The Political
Element in the Development ofEconomic Theory, publica-
do em Londres em 1953. Mas Myrdal quando desenvolveu
sua hipótese sobre a "causação circular e cumulativa" - que
deu foros teóricos mais sofisticados e acrescentou elemen-
tos criticos de teoria política à velha idéia do círculo vicioso
da pobreza - tinha presente muito mais a situação asiática.
Mesmo na coroação de seu trabalho intelectual, The Asian
Drama, os males do subdesenvolvimento diagnosticados
supõem uma ampla economia camponesa e condicionantes
extra-econômicos do desenvolvimento baseados numa es-
trutura de poder não secularizada. 22
No debate latino-americano - que versava sobre uma
região bem mais urbanizada e mais apendicular ao desen-
volvimento capitalista do centro - o grande argumento
acadêmico era o da circularidade da pobreza graças ao
acanhamento dos mercados. O peso dos fatores extra-eco-
nômicos era menos visível e impactou menos a teoria
econômica.
Nurkse, em conferências pronunciadas no Rio em julho
e agosto de 1951, colocou claramente a questã023 : a limitada
magnitude do mercado interno seria o maior obstáculo ao
desenvolvimento.
Como romper esta barreira?
A resposta de Nurkse também é clara. Em situações
marcadas pelo círculo vicioso da pobreza não se pode
confiar no automatismo da Lei de Say: é preciso que ela se
aplique de modo a produzir um efeito em cadeia. Comen-
tando artigo anterior de Rosenstein Rodin sobre a indus-
trialização do Leste e Sudeste europeus, que mostrava as
limitações da concepção de uma oferta necessariamente
auto-solvente, Nurkse diagnostica:

46
- só o awnento de produtividade gera, realmente, ex-
pansão de mercado (portanto, influxos monetários
não produzem mais que inflação e a exportação per
se não resolve, se não que reproduz, o círculo vicio-
so);
- entretanto, não basta wn aumento isolado de produ-
tividade: só o encadeamento e a complementaridade
básica produzida por uma "onda de investimentos de
capital em várias indústrias" rompe o referido círcu-
lo;
- Schwnpeter, com sua teoria do empresário inovador
e das ondas sucessivas de atuação empresarial, daria<

o suporte sociológico-econômico à teoria do primei-


roimpulso.
Apresentava-se, assim, wna elegante formulação da
chamada "teoria do crescimento equilibrado,,24 baseada na
ampliação da magnitude global do mercado e no aumento'
dos estímulos ao investimento industrial em geral.
A discussão - cujos desenvolvimentos não cabe acom-
panhar neste trabalho - sobre o que significa "amplitude de
mercado" em sua relação com tamanho da população e com
2S
o espaço geográfico foi intensa, no início dos anos 50. E
nem todos os economistas dos países desenvolvidos con-
cordaram com Nurkse. Este, embora, como veremos adi-
~nte, tivesse posto mais ênfase para realçar a necessidade
,de capital estrangeiro do que a poupança interna para
awnentar a produtividade per capita e romper o círculo de
ferro do atraso, equacionou, através da teoria do "desenvol-
vimento equilibrado", um pensamento favorável à indus-
trialização.
Albert Hirschman, com a sensibilidade que o caracte-
riza, e sempre atento à dialética do inesperado, começou a
propor, em uma conferência ditada em 1954, uma estratégia
de desenvolvimento diferente. Em vez de adotar a hipótese

47
do "crescimento equilibrado" com sua evidente preocu-
pação pela falta do capital, Hirschman assinalou que os
desequilíbrios fomentam, às vezes, reações corretivas. Su-
geriu, também, que uma cadeia de exigências tecnológicas
poderia requerer novos investimentos; de modo que é
importante considerar os efeitos sucessivos que precedem
ou seguem os investimentos. Mais tarde, em 1958, Hirsch-
man publicou Strategies ofEconomic Development, onde
deu consistência teórica a suas hipóteses em relação aos
efeitos em cadeia, "para frente e para trás" (backward and
forward linkages), como elementos-chave no processo do
desenvolvimento. Ao mesmo tempo seu livro veio relem-
brar certas possibilidades importantes e despercebidas do
desenvolvimento econômico e inovação na América Lati-
na, otimizando recursos e oportunidades disponíveis, a
despeito da escassez de capitais.
Albert Hirschman não foi um adversário das afirmações
da CEPAL sobre a industrialização, e sim um partidário
com senso crítico. Mostrou que no processo de acumulação
de capital o esforço criativo interno é mais importante, para
as estratégias do desenvolvimento, do que a lamentação
permanente a respeito da escassez do capital. Como sua
obra foi escrita durante a segunda metade da década de
1950, Hirschman pode ser considerado, entre os economis-
tas não latino-americanos, como um pioneiro da defesa das
vantagens do planejamento e da intervenção pública na
economia. Algumas de suas explicações, como as referen-
tes à inflação e aos problemas de balanço de pagamentos,
se aproximam das considerações estruturalistas da CEPAL,
apesar de terem sido propostas independentemente.
Tanto Nurkse como Hirschman passaram, portanto, a
interessar-se não tanto pelos efeitos "automáticos" da teoria
das vantagens comparativas, como pelos problemas reais
do desenvolvimento: como acumular ou utilizar melhor o

48
excedente para - através da industrialização - romper o
atraso e o subdesenvolvimento.

c. Os marxistas

Foi a partir da segunda versão leninista sobre o impe-


rialismo que os economistas marxistas contemporâneos às
formulações iniciais da CEPAL propuseram seus esque-
mas. Dobb utiliza o raciocínio marxista clássico: a expan-
são de capitais ocorrerá na periferia porque a elevação da
composição orgânica de capitais nos países industrializa-
dos acelera a tendência à queda da taxa de lucros; logo os
países coloniais, com trabalho abundante e barato e mais
baixa composição orgânica de capital, atrairiam investido-
26
res extemos. Baran, que publicou artigo em 1952 sobre
"An interpretation of economic backwardness", recolhe a
herança da segunda versão das relações Centro-Periferia de
Lenin, sem dar muita atenção à tradição de ortodoxia
marxista (em parte retomada por Dobb) que via na indus-
trialização da periferia uma conseqüência natural da expan-
são capitalista mundial.
Com efeito, Baram aceita a tese da estreiteza do mer-
cado como fator limitante do desenvolvimento: "A escas-
sez de fundos de investimento e a falta de oportunidades de
investimento representam dois aspectos do mesmo proble-
ma. Um número maior de projetos de investimento, não
lucrativos nas condições prevalecentes, poderiam tomar-se
mais promissores num ambiente geral de expansão econô-
mica".27 Conseqüentemente, toma-se "industrialista", pelo
mesmo argumento de que é preciso aumentar a produti-
vidade e que a agricultura desenvolvida requer industriali-
zação. Discute, endossando, os programas protecionistas,
de reformas fiscais etc., mas condiciona-os à análise polí-
tica das estruturas de poder vigentes. Sem modificações
radicais destas, o programa de reformas toma-se ilusório:

49
"Para que os países atrasados entrem na via do cresci-
mento econômico e do progresso social, a estrutura
política deve ser remodelada de maneira drástica. De-
vem ser rompidas as alianças entre os senhores feudais,
os industriais conservadores e as classes médias capi-
talistas" (p. 91).
Mais tarde, em livro publicado em 1957, Baran refor-
mula seu ponto de vista. Mantém a crítica às condições
políticas negativas ao desenvolvimento, mas critica Nurkse
e Hans Singer, substituindo a idéia da inexistência de
capitais (estreiteza do mercado) pela de utilização inade-
quada do "excedente econômico" nos países subdesenvol-
vidos. Limita também o alcance das hipóteses sobre a
deterioração dos termos de intercâmbio porque ela não
afetaria a todos os países, e porque a necessidade de cam-
28
biais seria pequena em muitos deles.
Baran introduz a idéia de "excedente econômico", mos-
tra que existe uma utilização socialmente irracional dele e
que, em qualquer circunstância, sua aplicação adequada
solucionaria a alegada escassez de capitais. Os investimen-
tos estrangeiros não resolvem, senão que agravam as dis-
torções no uso do excedente.
Curiosamente, entretanto, Baran não soluciona uma
contradição em sua exposição:
- admite e desenvolve a crença marxista no dinamismo
do capitalismo e no papel da industrialização para
levar adiante o desenvolvimento (negando a validade
da explicação mecânica de que são as aplicações
estrangeiras isoladas - em estradas e energia p. ex. -
que provocam o desenvolvimento quando o processo
real segue, para Baran, a seqüência oposta);
conseqüentemente aceita a teoria do "efeito cumula-
tivo dos investimentos" ao estilo de R. Rodin (ver p.

50
201 da 7! ed. castelhana de Economia Política dei
Crecimiento);
- refaz o argumento para dar ênfase ao investimento
interno e ao processo de divisão social do trabalho;
- mas não enfatiza suficientemente o desenvolvimento
das forças produtivas.
Por isto, minimiza a importância do balanço de paga-
mentos e da deterioração dos termos de intercâmbio no
processo de desenvolvimento. A explicitação coerente de
seu argumento levaria a imaginar uma tecnologia autóctone
(coisa que não faz) ou a tomar mais a sério os efeitos da
deterioração dos termos de intercâmbio sobre o desenvol-
vimento.
Não segue esta via e concentra a crítica na tendência ao
consumismo das classes altas, em detrimento de investi-
mentos reais (expansão dos meios de produção). Baran
registrou algo muito importante na estrutura do subdesen-
volvimento, a saber, que se gasta no país parte pequena dos
investimentos industriais porque a aquisição de máquinas
e patentes no estrangeiro consome o grosso dos investimen-
tos, mas não deu a este argumento o peso devido. Apresen-
tou, assim, uma teoria que aceita que "o investimento tende
a converter-se em autogerador, e sua carência em auto-es-
tagnadora" (p. 201), e que vê no uso irracional do excedente
fator impeditivo do desenvolvimento. Este levaria os países
periféricos à estagnação econômica, da qual só sairiam por
vias políticas.
Assim, enquanto a inspiração marxista mais clássica
não podia concordar com a análise da CEPAL, porque não
via um problema de falta de capitais, a tradição mais
política da análise de Lenin, aceita ipso facto por Baran,
percebia a existência de um problema que aparecia como
se fosse de mercado e de insuficiência dinâmica de capitais.
Entretanto, ao contrário de Prebisch, não acreditava que as

51
refonnas, o aumento de produtividade e o investimento de
capital estrangeiro pudessem alterar drasticamente as con-
dições prevalecentes no subdesenvolvimento. Só uma re-
volução socialista libertaria as forças produtivas e penniti-
ria elevar o nível de vida das massas, através do melhor uso
do excedente disponível.
Mais recentemente, houve uma recolocação de teses
cepalinas por economistas marxistas. Arghiri Emmanuel
propôs, vinte anos depois de Prebisch, uma teoria do "in-
tercâmbio desigual". Só que, ao invés de explicar a desi-
gualdade ao nível do sistema produtivo e das peculiaridades
da organização das empresas e da luta de classes, Emma-
nuel pôs ênfase nas desigualdades ao nível das trocas.
A partir daí houve toda uma derivação do debate esco-
lástico marxista recente sobre a "exploração" no comércio
internacional e as taxas diferenciais de composição orgâni-
ca do capital entre Centro e Periferia. Charles Bettelheim
critica - a meu ver com razão neste ponto - as proposições
de Emmanuel mostrando que "exploração" na teoria mar-
xista refere-se a rélações entre classes (o próprio capital,
naquela concepção, é uma relação social de exploração) e
que não se deve esquecer que a desigualdade de taxas de
composição orgânica do capital entre ramos da economia
ou entre economias nacionais (quer dizer, de proporção
entre o capital constante - máquinas e matérias-primas - e
o capital variável, os salários) é um efeito da desigualdade
do desenvolvimento dasforças produtivas. Estas, por sua
vez, dependem da desigualdade das condições sociais e
materiais da produção. Por isto parece inadequado falar em
tennos de exploração ao nível do comércio mundial, sem
especificar os mecanismos da exploração de classe que a
29
provocam.

52


In - Idéias na prática
É interessante notar que, embora o raciocínio de Pre-
bisch e da CEPAL estivesse baseado na necessidade impe-
riosa de aumentar a produtividade per capita e de obter,
simultaneamente, a acumulação de capitais para elevar o
bem-estar da massa da população, este ponto foi sumamen-
te criticado pela esquerda e pela direita. A esquerda criti-
cou-o porque, outra vez, faltou a explicitação dos mecanis-
mos pelos quais se compatibilizariam as duas metas; a
direita, porque não viu no Manifesto Latino-Americano
(como foi chamado por Hirschman o documento de 1949)
mais do que uma acusação aos países ricos e um distribu-
tivismo internacional que não tomava a sério a necessidade
de formar capitais e aumentar a produtividade.
Prebisch, entretanto, foi explícito. Mostrou que:
- o comércio internacional deveria ser ativo para aju-
dar o crescimento da América Latina (ver p. 49 de
seu artigo da Revista Brasileira de Economia);
- o aumento da produtividade era indispensável;
- sem acumulação, não haveria desenvolvimento;
- porém insistiu que este processo não deveria dar-se
através da compressão do consumo popular que já
era baixíssimo.
Cito textualmente trechos do artigo mencionado:
"Para formar o capital necessário à industrialização e
ao progresso técnico da agricultura, não pareceria in-
dispensável comprimir o consumo da grande massa,
que, em geral, é demasiadamente baixo" (p. 51). Ainda
mais: "se, por um lado, com o progresso técnico se
consegue aumentar a eficácia produtora, e se a indus-
trialização e uma adequada legislação social por outro
lado vão elevando o nível do salário real, poder-se-á
corrigir, gradualmente, o desequilíbrio de remunera-

53
ções entre os centros e a periferia, sem prejuízo dessa
atividade econômica essencial (a exportação primária)"
(p. 53). Prebisch chega a pôr limites à industrialização
(e ao protecionismo, por conseqüência) em função
daqueles objetivos: "se o propósito é aumentar o que se
chamou com justeza de bem-estar mensurável das mas-
sas, convém ter presentes os limites além dos quais uma .
industrialização maior poderia significar perda de pro-
dutividade" (p. 52).

a. As políticas de desenvolvimento

Mais do que no debate teórico, as proposições cepalinas


abriram-se à critica quando passaram a sustentar determi-
nadas políticas. 30 Em primeiro lugar, porque elas puseram
ênfase nos desequilíbrios estruturais e os economistas mais
preocupados com o curto prazo e com os aspectos monetá-
rios do desenvolvimento viram nelas o risco de uma retó-
rica anticapitalista. A discussão sobre a inflação (na qual
não entrarei) é o exemplo conspícuo deste diálogo de
surdos.
No plano das metas básicas e dos instrumentos de
política econômica para alcançá-la, houve pouca variação
na posição da CEPAL durante os anos cinqüenta:
- industrialização e "sadio" protecionismo;
- política adequada de alocação dos recursos externos;
programação de substituição das importações;
- atenção especial para não diminuir ainda mais os
salários, no processo de industrialização e para evitar
a redução da capacidade de consumo das grandes
massas.
As questões eram obviamente candentes. A CEPAL foi
cuidadosa, até o fim dos cinqüenta, na proposição de me-
didas social e politicamente espinhosas, como a reforma

54
agrária e as políticas de equalização social. Mesmo assim,
falar de controles cambiais e de programação de investi-
mentos aparecia, aos olhares conservadores, como algo
herético.
Além das declarações sobre o nível de vida das massas,
em documentos como os transcritos acima, a ênfase das
políticas cepalinas era posta na necessidade da industriali-
zação "programada", com os necessários mecanismos de
controles cambiais. A implementação destas políticas su-
punha, entretanto, a defesa da necessidade do deslocamento
dos centros de decisão para a periferia e, conseqüentemen-
te, o fortalecimento da capacidade decisória e regulamen-
tadora do Estado. Não é difícil, portanto, entender o porquê
da reação liberal-conservadora à CEPAL. Mesmo sem
exacerbar a "questão social", suas idéias eram inquietantes.
Neste aspecto é curioso que, de algum modo, no plano
puramente ideológico, na medida em que os fonnuladores
das soluções inspiradas no pensamento marxista também
criticaram a suposta existência de uma aliança "feudal-im-
perialista", havia certa coincidência entre eles e algumas
das posições da CEPAL. A linguagem era distinta, os
fundamentos da explicação também, mas ambas vertentes
viam no exterior o inimigo principal e ambas coincidiam
em que sem esforço interno para remover "obstáculos ao
desenvolvimento" - os setores tradicionais - não haveria
melhoria do nível de vida das massas. Estas coincidências
deram uma coloração levemente avennelhada ao pensa-
mento cepalino.
Prebisch e a CEPAL, assim como os representantes
deste pensamento nos países - o exemplo mais brilhante
foi o de Furtado com a SUDENE - mantinham-se finnes
quanto à necessidade de industrializar e programar. E man-:-
tinham o objetivo de aumentar o bem-estar das massas. 31
Não desdenhavam, entretanto, políticas específicas para
isto. Nem se pode pensar, por outro lado, que defendessem

55
o protecionismo à outrance: Prebisch sempre defendeu a
necessidade de alguma concorrência. Sua desconfiança
frente ao estatismo de tipo soviético ia ao ponto de pergun-
tar se os êxitos inegáveis da economia soviética - que o
deslumbravam - não se deviam mais à ampliação do siste-
ma educacional e à mobilidade da sociedade soviética do
32
que à centralização excessiva.
Mais tarde, por volta do fim da década, a CEPAL
incorporou à sua luta pela industrialização e pela progra-
mação econômicas a idéia da integração. Passou a propor
e a implementar a formação de "mercados comuns" latino-
americanos: a ALALC e o Mercado Centro-Americano.
Não é difícil perceber que por trás destes esforços perma-
nece a mesma idéia da estreiteza do mercado - a busca da
ansiada escala para os investimentos - e a noção política
de que através de "blocos" talvez fosse mais fácil contra-
por-se aos interesses do Centro.
Não obstante, há uma grande área de indecisão no
pensamento cepalino sobre o desenvolvimento: a política
relativa aos capitais estrangeiros e a explicação da natureza
da acumulação proposta.
Uma vez admitida a tese de que o desenvolvimento
capitalista depende do desenvolvimento das forças produ-
tivas (do progresso técnico não in abstrato, mas incorpo-
rado na produção social33 ) e que este depende e por sua vez
altera tanto a divisão social (e internacional) do trabalho
quanto o modo como se dá a exploração (a acumulação),
tornam-se iniludíveis certas questões:
- como "incorporar" o processo técnico: via importa-
ção de tecnologia, através de desenvolvimento tec-
nológico autóctone ou por intermédio de alguma
forma de combinação entre ambos?34
Como assegurar um processo de divisão interna do
trabalho que favoreça a acumulação?

56
- Como expandir a participação do Estado na econo-
mia, diretamente e através de impostos, para aumen-
tar as probabilidades da industrialização?
- Como justificar a acumulação, reconhecendo-se que
ela supõe trabalho acumulado: impunha-se alguma
teoria redistribucionista explícita ou alguma teoria
socialista que enfatizasse a natureza de classe da
exploração capitalista?
A última questão, como disse, ficou na penumbra nos
textos principais, mantendo-se com vigor como meta, mas
sem que se explicitasse como alcançá-la, por razões óbvias
para um organismo da ONU dependente de governos rea-
cionários.
As duas primeiras questões, entretanto, implicavam
uma discussão sobre o papel do capital estrangeiro. E esta
fez-se, até o fim da década dos 50, da forma inconclusiva.
No artigo de Prebisch de 1950 a receita sobre o como
acumular é a seguinte:
"Para formar o capital necessário à industrialização e
ao progresso técnico da agricultura, não pareceria in-
dispensável comprimir o consumo de grande massa,
que, em geral, é demasiadamente baixo. Além da pou-
pança presente, as inversões estrangeiras, bem encami-
nhadas (grifos meus), poderiam contribuir para o au-
mento imediato da produtividade por homem. Lograda,
por essa maneira, certa melhoria inicial, poder-se-ia
desviar uma parte importante da produção para a for-
mação de capitais, evitando um consumo prematuro".35
O realismo de Prebisch o levou a ver com cautela a
contribuição do capital estrangeiro. Nas formulações ini-
ciais de sua doutrina, ele aparece como recurso pro-tempo-
re: é necessário aumentar a formação interna de capitais
para elevar a produtividade e o Estado é o agente de
aceleração deste progresso; como, entretanto, existem dis-

57
torções (inflação, alta propensão ao consumo, etc.), recor-
rer-se-á ao capital estrangeiro. Em 1952 Prebischjá adver-
tia para uma tendência cujos desdobramentos só foram
retomados nos anos 60: a de que havia em emergência a
formação de um novo mercado para as inversões estran-
geiras e este era interno. 36 Criticava, entretanto, o capital
estrangeiro por não haver acelerado este processo. Com
este ânimo, ressalta o papel do capital estrangeiro:
"Hace falta estimular estas inversiones, no solo por el
capital que aportan, sino también por la ayuda técnica
que traen consigo, por la propagación deI saber hacer,
de que tanto se necessita en estos paises".37
Noutros termos: sem explicitar no que consiste a divi-
são interna de trabalho que poderia propiciar a acumulação,
mantendo, por um lado, a fidelidade ao imperativo do
aumento de produtividade e buscando, por outro lado, não
diminuir os salários reais da massa de trabalhadores, a saída
para obter o impulso inicial seria:
- controle e realocação do "excedente" obtido pelas
exportações sobre as importações;
- desvio de recursos dos bens de consumo corrente
para o setor de bens de capital;
- recurso adicional - mas importante - ao capital es-
trangeiro para acelerar tanto a formação de capitais
quanto o progresso técnico.
A trajetória posterior de Prebisch - que escapa aos
objetivos deste capítulo - foi conseqüente com esta visão:
tratados multilaterais de comércio internacional para defen-
der o preço dos produtos primários - UNCTAD - e propo-
sições para a multilateralização e aumento da "ajuda exter-
na", para a obtenção daquele mínimo de capital e técnica
adicionais para garantir o grande salto para frente em
termos de industrialização e desenvolvimento.

58
b. Adaptações do pensamento cepalino às situações
emergentes

Em suas linhas gerais as páginas anteriores resumem o


pensamento da CEPAe s na fase de seu auge. O cotejo com
que se pensava na época indica a originalidade das propo-
sições cepalinas, suas fontes e suas limitações. Indubitavel-
mente, entretanto, a argumentação teórica e as soluções
propostas - embora eu não tenha analisado com detalhes
estas últimas - mostram certa capacidade de repor temas e
soluções em função de uma situação histórica dada. Neste
sentido, não me parece exagero dizer que há um pensamen-
to econômico latino-americano. Seria ingênuo pensar que
ele não se nutriu dos modelos clássicos e de seus desdobra-
mentos. Mas reaqueceu a herança teórica recebida para
tomá-la mais dúctil e capaz de explicar situações novas que
emergiram.
A part;ir de metade dos anos cinqüenta, mais ou menos,
ocorreu uma mudança no ritmo e forma do movimento
internacional de capitais e na própria organização das em-
presas capitalistas internacionais. Estas transfonnações al-
teraram a forma das relações Centro-Periferia. Não farei
aqui sequer a síntese deste processo. Basta indicar que a
atuação do que veio a chamar-se de Empresa Multinacional
aumentou consideravelmente. Mais ainda: estas empresas
- alguns velhos trusts transformados em conglomerados e
diversificando seus investimentos à escala mundial ou no-
vas organizações que surgiram com este caráter - passaram
a intensificar os investimentos industriais na periferia.
Assim, depois da Segunda Grande Guerra, pareceria
justificado o "otimismo" dos teóricos marxistas sobre os
efeitos que a expansão de capitais teria para a indus-
trialização da periferia. Se até meados dos anos 50 a luta
em prol da industrialização periférica era, ao mesmo tempo,
uma luta antiimperialista, porque os trusts investiam pouco

59
no setor secundário da periferia, a partir desta data a indus-
trialização passou a ser um objetivo do capital estrangeiro
em alguns países da periferia. As relações entre as políticas
públicas, as empresas do Estado e o capital externo toma-
ram-se maiores e mais complexas.
Não obstante, a percepção intelectual deste processo
deu-se de modo tardio na América Latina. A política nor-
te-americana, especialmente durante a época de Kennedy
e da Aliança para o Progresso, aceitou parte da crítica
implícita nas análises cepalinas mas mudou a ênfase delas.
Trouxe para o primeiro plano as discussões sobre os "obs-
táculos internos" ao desenvolvimento - os sociais e políti-
cos - e patrocinou explicitamente formas mais ativas de
cooperação internacional, através da criação do Banco
Interamericano de Desenvolvimento que passou a financiar
projetos de salubridade, de reformas agrárias, de estradas,
etc.
De algum modo a CEPAL viu-se assoberbada por esta
política e nela quase naufragou teórico-ideologicamente. A
reunião da OEA de Punta deI Este em 1961 representa o
ponto mais esplendoroso do afã reformista político-social
americano em seu encontro com a crítica cepalina. Houve
a legitimação de temas antes perigosos, como reforma
agrária, reforma dos impostos, planejamento etc. Mas hou-
ve também o esquecimento momentâneo das questões es-
truturais de base: os termos de intercâmbio, a disparidade
do progresso técnico e dos níveis salariais reais entre Cen-
tro e Periferia etc. A tal ponto que parece justificável dizer
que o pensamento cepalino desta época entrou na fase de
declínio relativo. A consistência e singeleza do momento
de auge sucedeu um período de crescente prolixidade e
imprecisão teórica nos textos da CEPAL.
Ao mesmo tempo em que mudava de relação entre
Centro e Periferia, pelo deslocamento de capital produtivo
para a Periferia39 e por sua fonua oligopólica, o pensamento

60
econômico latino-americano registrava "tendências à es-
tagnação" - confundindo o ciclo recessivo que se abriu no
início da década de sessenta com uma lei relativa à dificul-
dade, se não à impossibilidade, do desenvolvimento da
periferia. Voltava, assim, e desta vez com força, uma
vertente da análise teórica inicial que havia ficado em
segundo plano graças às preocupações corretas com o
dinamismo do sistema capitalista, que norteavam os me-
lhores textos da CEPAL.
Apontei anteriormente a possibilidade deste desdobra-
mento a partir de algumas das linhas analíticas da CEPAL.
Não obstante, esta não fora até aos anos sessenta a corrente
principal do pensamento cepalino. Parece que a crítica
persistente da esquerda (recorde-se as teses de Baran de
1957) e o fracasso das políticas de industrialização para
manter o nível de salário real e para absorver a população
economicamente ativa - dado o crescimento demográfico,
as migrações rurais-urbanas e o impacto inicial do estilo
capital-intensivo da industrialização - acabaram por abalar
certas convicções bem assentadas na CEPAL e de indiscu-
tível ancestro no pensamento econômico clássico (tanto
liberal como marxista). O agravamento da balança externa
de pagamentos, no começo dos anos 60, acentuou ainda
mais as cores sombrias dos prognósticos da época.
Não se pense, contudo, que este movimento reflexivo
foi feito em desmedro completo do pensamento anterior.
As teses centrais permaneceram, voltando-se inclusive a
falar do caráter temporário da necessidade de recursos
externos. Não obstante, no documento que resume o pen-
samento cepalino dos primeiros anos da década de sessen-
40
ta passam a ser introduzidos aspectos sociais. Contra-
ditoriamente, o que poderia ter sido um acrescentamento à
teoria, foi fator de perturbação quanto à análise da acumu-
lação e do desenvolvimento.

61
Por quê?
Porque o caráter elíptico da referência à exploração de
classe, que ficava num segundo plano na análise original,
mostrou sua fragilidade na versão renovada. Passou-se a
criticar o "consumismo das classes altas", a falta de mobi-
lidade social para renovar as lideranças econômicas e a má
distribuição de rendas das sociedades subdesenvolvidas,
como se elas acarretassem "distorções" e obstáculos in-
transponíveis ao desenvolvimento capitalista. 41 O mercado
de altas rendas, a imutabilidade da situação agrária, o
consumo suntuário etc. limitariam a própria utilização da
capacidade industrial já instalada. A estrutura monopólica
das empresas acrescida de um regime protecionista agrava-
riam ~stas distorções.
As estatísticas mostravam que no início dos anos ses-
senta diminuía o valor per capita em dólares das exporta-
ções, que a deterioração dos tennos de intercâmbio se
acentuara, que diminuíram as exportações agrícolas por-
que, supunha o documento de 1963, a demanda interna-
cional deste setor declinaria nos países ricos (Lei de Engel),
sem que diminuíssem as necessidades de importação indus-
trial da periferia.
Por certo, estes fenômenos eram reais. Seu encadea-
mento para explicar o movimento expansivo do capita-
lismo, entretanto, levou a interpretações menos felizes que
sustentavam a ausência de uma real dinâmica capitalista e
a dificuldade para a obtenção de reais efeitos de desenvol-
vimento.
Nesta época, a distinção - de fundo moral - entre
"crescimento" e "desenvolvimento" popularizou-se. Este
último processo só ocorreria se houvesse melhor distribui-
ção da renda e da propriedade, pennitindo um desenvolvi-
mento mais completo do homem. Esta nunca foi, natu-
ralmente, uma versão oficialmente endossada pela CEPAL,
mas era vulgannente adotada pelo pensamento crítico lati-

62

I
no-americano. A fragilidade de tal colocação está em que
confunde a crítica socialista ao capitalismo com a inviabi-
lidade dele. Na mesma época, na prática, as empresas
multinacionais haviam deslanchado precisamente um enér-
gico processo de acumulação capitalista na periferia, atra-
vés de formas de exploração que continham todos os ingre-
dientes criticados acima.
O pessimismo dava a tônica dos escritos da época. No
decênio 1965-1975, contudo, não só o comércio mundial
foi extremamente dinâmico, como os termos de intercâm-
bio, em alguns anos, chegaram a serfavoráveis aos produ-
tos agrícolas e minerais... :-=
:;j
'.)
A história preparou dessa forma uma armadilha à onda .~

pessimista. Esta decorria de confusões entre os ideais re-


formistas - que se foram explicitando nos documentos da
CEPAL - e a análise específica do desenvolvimento do
capitalismo. A incompatibilidade entre este e as desejadas
reformas motivava frustrações; contudo, o produto nacio-
nal dos páíses periféricos que se industrializavam não
deixava de crescer e o progresso técnico se acentuava,
apesar das "distorções".
Ainda assim, foram elaboradas hipóteses especifica-
mente estagnacionistas, com algo de inspiração neoc1ássi-
42
ca. Alguns estudos cepalinos que não chegam a propor
hipóteses estagnacionistas não deixam de asinalar as con-
seqüências da baixa relação entre produto e capital sobre o
estilo de desenvolvimento. 43 O fato de que, desde então,
alguns países latino-americanos se viram submetidos a
regimes políticos autoritários permitiu a muitos economis-
tas frisar de maneira crítica os obstáculos ao desenvolvi-
mento e as conseqüências desastrosas das políticas econô-
micas impostas a estes países.

63
IV - Outra vez idéias inovadoras?

a. O estilo "perverso" de desenvolvimento


A crise teórica pela qual passou a explicação cepalina
e sua deficiência na compreensão das transformações que
ocorreram na economia mundial não foi, entretanto, pura-
mente negativa. Sem esquecer que neste entretempo a
CEPAL como instituição continuou produzindo relatórios
substanciosos44, foi também nesta época que houve uma
revalorização da crítica social. Os estudos sobre distribui-
ção de renda - que persistiram como preocupação da Casa
- e as análises sobre a relação entre progresso técnico e
bem-estar social tomaram-se dominantes. A contribuição
mais criativa, nesta linha de pensamento, foi a de Aníbal
4S
Pinto , insistindo sobre a desigualdade interna da distribui-
ção das vantagens obtidas com o aumento da produti-
vidade. Pinto especifica no que consiste para ele a "hetero-
geneidade estrutural" das economias latino-americanas co-
mo algo distinto das concepções dualistas. Ela resultaria de
uma marginalização social e de um estilo de desenvolvi-
mento baseado em pólos de modernização, que provoca
"uma tríplice concentração dos frutos do progresso técnico,
ao nível social, dos "estratos" econômicos e ao nível regio-
nal" (p. 49).
Reconhecendo que houve um ressurgimento dos inves-
timentos estrangeiros, Aníbal Pinto reafirma, entretanto,
que o motor do desenvolvimento continuava sendo o mer-
cado interno. Alguns "dependentistas" já haviam demons-
trado que não existia mais contradição entre investimento
estrangeiro e demanda interna, pois as multinacionais que
investiram nos setores de consumo durável dependem do
mercado interno. Aníbal Pinto reconhece - sem o explicitar
46
- que não existe estagnação a partir deste model0 , cujo
dinamismo não se baseia mais nos setores "tradicionais" da

64
economia, nem nos "de base", mas na produção de bens de
consumo duráveis, como autos, geladeiras, televisão etc.
Explicita-se assim que existe um "estilo maligno" de
desenvolvimento, na expressão de Ignacy Sachs, que não
supõe no plano nacional a efetividade dos efeitos de "trickle
down" provocados pelos investimentos e pelo crescimento
econômico. O estilo de desenvolvimento latino-americano
seria "concentrador e excludente".
Este ponto de vista, empiricamente reconhecido e pro-
clamado anteriormente por socioólogos e economistas crí-
ticos, gerou um sem número de estudos e discussões, que
puseram ênfase na falta de capácidade de absorver mão-de-
obra pelo tipo de desenvolvimento industrial vigente e nas
conseqüências dele sobre a concentração da renda.
A CEPAL, no relatório de 1968, reconheceu a discus-
47
são e resumiu as interpretações correntes. Pedro Vuskovic
juntou-se à linha teórico-crítica de Aníbal Pinto, acrescen-
tando-lhe conotações algo catastrofistas quanto à capaci-
dade de emprego gerada por este estilo de desenvolvimento
e quanto à capacidade de investimento das economias
latino-americanas.
Não cabe fazer neste trabalho uma resenha pormenori-
zada dos desdobramentos do pensamehto cepalino depois
que foi formulada a idéia de que um estilo perverso de
desenvolvimento estava em marcha. 48 O que parece conve-
niente sublinhar é que se o diagnóstico dos anos iniciais foi
brilhante em comparação com as primeiras revisões do
começo da década de sessenta e do pessimismo mal posto
da mesma época, do ponto de vista de uma critica mais
radical ao próprio desenvolvimento capitalista, os equívo-
cos estagnacionistas e o pessimismo (que as situações de
maior dinamismo, como a brasileira de 1968-1975 mostra-
ram ser pouco fundadas empiricamente) geraram dúvidas
e inquietações que permitiram ampliar o horizonte cognos-
citivo quanto à natureza social e aos efeitos do desenvolvi-

65

~
mento capitalista. Os textos de Aníbal Pinto e Pedro Vus-
kovic, citados como exemplo, indicam a direção que o
pensamento latino-americano de inspiração cepalina toma-
ria a partir daquela época.

b. A dependência estrutural
Por volta de metade da década de 1960, dentro e fora
da CEPAL começara outra linha de interpretação - mais
sociológica e política - que, se não foi incorporada imedia-
tamente ao pensamento da Casa, apareceria nos textos de
Vuskovic, de Celso Furtado e, especialmente, de Oswaldo
SunkeL Esta linha passou a ser conhecida como a "teoria
A , , , 49
da dependencla .
Houve várias versões ao redor do mesmo tema. Como
indiquei noutro trabalhoso, as versões iniciais escritas na
própria CEPAL entre 1965 e 1966 tentam retomar a questão
de por que não se produziram algumas das conseqüências
da industrialização periférica quanto ao curso do desenvol-
vimento e acentuam, na resposta, alguns fatores que teriam
contribuído para isto:
o primeiro e principal diz respeito a que os investi-
mentos estrangeiros deram-se (como se viu acima)
no setor de produção de bens de consumo durável
fazendo que o ciclo de acumulação tivesse que com-
pletar-se à escala mundial;
- especificando este processo, ele quer dizer que as
economias periféricas industrializaram-se, porém o
setor de produção de bens de capital (Departamento
I na linguagem marxista) continuou a funcionar no
Centro. Portanto, o dinamismo derivado das inver-
sões no mercado interno propaga-se para o centro, a
fim de completar o ciclo expansivo do capital;
- isto quer dizer que as economias centrais e periféri-
cas são "interdependentes" mas através de uma assi-

66
metria específica que repõe a questão de uma possí-
vel deterioração dos termos de intercâmbio, se, nos
setores industriais, houver diferenciais de salários e
de produtividade reais entre Centro e Periferia.
As conseqüências imediatas desta verificação passam
a ser, resumidamente, que
- existe dinamismo na forma de expansão capitalista
que eu chamei de "desenvolvimento dependente e
associado";
- mas este dinamismo é parcial e repõe tanto os pro-
blemas da balança de pagamentos quanto da assime-
sl
tria internacional , baseada em desenvolvimentos ';<
(.
das forças produtivas, em taxas de lucro diferenciais I
)
:~
e em salários desiguais no Centro e na Periferia; .,
- não subsistem, assim, as teses do "desenvolvimento :>'"
..
do subdesenvolvimento" ou da superexploração es-
tagnacionista;
- mas tampouco se pode pensar que as hipóteses de
uma expansão com efeitos similares ao que ocorreu
no Centro ocorrerá na Periferia, como acreditavam
tanto alguns maxistas confiantes na força revolu-
cionária do desenvolvimento capitalista, quanto al-
guns analistas orientados pelas chamadas teorias da
modernização.
Esta não foi a única, nem quiçá a mais influente versão
da "dependência". Houve outras, tão ou mais estagnacio-
nistas e catastrofistas quanto algumas hipóteses cepalinas
já criticadas. E houve mesmo interpretações mais em ter-
mos da "dependência nacional" e das dificuldades com a
"dependência externa", do que a versão de uma "depen-
dência estrutural" que, em linhas sumaríssimas, esbocei .~

acima.

67
Bem ou mal, entretanto, estes estudos procuram apro-
fundar alguns elementos já contidos nas explicações da
CEPAL e explicitar tanto a questão do capital estrangeiro
quanto o da base de classes do desenvolvimento capitalista.

v - O outro desenvolvimento
Por fim, nesta já longa exposição sobre algumas con-
tribuições e dificuldades do pensamento latino-americano,
convém dizer mais uma palavra sobre a "crítica da crítica".
O inconformismo com o "estilo perverso" do desenvol-
vimento permitiu também uma análise - mais sociológica
- dos efeitos da expansão capitalista. Na CEPAL, desde os
primeiros trabalhos de Medina Echavarría houve esforços
para ultrapassar o teor de racionalidade formal com que as
análises do desenvolvimento se contentavam. Marshall
Wolfe e seus colaboradores continuaram este estilo de
5
interpretações do desenvolviment0 \ opondo-se às análises
que se tomaram moda na ONU sobre "desenvolvimento
unificado".
Ao invés de aceitar a nova versão de um padrão de
desenvolvimento necessariamente equilibrado, tal como
foi proposta em alguns documentos do Conselho Econômi-
co e Social das Nações Unidas, Wolfe e outros sociólogos
da CEPAL sustentam que o progresso do desenvolvimento
capitalista é contraditório por natureza. A controvérsia
anterior, entre as teorias baseadas na idéia de equilíbrio e
aquelas - como a de Hirschman - que põem o acento nos
efeitos desequilibradores do desenvolvimento, reaparece
na discussão sociológica. Alguns textos da CEPAL apre-
sentaram uma opinião crítica quanto à possibilidade de
existirem caminhos não contraditórios para o desenvolvi-
mento como aqueles indicados pelos proponentes de uma
"nova ordem econômica internacional" e um estilo de
desenvolvimento "autoconfiante e autônomo"SJ.

68
Não que a generosidade dos que propõem "um outro
desenvolvimento" seja incompatível com o ideário huma-
nístico de certos setores do pensamento crítico latino-ame-
ricano. Mas, sendo este pensamento herdeiro em sentido
amplo da Escola Clássica (liberal e marxista, com todas as
contradições inerentes) por mais eivado de contribuições
heterodoxas que enriqueceram (e confundiram) as coloca-
ções cepalinas, custa aceitar o utopismo libertário de que
se nutrem os novos críticos. Entre perplexo e desconfiado,
o "ocidentalismo" cepalino começa a mastigar conceitos e
valores que lhe são ainda profundamente estranhos.
Prebisch conseguiu, num de seus textos mais ecléticos
(Transformación y Desarrollo: la gran tarea de América
Latina, de 1970), tragar várias modas: a questão do excesso i
,:
de população e de seu crescimento acelerado, os malefícios
relativos da tecnologia capital-intensive, a dependência, as
deformações da ocupação etc. Mas no trabalho recente-
mente publicado "Críticas aI capitalismo periférico..s4 refaz
seu percurso teórico, numa espécie de reafirmação do ~
Manifesto de 1949 acrescido dos temas pertinentes: depen-
dência, distribuição desigual dos frutos do progresso técni-
co, democratização. O texto praticamente não quebra a
linha - "clássica", eu ousaria dizer - da CEPAL. Não :

abriga, neste sentido, temas ou explicações apenas ad hoc.


Não se vê no documento a incorporação das questões ~

relativas ao "outro desenvolvimento".


Será isso, talvez, deficiência de um pragmatismo racio-
nalista. Mas bem pode ser a desconfiança de uma escola de
pensamento que, tendo tentado produzir idéias no contexto
de uma situação historicamente dada, visando encontrar
saídas diante de impasses estruturais, não quer mais con-
fundir o eventual com o fundamental, o ciclo com tendên-
cias unidirecionais inexoráveis, a moda e a retórica com
problemas centrais da sociedade e do conhecimento.

69
Isto não toma o pensamento cepalino um estandarte
revolucionário, mas lhe assegura, pelo menos, certa consis-
tência e permite que se faça sua crítica, a partir de pontos
de vista mais radicais sem que seja necessário tratá-lo como
"cachorro morto", na expressão usada por Marx quando se
recusou a minimizar a importância de Hegel.

VI - A modo de conclusão
A comparação entre as análises feitas pela CEPAL
sobre o comércio internacional e o desenvolvimento e as
concepções prevalecentes no mundo acadêmico àquela
época (década de 1950) mostra que houve originalidade nas
formulações cepalinas. Críticas posteriores, embora reco-
nhecendo, em geral, o avanço cepalino frente às teorias
neoclássicas e marginalistas, procuraram limitar a novida-
de do pensamento latino-americano, mostrando que suas
formulações teóricas ficaram aquém do que Marx dissera
um século antes. O argumento pode ser certo no que se
refira à teoria da acumulação, mas carece de perspectiva
histórica quando se refere aos problemas criados pela in-
dustrialização da periferia e as peias que a teoria vigente
sobre o comércio internacional impunham àquela. As for-
mulações cepalinas têm óbvias raízes no pensamento eco-
nômico clássico e no marxismo e estão permeadas por uma
linguagem keynesiana. Esta ambigüidade dificulta a deter-
minação do quadro teórico em que se move a análise.
A originalidade do pensamento cepalino, por outro
lado, não consistiu simplesmente em acentuar a existência
de uma tendência à reprodução das desigualdades entre
nações através do comércio internacional e de tê-la expli-
cado pela existência de taxas diferenciais de salários e graus
distintos de progresso técnico entre o Centro e a Periferia.
Isto, por si só, já constitui uma perspectiva de análise mais
abrangente do que a implícita nas interpretações alternati-

70

~-----------------------------
vas então vigentes. Mas a originalidade da CEPAL reside
também no esforço para transformar esta interpretação na
matriz de um conjunto de políticas favoráveis à indus-
trialização. Neste sentido, o pensamento da CEPAL gerou
ideologias e motivou a ação, abrindo-se à prática política.
Por isto mesmo, tomaram-se mais visíveis as debilidades
de uma análise que aponta as causas da desigualdade, mas
limita a crítica aos umbrais do tema, sem desvendar o
conteúdo de classe da exploração econômica entre Centro
55
e Periferia e na Periferia.
No plano propriamente teórico a originalidade da ver-
são cepalina da teoria do desenvolvimento ficou mais im-
plícita do que explícita. Na mesma década 'em que ela foi
formulada, economistas de Cambridge dedicavam-se a cri-
ticar teoricamente a noção de "função de produção" e a
rever as teorias da acumulação. Em 1960 Piero Sraffa
publicou o livro Production of Commodities by Means of
Commodities, destinado a provoc~r nova "volta aos clássi-
cos". Nestes trabalhos, especialmente no de Sraffa, vê-se
como seria possível lidar de modo rigoroso com alguns
problemas relativos à teoria do valor e aos preços relativos
- problemas implícitos na análise cepalina - fazendo-se a
crítica cabal das teorias marginalistas.
Por certo, Sraffa volta a Ricardo e deixa à margem as
críticas de Marx àquele. Deixa à margem também a teoria
da exploração e suas conseqüências sobre a luta de classes,
para concentrar-se na demonstração do absurdo das formu-
lações neoclássicas sobre função agregada de produção,
liberando-nos do absurdo através da lógica pura, sem di-
zer-nos, entretando, em que crer para explicar a acumula-
ção. Não obstante, trata-se de uma I "cópia" de Ricardo
sumamente original, pois através dela resolve-se teorica-
mente o problema da passagem de valores a preços e faz-se
crítica demolidora da teoria neoclássica sobre a "função
agregada de produção".56

71
Existem pontos de contato entre a crítica da "escola de
Cambridge" às teorias neoc1ássicas e a crítica cepalina à
teoria dos fatores de produção e à otimização de lucros
relativos a nível do comércio internacional. Os pressupos-
tos teóricos de Cambridge não englobam a discussão da
repartição da renda no mercado internacional, mas pode-
riam, se redefinidos, explicitar melhor as implicações teó-
ricas da crítica cepalina às teorias neoc1ássicas do cresci-
mento econômico. Se os textos da CEPAL são mais abran-
gentes do que os da escola de Cambridge na interpretação
do porquê das desigualdades - pois inc1uem as lutas sindi-
cais e os fatores político-institucionais na determinação do
salário, e, implicitamente, incluem a exploração de c1asse
- ficam muito aquém deles no que se refere à análise
propriamente teórica da relação entre crescimento capita-
lista e repartição da renda. Em vez de orientar seu interesse
para problemas teóricos, os economistas cepalinos se limi-
taram aos problemas práticos.
Nas análises cepalinas coexistem, sem integrarem-se (e
a linguagen denota isto), explicações c1ássicas, marxistas,
keynesianas, neoc1ássicas e propriamente marginalistas so-
bre os mecanismos dos preços do mercado e do crescimento
econômico. A pouca atenção prestada à teoria econômica
- explicável pelo contexto histórico e institucional, mas
não, justificável- dificultou o reconhecimento pelo mundo
acadêmico internacional da originalidade da versão cepali-
na sobre o subdesenvolvimento e a desigualdade interna-
cional. É tempo já para rever as avaliações feitas e reco-
nhecer que, mesmo sem explicitar teoricamente suas des-
cobertas, a escola da CEPAL endereçou críticas não res-
pondíveis à teoria neoc1ássica sobre o comércio inter-
nacional. Refazê-las, sob a inspiração de Sraffa, é uma
tarefa tentadora para economistas teóricos que queiram
utilizar velhos modelos para dizer coisas originais.

72
A reposição de idéias em novos contextos, longe de ser
um processo meramente repetitivo, implica num enrique-
cimento. Se existe um mundo para o qual o símile do motu
contínuo é inútil, este é o do pensamento: o percurso da
"mesma" idéia noutro universo histórico-cultural faz dela
outra coisa. Penso que as formulações cepalinas consti-
tuem, neste sentido, um bom exemplo de originalidade:
versaram sobre uma temática que se antepôs ao pensamento
para enfrentar os problemas que surgiram na prática eco-
nômica e, partindo embora do instrumental de análises ;.
produzido noutros contextos, tiveram que refazê-lo para
:.. ~
tentar explicar uma situação de desigualdade no comércio
internacional e justificar políticas favoráveis à industriali-
zação da periferia. Se mais não foi feito, foi porque, como
acentuei, o radicalismo crítico da CEPAL estava contido
por sua posição político-institucional - pois ao fim e ao
cabo trata-se de um órgão intergovernamental - e porque
faltou élan para propor a temática abordada na perspectiva
de uma teoria da reprodução e da acumulação capitalista.
Se mencionei a escola de Cambridge e a Sraffa foi para
indicar que mesmo dentro dos acanhados limites político-
institucionais da CEPAL, sem assumir a crítica marxista
como ponto de partida, seria possível ter avançado mais e
mais rigorosamente na crítica à economia acadêmica vul-
gar, então (como hoje) predominante.
Dizer, entretanto, que uma perspectiva de análise inte-
lectual poderia ter ido mais longe não implica em negar os
avanços feitos por ela. Ao contrário, creio que é próprio da
boa teoria deixar o leitor com água na boca. Só os dogmá-
ticos preocupam-se com cerrar o círculo do conhecimento
e produzem sistemas que criam a ilusão de que eles são
como a velha esfinge que dizia "decifre-me, ou morres". A
criatividade na ciência mede-se pela gula que uma teoria
desperta em seus seguidores para superá-la e fazê-los ter de
dizer: sem esta brecha, não teria podido abrir atalho que me

73
permitiu ver mais longe. A CEPAL produziu idéias que
ajudaram a compreender, em seu momento, alguns dos
problemas centrais da acumulação capitalista na periferia e
alguns dos obstáculos que se lhe antepõem. Não há portanto
que escrever lápides para suas idéias. Elas se modificaram
e, trocando de pena como sói acontecer com idéias-força,
continuaram vivas, às vezes noutras instituições ou com
outras cores, ao mesmo tempo em que deixaram pelo
caminho os segmentos mortos, como costuma ocorrer com
todas as interpretações científicas.
(Cambridge, 1977).

NOTAS
1. A obra central de A.C. Mello e Souza é Formação da Literatura Brasileira, São
Paulo, Livraria Martins, 1959, 2 voltnnes. Outro importante sociólogo das idéias, Roberto
Schwarz, escreveu, entre outros trabalhos, "As Idéias fora do lugar" in Estudos CEBRAP,
São Paulo, n. 3,jan. 1973.
2. João Cruz Costa, Contribuição à História das Idéias 110 Brasil, Rio de Janeiro,
Livraria José OIympio Editora, 1956, esp. capítulos III e IV.
3. Ver Ohlin, B., Illterregional alld Illtemational Trade, Cambridge, Harvard
University Press, 1933.
4. O livro de Ohlin elabora a teoria de Hecksher e Ule outorga maior consistência.
Ver Hecksher, E. - "The effects of foreign trade on the distribution 01' income" in
American Economic Association, Readillgs ill tlle Tlleory ofllltematiollal Trade, Phila-
delphia, 1949.
5. VerOhlin, op. cit., especialmente p. 39, parágrafo 3, "The gain from illtemational
trade".
6. Ver Samuelson, P., "International Trade and the Equalization of Factor Prices",
in EconomicJournal, June 1948, particulannente p. 67.
7. Ver Haberler, G., "A survey of lhe international trade lheory", edição revista e
aumentada,Special Papers in International Economics, n. I, Princeton University, 1961.
Haberler se refere a A. Lemer devido à sua contribuição em linhas gerais sintilar (ver
Lemer, A., "Factorprices and International trade", in Ecollômica, feb. 1952).
8. Consultar Marx & Engels, 011 Colollialism, Moscou, Foreign Languages Publis-
hing House, s.d.
9. Paul Singer escreveu recentemente um trabalho sobre"A Divisão Illtemacional
do Trabalho e Empresas Multinacionais", in: Queiroz, M.V. et allii, Multill{/ciollais:
illternllcionalização e crise, São Paulo, CEBRAP 1977 (Cademos CEBRAP, 28), no qual
resume os aspectos relevantes dessa problemática. Retirei as anotações para fim de
brevidade - deste ensaio, p. 6-11; o estudo de Singer coloca na perspectiva histórica
adequada o pensamento desses autores.

74

~---------------------------~-~-
10. Lenin, tese de 1920, in La Guerra y la Humanidad, México, Ediciones Frente
Cultural, 1939, apud Singer, P., op. cit.• p. 12.
li. As análises das páginas seguintes, sobre a década de 1950, estão baseadas em
documentos da CEPAL ou de Prebisch. Para os primeiros a colaboração de econOlnistas
como Celso'Furtado, luan Noyola, Regino 80tti e outros foi de grande valia. É difícil
aquilatar as contribuições individuais pois não há estudos a respeito. O ensaio de Prebisch
(EtCN. 12t89/Rev. I) foi reimpresso no Boletin Económico da América Latina, Santiago
de Chile, 7 (1), feb.f62, publicação citada de agora em diante. Albert Hirschmiln chamou
este ensaio de "Manifesto da CEPAL" - ver Hirschman, A., "Ideologies of economic
development in Latin America, in A bias for I/Ope. Essays on developllll'1lI and Lalin
American, Yale University Press, 1971, p. 280-281 publicado originariamente em 1961".
12. Porque a renda no centro cresceu, contraditoriamente, mais do que na periferia?
"Durante a crescente, uma parte dos benefícios se foi transfonnado em alUnento de
salários, pela concorrência dos empresários lUlS com os outros e pela pressão sobre todos
eles das organizações operárias. Quando, na núnguante, o benefício tem que comprimir-
se, aquela parte que se transfonnou em ditos aumentos perdeu, no centro, sua fluidez, em
virtude da conhecida resistência à baixa dos salários. A pressão se desloca então para a
periferia com maior força que a naturalmente exercível caso não fossem rígidos os
salários e os lucros no centro em virtude das linútações da concorrência. Assim, tanto
menos possam comprimir-se as remlmerações no centro, tanto mais terá de fazê-lo na
periferia", Prebisch, R., "O desenvolvimento econônúco da América Latina", op. Cil., p.
6.
13....it follows lhat lhe exchange values of manufactured articles. compared with
lhe products of agriculture and of mines, have, as population and indllStry advance, a
certain and decided tendency to fali, MlLL, l.S., Principies of Polilical Ecollomy,
AschIey Editron, p. 703.
14. Hans. Singer, "The distribution of gaillS between investing and borrowing
countries", American Economic Review, maio de 1950, p. 472-499.
O debate sobre os "tenns of trade" continuou por muito tempo. Existem, obvia-
mente, variações cíclicas que afetam a relação de trocas. Não obstante a tendência à
deterioração parece confinnar-se pelas estatísticas. Ver, por exemplo, tabela 13 do
Economic Survey ofLatin America, 1973, à p. 36, a este respeito. No ESlIIdio Ecollólllico
de 1949 a CEPAL apresentou dados que aprofwldavam as cOllSeqüências da tendência à
deterioração dos termos de troca. Convém ressaltar que a idéia de IUlla deteriorização
permanente da relação de preços do intercàmbio não desempenha wn papel essencial nas
considerações mais firndamentais da CEPAL a respeito do bloqueio da trallSfen~ncia dos
frutos do progresso técnico. A CEPAL sugeriu que a situação de subdesenvolvimento
podia ser superada somente pela industrialização a qual aumentaria a migração rural,
diminuindo o peso do excesso da força de traballlO agrícola, tàcilitando a tecnificaçào da
agricultura e afetando os custos da força de trabalho pelo alUnento dos lúveis salariais.
O conjunto desses fatores'implica preços altos para os produtos primários e melhores
oportwúdades para a l.ra1lSferência do progresso tecnológico do Cl~ntro ã Periferia.
15. Como já afinnei, Prebisch não postulounenlnuna l<li a respdto dl~ uma piora
inevitável dos tennos do intercâmbio. Ele tratou somente de explicar certos acllados
empíricos, propondo uma !úpótese de interpretação e sugeriu alglUnas medidas práticas
para enfrentar a difícil situaçào econônúca nos países pcrifóricos. Haberler interpretou
mal as idéias de Prebisch desde o início mesmo de sua critica.
16. A crítica mais cOllSistente à existência de tal tendência - deixando-se de lado
as infindáveis objeções metodológicas quanto aos anos base, aos países de referência, à
confiabilidade dos dados etc., foi a de Gottfried Haberler, em "Los tenninos de intercam-
bio y el desarrollo económico", inH.S. Ellis, El desarrollo económico y América Latilla,
México, Fondo de Cultura Económica, 1957, p. 325-351. A citaçào acima está na p. 349.
Seu argumento básico é que a relação entre os preços das mercadorias nào é indicador

75
adequado para medir a relação de intercâmbio. Melhor seria analisar o "intercãmbio de
um só fator", isolando-se os efeitos de alterações de produtividade mmm mercadoria de
exportação sobre o preço intemacional do produto. Poderia ocorrer queda de preços
relativos menor do que a redução de custos induzida pela mudança tecnológica.
17. O argumento de Haberler, embora especioso no que se refere às vítimas da
exploração (as camadas de rendas fixas), tem similitudes com o argumento de Bettelheim
para criticar Emmanuel. De fato, Bettelheimreclmça a idéia de que a "taxa de exploração"
seja maior nos países pobres. Por definição (se se considera a relação entre I1lassa de
mais-valia gerada e capital variável) o desenvolvimento das forças produtivas acarreta
maior taxa de exploração. Entretanto, o modelo teórico proposto por estes autores não é
suficiente para discutir a questão da pobreza, posto que pode haver nmior exploração e
nível de vida mais elevado, simultaneamente. A falta de clareza sobre os termos
envolvidos no debate muitas vezes confunde a discussão sobre essas questões.
18. Ver a respeito a série de conferências prommciadas por Jacob Viner, da
Princeton University, no Rio de Janeiro, a convite da FlUldação Getúlio Vargas em julho
e agosto de 1950. Foram publicadas em português, em 1951, pela Revista Brasileira de
Economia, Ano 5, n. 2 e em inglês, em/lIIemariollal Trade alld Ecollomic Developmellt,
Nova Iorque, Free Press, 1952.
19. Viner, op. cit., p. 44.
20. É difícil entender como Viner pode afinnar que um período de 70 anos - como
aquele considerado pelas estatísticas sobre intercâmbio das Nações Unidas - seja um
"período de curto prazo".
21. Verlnternational Trade and Economic Developmelll, op. cit., p. 144.
22. Para os fins de nossa análise, a formulação mais completa da teoria da causação
circular e cumulativa encontra-se em GlU1I1ar Myrdal, Teoria Ecollômica e Regiões
Subdesenvolvidas, Editora Saga, Rio de Janeiro, 1965, especiahlll:nte capítulos 2 e Ii (a
edição original foi publicada em 1956, a partir de conferências feitas em 1955).
23. 'Nurkse, R. Problemas de fonnación de capital, México, Fondo de Cultura
Econórnica,1955,cap.I.
24. Foram vários os autores que se orientam pela teoria do "desenvolvimento
equilibrado". Rosenstein Rodin, por exemplo, depois de rechaçar as vantagens do
desenvolvimento nacional autárquico e propor Wll estilo de desenvolvimento baseado
em substanciais investimentos e empréstimos intenmciOlmis, também defendera wna
estratégia de crescimento através de indústrias diferentes e complementares, planejadas
a larga escala. A industrialização da periferia, por este mecanismo, teria a vantagem de
absorver as populações rurais, ao invés de levá-Ias à emigração para engrossar o caudal
de capital dos países já desenvolvidos. Ver o artigo "Problellls of Industrialization of
Eastem and South-Eastem Europe", de 1943, in A.N. Agarwala e P.S. Singh, The
Economics of Underdevelopmellt, Nova Iorque, Oxford University Prc,ss, 1963, p.
245-255. Noutro trabalho redefine este ponto de vista para defender as vantagens da
concentração e de dar-se um "grande impulso" às economias atrasadas através de
investimentos de grande proporção. Ver Rosenstdn Rodin, "Nolas sobre la teoría del
gran impulso" in El1is, op. cit.• p. 67-93.
25. Interessante desdobramento desta discussão encontra-se em autor que, em geral,
é tido por anticepalino, Alejandro Kafka. Ver sen artigo "Algwnas Retlexiones sobre la
Interpretación Teórica dei Desarrollo Econômico de Anlérica Latina", inl1.S. Ellis, op.
cit., p. 3-35. Kafka discute a I1lagnitude do mereado, tanto em tennos do tamanho dos
países como de seus recursos naturais, sem minimizar os efeitos do comércio intema-
cional para o desenvolvimento, à condição que exista "capacidade empresarial" para
aproveitá-los. Embora seja, neste sentido, próximo a Nurkse, o interessante no argl1l11C11to
de Kafka é que ele mostra vantagens do desequihbrio, inclusive aqnelas derivadas da
concentração de renda, para proporcionar lUn impulso de des(~nvolvill1ento. Este tipo de

76
pensamento teve influência decisiva nas teorias do "crescimento acelerado", dos anos
1965-1975.
26. Dobb, Maurice, Economia Política y Capitalismo, Fondo de cultura Económica,
México, 1945, capo VII (edição inglesa de 1937). Paul Singer ch.ama atenção para o
desdobramento contraditório do pensamento de Dobb que, depois de mostrar que haveria
investimentos na periferia para contornar a tendência à queda da taxa de lucros, diz que
a produção industrial nas colônias será complementar e não rival à da metrópole (op. cit.,
p.16).
27. Paul Baran, "Ou lhe political ecnonomy of backwardness", in Agarwala &
Singh, op. cit., p. 83.
28. O livro de Baran, 17ze Po/itica/ Economy ofGrowtlz, Monthly Review Press,
Nova Iorque 1957, é curioso a respeito da posição da corrente neomarxista americana
frente às questões do desenvolvimento. Baran fez a critica sistemática da solução
proposta por Nurkse e aceita, com limitações, por Prebisch, sobre o papel dos investi-
mentos estrangeiros; vide capítulos VI e VII.
29. Mais recentemente, economistas africanos e europeus desenvolveram uma
f:
teoria chamada de "I'échange inégal" que, olhando para os efeitos do desenvolvimento
do capitalismo à escala mundial (como Samir Amín), propuseranllUll esquema do mesmo
tipo, mas alinhando formalmente de modo oposto às causas da desigualdade: partem de
que porque as indústrias do centro são monopolistas os preços baixam e por isso os
trabalhadores podem conseguir salários maiores. Cf. Sanúr Anún, Le deve/oppemellt
inéga/, Editions de Minuit, Paris, 1973. O flUldamento teórico de Anún encontra-se em
seu livro L 'accumu/ation à /'éclzelle mondia/e, Editions AnÚrropos, Paris, 1970. Refa-
zendo a critica à teoria da Divisão Internacional do Trabalho, além de A1nin, vários outros
economistas retomaram o tema cepalino (embora não conhecessem todos os textos
escritos vinte anos antes por Prebisch, Furtado e outros). Ver A. Enunanuel, L 'éclwnge
inéga/, François Maspéro, Paris 1972. Como reação a todas as correntes, desde as
cepalinas até as do "intercâmbio desigual", Christian Palloix critica-os por não terem
visto o desenvolvimento interno das forças produtivas da periferia. Esquece-se porém
das "teorias da dependência" e não faz a articulação entre a reprodução interna e a
expansão do capital monetário internacional. Ver Christian Palloix, L 'économie mOlufia-
/e capita/iste, François Maspéro, Paris 1971.
30. A melhor discussão sobre a CEPAL e sua estratégia de desenvolvimento
encontra-se em Alber! Hirschman, "Ideologies of EconOInic Development in Latin
America", inA Biasfor Hope, op. cito Este ensaio e o outro do mesmo livro, "The Political
Economy of lmport-Substituing Industrialization in Latin A111erica" são básicos para a
compreensão da rustória das idéias e do processo de desenvolvimento.
31. É significativa a este respeito a conferência de Prebisch. sobre "La Planificación
Económica", publicada em Panorama Económico, n. 231, de Santiago, onde afirma:
"Mediante o planejamento, queremos redistribuir a renda, depois de havê-Ia ~umentado,
em favor das massas populares" (p. 149).
32. Ibidem, p. 150.
33. Prebisch nlUlca aceitou as teorias "populistas" sobre os males do progresso
técnico. Não obstante, alertava, desde 1952, para o problema do emprego e para a
necessidade de adaptar a tecnologia às condições sócio-econônúcas locais. Seu trabalho
sobre "Problemas teóricos y prácticas dei crecimiento económico", de setembro de 1952,
reimpresso pela CEPAL em 1973, é extremamente. arguto e atual neste aspecto. Ver
especialmente p. 9-10 da reimpressão.
34. Convém, não obstante, repetir que, desde o trabalho de 1949, Prebisch tem
presente que para alterar a relação Centro-Periferia seria preciso transferir tecnologia
sem desclÚdar de sua adaptação devido aos probleInas de desemprego e seria conveniente
industrializar mas sem visar a autarq/lização.

77 .-11

~,
35. R. Prebisch, op. cit., p. 3.
36. Prebisch, "Problemas teóricos y prática dei crecimiento económico", op. cit.,
p. 7. "Ahora las inversiones estranjeras son llamadas preferentemente ai desarrollo de
actividades intemas". No ensaio escrito por Faletto e por mim, em 1966-67, sobre
dependência, damos ênfase exatamente às conseqüências deste processo. Baram perce-
bera-o apenas tangencialmente. As análises sobre o imperialismo retinham muito mais
os aspectos ligados ao colonialismo e à exploração tipo enclave ou de produtos primários
do que a industrialização com miras ao mercado interno. Mesmo mais recentemente,
autores sofisticados como Mandei continuaram a pensar a relação entre centro e periferia
à luz das velhas relações imperialistas-exportadoras.
37. Prebisch: "Problemas teóricos etc." p. 8. Note-se, entretanto, que no mesmo
texto Prebisch mostra que os países periféricos devem fazer o esforço de capitalizar a
produção primária para poder melhorar o nível de vida da população e que "Ia inversión
estranjera, que antes era el elemento principal (na produção primária), passa a ser ahora
elemento suplementario, si bien de considerable importancia" (p. 42).
38. Para uma antologia contendo os principais textos, ver América Latinjl; EI
Pensamiento de la CEPAL, Editorial Universitaria, Santiago, 1969. Para avaliar a forma
como se transmitiam os "ensinamentos da CEPAL", em meados de 1960, ver as
apostilhas da cátedra de "Desenvolvimento Económico", feitas por Oswaldo Swlkel e
seus colaboradores (o livro de Swlkel e Pedro Paz" EI subdesarrollo larinoamericano y
la teoría dei desarrollo·, México, Siglo XXI, 1970, agrega já outros desenvolvimentos
do pensamento latino-americano). •
39. Ver o estudo da CEPAL, Eljinanciamelllo extemo de América Latina, ONU,
Nova Iorque, 1964.
40. Raul Prebisch, Hacia una dinámica dei desarrollo larinoamericono, Fondo de
Cultura Económica, México, 1963.
41. Deve se nolllr que Prebisch levou em conta a possibilidade, e provavelmente a
necessidade, de realizar esforços internos de acwllulação de capital que implicavam
restrições no nível de conswno das classes altas. Mas ele não apresentou o arglUllento de
uma maneira "estagnacionista".
42. Celso Furtado, Subdesenvolvimelllo e Estagnação da América Latina, Rio de
Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1966, procurou mostrar que a produção industrial
concentrava-se em tomo dos bens de luxo, com alta densidade de capital por traballiador
com relação à densidade média da economia, o que levaria a wna baixa da relação
produto/capillll e a maior concentração fWlcional da renda. A baixa relação entre produto
e capital deprimiria a taxa de lucro, desestimularia investimentos e reduziria a poupança.
Havendo ofem abWldantede mão-de-obra e alta relação capital/trabalho, concentrar-se-
ia a renda e perpetuar-se-ia o esquema. Apesar do esquematismo do argumento acima e
de seu equívoco, é muito valiosa e instrutiva a caracterização das contradições típicas
que afelllm o desenvolvimento capitalista (dívida externa, inflação, falta de capacidade
de conswno das massas etc.) feita no mesmo livro.
43. Ver, por exemplo, o estudo de Maria da Conceição Tavares - sob inspiração de
Arubal Pinto - "Auge y declínio dei proceso de sustituición de importaciones" in Boletin
Económico de América Latina, Santiago, (9) n. I, março de 1964.
44. Cito, além dos relatórios anuais, e cingindo-me às análises econômicas, dois
traballios importantes:
a) EI desarrollo económico de América Latina en la posguerra, Nações Unidas, n. 64,
n, G 6, novembro de 1963.
b) EI proceso de industrializoción de América Latina, Naçôes Unidas, 11. 66, n, G 4,
dezembro de 1965.

78
45. Arubal Pinto, "La concentración dei progreso técnico y de sus frutos en el
desarrollo latinoamericano". Trimestre Económico, n. 25, jan.fmar. 1965 e "Heteroge-
neidade estrutural e modelo de desenvolvimento recente", in José Serra, coordenador,
América Latina, ensaios de interpretação econômica. Paz e Terra, Rio 1976. Trata-se da
tradução brasileira da coletânea publicada antes no México. A introdução de Serra, "0
desenvolvimento da América Latina: notas introdutórias", é um excelente guia para a
análise do período.
46. A crítica geral à hipótese estagnacionista encontra-se em Maria C. Tavares e
José Serra, "Além da estagnação: uma discussão sobre o estilo de desenvolvimento
recente do Brasil", inJ. Serra, op. cit. A versão inicial do trabalho é de 1970. Quanto eu
saiba não houve crítica explícita anterior a esta.
47. Ver Vuskovic, Pedro, "Concentración y marginalización en cl dcsarrollo
latinoamericano", 1969 e "A distribuição de renda e as opções de desenvolvimento" in
Serra, op. cit., publicado originariamente em 1970.
48. Vi1mar Faria analisa bem e com detallles estes desdobramentos. Vcr sua Ph. D.
Dissertation, "Occupational marginality, employment and poverty in urban Brazil",
Harvard, 1976, esp. p. 41-49. Para uma resenha sobre os pontos de vista estagnacionistas
na CEPAL, ver p. 37-40 da tese de Faria.
49. Apresentei no ILPES, em 1965, a primeira versão de um estudo sobre depen-
dência em relação ao desenvolvimento. Depois desta versão, Faletto e eu publicamos
Dependencia y Desarrollo en América Latina. México, Siglo XXI, 1969, cuja versão
mimeografada data de 1967, versão brasileira: Dependência e Desenvolvimento na ~~~
América Latina. Rio de Janeiro, Zahar, 1970 (3' ed. 1973). ~
50. Cf. F.H. Cardoso, "0 consumo da teoria da dependência nos U.S.A.", Princeton,
1976, capítulo deste livro. Ensaios de Opinião, Rio de Janeiro, (4): 6-15, 1977.
51. Francisco de Oliveira chama a atenção para uma diferença essencial, derivada
desta situação, quanto à forma do ciclo de endividamento extemo atual e o que prevalecia
no período agró-exportador e na fase inicial do processo de substituição de importações.
~l
É que se antes do problema se pw1ha ao nív.e1 das trocas mercantis para financiar a
expansão futura do setor de mercado intemo, agora, depois da internacionalização do
capital produtivo, é o ciclo de realização do' capital financeiro a nível mlUldial quem
comanda este processo. E a resolução dos gargalos no balanço de pagamentos passa a
ser básica para a realização dos lucros do próprio capital financeiro e produtivo intema-
cional aplicados na periferia. Cf. Oliveira, F. & Mazzuchelli, F. Padrões da acmnulação, "

oligopólios e Estado no Brasil: 1950-1976. In: Martins, C.E., org. Estado e Capitalismo
no Brasil, São Paulo, CEBRAP/HUCITEC.
52. Ver Marshall Wolfe. Desenvolvimelllo: para que e para quem? Paz e Terra,
Rio 1976, que reúne seus principais traballios durante os últimos quinze anos. Ver
também Jorge Graciarena, "Poder y estilos de desarrollo. Una perspectiva heterodoxa",
Revista CEPAL 1, 1976.
53. Ver o estimulante paper de José Medina Echavarria, "Las propuestas de un
(.'
nuevo ordem internacional em perspectiva", CEPAL, novembro de 1976 (texto mimeo-
.'
grafado).
54. Ver in Revista dela CEPAL, n. 1, Santiago, primer semestre de 1976, p. 7-74.
.~
55. A mais desafiadora das críticas parece-me ter sido feita por Francisco de
Oliveira, A economia brasileira: crítica li razão dualista. ESTUDOS CEBRAP, São Paulo
(2): 3-82, oul. 1972.
56. Não cabe, neste traballio, digressão maior sobre o terna, que de resto escapa à i~
competência de um sociólgo. O que Sraffa evidencia é a fragilidade do suposto neocllis-
sico da possibilidade de medir-se a relação entre produto-por-homem e capital-por-11O-
mem para o conjunto da economia sem tomar em conta o valor, posto que os bens físicos
medidos são heterogêneos. Conseqüentemente, é preciso conhecer-se os preços ~el(ltivos,
"

79
os quais, a largo prazo, dependem das condições téclÚcas vigentes, da relação entre bens
de COnslUllO e de produção e da distribuição do produto entre capital e trabalho. Não é
possível, portanto, "optimizar" os "fatores de produção" como se capital, salários e
tecnologia fossem dados e "rentáveis" segwldo uma relação técnica entre eles.

80
Capítuloll

A DEPENDÊNCIA REVISITADA'

I:

o título deste capítulo, que constitui apenas um conjun-


to de notas, não é adequado para marcar seu propósito
limitado. Desejo dar ênfase apenas a alguns problemas
teóricos relacionados com os estudos sobre dependência,
no contexto de uma percepção muito pessoal sobre o tema.
Não farei, põrtalito, um esforço para dar um balanço sobre
os inúmeros (talvez excessivos) trabalhos escritos sobre o
assunto nos últimos anos, nem estarei preocupado com a
discussão sistemática da "teoria da dependência".
Desejo somente tentar esclarecer algumas das confu-
sões que me parecem obscurecer os alcances e limites das
análises baseadas na perspectiva teórica dos "estudos sobre
a dependência". Os subtítulos indicarão que aspectos do
assunto serão considerados neste capítulo.

I - A História Intelectual do Conceito de Dependência


Quase todos os conceitos manejados pelas ciências
sociais podem remontar a autores que, por critérios vários,
são considerados clássicos. Parece-me destituído de senti-

* Publicado originahnente como "Notes sur l"état actuel des études sur la dépen-
dance", Dakar: Institut Africain de Développement Économique et de Plalúfication.
set/1972.

81
do "enobrecer" uma idéia pela antiguidade dela. As noções
básicas têm uma longa tradição. Mas o que conta para
avaliar a vitalidade intelectual delas é a recolocação que é
passível de sofrer sempre que alguma corrente intelectual
vigorosa trata de repensar processos sociais antigos ou,
servindo-se de velhas abordagens e noções, trata de carac-
terizar processos emergentes.
Isto ocorre também com a noção de dependência. Por
certo, mesmo sem remontar para trás do século XX, na pena
de Lenin e de Trotsky, por exemplo, a expressão depe[l-
dência ocorreu com certa freqüência. Da mesma maneira a
referência à dependência é comum em autores que, elabo-
rando o óbvio, se referem a situações de dominação. Lenin
formulou, com simplicidade, o principal sobre a depen-
dência como uma forma de articulação entre duas partes de
um mesmo modo de produção e sobre a subordinação de
um modo de produção a outro. Não vou repisar o que é
conhecido.
Entretanto, há um hiato de meio século entre a voga
atual das análises sobre a dependência na literatura latino-
americana e as formulações dos clássicos do marxismo.
Convém indagar, portanto, por que e como ressurgiu a
mesma (ou será outra?) noção.
Eu diria, simplificando, que existem três vertentes di-
versas (embora não mutuamente exclusivas em termos de
história intelectual) que contribuíram para fazer ressurgir a
noção de dependência. Estas três vertentes são: as análises
inspiradas na crítica aos obstáculos ao "desenvolvimento
nacional", as atualizações, a partir da perspectiva marxista,
das análises sobre o capitalismo internacional na fase mo-
nopólica e, finalmente, as tentativas de caracterizar o pro-
cesso histórico estrutural da dependência em termos das
relações de classe que asseguram a dinâmica das socieda-
des dependentes, ligando a economia e a política interna-

82
cionais a grupos e interesses locais e gerando, no mesmo
movimento, contradições internas e luta política.
A diversidade das correntes intelectuais que inspiram
as análises de dependência levou-as a um certo ecletismo.
Por isso, houve reações críticas que procuraram pôr a nu o
"mal de origem" das "teorias da dependência", encontran-
do-o em diferentes níveis. Na tentativa de fazer o exorcismo
do pecado original do pensamento latino-americano, os
críticos identificaram "erros" e "desvios" que vão do na-
cionalismo "pequeno-burguês" ao esquematismo "marxis-
ta " que explica tudo pela dependência externa. Ou então
buscaram insinuar que a dependência era expressão rebar- y
o,,
bativa para obscurecer o mesmo fenômeno mais claramente ,\

caracterizado pelas análises do imperialismo.


Na medida em que estas críticas são feitas inespecifi-
camente, jogando em vala comum os diferentes estudos
sobre a dependência, elas são ao mesmo tempo corretas e
falsas. Mesmo quando corretas, entretanto, são estéreis.
Parece-me, de fato, que o problema não está em saber
se as análises da dependência constituem o último grito
independentista da ideologia embebida no patriotismo eco-'
nômico latino-americano depois de falidos os intentos do
desenvolvimento nacional autônomo, ou, noutra versão, se,
em última análise, a dependência é mera conseqüência do
estágio atual do desenvolvimento do capitalismo interna-
cional na etapa monopólico-imperialista. Nem sequer está
em repetir que "o motor da história é a luta de classes" e
portanto a única perspectiva adequada para a análise do
processo histórico nos países dominados é o de assumir a
"perspectiva de classe". Essas afirmações são lugares-co-
muns, com as virtudes e limitações do óbvio: contêm grãos
de verdade, perdidos no amálgama confuso da inestrutura-
ção teórica.
A questão correta reside em perguntar por que, sendo
óbvio que a economia capitalista tende à internaciona- ~
'-

83
lização crescente, que as sociedades se dividem em classes
antagônicas e que existe uma relação entre o particular e o
geral, com estas premissas não se vai além da caracte-
rização parcial e portanto abstrata, no sentido marxista', da
situação sócio-econômica do processo histórico latino-a-
mericano.
Neste sentido, a questão inicial (no plano lógico) é antes
de mais nada uma questão teórica e uma questão metodo-
lógica. A crítica às análises de dependência e a inter-
pretação sobre o alcance delas deve centrar-se portanto
sobre a teoria e a metodologia que a informam.
Antes, entretanto, de discutir (ou indicar) estes proble-
mas (como farei na secção seguinte), convém esclarecer
que eles só aparecem historicamente como postos e resol-
vidos depois de um processo de produção intelectual que
não se desliga do processo histórico de transformação das
sociedades que estão sendo analisadas.
Com efeito, na perspectiva marxista, o conceito não se
produz pelo desdobramento da Razão sobre si mesma.
Assim, não seria devido pedir que a dependência enquanto
"teoria" pudesse constituir-se pelo desdobramento lógico
da dialética abstrata das oposições entre conceitos anterior-
mente constituídos. Embora hoje seja possível dar a im-
pressão de que assim é (basta formàlizar os conceitos e
derivar conseqüências lógico-metodológicas da teoria so-
bre a expansão e a negação do capitalismo), a ordem
histórica da pesquisa e da elaboração dos conceitos é dis-
tinta. E esta distinção não é "acidental", nem deriva da
"falta de rigor metodológico" dos autores que elaboraram
o tema da dependência. Ao contrário, ela deriva de que as
categorias e teorias são constituídas na prática política e na
. prática intelectual de um conjunto de pessoas socialmente
situadas.
Neste sentido não existe (senão logicamente) uma níti-
da separação entre conceito e história, entre teoria e políti-

84
ca. o conceito nasce "impuro" na luta prática (teórica e
política). No teste real para sua adequação, a teoria se
consolida na medida em que permite ver mais claro o
processo real. Mas, repito, o esforço de "ver mais claro" o
processo real não decorre simplesmente (embora o supo-
nha) da ordem lógica pela qual se estrutura fonnahnente
um conjunto de relações. Decorre, ao mesmo tempo, da
capacidade que se tenha de fundir nos movimentos sociais
a perspectiva política derivada do "campo de percepção"
aberto pelo discurso teórico.
Portanto, as tentativas de denunciar como impuras as
origens de um conceito ou de um campo teórico por eles
terem nascido rentes à ideologia têm interesse puramente
escolástico-fonnal. Não é de outra fonna que nascem quais-
quer teorias. A ideologia (é preciso repetir outra vez o
óbvio) espelha, de fonna inversa e às vezes perversa, uma
parte do real. A ciência trabalha sobre idéias anteriores,
produzidas pela vida (intelectual, política ou cotidiana) e
no processo de luta já referido vai transfonnando em "co-
nhecimento racional" os sinais que qualquer relação social
implicitamente emite.
Foi assim também com a noção de dependência e com
sua retomada nas análises críticas das teorias do desenvol-
vimento econômico. Não cabe dúvidas que o fracasso das
tentativas de desenvolvimento capitalista "genuinamente
nacional" esteve na base das recolocações teóricas dos
cientistas sociais latino-americanos. 2 Este processo foi, a
um tempo, teórico e prático.
Por certo, teoricamente, uma série de críticos sempre
recusaram, por princípio, a possibilidade de sequer colocar
a questão de um "desenvolvimento nacional". Entre peque-
nos grupos de esquerda, bem como entre os liberais orto-
doxos, as campanhas nacionalistas, o esforço da consti-
tuição de empresas monopólicas estatais, etc., assim como
as ideologias que lhes correspondiam e os esquemas teóri-

85
cos que pretendiam sustentar a prática política orientada
nesta direção, sempre foram vistos com suspeição. Não
obstante, a transformação desta crítica em "força social"
não se fez a partir deste estilo de "trabalho teórico".
No caso brasileiro, por exemplo, apesar de algumas
gritantes inconsistências das posições teórico-ideológicas
e da política sustentada pelo ISEB (Instituto Superior de
Estudos Brasileiros), que foi o guardião do nacionalismo
desenvolvimentista em certa época, e apesar dos zigueza-
gues e inconsistências da política do partido comunista
(que, grosso modo, ia na mesma direção), foi essa a tendên-
cia que se constituiu como eixo orientador do pensamento
crítico até 1964. Não se pode dizer que as análises e as
políticas propostas nesta direção tenham deixado de ser
criticadas. Houve críticas à esquerda e à direita.) Entretanto,
só quando o fracasso político do nacional-populismo e a
inserção crescente da burguesia nacional no jogo imperia-
lista tomaram praticamente inviável o "desenvolvimento
nacional-burguês", as críticas teóricas ganharam a força da
vida.
As primeiras formulações gerais que tentei fazer de
crítica à sociologia do desenvolvimento e de crítica política
ao populismo e ao desenvolvimento nacional-burguês nas-
ceram bem rente à ideologia que os sustentava. Se bem
estivesse contra as posições intelectuais inspiradas pelo
ISEB (e nisso não fazia mais do que acompanhar a tendên-
cia acadêmica predominante nas secções de ciências huma-
nas e filosofia da Universidade de São Paulo e especial-
mente o "círculo do seminário de Marx" então em funcio-
namento), acreditava que a luta antiimperialista poderia
levar à reorganização da economia e da política nacionais.
Sob o impulso das grandes empresas estatais e de uma
agricultura estimulada pela reforma agrária, pensava-se
que seria possível marchar para a industrialização, robus-
,tecendo um setor do empresariado nacional e aumentando

86
a participação popular na política. As análises econômicas
então predominantes, com Celso Furtado à frente, permi-
tiam ver a necessidade da transposição de determinados
obstáculos estruturais, na boa tradição cepalina, e sugeriam
a alternativa de um fortalecimento dos núcleos nacionais
de decisão política (do Estado), ao lado do robustecimento
do mercado interno, como pré-requisitos para o desenvol-
vimento.
Foi no processo de realizar um estudo sobre os empre-
sários nacionais, entrevistando-os, que pude ir mais longe
na crítica às bases sociais e políticas de tal estilo de "projeto
desenvolvimentista". Isso ocorreu, entretanto, não apenas
porque os dados coligidos chocavam com os quadros de
referência ideológica, mas porque na época das entrevistas
Gulho de 1961-outubro de 1962), depois da renúncia de
Jânio, as condições políticas do país haviam acirrado a luta
de classes. Parte ponderável do empresariado nacional
conspirava claramente com grupos estrangeiros, organiza-
va-se politicamente e enfrentava ao mesmo tempo o sindi-
calismo nacional-populista e o governo que a esquerda
acreditava ser "da burguesia nacional". Naquela altura eu
resumia a conclusão a que chegara quanto à inviabilidade
.do desenvolvimento nacional-burguês dizendo que mar-
4
chávamos para um subcapitalismo.
Creio que trajetórias semelhantes são encontradiças em
outros autores brasileiros. Não é de espantar, portanto, que,
no caso dos países nos quais a crise nacional-populista não
se fez de forma tão estrepitosa quanto no Brasil, os intelec-
tuais caminhem para a crítica do desenvolvimento ainda
muito rentes à ideologia nacional-burguesa.
É óbvio que do ponto de vista "teórico" no mau sentido
do termo, isto é, abstrato, se poderia demonstrar a partir de
autores do século XIX a inviabilidade de qualquer tipo de
desenvolvimento nacional. Contudo, se essa crítica se fi-
zesse no começo da década de 1930, apesar da "verdade

87
geral" que ela contém, seria incapaz de explicar como e por
que o Estado e as Empresas Estatais cresceram e se forta-
leceram na América Latina. Ela estaria (como esteve) repi- J
sando estaticamente que o capitalismo é, "por sua essên-
cia", internacional. Quando, a partir de meados da década
de 1950, a "internacionalização do mercado interno" viesse
reafinnar que o capitalismo é "por sua essência" interna-
cional, os teóricos dessa "posição" se rejubilariam e, por
cima dos ombros, apregoariam os textos sagrados. Só que
a internacionalização de hoje é outra, distinta daquela de
1930 (como se insistirá adiante) e as diferenças entre os
períodos teriam sido "tragadas" na verdade eterna dos
princípios decorrentes da essência imutável do capitalismo
e com eles ter-se-ia esboroado a dialética do processo. De
fato, o importante a reter teoricamente é o movimento pelo
qual se constituem as possibilidades históricas através da
rede de interesses e oposições entre classes, frações de
classes e grupos sociais. Esta trama de relações não se tece
a partir de agentes estaticamente dados. A "burguesia
nacional", o operariado, o Estado, etc., variam confonne as
relações que mantêm entre si e a posição que detêm no
processo político. Todo este jogo se complica sumamente
quando se trata, como no caso de países dependentes, de
relações sociais que se inserem e são redefinidas pelo
contexto internacional. A busca do concreto, no caso, sig-
nifica a constituição das categorias que pennitam entender
como se estruturam estas relações, entendendo-se por este
como tanto a explicação dos padrões que as regem quanto
o processo pelo qual as relações e os padrões estruturais se
constituem e se transfonnam na prática social real.
Este procedimento se abre portanto aos equívocos da
prática social, mergulha nela e, de dentro, faz sua crítica.
Assim como é possível exemplificar e indicar como o
pensamento e a prática nacional-popular desembocaram
em sua autocrítica, é possível mostrar também como as

88
demais vertentes intelectuais que levaram à formulação das
"teorias de dependência" se constituíram rustoricamente.
A título indicativo: a especificidade e a dinâmica da
análise das relações entre "capitalismo monopólico inter-
nacional" e o "novo caráter da dependência" não foram o
produto da reafirmação do caráter "inevitavelmente mono-
polístico e expansionista do imperialismo". Decorreram,
antes, do reconhecimento na prática social da América
Latina de que, por exemplo, o Governo Frei e as empresas
monopolistas do cobre estavam entrando em novos tipos
de acordo, de que as empresas automobilísticas brasileiras
requeriam um mercado interno robustecido para vender
seus produtos (ao contrário do que ocorria na etapa anterior
do imperialismo) de que havia grupos industriais nacionais
aliados ao imperialismo e disso se beneficiando dinamica-
mente e assim por diante. E derivou também do fracasso
político das análises "debraystas" que se baseavam no tipo
anterior de relação imperialista. As formulações sobre o
caráter novo da dependência são anteriores a estes eventos
políticos, mas a evidência de que a teoria relativa à "inter-
nacionalização do mercado interno" resistiu à prova da
"falsificabilidade política" permitiu que uma proposição
abstrata começasse a ganhar foros de concretude, ao ajudar
os movimentos políticos a verem mais claro socialmente os
limites e possibilidades de sua ação no novo contexto da
dependência latino-americana.
Importa pouco, no estilo de "rustória-intelectual" que
estou esboçando, saber quem formulou tal ou qual categoria
ou tipo de análise. Em geral são muitos os intérpretes. 5 O
que importa é mostrar que, na medida em que uma pers-
pectiva teórica vai se concretizando, ela vai englobando e
especificando mais relações ("variáveis") e, simultanea-
mente, vai se incorporando à prática social e política,
tornando-se "verdade concreta". E é desta maneira que, ao
particularizar-se, ela se generaliza: cada novo acordo entre

89
um monopólio e o Estado, entre este e os setores competi-
tivos internos, bem como cada passo novo dado na crítica
política desse processo pelos sindicatos, partidos e movi-
mentos, particulariza, constitui e generaliza os marcos da
"nova situação de dependência".
Entendida desta maneira a história da produção intelec-
tual de uma categoria ou de uma teoria, tem pouco sentido
rastrear os paradigmas anteriores em termos puramente
intelectuais, para deles derivar novos paradigmas. A luta
política e a luta teórica como que se fundem. Tanto é assim
que a crítica à "Sociologia do desenvolvimento" e a "crítica
ao funcionalismo" apareceram, com vigor, simultaneamen-
te com a crítica ao nacional-populismo e às posições polí-
ticas que lhes correspondiam. São estes em conjunto os
antecedentes político-intelectuais das análises baseadas na
6
perspectiva da dependência.
A eles convém acrescentàr que a superação (no sentido
rigoroso da expressão no discurso hegeliano-marxista, ou
seja, o de negação sem anulação) do que se convencionou
chamar de "teoria da CEPAL" foi, no plano mais estrita-
mente econômico, essencial para possibilitar outras pers-
pectivas de análise. Convém reafirmar que sem os estudos
da CEPAL, e de Prebisch em particular, a "superação" da
análise econômica tradicional pelo marxismo de cátedra ou
dos pequenos grupos guardiães dos livros sagrados seria
tão formal quanto o foi a crítica abstrata da inviabilidade
do capitalismo na América Latina na "atual etapa do impe-
rialismo", tão comum e sensaborona. A preocupação ana-
lítica da CEPAL e sua visão estruturalista são ganhos
líquidos do pensamento social latino-americano e a única
crítica válida, também neste caso, é a autocrítica. Em certa
medida os estudos sobre a dependência constituíram uma
espécie de autocrítica dinamizada pelo ardor dos que, sem
ter jamais passado pela escola cepalina, souberam, entre-
tanto, criticá-la sine ira et studio.

90
11 - Algumas questões teórico-metodológicas
Não tem sentido inventar procedimentos teórico-meto-
dológicos supostamente novos para caracterizar a corrente
de pensamento a que me estou referindo. Implícita ou
explicitamente a fonte metodológica é a dialética marxista.
Entretanto, existem tão variadas maneiras de conceber
a utilização da dialética marxista que pode ser útil explicitar
o que entendo por ela.
Antes de mais nada, convém matar no nascedouro um
novo equívoco que quer ter ares de polêmica. Não deve
existir confusão entre a insistência sobre a natureza concre-
ta das análises de dependência 7 e qualquer vestígio de
empirismo historicista ou "neopositivismo". Na secção
anterior adiantei os argumentos que explicitam o que se
entende por caminho que leva ao concreto na dialética
marxista. Antes de mais nada uma análise concreta é um
produto da prática e da reflexão teórica simultaneamente.
Quando se enfatiza que as análises sobre a dependência
devem partir de uma "situação concreta" e resultar numa
"análise concreta", o procedimento que está por trás desta
afirmação é o mesmo tantas vezes reafirmado por Marx ao
dizer no texto famoso da Contribuição à Crítica da Eco-
nomia Política que "o concreto é concreto porque é a
síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diver-
so".
Noutros termos, se é certo que as análises sobre a
dependência devem partir de processos sociais reais, este
ponto de partida reaparecerá no pensamento como resulta-
do. como síntese. Metodologicamente, trata-se de um es-
forço de elevação do particular para o geral no qual as
relações parciais (particulares) vão sendo circunscritas em
teias de relações e vão se especificando e determinando de
tal modo que a síntese resultante (o todo, a totalidade)
apareça, não como um amálgama confuso, indeterminado,

91
"geral", mas como um conjunto hierarquizado e articulado
de relações. Este conjunto articulado de relações só se
alcança por intermédio da produção de conceitos que po-
nham a nu o modo de relação entre as partes que compõem
o todo e as leis de seu movimento.
Desse modo, a regressão do particular ao geral não
significa apenas que se atingem as condições inertes desse
particular, mas também que se mostra como o próprio
universal é mantido pelo processo de particularização. O
imperialismo (o universal) não se manteria se não fossem
encontradas formações particulares (justamente aquelas
que a teoria da dependência quer estudar) que o repõem.
Portanto, é inadequada a interpretação da "análise con-
creta" das situações de dependência em termos de "análises
empíricas" nas quais o conhecimento das partes (encaradas
como dados, isto é, como algo que a percepção aprende
independentemente dos conceitos, das teorias ou das "abs-
trações") gera, por indução, a síntese "concreta". Bem
como é inadequada a idéia de que a análise marxista supõe
que se determinem os atores e as conjunturas em termos de
"aqui e agora", numa variante empobrecida de historicis-
mo. Ambas perspectivas são, de fato, variantes do neopo-
sitivismo metodológico.
A síntese a que me refiro nas "análises concretas" supõe
a elaboração dos conceitos (elaboração esta que, como se
indicou na secção anterior, é teórico-prática) que permitem
organizar a unidade do diverso. Ao mesmo tempo esta
"unidade" não apaga as diferenças, não dissolve as particu-
laridades na "abstração" representada por idéias gerais.
Assim, a idéia de dependência, na medida em que se
define no universo de discurso teórico a que estou aludindo,
nem é uma "categoria geral" que dissolve as diferenças
entre as várias "partes" que compõem uma situação de
dependência, nem é apenas o resultado da reprodução no
pensamento de uma ou de cada uma das relações entre

92

L-- ~-_
classes, estados e economias. É uma "síntese de pensamen-
to" que reproduz um modo de articulação deixando ver a
tecitura pela qual a diversidade de relações se hierarquiza
e se unifica em um conjunto estrutural determinado.
Entretanto, eu concebo esta "síntese de pensamento"
(diferentemente do que afirma Althusser em sua inter-
pretação sobre a "totalité de pensée") como um processo
histórico de produção teórico-prática do conhecimento
(nos termos referidos na secção anterior deste capítulo).
Não a vejo como resultado de "dialética do pensamento"
ou como o esforço deste para captar o "sentido das coisas".
Penso que existe um mesmo e contraditório movimento
pelo qual, na passagem da ideologia à ciência, se produz
tanto a história como o conhecimento. E, jogando um
pouco com as palavras, tanto o conhecimento é "sua histó-
ria", como a História só se deixa apreender por meio dos
conceitos que a organizam; por certo, o processo social
emite os sinais que, sob a forma de ideologia, indicam os
contornos entre as coisas, mas o conhecimento do processo
histórico requer a produção intelectual de conceitos e cate-
gorias básicas.
Por tudo isso, reafirmo o anteriormente indicado: nas
análises sobre a dependência a matéria-prima da qual se
parte é a luta política e a luta econômica tal como se
desdobram na superfície do processo histórico, como luta
nacional e antiimperialista. Mas o conceito ao qual se chega
distingue-se do ponto de partida, pois (após especificar e
determinar as relações entre os estados, destes com as
classes e de ambos com o processo produtivo) mostra as
limitações do ponto de partida, mostra como se reproduz
uma estrutura dada de dominação e quais os limites possí-
veis de seu funcionamento (a negatividade).
É este o andamento metodológico do ensaio sobre
Dependência e Desenvolvimento. 8 Nele se especificam as
formas históricas de dependência a partir do modo pelo

93

iI
qual classes, estados e produção se inserem na ordem
internacional para, no último capítulo, mostrar como a
"internacionalização do mercado" solidariza os interesses
entre classes que no momento anterior apareciam como
adversas (a burguesia nacional e a burguesia imperialista e
mesmo setores das classes assalariadas e os monopólios
internacionais, por exemplo). Neste movimento, a própria
idéia de depenoência, na medida em que é pensada e tem
seu ponto de partida como "dependência nacional", revela
suas limitações.
Não faltarão críticos apressados ou superficiais para
bradar que "existe uma contradição" entre o alcance de
idéia de dependência (em geral) e o resultado a que se chega
ao analisar a dependência na fase monopól~ca e interna-
cionalizante do capitalismo. Pobres "dialetas" que se assus-
tam com a dialética! Porque pensam que os conceitos são
"verdades imutáveis", essências sempre presentes no vazio
da falta de imaginação, não percebem que os conceitos têm
um movimento, uma história e um alcance teórico-prático
limitado.
Entretanto, a redefinição das formas de dependência (e,
obviamente, de seu conteúdo) não significa a supressão da
dependência. Não se eliminam as diferenças internas entre
grupos e classes nem as contradições entre estados nacio-
nais e entre os interesses locais e os internacionais quando
as relações de dependência são redefinidas e circunscritas
pela nova divisão internacional do trabalho que incorpora
partes das economias dependentes a um mercado produtor
e consumidor internacionalizado. Se redefinem os "atores",
se revolvem as suas possibilidades de atuação, bem como
se redefinem os conteúdos político-ideológicos da prática
social. Assim, o que foi o nacional-desenvolvimentismo da
etapa anterior de dependência é substituído por um "nacio-
nal-patriotismo" que aceita a associação crescente com os
monopólios internacionais; o que fora o nacional-populis-

94
mo pretende renascer sob a fonna de nacional-corporativis-
mo e assim por diante. Mas, enquanto a prática política não
destruir as desigualdades de apropriação entre as classes e
entre as nações, o conceito de dependência continua pleno
de significado.
A "análise concreta" das situações de dependência
requer que novas fonnas das relações entre classes, estados
e nações se incorporem ao conhecimento, à síntese, expli-
citando-se a articulação existente entre elas e mostrando-se
o movimento que as gerou, redefinindo as relações anterio-
res.
A "unidade do diverso" não estará completa, entretan-
to, se a nova síntese for incapaz de mostrar as "condições
da negatividade". Ou seja, se o estudo das novas fonnas de
dependência se limitar a considerar as condições de sua
reprodução.
Outra vez aqui, contudo, o processo não é meramente
teórico: o conceito da negação nasce junto com o movimen-
to real da transfonnação social. A carência de caminhos
viáveis de transfonnação político-econômica estiola na
ideologia o conhecimento das "leis de movimento" das
estruturas dependentes.

1. Estrutura e História nas Análises de Dependência


Convém agora explicitar um pouco a relação entre
estrutura e história nas análises de dependência.
Em primeiro lugar, na referência à análise histórico-es-
trutural há um conjunto complexo de supostos sobre o que
seja estrutura, história e a relação entre ambas. Como em
qualquer outra perspectiva que utilize a noção de estrutura,
se assume que as relações entre as classes, os grupos e as
instituições obedecem a regularidades, possuem uma certa
rigidez e são articuladas. Entretanto (e também isto é
óbvio), as estruturas são concebidas como produto da luta

95
social e como resultado da imposição social. Por conse-
qüência, são vistos, ao mesmo tempo, como processos.
Noutras palavras, são historicamente respostas num movi-
mento que altera sua conformação presente.
A ambigüidade da noção de história pode levar a con-
fusões metodológicas. No campo teórico a que me estou
referindo, história significa alternativa, futuro. Ou seja, não
é legítimo conceber as estruturas dadas como invariantes,
posto que elas foram socialmente constituídas e no proces-
so de sua constituição a luta social selecionou entre alter-
nativas definidas as que se impuseram. Este processo de
imposição, de dominação, por sua vez, não se dá no vácuo:
ele depende da relação de força entre as classes sociais e
destas com o processo produtivo. Outra vez a célebre
frase-síntese: o homem faz a história, mas em condições
sociais determinadas.
De qualquer forma, um dos aspectos implícitos na idéia
I
de história, neste contexto, salienta que em sentido delimi-
tado existe uma "invenção do mundo". Mas, ao mesmo
tempo, nem todas as "opções" são socialmente viáveis.
l
,I
Convém insistir, apesar da obviedade da asserção, que a I
!
rigor esta "opção" não tem a ver diretamente com os I
~
"valores" e com as "escolhas" individuais, nem pode ser
concebida no plano de uma "dialética da consciência". Ela,
se bem se expresse por intermédio de objetivos e ideologias
que se exteriorizam individual ou grupalmente, tem suas
leis de movimento assentadas nas contradições postas pela
articulação dos componentes do modo de produção.
Portanto, por outro lado, há uma"estrutura" que, neste
nível, condiciona a história. Esta última não pode ser
interpretada como o jogo de intenções e resultados ao nível
da consciência e das formas de manifestações da cultura. A
fortiori, a leitura da história em termos de que os "resulta-
dos" (ou seja, a conjuntura ou a constelação estrutural atual)
foram conseqüência de intenções, maquiavélicas ou não,

96
de pessoas ou de classes (por exemplo: a burguesia nacional
sempre quis a associação com o imperialismo, posto que
hoje está associada nos países industrializados) é uma
simplificação grosseira e incorreta.
Metodologicamente, aceitar que a explicação deve ser
histórico-estrutural não significa conceber a interpretação
científica em termos de que o antecedente cronológico
"explica" o conseqüente. Remontar ao passado, nestes
termos, e pensar que dele deriva alguma explicação é
assumir uma posição ao mesmo tempo empirista e histori-
cista, mas não materialista-dialética. A idéia de que existe
uma explicação histórico-estrutural tem a ver com o pro-
cesso de formação das estruturas e, simultaneamente, com
a descoberta das leis de transformação dessas estruturas.
Trata-se de conceber as estruturas como relações entre os
homens que, se bem são determinadas, são também, como
se viu acima, passíveis de mudança, à medida em que, na
luta social (política, econômica, cultural), novas alternati-
vas vão se abrindo à prática histórica. Neste sentido, o
objeto da análise não se reifica em atores, mas se dinamiza
em conjuntos de relações sociais.
Assim, resumindo e usando como ponto de referência
crítica as correntes metodológicas em voga, o método
histórico-estrutural, embora reconhecendo a existência de
estruturas e o condicionamento do processo histórico por
elas, nem pretende buscar (como no estruturalismo) as
invariantes fundamentais que lógico-ontologicamente con-
formam as aparentes variabilidades da história, nem pre-
tende caracterizar, como no empirismo historicista, apenas
os momentos, densos de conteúdos significativos e de
decisões individualizadas, que dão a impressão de definir,
independentemente de outros condicionantes, os rumos da
história.
Trata-se, por conseqüência, de um método que requer
a reconstituição da "história das relações estruturais" e que,

97
ao fazê-la, reproduz teoricamente a interação assinalada
anteriormente entre o conceito e a prática. Enquanto não
estão desvendadas as articulações entre as partes funda-
mentais dos conjuntos de relações e processo que formam
as estruturas em questão, a referência ao antes e depois (à
"história" no sentido vulgar) não possui valor explicativo.
Pelo contrário, quando se dispõe de uma reconstituição
da transformação das estruturas, no sentido acima, então
I
f
sim, a história é fundamental para a explicação. Mas, neste
caso, trata-se de ciência-consciência-objetiva de um pro- I
cesso e não da referência meramente cronológica à ação de I
I
atores.
!
Nisso reside o essencial da periodização na dialética
marxista. Os cortes no "tempo" são cortes entre estruturas
e dependem da produção dos conceitos capazes de eluci~r
como "relação articulada", a um só tempo como lógica e
como consciência social objetiva, as diferenças entre um e
outro período. Por certo, os cortes entre uma e outra estru-
tura não se dão mecanicamente. A periodização deve,
portanto, recortar mais pormenorizadamente as sucessivas
conjunturas por intermédio das quais se objetiva a fusão de
múltiplas contradições em momentos determinados. Cada
contradição em particular não se situa necessariamente ao
nível das oposições básicas que configuram as estruturas.
Assim, a queda ou ascensão de um governo, por exemplo,
se em si mesmo é um fenômeno conjuntural, pode abrir
possibilidades à implementação de políticas que espelham
e incidem sobre, por exemplo, a propriedade da terra ou o
controle estatal de empresas, refletindo e ao mesmo tempo
redefinindo a correlação de força entre as classes e alteran-
do a configuração estrutural da sociedade.
Com este esclarecimento, convém repisar que, em ter-
mos da dialética marxista, a teoria social deve estar sempre
embasada numa periodização e deve ser capaz de gerar a

98

.-----------------~---------~-.....-I
explicação dos momentos que definem rustórico-estrutu-
rahnente esta periodização.
Até que ponto a teoria da dependência suporta essa
prova?
Apesar das ambigüidades existentes nos textos latino-
americanos sobre o tema (e nos meus próprios) parece-me
claro que a própria idéia de "dependência nacional", posta
como uma situação estrutural distinta da dominação colo-
9
nial , surge marcando um corte rustórico-estrutura1. De
igual modo, as distinções entre "situações de enclave" e
situações nas quais houve "controle nacional do processo
produtivo" marcam outras tantas diferenças histórico-es-
truturais de dependência nacional, embora cronologica-
mente estes processos possam ter ocorrido ao mesmo tem-
po em diferentes países. Por fim, o "novo caráter de depen-
dência" marca outro período da história das estruturas
dependentes.
A complexidade da periodização a partir da teoria da
dependência deriva da própria caracterização da situação
de dependência, a qual supõe uma articulação entre a
economia mundial e as economias locais, entre a domina-
ção internacional e a dominação de classe em cada país
dependente.
Não é necessário (nem possível) discutir neste trabalho
a periodização gerada pelos estudos da dependência. A
referência ao tema, neste estudo, está ligada apenas à
discussão sobre o caráter histórico-estrutural das análises
sobre a dependência.

2. O status teórico da idéia de dependência

Feítos os esclarecimentos preliminares acima, é chega-


do o momento de discutir o status teórico da noção de
dependência e, por conseguinte, a própria caracterização
do que seja dependência.

99
Em crítica recente 10 foi ressaltada a hesitação com que
lido com a idéia de dependência: noção, conceito, "teoria",
caracterização "concreta" ou o quê? O reparo neste ponto
como em alguns outros mais, é procedente. Em parte esta
hesitação pode ser explicada por motivos político-ideoló-
gicos, em parte, entretanto, ela deriva da falta de definição
mais clara do universo de discurso teórico em que me situo.
Quanto às razões político-ideológicas, basta reafirmar
o que escrevi noutra oportunidade. 11 O sentido prático do
estudo sobre a dependência, no contexto latino-americano,
deriva da maior sensibilidade que este tipo de abordagem
poderia ter para discriminar situações de dependência e
especificar, em cada uma delas, quem são os contendores
reais na luta política pela dominação econômica. Na medi-
da em que a "dependência" passa a ser o "amálgama
confuso" de relações e articulações indeterminadas (como
em alguns textos passou a ser) e na medida em que se
pretende fazer uma "teoria" a partir da opacidade de um
"conceito" brumoso, minha reação imediata é a de recusar
foros de ciência a este tipo de ideologia.
Entretanto, além dessa reserva (que é compartilhada
por certo por quem encara o tema com seriedade), existe
outra, de natureza intelectual. Eu não penso que a categoria
(estou usando esta expressão sem atribuir-lhe dimensão
diversa da expressão conceito) de dependência possua o
mesmo status teórico das categorias centrais da teoria do
capitalismo. A razão para isto é óbvia; não se pode pensar
na dependência sem os conceitos de mais-valia, expropria-
ção, acumulação etc. A idéia de dependência se define no
12
campo teórico da teoria marxista do capitalismo.
Isto posto, não há razão para negar a existência de um
campo teórico próprio, embora limitado e subordinado à
teoria marxista do capitalismo, no qual se inscrevem as
análises sobre a dependência. E neste caso não há por que
utilizar as aspas na expressão teoria. Existe, pois, a possi-

100
bilidade de pensar-se na teoria da dependência, sempre e
quando ela se inscreva no campo teórico mais amplo da
teoria do capitalismo ou da teoria do socialismo (de precá-
rio desenvolvimento até agora).
Para poupar esforço, reproduzo, endossando, o que foi
escrito com intenção crítica por outrem sobre a depen-
dência como uma forma de articulação entre fatores exter-
nos e internos:
"Na medida em que também nós reclamamos uma
concepção dialética e materialista da dependência, é preci-
so concebê-la como uma unidade dialética dos determi-
nantes gerais do modo de produção capitalista e das deter-
minações específicas de cada uma das sociedades depen-
dentes, e, portanto, como síntese dos 'fatores externos' e
dos 'fatores internos'''. 13
Até esta altura, a caracterização metodológica acima é
quase ipsis literis a contida no livro Dependência e Desen'-
volvimento. Entretanto, Quartim de Moraes ajunta que é
necessário colocar a questão da gênese da dependência e
de sua periodização. Concordo com ambos aspectos, com
os esclarecimentos feitos na seção anterior, bem como com
a qualificação sobre as condições em que se deve estudar
esta periodização:
que "se examine a periodização do desenvolvimento
das "economias dependentes" como sendo complexamente
determinadas: quer dizer, determinada em primeira instân-
cia pela luta de classes e o desenvolvimento do capitalismo
no interior de cada uma das formações econômicas das
sociedades dependentes e, em última instância, pelos pe-
ríodos do desenvolvimento do capitalismo em escala inter-
nacional" (p. 11).
Talvez haja formulado em outros trabalhos caracte-
rizações variantes dessa. Não desejo insistir sobre detalhes
nem se trata aqui de fazer a defesa de textos. Penso que

101
tanto eu como vários dos que têm escrito sobre dependência
na América Latina temos tentado analisar, com esta preo-
cupação metodológica, as formas de articulação entre os
países dependentes (classes, estados e economias) e os
países imperialistas. É este o campo de uma possível teoria
da dependência. Esta, como assinalei em outros trabalhos,
não é uma alternativa para a teoria do imperialismo, mas
um complemento.
Como complemento à teoria do imperialismo, a teoria
da dependência requer, entretanto, que se revise conti-
nuamente a periodização da economia capitalista mundial
14
e a caracterização da etapa atual do imperialismo. Por
outro lado, supõe que se delineie no campo teórico a análise
das situações específicas que decorrem da existência da
dominação econômica imperialista e da existência de Esta-
dos Nacionais que, de uma ou outra forma, expressam e
respondem aos interesses e às relações de classe locais
(ainda quando estas estejam, em parte, subordinadas à
dominação política e econômica internacional).
A discussão do método, portanto, quase que se resume
a afinar as formulações com o paradigma do próprio Marx.
A questão fundamental passa a ser, com estes esclarecimen-
tos, muito mais uma questão substantiva: como caracterizar
as situações vigentes e pretéritas de dependência?

In - Algumas Questões Substantivas


Não cabe neste trabalho retomar as análises substanti-
vas feitas pelos autores que têm desenvolvido o tema da
dependência na América Latina. Vou apenas chamar a
atenção para alguns mecanismos novos da relação de de-
pendência e para alguns campos de estudo que a proble-
mática da dependência recolocou ou abriu.
Antes de mais nada, embora não tenha a intenção de
fazer um levantamento sistemático sobre o que tem sido

102
publicado dentro do campo de estudos sobre dependência,
convém esclarecer que é errônea a suposição de que estes
têm jogado antes um papel crítico de delimitação das
deficiências encontradas nas análises baseadas em perspec-
tivas "desenvolvimentistas" ou funcionalistas, do que um
papel positivo na caracterização de novos temas e na aná-
lise de situações concretas. Um levantamento da biblio-
grafia sobre a América Latina nos últimos cinco anos
demonstrará, certamente, que existe quase um corte entre
a temática pretérita e a atual. Este corte trouxe à primeira
plana, mesmo nos organismos internacionais e nas univer-
sidades, instituições em geral cautas nesta matéria, a reco- ?
"i:
locação da relação entre os países imperialistas e os países "~
,;::
dominados. Mais do que isto, importa salientar que multi- ;
~"
plicaram-se análises sobre o Estado, sobre as burguesias
locais, sobre os sindicatos, os operários e os movimentos "~

sociais, sobre as ideologias (para não mencionar os estudos


sobre marginalidade e urbanização), que, de um ou de outro
modo, se inspiram no quadro de referência dos estudos
sobre dependência.
Não seria pertinente discutir a qualidade destes traba-
lhos, de resto, como em qualquer outro campo de trabalho
científico, muito variável. Importa apenas salientar que se
formou uma corrente intelectual preocupada com uma pro-
blemática comum. Disso derivou um enriquecimento indis-
cutível no conhecimento da teia de relações que conforma
o processo social na situação latino-americana.

1. Dependência e desenvolvimento capitalista

Feita esta ressalva inicial, volto a insistir sobre o ponto


que me parece básico para aquilatar a contribuição das
análises da dependência à compreensão do processo histó-
rico atual na América Latina: a caracterização da forma
,
"'f

103
contemporânea de relação entre os centros imperialistas e
os países dependentes.
Farei com este problema o que fiz com os anteriormente
tratados neste trabalho: procurarei salientar as novas linhas
de interpretação que se abrem e indicarei alguns problemas
teóricos com elas relacionados, sem preocupar-me em in-
dicar os trabalhos e autores que mais contribuíram para isto.
Começemos pelo ponto que pode parecer mais discutí-
vel: a caracterização da atual etapa da dependência mostra
que existe a possibilidade de acelerar-se a industrialização
nas economias periféricas, redefinindo-se as bases de de-
pendência. Esta verificação contém uma série de implica-
ções que, se levadas às últimas conseqüências, obrigam a
redefinir algumas interpretações sobre o imperialismo e o
subdesenvolvimento.
Com efeito, o processo atual de divisão internacional
do trabalho, impulsionado pelo capitalismo monopólico e
pela reorganização das empresas chamadas multinacionais
que passam a operar como "conglomerados" nos quais se
incorporam distintos ramos de produção, abre a possibi-
lidade da industrialização de áreas periféricas do capita-
lismo.
Este processo não havia sido previsto pelas teorias do
imperialismo e da acumulação capitalista. Nem o paradig-
ma leninista (que, não obstante, na análise concreta da
penetração capitalista na Rússia enfatizava seu caráter di-
nâmico) nem a versão de Rosa Luxemburgo contemplavam
esta hipótese. É de todo evidente (embora não possa discutir
o assunto aqui e remeta o leitor para outro trabalhoU) que
a industrialização da periferia recoloca o problema da
realização da mais-valia e exige novos esforços teóricos e
de pesquisa para equacioná-lo contemporaneamente.
Substantivamente, à medida em que progride o proces-
so de internacionalização do mercado interno e que, graças

104
a ele, aumenta a industrialização das áreas periféricas, bem
como cresce o papel do consumo local para a colocação dos
produtos fabricados nas economias dependentes, cresce
também a massa de capital gerada pelo setor internaciona-
lizado. Por outro lado, como decresce em fonua crescente
o investimento em hot money em proporção ao investimen-
to realizado pelo setor internacionalizado graças à poupan-
ça local ou aos créditos internacionais (que oneram, por
certo, a capacidade das economias dependentes) aumenta
simultaneamente a massa de dinheiro que, sob a fonua de
lucros exportados ou de pagamento de juros e royalties,
retoma às economias centrais. Essas, que no passado ex-
portavam capital, mesmo quando continuem a fazê-lo (sob
a fonua de capital financeiro, de empréstimos privados ou
públicos etc.), passaram a receber mais recursos (sob a
forma de juros, royalties, lucros exportados etc.) do que a
exportá-los, agravando dessa forma o problema da reali-
zação da mais-valia.
Tudo isso exige novas reflexões teóricas e constitui
problema não resolvido na teoria do capitalismo. O caráter
contraditório da acumulação reaparece sob novas fonuas e
tem aspectos novos no endividamento externo crescente e
simultaneamente na ampliação da capitalização nas econo-
mias dependentes.
Por trás desses problemas da acumulação financeira e
da circulação de capitais existem outros, na órbita da pro-
dução e na fonua de exploração da mais-valia. Convém
começar indicando o ponto mais polêmico: a nova fonua
de dependência está baseada na exploração da mais-valia
relativa e no aumento da produtividade.
A razão da polêmica possível é óbvia. Ao afinuar isto,
oponho-me à interpretação de A.O. Frank sobre o "desen-
volvimento do subdesenvolvimento". Ao mesmo tempo, a
interpretação de Rui Mauro Marini sobre a natureza funda-
mental das relações de dependência como uma fonua de

105
reprodução da exploração da mais-valia absoluta e da pro-
dução de matérias-primas baratas requer alguma delimita-
ção.
A tese que desejo indicar (sujeita naturalmente a estu-
dos posteriores e que nesta comunicação é exposta como
exemplo de um campo aberto à discussão teórica) insiste
em que o novo caráter da dependência (depois da interna-
cionalização do mercado interno e da nova divisão interna-
cional do trabalho que franqueia à industrialização as eco-
nomias periféricas) não colide com o desenvolvimento
econômico das economias dependentes. Por certo, quando
se pensa que o desenvolvimento capitalista supõe redistri-
buição de renda, homogeneidade regional, harmonia e
equilíbrio entre os vários ramos produtivos, a idéia de que
está ocorrendo um processo real de desenvolvimento eco-
nômico na periferia dependente (ou melhor, nos países da
periferia que se industrializaram, pois não é possível gene-
ralizar o fenômeno) parece absurda. Mas não é este o
entendimento marxista sobre o que seja desenvolvimento
(ou acumulação) capitalista. Esta é contraditória, espoliati-
va e geradora de desigualdades. Nestes termos, não vejo
como recusar o fato de que a economia brasileira ou a
mexicana estejam desenvolvendo-se capitalisticamente.
Nem se alegue que existe apenas um processo de "cresci-
mento", sem alterações estruturais. A composição das for-
ças produtivas, a alocação dos fatores de produção, a distri-
buição da mão-de-obra, as relações de classe, estão se
modificando no sentido de responder mais adequadamente
a uma estrutura capitalista de produção.
Assim, parece-me que existe simultaneamente um pro-
cesso de dependência e de desenvolvimento capitalista. Se
isto for verdadeiro, as relações de classe e o processo
político devem ser concebidos em forma distinta do que o
foram em termos do "desenvolvimento do subdesenvolvi-
mento" ou do "predomínio crescente da oligarquia agrário-

106

.....
imperialista" que se expande ao lado de uma 'lumpen-bur-
guesia'.
Os beneficiários desse "desenvolvimento dependente",
além do mais, são distintos daqueles que a teoria do "de-
senvolvimento do subdesenvolvimento" supõe. Passam a
ser as empresas estatais, as corporações multinacionais e as
empresas locais associad~s a ambos. Estes agentes sociais
constituem o que chamei noutras oportunidades "tripé do
desenvolvimento dependente-associado".

2. Acumulação capitalista em escala mundial e


dependência
De que modo pode-se pensar que se mantém e am-
pliam-se liames de dependência quando existe, ao mesmo
tempo, um processo interno de capitalização? Não se esta-
ria, neste caso, ancorando a idéia de dependência apenas
no Estado-Nacional e não no processo produtivo e nas
relações de classe?
É aqui que a discussão da tese de R.M. Marini parece-
me pertinente. Em trabalho recente Marini discute os me-
canismos pelos quais se dá o intercâmbio desigual no
comércio exterior entre as nações industrializadas e os
produtores de alimentos e matérias-primas. 16 Ao explicitar
estes mecanismos mostra a maneira específica pela qual se
organizam as relações de exploração dos trabalhadores na
região e o papel que a produção exportadora latino-ameri-
cana teve para o processo de acumulação em escala mun-
dial. Resumindo, o mecanismo seria o seguinte: a) a su-
perexploração do trabalhador nas economias capitalistas
dependentes permitiu aumentar a quota de mais-valia rela-
tiva nas nações industrializadas porque este incremento
dependia do aumento da produtividade do trabalho sempre
e quando esta pennitisse que a classe trabalhadora dispu-
sesse de "meios de subsistência" mais baratos; b) ora, a

107
exportação de alimentos pelas economias latino-america-
nas, desde meados do século XIX, barateou o custo de
reposição da força de trabalho européia, pois alimentos
baratos incidem sobre o custo dos "meios de subsistência"
pennitindo a diminuição do tempo gasto pelos trabalhado-
res na reposição do custo da força de trabalho ("trabalho
necessário"); c) por outro lado, a exportação de matéria-
prima nas mesmas condições diminui os investimentos em
capital constante nas economias industrializadas, pennitin-
do que, ao mesmo tempo que ocorre um aumento na quota
de mais-valia, seja compensada a tendência à queda na taxa
de lucro, uma vez que esta depende do montante global do
capital variável e do capital constante e não apenas dos
gastos com a força de trabalho; d) ambos processos (bara-
teamento de matérias-primas e de produtos de alimentação)
dependeram, por sua vez, da superexploração do traba-
lhador local; e) essa foi possível, sem alterar negativamente
o processo de acumulação porque nas economias depen-
dentes a circulação se separa da produção e se realiza no
mercado externo. Assim, o consumo individual do traba-
lhador não interfere na realização do produto (embora
detennine a quota de mais-valia).
Estariam dadas, portanto, as condições para exploração
máxima da força de trabalho, sem ser necessário sequer
existir a preocupação com sua reposição, sempre que exis-
tisse (como ocorreu) algum reservatório fácil de mão-de-
obra.
Creio que existem alguns problemas não resolvidos
pela intetpretação de R.M. Marini: com respeito ao desen-
volvimento do capitalismo central este processo não é
necessário. Ele ajuda, facilita, complementa, mas não é um
requisito para a expansão capitalista. Com efeito, a ótica da
expansão do capital a partir das economias centrais, de
Lenin, explicava a necessidade de investimentos no exte-
rior e sua importância para o capitalismo. O mecanismo

108
descrito por Marini justifica ex-post a função do capita-
lismo dependente e explica a razão pela qual dá-se uma
superexploração da força de trabalho sem que isso acarrete
problemas de realização do produto. Mas creio que seria
possível mostrar que o capitalismo central, no que ele
possui de especifico e dinâmico, depende da produção de
mais-valia relativa e do aumento da produtividade - que
atinge, por certo, os produtos necessários à reposição da
força de trabalho -, não da pura espoliação das regiões
periféricas. "

Para que o último argumento fosse verdadeiro, seria


preciso demonstrar que o peso dos produtos alimentícios
importados era decisivo na cesta de consumo do traba-
lhador europeu e que não teria sido possível, com técnicas
mais avançadas, lograr o barateamento da alimentação e
dos demais meios de vida na Europa. Isto sem contar que,
nos países capitalistas, a cesta de consumo compõe-se em
forma crescente de produtos industrializados, alimentícios
ou não. Além do mais, o desenvolvimento capitalista nos
EE.DU. deu-se de forma muito mais independente da im-
portação de alimentos do que na Inglaterra, sem que com
isto as contradições apontadas por Marini tivessem entra-
vado a expansão da economia. ':~

Poder-se-ia acrescentar ainda que as exportações da '~


América Latina nos 50 anos anteriores à Primeira Grande
Guerra não representaram contribuição importante para
reduzir o custo da mão-de-obra ou capital constante. Os ":(

únicos países da região Uuntamente com o Canadá, a


Austrália e a Nova Zelândia) que exportaram produtos
alimentícios importantes para a cesta de consumo dos
~
trabalhadores do "centro" foram a Argentina e o Uruguai. <

Ou seja, precisamente os que mais, se desenvolveram e


pagaram salários mais altos à mão-de-obra local. Inversa-
mente, a substituição do linho e da lã pelo algodão na
indústria têxtil influenciou a redução relativa do yalor do
','
~

109
capital constante e o país básico na exportação do algodão
foi a América do Norte, que obviamente não pode ser
classificada como país "dependente" e explorador da mão-
de-obra extensiva em comparação com os países da perife-
ria.
A razão pela qual trato de limitar o alcance teórico das
explicações dadas por Marini (sem negar o peso histórico
de alguns de seus argumentos) diz respeito à própria teoria
marxista do capitalismo e ao ponto anteriormente mencio-
nado relativo à compatibilidade entre dependência e desen-
volvimento capitalista. Com efeito, parece-me que na ótica
marxista as condições gerais da acumulação (ou seja, a
exploração absoluta do trabalho) combinam-se com as
específicas (a diminuição do período de trabalho necessário
em proveito do trabalho excedente e a potenciação das
forças produtivas) e tem nestas últimas o traço distintivo.
Atribuir o caráter de necessidade ao processo de exploração
irrefreado da força de trabalho da periferia do sistema
(convém dizer que Marini não afirma categoricamente isto)
para a acumulação nas economias centrais leva a descarac-
terizar a especificidade do capitalismo industrial.
O ponto de vista defendido por Lenin, por exemplo,
para explicar os efeitos da penetração do capitalismo na
Rússia foi oposto a este. A suposição de que partia era que
o capitalismo desempenha um papel "progressista", provo-
cando o desenvolvimento das forças produtivas e dinami-
zando as relações de produção. Os autores marxistas clássi-
cos, sem deixar de sublinhar o papel da "acumulação
primitiva" e da exploração colonial na formação do capital,
insistiam em que a especificidade do sistema capitalista
industrial estava exatamente no desenvolvimento tecnoló-
gico e na extração da mais-valia relativa. Assim, a função
histórica da periferia não deve confundir-se com as carac-
terísticas de funcionamento do capitalismo industrial nem
com sua forma típica de acumulação.

110
Além do mais, há um problema novo que surge depois
da industrialização de parte da periferia: como se dá a
acumulação nos setores industriais da periferia e qu~ fun-
ções cumprem na acumulação em escala mundial? E pos-
sível que a função indicada por Marini como existente no
período exportador de matérias-primas e produtos alimen-
tícios continue a ser cumprida. Assim, o traslado para as
economias periféricas de parte do parque manufatureiro
dos conglomerados permitirá - graças à exportação de
produtos industriais fabricados na Coréia, em Formosa,
Singapura, Hong-Kong, Brasil, México ou Argentina -
que, no futuro, o custo de reposição da força de trabalho
mundial diminua em função dos baixos salários dos operá-
rios da periferia. Estamos, é certo, longe deste ponto.
De qualquer forma, a meu ver convém focalizar a
industrialização da periferia pela ótica do capital e do
investimento, muito mais do que pela idéia de que o "capi-
talismo avançado" requer mão-de-obra superexplorada da
periferia.
A forma pela qual se expandem os capitais na economia
monopólica contemporânea é, portanto, outro campo aber-
to à investigação e à teoria.
Em face do indicado acima, caberia perguntar: como é
possível sustentar a idéia de dependência no contexto de
uma situação na qual existe a criação de vários focos
periféricos de industrialização?
Apenas a título indicativo, gostaria de mencionar que
neste passo seria conveniente reafirmar a necessidade de
fazerem-se estudos sobre os mecanismos de acumulação tal
como operam na atualidade. Vários autores já demons-
traram que os conglomerados substituíram o papel dos
bancos e do setor financeiro na acumulação capitalista. Eles
funcionam quase autonomamente a este respeito. Entretan-
to, a divisão entre os dois setores clássicos da economia, o
setor de produção de bens de produção e o setor de produ-

111
ção de bens de consumo, continua sendo básica para a
compreensão dos mecanismos de acumulação. Entre estes
dois setores, é o setor I, ou seja, o setor de produção de bens
de produção, que joga o papel decisivo, tanto para explicar
o ciclo de expansão e contração do capital (a reprodução,
simples ou ampliada, e a retração), como para regular as
"queimas" de mais-valia pela obsolescência tecnológica.
Pois bem, na nova divisão internacional do trabalho,
dá-se a concentração crescente do setor I, ou, pelo menos,
dos ramos dele que têm a ver com a criação de novas
tecnologias, nas economias centrais e, especialmente, nos
EE.UU. Assim, o que aparece à consciência comum como
"dependência tecnológica" dos países periféricos é, na
verdade, ao mesmo tempo, dependência financeira. A in-
dustrialização da periferia, na medida em que consiste na
implantação de fábricas para a produção de bens de consu-
mo imediato ou de bens intermediários de "mediana tecno-
logia", reproduz, noutra escala e noutro contexto, a situação
de dependêncià.
Sobra dizer que este mecanismo de reprodução da
dependência é concomitante com o outro, já mencionado,
de endividamento externo crescente, e a ele se relaciona na
medida em que gera novas necessidades de empréstimos
para sustentar a importação da tecnologia produzida nas
economias centrais. Assim, desenvolvimento e dependên-
cia (tecnológica e financeira) são processos contraditórios
e correlatos, que se reproduzem, modificam-se e se am-
pliam incessantemente, sempre e quando inexistam proces-
sos políticos que lhes dêem fim.

3. Marginalidade e acumulação

Antes, entretanto, de indicar alguns problemas políticos


relacionados com a forma atual de dependência, é conve-
niente aludir, ainda que de passagem (pois o tema para ser

112
realmente enfrentado requer trabalho à parte), a um proble-
ma que se liga à discussão anterior. Refiro-me ao tema da
marginalidade.
A insistência com que se tem juntado a falta de "capa-
cidade de absorção" das economias capitalistas periféricas
com a utilização de tecnologia altamente desenvolvida e
com a superexploração da mão-de-obra é de todos conhe-
cida.
Neste caso novamente, como no que diz respeito a
qualquer análise indefinida, tanto há de verdadeiro como
de falacioso nas interpretações correntes. Não faltará quem
pense que a marginalidade é "funcional" ao desenvolvi-
mento capitalista da periferia.
Pode até ter sido. É inegável que, em determinadas
condições, a abundância de mão-de-obra (e seu baratea- .
mento como conseqüência da concorrência) podem in-
fluenciarna acumulação. Entretanto, a expansão capitalista
não depende da concorrência entre trabalhadores apenas
(ou seja, do exército de reserva) mas do custo da reposição
da força de trabalho, nos termos anteriormente indicados,
da taxa de lucro, da competição entre os capitalistas, da
renovação tecnológica etc. Além disso, para que a "margi-
nalidade" faça baixar o custo de reposição é preciso não só
que sua magnitude force o trabalhador a aceitar trabalho
pago ao redor dos custos mínimos de reposição (função
normal dos exércitos de reserva), como que aqueles custos
dependam da existência de uma produção de meios de vida
feita à margem do sistema capitalista-industrial. Nestes
casos a existência de bolsões de miséria nos quais se
organize uma produção para o consumo "à margem do
sistema" pode contribuir para baixar d custo da reposição
~da força de trabalho.
l7

Eu não penso, entretanto, que esta seja a característica


distintiva do processo de expansão capitalista na fase de
internacionalização do mercado interno. Basta repetir os

113
argwnentos dos tópicos anteriores para que se entenda a
razão das reservas que faço às interpretações que colocam
o peso da especificidade do capitalismo dependente na
exploração extensiva e ilimitada da mão-de-obra dita mar-
ginal.
Não quero negar a existência de bolsões de miséria (às
vezes, em alguns países a verdade é o inverso: ilhas de
prosperidade em mares de miséria), nem da existência de
"populações marginais". Mas estas se explicam antes pela
formação histórica do capitalismo na América Latina, pela
qual superpuseram-se distintos modos de produção (subor-
dinados, por certo, ao capitalista) - como os descreveu
Ambal Quijano - do que por qualquer "lei" do capitalismo
periférico ou dependente.
Não creio ser necessário repisar o que penso sobre a
diferença entre uma "teoria da população" e a teoria da
acwnulação. O essencial reside em que cada modo de
produção instaura sua lei de população, e o modo capitalista
"fabrica" tanto os trabalhadores de que necessita como sua
reserva. Se isso cria um problema de emprego (e de fato,
em certas circunstâncias, isso é inegável), de miserabilida-
de e de marginalização, trata-se de um problema histórico
importante por seus aspectos humanos e políticos, mas não
deve confundir-se, no plano teórico, com um problema que
torne irrealizável a expansão capitalista. 18
Por outro lado, estudos recentes mostram que nos paí-
ses mais industrializados da América Latina se é verdade
que existe o fenômeno da "terciarização", também é certo
que os empregos industriais, depois de liquidado o setor
artesanal de produção, voltam a crescer em números abso-
19
lutos e relativos. Além disso, uma parte da expansão do
setor terciário está diretamente relacionada com a expansão
capitalista-industrial. O "inchaço" urbano e a terciarização
não podem ser considerados como características gerais,
"abstratas", da industrialização da periferia. Devem ser

114
concretamente situados considerando-se, simultaneamen-
te, a magnitude do setor primário das economias, o élan da
industrialização e seu grau de avanço. Por certo, como
problema social e como problema político, a capacidade
relativamente reduzida de absorção de mão-de-obra nas
economias dependentes, principalmente devido a seu baixo
dinamismo industrial, provavelmente continuarão guar-
dando enorme importância nas próximas décadas.
Neste sentido, creio que existe enorme campo para a
pesquisa dar continuidade aos estudos sobre a dependência,
entendida esta na acepção anteriormente assinalada que
sublinha a importância dos modos de articulação entre as
estruturas ,sociais e produtivas. Com efeito, a análise da
passagem do período da economia agro-exportadora para
o período em que o setor industrial passa a ter importância
nas economias dependentes requer a caracterização positi-
va dos modos transicionais de produção. Enquanto não se
fizer isto com rigor, existe o risco de que a crítica à teoria
da modernização seja apenas verbal. De pouco vale subs-
tituir as idéias de sociedade tradicional e sociedade moder-
na com o interregno da "etapa de transição", pelas idéias
de dependência agro-exportadora e dependência tecnoló-
gica financeira, permeadas por uma indefinida etapa de
transição. Por certo, como indiquei antes, já existem estu-
dos que começam a explicar no que consistem as duas
formas polares de dependência acima mencionadas, ou
seja, quais os mecanismos de reprodução e transformação
das relações de exploração que as sustentam. Falta entre-
tanto esmiuçar mais e explicar as "leis de movimento" do
que se poderia designar como um "modo de produção
intersticial" que poderia explicar teoricamente no que con-
siste o chamado fenômeno da marginalidade. A vagueza da
expressão «intersticial" denota a necessidade de produzi-
rem-se pesquisas e análises mais aprofundadas para respon-

115
der as questões teóricas e práticas que essa problemática
apresenta. 20
Sobra repetir que, enquanto não forem produzidos os
conceitos correspondentes a esta realidade, a relação entre
industrialização e transformação social e política na perife-
ria permanecerá indeterminada. Conseqüência disso será a
proliferação de teses políticas sobre o "conservantismo
operário", a "revolução dos marginais" ou a cultura da
pobreza que, por mais que contenham grãos de verdade,
são pouco convincentes teoricamente e pouco eficazes
praticamente.

4. Algumas considerações sobre temas políticos


Feitos estes breves comentários, passo a indicar, para
concluir, os temas políticos que me parecem fundamentais
para caracterizar a situação de dependência na atualidade.
Antes de mais nada convém repisar que o fenômeno de
industrialização abrange setores muito limitados da perife-
ria. Nem todos os países encontram nesta forma de produ-
ção o modo básico de inserção na economia mundial e,
mesmo no caso daqueles que o encontram, a industrializa-
ção coexiste com as formas anteriores de relação de depen-
dência. Isso não deve obscurecer que, teoricamente, a
"internacionalização do mercado interno" é a forma funda-
mental da situação contemporânea de dependência. Mas
não pode, por outro lado, deixar de incidir sobre o alcance
preciso de algumas das indicações temáticas feitas neste
trabalho.
Em termos gerais, portanto, a heterogeneidade continua
marcando as estruturas dependentes, com todas as conse-
qüências políticas e sociais deste processo.
Não posso alongar-me no tema neste trabalho, nem
desejo discutir como se recoloca a problemática da vida
política das classes trabalhadoras no contexto atual, que é

116
um dos temas de eleição dos que se preocupam com os
estudos sobre a dependência.
Por razões de brevidade, desejo concentrar os comen-
tários finais na questão do Estado e da Nação nas socieda-
des dependentes. Também neste caso, entretanto, não quero
agregar novos comentários à falsa colocação teórica da
oposição ou dissociabilidade entre, por um lado, classe e,
por outro, nação. Ninguém medianamente informado pensa
em tennos tão estreitos e equivocados. -
Isto posto, continua de pé o problema dos modos pelos
quais, nas sociedades dependentes, as classes relacionam-
se, estruturam-se e agem politicamente, e qual o papel do
Estado neste contexto.
A consideração a sério do tema levaria ao mesmo
procedimento indicado anterionnente de relação entre his-
tória e estrutura e de periodização. Para encurtar razões: é
impossível pensar a ação política das classes, frações de
classe, pessoas e grupos sociais sem relacioná-los com o
Estado Colonial Metropolitano do período da expansão
capitalista européia (sob a égide do mercantilismo ibérico
no caso da América e sob a égide direta do imperialismo
colonialista, no caso africano), e com o estilo de sociedade
patrimonialista por ele gerado nas colônias. De igual modo,
a constituição dos Estados Nacionais tem que ser históri-
co-estruturalmente referida tanto ao liberalismo da primei-
ra fase da expansão capitalista industrial como à simbiose
entre interesses privatistas e interesses burocrático-estatais
que a expansão anterior constituíra desde o período colo-
nial.
Assim, o paradigma anglo-saxão de relacionamento
entre a "sociedade civil" (os produtores, as classes, as
instituições privadas em geral) e o Poder nunca teve vigên-
cia nos países dependentes. Por outro lado a ··nação" foi-se
constituindo pela imposição de algum setor dominante de
classe que, utilizando o aparelho do Estado, incorporou

117
mercados e impôs lealdades. Por certo, este fenômeno não
esteve ausente na Europa Continental. Mas, de qualquer
modo, na situação européia o pacto entre o Príncipe e a
burguesia, fortalecido muitas vezes pela adesão de setores
de massa que se motivavam por valores culturais (uma
língua comum, uma religião comum), soldou interesses
distintos através de um processo relativamente consensual
de "pacto e outorga". Mesmo nos casos mais típicos em que
o processo de unificação se fez pela utilização dos instru-
mentos e das vantagens de constituição de um Estado -
como no caso da Suíça - a racionalidade de interesses
mútuos cimentou as bases da cidadania.
No caso dos países dependentes a tendência histórica
foi outra. De dentro do aparelho de Estado ou dos fragmen-
tos deste deixados pelo colonialismo politicamente venci-
do, algum grupo economicamente dominante e politica-
mente dirigente tratou de impor às massas politicamente
marginalizadas, culturalmente desprovidas e miseráveis,
uma "dominação nacional". Daí que o Estado tenha sido o
verdadeiro berço da Nação.
Por certo, variando de país para país, as lealdades,
símbolos e aspirações nacionais acabaram por penetrar
outras camadas sociais, especialmente as classes médias
urbanas. Mas a origem histórica do Estado-Nação deixou
marcas profundas tanto na relativa apatia política das maio-
rias como na formação das camadas burocráticas que,
vinculadas às vezes com interesses econômicos, e às vezes
independentemente deles, passaram a definir-se como a
guarda pretoriana da Nação. É óbvio que este papel coube
principalmente - embora não exclusivamente - à burocra-
cia militar.
Este pano de fundo toma complexa a análise do jogo
político das classes, especialmente nos casos em que existe
um processo de crescimento econômico que se caracteriza

118
pela expansão simultânea do setor público e do setor eco-
nômico controlado por consórcios externos.
Não é possível ponnenorizar a análise para os fIns deste
trabalho. Entretanto, salta à vista que a "unidade do diver-
so" só se logrará quando o simplismo das análises políticas
correntes for substituído por estudos que ponham a nu pelo
menos três ordens inter-relacionadas de problemas:
12) as relações entre classe, Estado e partidos;
2 2) as condições, efeitos e bases do processo de "mobi-
lização nacional";
32) as contradições e tensões, dentro e fora do Estado,
entre o interesse imperialista e o "interesse nacional".
A título de mera ilustração: amiúde o "partido" nas
sociedades dependentes é um "Setor do Estado" ocupado
por um "grupo social". Entretanto, este "grupo social",
embora implemente interesse econômico de classe (em
última instância...), pode muito bem estar constituído sob
a liderança de "funcionários", ou seja, de membros dos
aparelhos do Estado. As relações entre as classes e os
grupos encastelados no Estado são variáveis e complexas:
eu sugeri, por exemplo, noutro trabalh0 21 , que para carac-
terizar a atual situação de autoritarismo técnico-burocrático
vigente no Brasil e as relações de classe que jazem por trás
dela, seria necessário pensar na função dos "anéis burocrá-
ticos··. Por esta expressão entendo o círculo de interesses
que se fonna compatibilizando os anseios políticos e as
necessidades econômicas de grupos e facções de classes
distintas (a própria burocracia, especialmente a militar, o
empresariado nacional ou estrangeiro, as empresas do es-
tado etc.) para, num dado momento, sustentar um conjunto
de políticas. Existem distintos "anéis" deste tipo funcio-
nando no mesmo momento, ora chocando-se, ora compon-
do-se. São portanto uma fonna menos durável e mais
flexível de organização política do que um partido, além de

119
serem menos definidos quanto à ideologia que sustentam.
Têm em comum o solo que os une: a máquina do Estado.
Assim, dados os cortes histórico-estruturais antes refe-
ridos, da fonnação do Estado e de seu relacionamento com
a Sociedade, existe, mesmo hoje, uma simbiose entre o
Estado e a "sociedade civil". Isto não significa que a
sociedade seja a pura expressão do Estado, como pensam
os românticos de direita, nem tampouco que o estado seja
o puro reflexo dos interesses econômicos da classe domi-
nante, como crêem os esquerdistas mais simplórios. Às
vezes - como nos períodos populistas - os círculos de
interesse ancorados no Estado amalgamam inclusive inte-
resses populares no jogo dos "anéis burocráticos", incluin-
do neles os sindicatos, quando não até alguns movimentos
sociais, como as greves dirigidas.
Por certo, a estrutura de classes baliza e conforma os
limites possíveis de acordos entre grupos. A necessidade
de expandir a acumulação é um norte certo para marcar até
que ponto podem ampliar-se e manter-se as conjunturas de
poder organizadas sob bases tão móveis como as acima
caracterizadas.
Mas este parâmetro estrutural não deve obscurecer a
análise das contradições internas que este tipo de amálgama
político gera. Especialmente no caso das formas contem-
porâneas de dependência com industrialização é preciso
pesquisar, em cada situação, as oposições e conciliações
entre interesses e as diferenças de visão do mundo que o
desenvolvimento dependente-associado gera quando tem
no Estado um princípio básico de regulamentação da vida
22
econômica e política.
O mesmo afã de busca do concreto, ou seja, de deter-
minação da multiplicidade de contradições que compõem
e dão fonna às situações de dominação econômica e polí-
tica, deve orientar a análise do processo de "mobilização
nacional". Neste caso, o papel do "nacionalismo popular"

120
e sua diferenciação diante do "nacionalismo estatal" impul-
sionado pelos guardiães da Nação a que me referi acima é
de fundamental importância. A.s probabilidades de que um
grupo dominante, encastelado no Estado, empolgue politi-
camente a idéia de Nação são grandes. Mas isto não elimina
a necessidade de peneirar mais fundo a questão e de veri-
ficar, da mesma forma que no exemplo anterior, se não
existe uma contradição que denote na ideologia nacional-
popular sentimentos que, sendo antiimperialistas, são, ao
mesmo tempo, anti-establishment local. No caso latino-a-
mericano este componente é tão forte em alguns países
(Peru e Argentina por exemplo), que a análise "de classe",
que se recusa a ver a realidade política da nação como uma
forma de identificação e de solidariedade entre as classes
populares, só serve para facilitar a tarefa da manipulação
destes sentimentos por parte dos que controlam o Estado e
desejam fundir nele a Nação, mantendo a massa e a socie-
dade civil presas a uma participação simbólica e, quando
muito, ritual no processo de transfonnação nacional.

NOTAS
1. Uma caracterização é dita abstrata quando se baseia em relações parciais e
indeterminadas. A passagem do abstrato ao concreto se faz pelo processo de detenru-
nação, ou seja, de elaboração da ordem pela qual se hierarquiza e se articula um conjunto
de relações e se distingue este conjunto (totalidade) de outros conjuntos. Para isto é
necessário produzir os conceitos que penrutem articular e delinútar os conjuntos de
relações.
2. Ver a este respeito TheotOlúo dos Santos, "La crisis de la teoria del desarrollo y
las relaciones de dependencia en América Latina", in La dependencia polúica-ecollómica
de América Latina, Siglo XXI, México 1970. Para WIlll critica das teorias sociológicas
do desenvolvimento ver F.H. Cardoso, Empresário bulustrial e Desenvolvimento Eco-
nômico no Brasil, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1964, capo 11 (reproduzido, sob
o título"Análises sociológicas dei desarrollo econónúco" pela Revista Latinoamericana
de Sociologia, voI. I, n. 2, Buenos Aires,julho de 1965). Ver ainda Andrew GWlder Frank,
"Sociology ofDevelopment and wlderdevelopmenl of Sociology", Cacalysl, Ulúvcrsity
ofBuffalo, n. 3,1967.
3. Mesmo entre os que grosso modo encontravam-se dentro da mesma corrente
houve críticas consistentes. Basta consultar a coleção Revista BrasiliellSe para ver que a
denúncia das "inconsistências de classe" e dos riscos de unI desenvolvimentismo-asso-
ciado aos truses eram percebidos por muita gente, pelo menos desde o governo Kubits-
chek.

121
4. Cf. F.H. Cardoso, Empresário Industrinl e Desenvolvimemo Econômico no
Brasil, DIFEL, São Paulo 1964,2' ed., 1972.
5. No caso específico deste novo tipo de dependência, eu próprio escrevi wn
trabalho, em 1965 ("EI proceso de desarrollo en América Latina", ILPES, Santiago,
mimeo.) no qual distinguia três tipos de desenvolvimento (nacional-exportador, enclave,
industrial-associado). Entretanto, o conceito dessa tipologia só foi produzido mais tarde
no trabalho em colaboração com Enzo Faletto. Dependencia y Desarrollo en América
Latina, editado no ILPES em 1967. Aorestan Fernandes desenvolveu simultaneamente
suas reflexões sobre "0 estudo sociológico do subdesenvolvimento econômico", apre-
sentadas em 1967, sem ter conhecimento do segundo trabalho meu e de Faletto. Em 1968
Theotonio dos Santos publica no CESO "El nuevo carater de la dependencia" no qual
expõe claramente as conseqüências das transformações do capitalismo internacional
sobre as economias dependentes. No afã de alcançar níveis mais concretos de análise,
escrevi em 1968 o livro Política e Desenvolvimento em Sociedlldes Dependemes. Ao
mesmo tempo, no ILPES e no CESO, Aníbal Quijano, Edelberto Torres Rivas, Orlando
Caputo e Roberto Pizarro, e outros escreveram trabalhos que precisavam, retificavam e
ampliavam as análises sobre a forma atual de dependência. Mais tarde FenJaIldo
Fajnzylber escreveu dois estudos, publicados pela CEPAL (Estrategia Industrial y
Empresa Internacionales e Sistemas Industriales y Exportación de Manufacturas) que,
sem discutir conceitos, constituem a meu ver as contribuições fundamentais para carac-
terizar a nova situação de dependência.
Provavelmente uma série de outros autores, ao mesmo tempo e independentemente dos
aqui mencionados, contribuiram para a análise das formas atuais da dependência. Se se
buscar com atenção provavelmente se encontrará quem antes independentemente de
todos estes tenha escrito sobre o mesmo tema. Vê-se, pois, que mesmo do ãngulo mais
limitado da história intelectual vista pelas "obras e autores", o pensamento é wn produto
social. Quando uma idéia expressa, de fato (teórica ou ideologicamente) um asPecto do
real, ela surge ou ressurge por toda parte.
6. Neste sentido, parece-me equivocada a avaliação feita por Suzane Brodenheim
sobre a influência do paradigma de A.O. Frank nos estudos sobre a dependência. Frank
contribuiu, em alguns temas bastante, para a critica do fWlcionalismo e da sociologia do
desenvolvimento. Mas a caracterização do processo histórico-estrutural da evolução do
capitalismo que faz em suas primeiras obras é antes "ortodoxa" no sentido de partir de
"verdades gerais" que, amiúde, são historicamente insuficientes. Não é deste estilo da
análise que deriva a vitalidade porventura existente no pensamento sociallatino-ameri-
cano. Essa apreciação não invalida, obviamente, o papel de catalizador critico da obra
de A.O. Frank, especialmente quanto aos temas do dualismo, do colonialismo interno e
da necessária integração da análise do processo da formação do capitalismo na periferia
no conjunto do desenvolvimento capitalista internacional. Claro está que alguns destes
temas já haviam sido propostos criticamente por autores como Pablo Casanova, Arubal
Pinto, Rodolfo Stavenhagen, Aorestan Fernandes etc. Mas o tom polêmico de Frank, em
que pese os exageros e injustiça com respeito a alguns autores latino-americanos, ajudou
a generalizar a critica.
7. Ver F.H. Cardoso, "Teoria da Dependência" ou análises concretas de situações
de dependência?, Estudos CEBRAP, São Paulo (l), 1970.
8. F.H. Cardoso e Enzo Faletto, op. cit.
9. Para mim a distinção entre situação colonial e dependência nacional sempre foi
clara e básica. Boa parte do ensaio sobre Dependência e Desenvolvilllemo se estmturou
a partir desta diferenciação. Portanto, embora possa aparecer no texto algmna referência
à "dependência colonial", a confusão é meramente nominal, pois a caracterização de
ambas as situações é feita inequivoca e distintanlente.
10. João Quartim de Moraes, "Le stat théorique de la relation de dépendallce", IV
Seminaire Latino-Americain, CETIM, Oenéve, abril de 1972.

122
11. Cf. MTeoria da Dependência Mou análises concretas de situações de dependência,
op. cil.
12. Note-se que estou deixando de lado (mas não recusando o cabimento teórico)
a possibilidade de pensar outras fonnas, não capitalistas, de subordinação de uma nação
a outra, como por exemplo a Tchecoslováquia à Ulúão Soviética. Deixo de lado porque
os mecarúsmos de articulação e de dOllÚnação entre as estruturas econôllÚcas e políticas
destes países dependem de mecaJúsmos que não estudei e que se explicam por Mieis de
M
movimento distintas das que prevalecem entre econonúas capitalistas, embora nem por
isso automaticamente menos espoliati vaso
13. Quartim de Moraes, op. cit., p. lI.
14. Ver F.H. Cardoso, "lmperialism and dependency", apresentado no Senúnário
sobre o Imperialismo realizado na UlÚversidade de Stanford em fevereiro de 1972,
publicado em New Left Review (74) jul./ago. 1972.
15. F.H. Cardoso, "lmperialism aJld dependency", 1972, op. cito
16. Rui Mauro MarilÚ, "Dialectica de la Dependencia: la econollÚa, exportadora",
Sociedady Desarrollo, vol.1, n. I, Santiago, março 1972. Convém dizer, entretaJlto, que
os estudos de Hans Singer e Raul Prebisch, do final da década de 1940, que serviram de
base às interpretações da CEPAL, já haviam chamado a atenção para o que hoje se batiza
de Mtroca desigual M,e propuseram esquemas explicativos mais rigorosos.
17. Ver Francisco de Oliveira, "A econollÚa brasileira: critica à razão dualista", in
Estudos CEBRAP, São Paulo (2), 1972.
18. Remeto o leitor a outro trabalho no qual elaboro mais este ponto de vista:
"Comentário sobre os conceitos de superpopulação relativa e marginalidade", ESTUDOS
CEBRAP, São Paulo (1),1971.
19. Ver Singer, Paul Israel, Força de trabalho e emprego no Brasil: 1920-1969,
São Paulo, Brasiliense, 1971 (Cademos CEBRAP, 3); Força de trabalho lia América
Latina. Cebrap, São Paulo, 1971.
20. O estudo de F. Oliveira, já citado, é wn passo nesta direção. O CEBRAP está
realizando uma pesquisa sobre relações de trabalho na Balúa que poderá ajudar a
esclarecer alguns destes problemas. Em particular Juarez Rubens Brandão Lopes e
Vilmar Faria estão interessados nesta temática.
21. "Estado e Sociedade", in Cardoso, F.H., Autoritarismo e Democratização, Paz
e Tellll, Rio, 1976.
22. Ver a este respeito F.H. Cardoso, MEl Modelo Político Brasileilo", Desarrollo
Económico, n. 42-44, vol. li, Buenos Aires, março de 1972.

123
Capítulo lU

o CONSUMO DA TEORIA
DA DEPENDÊNCIA
NOS ESTADOS UNIDOS'

"'-(

!i
..;"-""
i!
~~
Um observador que desembarcasse de um "objeto não ~"""~

...
identificado" de órbita lunar e chegasse às reuniões dos !~
......
latino-americanistas nos últimos anos daria razão aos an- .....'
tropólogos estruturalistas. Diria que se repetem versões de ":.:
um mesmo mito: dependência e desenvolvimento, explo-
ração e riqueza, atraso e alta tecnologia, desemprego e alta "~-
.. i.

concentração de renda. Levemente entediado, nosso ser do .~

"~,

outro mundo diria: "o cérebro desta gente deve limitar as "'
imagens e o pensamento deles a oposições binárias". É com ""

a sensação de entrar numa discussão em que a imaginação


está acorrentada a modelos preestabelecidos que volto a
debater o significado das análises sobre dependência. Não
obstante, pelo simples fato de estar aqui, como se fosse um
dosfoundingfathers da dependência, endosso o consumo
cerimonial do tema. Como escapar da incômoda posição?
Há pouco, assisti em Princeton a uma palestra de um
antropólogo inglês, recentemente tomado knight pela rai-
nha. Sir Edmond Leach, com a ironia que o caracteriza,

* Publicado originalmente como "Lcs États-Unis clla théoric dc la Dépendancc",


Revue Tiers Monde, 17(68): 805-825, out-dez/1976.

125
procurou escapar do riso que em si mesmo provoca a
celebração ritual a que se submeteu fazendo comparações
entre sua sagração na corte de Saint James e as cerimônias
sacrificiais das altas planícies de Burma. "Once a knight, is
enought", foi o título da conferência. Entretanto, a ironia
entrecortada de erudição e de piedoso sentimento pela
revivescência ritualizada de um momento de passagem da
condição de "homem comum" para a de membro de uma
ordem nobilitada, que se não é sagrada tem algo de distin-
ção que se reserva às altas hierarquias, não conseguiu
esconder que, apesar de tudo, para o conferencista, o rito e
a redenominação simbólica a que se submeteu ainda tem
sentido. O consumo científico do ritual de passagem não
eliminou sua força valorativa; o jogo da análise compara-
tivo-formal que o contrastou com ritos de diferentes socie-
dades antes reafirmou o valor universal destas cerimônias
rituais do que pôs a nu os interesses sociais e as políticas
subjacentes a elas.
Ao dar a esta apresentação o título de "consumo da
dependência" e, ao mesmo tempo, participar deste festival
crítico-comemorativo (que é, naturalmente, uma cerimônia
mais plebéia do que a sagração inglesa...) não corro o
mesmo risco? Não há como negá-lo embora estejam aqui
a meu lado mais contendores do que fiéis seguidores...
Espero, entretanto, manter uma posição suficientemente
crítica (e autocrítica) para evitar a simples adesão ao con-
sumo ritual do tema.
O risco da celebração cerimonial é tanto maior quanto
os estudos sobre dependência provocaram um certo movi-
mento de conversão nas ciências sociais. Suzanne Bode-
nheimer percebeu a força crítica que estes estudos conti-
nham e dando mais curso universal a algumas de suas
formulações - pois escreveu em inglês que é o latim de
nossos dias - apresentou-os como um novo paradigma. I A
partir daí, embora não por sua culpa, o que fora um esforço

126
crítico e de continuidade com um passado de estudos
históricos, econômicos, sociológicos e políticos na Améri-
.-."
ca Latina, passou a ser consumido através de várias versões .
.~,

que incluem referências ao mito original, mas que em larga ~·1~


medida constituem a expressão de um universo intelectual
bem distinto daquele que lhe deu origem.
A primeira e drástica simplificação que alguns divulga-
dores fizeram com estes estudos (pois todo mito requer uma
estrutura simples e um momento de revelação) foi a de
considerá-los como uma espécie de estalo da mente que
ocorreu num dado momento e lugar. Discute-se sobre em
que cabeça se produziu o estalo e a começar por aí o aspecto
celebratório é inevitável. Cada intérprete busca localizar
seu profeta. Os mais conscientes da natureza social do
pensamento sabem, entretanto, que qualquer novo paradig-
ma decorre de uma complexa discussão entre pessoas,
instituições e grupos, que, no mundo moderno, localizam-
se em países distintos. Com o tempo a discussão se toma
mais complexa, se enriquece e provoca controvérsias inter-
nas. 2
Os divulgadores menos conscientes do processo de
produção intelectual, entretanto, depois de estabelecer as
origens imediatas do "paradigma da dependência" caracte-
rizam sua pré-história. Nesta, em geral, são citadas duas
correntes principais: a CEPAL e a corrente marxista e
neomarxista norte-americana (Baran, Sweezy e Frank).
Adiciona-se, às vezes, que os "dependentistas" (adjetivo
que me causa horror) apresentam matizes ideológicos dis-
tintos, conforme se situem mais próximos à CEPAL (e ao
"nacionalismo pequeno-burguês" que teria derivado dos
estudos cepalinos) ou sejam mais autenticamente contrá-
rios ao capitalismo e mais influenciados pelo pensamento
dos economistas marxistas pré-dependentistas referidos
acima.

127
As afinnações são plausíveis, talvez sejam tipologica-
mente corretas, mas não correspondem à história intelec-
tual efetiva.
Com as análises sobre situações de dependência feitas
na segunda metade de 1960, na América Latina não houve
propriamente uma proposta metodológica nova. Ocorreu
que uma corrente do pensamento latino-americano, já an-
tiga, conseguiu fazer-se presente nos debates em institui-
ções que nonnalmente estavam cerradas a ela: a CEPAL,
as Universidades, algumas agências fonnadoras de políti-
cas governamentais e, last but not least, a comunidade
acadêmica norte-americana.
Por outro lado, quanto à influência renovadora da cor-
rente neomarxista norte-americana, é preciso considerar
que se ela pode ter sido real, principalmente a de Baran,
não foi certamente maior do que a do próprio Marx e não
"revelou" algo que não estivesse contido na perspectiva do
pensamento crítico latino-americano anterior a 1960. É
preciso ter presente que praticamente em todos os princi-
pais centros intelectuais latino-americanos, à medida em
que se foi gestando uma corrente de análise e interpretação
baseada em Prebisch, Furtado - e junto, ou anterionnente
a eles, Nurkse, Hans Singer, Myrdal, Hirschman - para
referir-me apenas a alguns autores que se opunham às
teorias "ortodoxas" que justificavam a não-industrialização
da região pelas vantagens comparativas que se podiam
obter com a produção agro-exportadora - também existiu
a crítica aos críticos. Ela surgiu, às vezes implicitamente,
na própria CEPAL, como nos estudos de Ahumada e
Arnbal Pinto sobre o Chile e sobre a concentração dos
benefícios do progresso técnico ou nos ensaios de Medina
Echavarría sobre as condições sociais do desenvolvimento
e sobre a "racionalidade instrumental" da abordagem de-
senvolvimentista. Outras vezes a crítica aos críticos está
implícita em trabalhos de intelectuais que nas universida-

128
des ou nos movimentos políticos salientavam não só os
"obstáculos" e as "distorções" do desenvolvimento capita-
lista (às vezes a partir de análises de inspiração estrutural-
funcionalista) mas também as desigualdades de oportu-
nidades e de riqueza que eram inerentes a formas de desen-
volvimento derivadas da expansão do capitalismo e do
fortalecimento do imperialismo.
Não quero apontar todos os que refletiram sobre este
processo, mas historiadores corno Sérgio Bagu e Caio
Prado Júnior, sociólogos corno Florestan Fernandes, Pablo
González Casanova e Jorge Graciarena, e economistas
corno Armando Cordoba, Antonio Garcia e Alonso Aguilar
são exemplos de esforços para apresentar análises alterna-
tivas tanto às ortodoxas corno às que, grosso modo, pode-
ríamos qualificar de cepalinas-keynesianas. Urna releitura
da coleção da Revista Brasiliense que se publicou no Brasil
desde os anos cinqüenta - e houve alguma revista do
mesmo tipo em quase todos os centros culturais da área -
mostra que a crítica ao estrutural-funcionalismo e ao key-
nesianismo fez-se na América Latina ao mesmo tempo em
que se fazia.a crítica aos "ortodoxos", No esforço da dupla
crítica, tentando evitar o "marxismo vulgar", alguns grupos
intelectuais de Santiago, em meados da década de 1960,
retornaram a problemática cepalina e tentaram redefini-Ia
radicalmente. Comparar o que a CEPAL previa corno
resultado da industrialização com o que estava ocorrendo
era fácil. Mais difícil era propor urna alternativa que não se
limitasse à crítica metodológico-formal e que, partindo da
análise de processos histórico-sociais, fosse capaz de defi-
nir urna problemática alternativa e quebrasse tanto o "eco-
nornicismo" prevalecente nas análises sobre o desenvol-
vimento corno o "apoliticismo" das análises sociológicas.
Corno fazê-lo?
Um estudo da história das idéias no século XX pode
mostrar que cada geração de intelectuais críticos procura

129
reviver o marxismo tentando infundir-lhe um sopro reno-
vador. A crosta do chamado "marxismo vulg;ar", o "deter-
minismo econômico", o "mecanismo" na análise, a dificul-
dade de captar o movimento social devido a concepções
que dão um peso determinístico às estruturas etc., são tão
recorrentes que algo devem ter que ver com o próprio
marxismo. De tempos em tempos eles são sacudidos pela
releitura dos clássicos, por alguma interpretação nova ou
pelo apoio que algum autor não originário da tradição de
análise dialética empresta à análise marxista. Na minha
geração, nos anos 50 e começos dos 60, esta ponte foi
lançada por Sartre e pela publicação em francês de Histoire
et Conscienee de Classe de Lukáes. Levamos anos para sair
do impasse entre a dialética e as noções de "projeto" e de
"consciência possível".J Principalmente para quem, como
eu, tinha tido treino anterior em Diltey, Weber e Mannheim,
a preocupação com a ideologia e sua incorporação à análise
passou a ser constante e foi freqüentemente equívoca. Na
geração seguinte Althusser releu marx de outra maneira e
o estruturalismo quase matou o movimento da dialética.
Mais tarde (em alguns países, como na Argentina, desde
antes) Gramsci apareceu como tábua de salvação para
quem quer entender os processos políticos, a ideologia, a
vontade na história, etc., sem afogá-los nos supra-referidos
"desvios" do marxismo mecanicista.
Pois bem, os estudos sobre a dependência constit~em
parte do esforço para restabelecer uma tradição de anàlise
das estruturas econômicas e de dominação que não sufqque
o processo histórico ao retirar dele o movimento decorrente
da luta permanente entre grupos e classes. Ao invé$ de
aceitar que existe um curso determinado na história, v9lta-
se a concebê-la como um processo em aberto, no qua~, se
as estruturas delimitam as margens de oscilação, tallito a
prática dos homens como sua imaginação as revivem e
transfiguram, quando não as substituem por outras Inão

130
pre-detenninadas. Mais ainda, os estudos sobre depen-
dência tiveram uma peculiaridade dentro da tradição de
crítica a que me referi: ao invés de limitarem-se ao plano
teórico-abstrato, procuraram utilizar o método histórico-es-
trutural "não vulgar" para analisar situações concretas. E
ao invés de limitar os estudos à análise de problemas
circunscritos, procurou-se, retomando o tema do desenvol-
vimento, definir questões que eram relevantes tanto para as
políticas nacionais como para analisar as relações entre as
economias capitalistas centrais e a periferia dependente e
não industrializada, seguindo, neste aspecto, a tradição dos
enfoques cepalinos. Não nos interessava apenas descrever
abstratamente as conseqüências da acumulação de capital
e de sua expansão à escala mundial, mas também colocar
questões a partir do ponto de vista historicamente dado às
sociedade dependentes: quais são as forças que se movem
nelas e com que objetivos? Como e em que termos é
possível superar uma situação dada de dependência?
Assim, como primeira reavaliação da maneira como se
processa o consumo das teorias da dependência nos USA,
é preciso rever o ponto de vista de que um "novo paradig-
ma" foi estabelecido graças aos trabalhos de um grupo de
intelectuais do ILPES e do CESO de Santiago. Estes tive-
ram certo papel na proposição de uma temática e na crítica
ao keynesianismo e ao modelo estrutural-funcionalista -
papel que mais adiante se assinalará e delimitará - mas não
4
propuseram nenhuma nova metodologia.
Delimitada a contribuição metodológica dos "depen-
dentistas" e redefinida a eventual influência do marxismo
norte-americano na proposição dos estudos sobre depen-
dência, convém dedicar alguma atenção à contribuição de
Andrew G. Frank aos temas da dependência. Alguns de
seus estudos contidos em Capitalism and Devolopment in
Latin America tiveram grande repercussão crítica e foram
contemporâneos à elaboração do que se chama aqui de

131
"teoria da dependência". Quando foram anteriores, embora
sejam estimulantes, como a tese contra o dualismo agrário
brasileiro, freqüentemente falharam no que diz respeito a
propor temas novos.
De fato, a grande questão que se debatia no Brasil sobre
a natureza das relações sociais no campo e seu impacto para
caraterizar um tipo de formação histórico-social não era o
debate entre os partidários de que teria existido uma estru-
tura feudal versus os que defendiam o ponto de vista de que
"desde a colônia" o conceito de capitalismo aplicava-se às
relações e formas de produção vigentes. Nem era o debate
entre pré-capitalismo e capitalismo tout court (embora esta
discussão fosse comum). Estas proposições perdiam força
frente às preocupações daqueles que tentavam caracterizar
o modo de produção prevalecente no passado tomando em
consideração que houve um colonialismo escravista. Salvo
os marxistas evolucionistas mais embrutecidos que de fato
viam no "feudalismo" uma característica importante da
sociedade brasileira, desde há muito (basta referir aos tra-
balhos de Gilberto Freyre dos anos 30, apesar de seu caráter
celebratório) a discussão centrava-se em tomo da produção
escravista-colonial e da natureza específica de uma forma-
ção social que, embora criada pela expansão do capitalismo
mercantil, assentava em relações de produção escravistas e
destinava a parte mais dinâmica de sua produção ao mer-
cado intemacional. s Frank simplificou o debate, desdenhou
a especificidade da situação (procedimento que é contrário
ao dos 44dependentistas") e não tentou estabelecer qualquer
representação teórica de tipo dialético que unisse num todo
específico o geral e o particular. Com a maestria polêmica
que lhe é peculiar deu golpe de morte nos dualistas, levando
de cambulhada, às vezes sem razão, marxistas e cepalinos.
Não obstante o paradigma da dependência é consumido
nos USA como se ele tivesse centradb sua contribuição ao
debate histórico através da crítica ao feudalismo latino-a-

132

L.. -----------------.
mericano. Ou seja, tomam-se alguns trabalhos de Frank
para marcar o ÍIúcio da "nova" perspectiva latino-america-
na. Bagu, Caio Prado, Simonsen, Celso Furtado, Florestan
Fernandes, Alonso Aguilar e muitos outros mais já haviam .:~

escrito trabalhos sobre o período colonial ou sobre a estru- ~ .


.":.".
" . .:.
tura agro-exportadora baseando suas análises em teses bem ~.­
mais complexas que a dualidade simples entre feudalismo !'-<
... : :~
e capitalismo. ,......
. i::
':~
A segunda distorção que se está produzindo no consu-
mo das teorias da dependência diz respeito à relação entre
as estruturas sociais, econômicas e políticas dos países ,/'
.. ",".
dependentes e o sistema capitalista internacional. ~::I
.:"..
Nas análises sobre a dependência dos anos 1965-1968, .- .
a preocupação era muito menos ressaltar o condiciona- .:"
.-.
mento externo das economias latino-americanas que se .•.
:~ .
dava por suposto, do que desenvolver um estilo de análise .'.
que captasse as alianças políticas, as ideologias e o movi- ":-.:

mento das estruturas dos países dependentes. Como fazê-


lo? A corrente "vulgar" imperava em análises que viam no
imperialismo e no condicionamento econômico externo a
explicação substantivada e onipresente de todo e qualquer
processo social ou ideológico que ocorresse. Havia forças
políticas endossando esta formulação por razões táticas: ela
coloca claramente o alvo da luta: o imperialismo america-
no; e define o campo dos aliados: todos, menos os latifun-
distas agro-exportadores aliados ao imperialismo.
Os "dependentistas" deram a volta à questão: a repre-
sentação teórica do movimento social não deve ser feita
através da oposição "mecânica" entre interno/externo na
qual o segundo termo anula a existência do primeiro. O
enfoque deve ser histórico e portanto deve partir da análise
da constituição das formações sociais (o subdesenvolvi-
mento passa a ser visto como um processo que não só é
concomitante à expansão capitalismo ~rcanti1, e reposto
pelo capitalismo industrial, mas é gerado por eles) e deve

133
sublinhar também a especificidade das situações de depen-
dência frente às sociedades dos países de economia central.
Assim a formação social subjacente às situações de depen-
dência, embora seja produto da expansão do capitalismo,
distingue-se do padrão geral na medida em que o "coloni-
alismo escravista", ou outra forma de exploração colonial
qualquer, está na base da articulação entre as sociedades
dependentes e as dominantes. Por outro lado, quando se dá
a passagem da situação colonial às situações de depen-
dência dos Estados nacionais, observa-se:
a) que esta passagem implica na criação.de um Estado que
responde aos interesses das classes proprietárias locais;
b) mas que estas têm sua situação estrutural definida no
quadro mais amplo do sistema capitalista internacional,
articulando-se e subordinando-se às burguesias conquis-
tadoras do mundo ocidental e às classes que a sucedem,
de tal modo que se estabelecem alianças que unificam,
dentro do país, embora de forma contraditória, os inte-
resses externos com os dos grupos dominantes locais;
c) como conseqüência, as classes dominadas locais sofrem
uma espécie de dupla exploração: devem produzir um
excedente que satisfaça ao empresariado local e ao inter-
nacional.
O "movimento" que interessava captar era portanto
aquele que derivava de contradições entre o externo e
interno vistos desta forma complexa, que se resume na
expressão "dependência estrutural". Se o imperialismo se
substantiva através da penetração do capital estrangeiro,
das invasões no Caribe pelos americanos, da América do
Sul pelos ingleses etc., ele implica também no estabeleci-
mento de um padrão estrutural de relações que "internaliza"
o externo e que cria um Estado formalmente soberano e
disposto a responder pelos interesses da "nação". Este
estado é ao mesmo tempo e contraditoriamente instrumento
da dominação econômica internacional. Por certo as fases

134

"---------------------------------1
e fonnas de expansão do capital (capitalismo colonial-mer-
cantil, capitalismo mercantil-financeiro, capitalismo indus-
trial-fmanceiro, fonnas oligopólicas de capitalismo "multi-
nacionalizado" etc.) fonnam parte constitutiva das situa-
ções de dependência, mas estas só se explicam quando
aquelas fonnas deixam de ser tomadas como enteléquias
ou como condicionamento geral e abstrato, para renasce-
rem concretamente através da análise de sua articulação ao
nível de cada economia local em seus diversos momentos.
Buscava-se explicar este processo não como um deSdobra-
mento "abstrato" de fonnas de acumulação, mas como um
processo histórico-social através do qual umas classes vão
impondo sua dominação sobre outras, umas facções de
classe vão se aliando ou opondo-se a outras na luta política.
Nesta, o que aparece inicialmente como se fosse inelutável
pela "lógica do capitalismo" revela sua verdadeira cara:
ganha-se ou perde-se, mantém-se uma fonna de depen-
dência ou vai-se para outra, sustentam-se os pressupostos
gerais do capitalismo ou toca-se em seus limites e se antevê
outras fonnas de organização social como uma possibi-
lidade histórica, conforme o desdobramento da luta de
classes.
Assim desde as proposições iniciais6 partia-se daanáli-
se dialética: o que interessa era o "movimento", as lutas de
classe, as redefinições de interesse, as alianças políticas que
ao mesmo tempo em que mantêm as estruturas abrem
perspectivas para sua transfonnação. As estruturas eram
concebidas como relações de contradição e, portanto, como
7
dinâmicas.
Este aspecto das relações entre interno/externo foi logo
aceito por vários autores e foi proposto, com ligeiras varia-
s
ções, em vários trabalhos. Os comentaristas norte-ameri-
canos mais competentes registraram a proposição e viram
9
nela algo de novo. Certamente ela o é, mas dentro do
espírito dos esforços que a cada dez ou quinze anos, em

135
vários países, procuram recordar que a análise dialética
deve ser, antes de mais nada, uma análise de contradições,
de reposição de formas de dominação e, ao mesmo tempo,
de transformações e de expansão de uma dada forma eco-
nômica, de um dado tipo de sociedade.
No processo destes estudos difundirem-se nos USA,
entretanto a caracterização da dependência foi colorida
localmente. A preocupação com a denúncia das formas de
··ajuda externa", com a interferência da elA na política
externa, com a mão invisível e maquiavélica das multina-
cionais etc. (preocupações, politicamente legítimas e que
sublinham aspectos reais do processo histórico contempo-
râneo) acabou por restabelecer, pouco a pouco, a prioridade
do externo sobre o interno (o que pode ter base) e levou
fmalmente à eliminação da dinâmica própria das socieda-
des dependentes como fator importante nas explicações, o
que é inaceitável. Separaram-se, de novo, metafisicamente,
os dois termos da oposição externo-interno que, de dialéti-
ca, passou a estrutural-mecânica, quando não passou a ser
concebida em termos de antecedentes causais que se rela-
cionam com conseqüentes inertes.
Tomam-se os trabalhos mais gerais e formais de Frank
como se eles expressassem o melhor de sua obra, acrescen-
ta-se a definição formal de dependência fornecida por
Theotônio dos Santos, desdobra-se às vezes esta proble-
mática com a do ··subimperialismo" e a da ··margina-
lidade", agrega-se uma ou outra citação embrulhada de
algum dos meus trabalhos ou dos de Sunkel e tem-se a
··teoria da dependência", como um fantoche fácil de ser
destruído.
Portanto, em vez de fazer-se o esforço empírico-analí-
tico para reconstruir uma "totalidade concreta" com as
características descritas acima, passou-se a consumir a
dependência como uma ··teoria", dando-se a esta noção a
conotação de um corpo de proposições formalizáveis e

136
testáveis. Eu sempre foi reticente em usar a expressão
"teoria da dependência" porque temia a formalização do
approach. Não obstante, latino-americanos passaram a es-
forçar-se por criar uma "teoria". Os autores latino-ameri-
canos que se moveram nesta direção, de inspiração mar-
xista quase todos, embora fazendo concessões à tentação
gloriosa de construir uma teoria - tentação que os levou a
formular definições abstrato-formais e a elaborar tipolo-
10
gias - mantiveram, contudo, a preocupação com estabe-
lecer as "leis de movimento" do "capitalismo dependen-
te".ll Nem sempre, a meu ver, tiveram êxito nesta difícil
proeza, mesmo porque existe até uma dificuldade lógica a
transpor: como estabelecer legalidade própria daquilo que
por definição está referido a outra situação que o contém?
Alguns especialistas norte-americanos passaram a cobrar a
"coerência interna" da teoria da dependência e a estabelecer
um corpo de hipóteses deduzidas do princípio da depen-
dência para testá-las empiricamente. Neste tipo de refor-
mulação da dependência os conceitos devem ser unidi-
mensionais e precisos e devem referir-se a variáveis clara-
mente estabelecidas. Com sua ajuda pode-se medir o "con-
tínuo" que vai da "dependência" à "autonomia" e pode-se
caracterizar graus variáveis de dependência. 12
Entretanto, ao definir desta forma a noção de depen-
dência modifica-se também o "campo teórico" de seu estu-
do: em vez de fazer-se uma análise dialética de processos
históricos e de conceber-se estes últimos como o resultado
da luta entre classes e grupos que definem seus interesses
e valores no processo de expansão de um modo de produ-
ção, formaliza-se a história e retira-se a contribuição espe-
cífica que as análises de dependência podem dar meto-
dologicamente (como a idéia de contradição) e reduzem-se
a ambigüidade, as contradições e as rupturas mais ou menos
abruptas do real a "dimensões operacionalizáveis" que, por
definição, são unívocas, mas estáticas. Produz-se assim um

137
diálogo de surdos em que uns dizem: dêem-me conceitos
precisos, com dimensões claras, e eu lhes direi, depois do
teste, se as relações entre as variáveis definidas por seus
campos teóricos conformam-se com as hipóteses que vocês
propõem. Outros dizem: eu não estou interessado em defi-
nir conceitos unívocos; a mim interessa ressaltar contradi-
ções e formular relações que impliquem em que o mesmo
se transforma no outro através de um processo que se dá
no tempo e que vai relacionando, através da luta, mas
classes (ou facções) com outras e vai opondo-as a blocos
rivais. Por exemplo: como os mesmos burgueses "nacio-
nais" se internacionalizam e tomam-se outros, ou como os
"servidores públicos" transfonnam-se em "burguesia de
estado" ao redefinirem o campo dos aliados e dos adversá-
rios e assim por diante, num processo que envolve modifi-
cações de natureza e não apenas de grau.
O desencontro não é apenas metodológico-formal. Ele
atinge o núcleo dos estudos sobre dependência. Estes, se
têm alguma força de atração, não é somente porque pro-
põem uma metodologia para substituir um paradigma an-
teriormente vigente ou porque abrem uma temática nova.
É principalmente porque fazem isto a partir de uma pers-
pectiva radicalmente crítica.
Com efeito, ao admitir que as estruturas têm movimen-
tos e que não se podem explicar as mudanças através da
ação de fatores exclusivamente concebidos como externos
(que condicionam e interferem no processo social), os
"dependentistas" afirmam que existe dominação e luta. As
perguntas sobre como se dá a transição de uma situação de
dependência para outra ou sobre como é possível eliminar
situações de dependência devem ser feitas em termos de
saber quais são as classes e grupos que, na luta pelo controle
ou pela reformulação da ordem vigente (através dos parti-
dos, dos movimentos, das ideologias, do Estado, etc.), estão
tornando historicamente viável uma dada estrutura de do-

138
minação ou a estão transfonnando. Não existe portanto o
pressuposto de "neutralidade" científica nestas análises.
Elas se consideram mais "verdadeiras" porque supõem que
ao discenir quais são os agentes históricos capazes de
impulsionar um processo de transfonnação e ao dar-lhes
instrumentos teórico-metodológicos para suas lutas captam
o sentido do movimento histórico e ajudam a destruir uma
ordem de dominação dada.
São pois explicativas porque são críticas. Não se pro-
põe, contudo, um conhecimento "arbitrário" para substituir
outro "objetivo". Propõe-se uma abordagem que aceita e
parte da idéia de que a história é movimento e de que as
estruturas são o resultado de imposições que, se bem podem
cristalizar-se, contêm tensões entre as classes e grupos que
as tornam sempre, pelo menos potencialmente, dinâmicas.
Na luta que se estabelece entre as partes que compõem
uma estrutura não existem "dimensões" de "variáveis" em
jogo, mas tensões entre interesses, valores, apropriações da
natureza e da sociedade, que são desiguais e opostas. Por-
tanto, ao falar de "desenvolvimento capitalista dependen-
te", fala-se necessária e simultaneamente de exploração
sócio-econômica, repartição desigual de renda, apropria-
ção privada dos meios de produção e subordinação de umas
economias por outras. Por outro lado indaga-se, necessa-
riamente, sobre as condições de negação desta ordem de
coisas.
Assim, para resumir, os estudos sobre a dependência
prosseguem uma tradição viva no pensamento latino-ame-
ricano, que foi revigorada nos anos sessenta graças à pro-
posição de temas e problemas que se definiram num campo
teórico-metodológico não só diferente daqueles que inspi-
raram as análises keynesianas e estrutural-funcionalistas (a
teoria da modernização e as etapas de desenvolvimento que
repetiriam a história dos países industrializados), mas radi-
-calmente distinto quanto ao componen~e crítico que lhes é

139
inerente. Se este tipo de estudos ganhou força e penetrou
no mundo intelectual contemporâneo foi porque, além dele
explicar com mais acuidade algumas transformações que
ocorreram na América Latina, houve modificações a partir
da década de 1960 nos próprios países centrais (sobretudo
nos USA) que tomaram claras as insuficiências dos pres-
supostos do estrutural-funcionalismo. O protesto dos ne-
gros, a guerra do Vietnam e os movimentos contra ela, o
inconformismo cultural, o movimento universitário, o mo-
vimento feminista, etc., passaram a requerer paradigmas
mais sensíveis ao processo histórico, às lutas sociais e à
transformação dos sistemas de dominação. As análises
sobre dependência, na perspectiva acima colocada, corres-
pondem melhor a esta busca de novos modelos de explica-
ção, não só para que se compreenda o que ocorre na
América Latina, mas também para entender o que acontece
nos USA.
Até a esta altura, um tanto deselegantemente, estou
lançando a culpa dos equívocos aos consumidores da teoria
da dependência, como se o restabelecimento do mito origi-
nário resolvesse todos os problemas. Algum maldoso co-
mentarista diria logo que, com mais indulgência que Sir
Edmond Leach, não só me contento com a ritualização do
tema como ainda aspiro a ser, se não "o verdadeiro profeta",
pelo menos um dos mais zelosos apóstolos.
Entretanto, se houve tantas distorções no consumo, é
porque a produção original não era clara quanto a vários
destes pontos, se é que não incluía latentemente muito do
que depois apareceu como simplificação e inconsistência.
Não vou repetir aqui trabalhos meus anteriores. Quero
apenas salientar que, julgada a partir de seus próprios
pressupostos, a perspectiva da dependência deve ser con-
frontada com pelo menos três tipos de questão:
- Os estudos sobre dependência foram capazes de
aguçar a imaginação de modo a que se abrisse dis-

140
cussão sobre temas e formas de compreensão da
realidade compatíveis com o processo histórico con-
temporâneo?
- A representação teórica da dinâmica deste processo
proposta pelos estudos sobre dependência permite
compreender as formas de expansão do capitalismo
na periferia e vislumbrar realisticamente suas alter-
nativas?
- Os estudos feitos permitiram definir as classes e
grupos que nas contendas políticas dão vida às estru-
turas dependentes? Permitem eles que se ultrapasse
o quadro estrutural de caracterização para tomar
mais transparente, em conjunturas políticas específi-
cas, as relações entre as ideologias e os movimentos
sociais e políticos, de modo a ajudar a ação trans-
formadora da realidade?
Quanto à primeira questão se os estudos iniciais sobre
dependência tiveram algo de novo não foi certamente a
afirmação de que existe dependência, o que constitui uma
banalidade, mas sim foi a caracterização e busca de expli-
cação de formas emergentes de dependência. Tentaram
mostrar o que significava a industrialização da periferia (e
portanto a formação de um mercado interno, pois na Amé-
rica Latina não se estavam constituindo meras plataformas
industriais para a exportação) sob o controle do que depois
veio a chamar-se de "empresas multinacionais". O reco-
nhecimento dos efeitos deste processo - a "nova depen-
dência,,13 - foi o ponto de partida para a reflexão deste tema.
Hoje parece que isto constitui outra banalidade. Entretanto,
a concepção arraigada na América Latina até ao final da
década de 1950 era a de que os trusts não se interessavam
pela industrialização da periferia, pois exportavam para ela
produtos acabados; seu interesse fundamental era o contro-
le e a exploração de produtos primários agrícolas e mine-
rais. A teoria do imperialismo reforçava este ponto de vista,

141

I.
que era, além do mais, consistente, em parte, como que
ocorria até então. As lutas antiimperialistas eram ao mesmo
tempo lutas pela industrialização. Os estados locais e a
burguesia nacional pareciam ser os agentes históricos po-
tenciais para o desenvolvimento econômico capitalista, o
qual, por sua vez, era encarado como uma "etapa necessá-
ria" por boa parte da opinião crítica.
Os "dependentistas" mostraram que estava havendo
uma fonna de industrialização sob controle das empresas
multinacionais e tiraram daí algumas conseqüências. Hou-
ve mesmo o esforço da proposição de um modelo mais
geral deste processo, para caracterizar o "capitalismo trans-
nacional" e avaliar seus efeitos não só sobre a Periferia, mas
sobre o próprio Centro das economias capitalistas. 14
A revisão proposta a partir destas perspectivas - a da
industrialização da periferia e da internacionalização dos
mercados internos - pennitiu que se generalizassem as
críticas feitas à teoria de que as burguesias nacionais seriam
capazes de repetir a função que desempenharam no Centro
como classe dirigente do processo capitalista nos países
subdesenvolvidos. Permitiu também que se mostrassem as
insuficiências da teoria da modernização e da expectativa
de que havia etapas seqüenciais de desenvolvimento iguais
às da Europa. A partir daí começou a haver a recolocação
da questão do Estado, passou-se a discutir mais a fundo o
papel das burocracias e do que chamei, mais tarde, de
"burguesias estatais". iS Por outra parte, graças à caracte-
rização da fonna específica de desenvolvimento capitalista
industrial na periferia, com o predomínio da produção
oligopólico-corporativa orientada para o consumo das clas-
ses de altas rendas, foram levantadas inúmeras hipóteses e
feitos alguns estudos sobre o tema de marginalidade e sobre
a fonnação e comportamento da classe operária. 16
O balanço da imaginação sociológica aguçada pelas
teorias da dependência parece-me, portanto, positivo. Gra-

142
I'" I "- --'" I CO" *_ _, " "

ças a elas, embora não exclusivamente, pois os estudos dos


cepalinos já apontavam nesta direção, chamou-se a atenção
para um quadro temático que deixou de ver o desenvolvi-
mento capitalista na periferia como mera "conseqüência"
da acumulação de capitais no centro, para preocupar-se
com a forma histórica que este processo adquire nas socie-
dades dependentes.
Tenho muito maiores reservas na avaliação das expli-
cações propostas em muitos destes estudos para dar conta
do processo histórico. Vou limitar-me a mencionar uma
questão que serve de ponto de clivagem entre "depen-
dentistas". Trata-se da questão da forma como se analisa o .:..
~"::::"~
movimento provocado pela expansão do capitalismo na :,~"
'o,
periferia. Aqui, forçando um pouco a análise para simpli- 'l~
~:-...

ficar, há duas modalidades polares de conceber-se o pro- ,,'~


- -!'
cesso de desenvolvimento capitalista: "'.0
";~
- existem os que crêem que o "capitalismo depen-
(~
dente" baseia-se na superexploração do trabalho, é -"')
incapaz de ampliar o mercado interno, gera incessan-
temente desemprego e marginalidade e apresenta ~é;,
tendências à estagnação e a uma espécie de constante I;-~~
reprodução do subdesenvolvimento (como Frank, '"-
Marini e, até certo ponto, dos Santos);
- existem os que pensam que, pelo menos em alguns
países da periferia, a penetração do capital industrial-
financeiro acelera a produção da mais-valia relativa,
intensifica as forças produtivas e, se gera desempre-
go nas fases de contração econômica, absorve mão-
de-obra nos ciclos expansivos, produzindo, neste
aspecto, um efeito similar ao do capitalismo nas
economías avançadas, onde coexistem desemprego
e absorção, riqueza e miséria.
Pessoalmente sustento que a segunda explicação é mais
consistente, embora o tipo de "desenvolvimento depen-
dente-associado" não seja generalizável para toda a perife-

143
ria. Às vezes se pensa impugnar a "teoria da dependência"
ou vislumbrar nela contradições quando se sublinha que
pode haver desenvolvimento e dependência e que existem
formas mais dinâmicas de dependência (possibilitando in-
clusive graus maiores de manobra pelos Estados nacionais
e pelas burguesias localmente associadas ao Estado ou às
multinacionais) do que as que caracterizam situações de
enclave ou de quase colônia. O argumento mais comumen-
te usado é o de que, neste caso, passa a existir uma relação
de "interdependência". Entretanto, quando se encaram as
relações entre as economias de "desenvolvimento depen-
dente associado" e as economias centrais não é difícil
perceber que a divisão internacional do trabalho continua
a operar a partir do suposto real de graus muito diferentes
de riqueza, de formas de apropriação desigual do excedente
internacional e do monopólio dos setores capitalistas dinâ-
micos pelos países centrais, o que não permite dúvidas
quanto às diferenças entre as economias centrais e as de-
pendentes. O setor de produção de bens de capital e a
geração de novas tecnologias, portanto os setores mais
revolucionários a nível das forças produtivas, setores que
são decisivos no esquema de reprodução ampliada do
capital, continuam a localizar-se nos núcleos centrais das
empresas multinacionais. E o endividamento externo é
oscilante mas contínuo nas economias dependentes.
Por fim, neste balanço sumaríssimo, também me pare-
cem discutíveis as análises produzidas até agora para cate-
gorizar os "agentes históricos" das transformações sociais.
Tanto os autores "estagnacionistas" ou "subconsumistas",
que crêem que o mercado interno é insuficiente para dar
17
lugar à expansão capitalista dependente , como os favorá-
veis à possibilidade de desenvolvimento capitalista em
certos países da periferia, geraram, até agora, uma análise
política relativamente pobre. Ou enfatizaram a "possibi-
lidade estrútural" da Revolução e passaram a discutir a

144
superação da dependência em função de um horizonte
histórico no qual o Socialismo aparece como o resultado
das crises crescentes e peculiares de um capitalismo estag-
nante, ou previram uma "nova barbárie", demonstrando
pendores à repetição de clichês que pouco explicam. Os que
não têm tal visão, entre idílica e catastrofista (e eu me incluo
entre eles), são reticentes quanto às alternativas políticas.
De qualquer maneira, enquanto os primeiros (os catastro-
fistas) fazem uma análise política "mecânico-formal", os
segundos ou revelam uma boa vontade quanto a um "capi-
talismo autônomo" que não se vê bem como se realizará ou
esboçam expectativas quanto a um socialismo cuja persona
histórica não se vê desenhada nem nas análises nem, talvez,
na realidade.
Tanto o estilo mecânico-formal dos que crêem nos fins
últimos da história, garantidos pela necessária incapa-
cidade estrutural do capitalismo dependente para expandir-
se e reproduzir-se quanto o estilo elíptico dos que querem
escapar desta política de Frankenstein, leva os críticos da
dependência à convicção de que o catastrofismo ou a
indefinição permanente são resultados necessários deste
tipo de análise. Para evitá-los, propõem que sejam melhor
definidas as dimensões que permitam medir graus de de-
pendência. Com estes, pensam demonstrar que sempre que
os Estados locais aumentem a capacidade de regulamentar
a economia e de contrabalançar as multinacionais, haverá
espaço para maior independência.
Não é esta a ocasião para ir mais fundo neste debate.
Entretanto, não concordo com a idéia de que para melhorar
a qualidade das análises deve-se formalizar a teoria da
dependência e, depois de testar hipóteses derivadas desta
formalização, sair pelo mundo brandindo a porcentagem da
variância explicada por cada fator que compõe as situações
de dependência. Em vez de pedir que se faça análises dentro
do padrão estrutural-funcionalista empiricista, é melhor

145
['

'I

pedir que se incremente a qualidade das análises histórico-


estruturais.
Ao dizer isto, entretanto, não quero endossar a expec-
tativa ingênua de que as teorias sobre dependência expli-
cam tudo, ou, se ainda não o explicam, é porque o método
foi mal aplicado. É preciso ter sentido, já não diria de
proporções, mas de ridículo, e evitar o simplismo reducio-
nista tão comum entre os modernos colecionadores de
borboletas que abundam nas ciências sociais e que pas-
seiam pela história classificando tipos de dependência,
modos de produção e leis de desenvolvimento, na doce
ilusão de que com seus achados vão retirar toda a ambigüi-
dade, imaginação e inesperado da história. É preciso, ao
contrário, ter a paciência da pesquisa disciplinada por uma
dialética que não seja indolente e não se compraza em
construir formulações muito gerais e abstratas como se
fossem sintéticas. É preciso admitir que, por sorte, por mais
que os cientistas sociais se empenhem em encerrar em
esquemas as possibilidades estruturais da história, esta nos
toma, a cada momento, dupes de nous-mênles, e nos sur-
preende com desdobramentos inesperados.

NOTAS
1. Bodenheimer, Susanne J. - Tile Ideology of Developlllelllalislll: rhe Alllerican
Paradigm-surogarefor LarillAlllericall Srudies, Berverly Hills, Califomia, Sage Publi-
cations, 1971; especialmente "toward a new conceptual framework: lhe dependency", p.
34-40.
2. Algumas formulações dos estudos iniciais sobre dependência tentam evitar
apresentações simplistas da questão. O mesmo vale para alguns comentadores. Há muitos
livros e artigos dispOlúveis em inglês sobre a "teoria da dependência". Para uma análise
da sociologia latino-americana contemporãnea, ver Karl, Joseph - Modernizarioll, Ex-
ploitario" and Depelldellcy ill Lariu Alllerica, New Brunswich, New Jersey, Transaction
Books, 1976. Para uma revisão extensiva da literatura sobre dependência, ver Chilcote,
Ronald e Edelstein, Joel - Latin America: the struggle wilh dependency and beyond,
Nova Iorque, JoOO Willey and Sons, 1974, "lntroduction", p. 1-87. Para alguma crítica
e uma proposta alternativa, mas não incompatível, ver Hirsclunan, Albert - "A genera-
lize<! linkage approach to development with special reference lo staples", 1975, mimeo.
Para uma crítica e um swnário, adotando wn outro paradigma, Packenham, Robert -
"Latin American dependency lheories: strengths and weaknesses", mimeo. Para breves,
mas consistentes sumários, O 'Brien, Philip - "A critique of Latin American theories of

146
dependency", Glasgow, Institute of Latin American Studies, mimeo., e Corradi, Juan
(eds.) - Ideology arui Social Change in Latin America, no prelo. Para uma visão geral e
para bibliografia, veja BonilIa, Frank and Girling, Robert - Structures ofDependency,
Stanford, 1973.
3. O debate entre a abordagem "humanista" e a "ontológica" na interpretação da
dialética marxista influenciou grande parte das tentativas dos cientistas sociais brasileiros
de usar essa metodologia.
4. A metodologia do livro Dependência e Desenvolvimento na América Latina
(cuja primeira versão foi um documento do ILPES, CEPAL) é muito próxima à metodo-
logia que usei em estudos anteriores sobre escravidão e capitalismo, assim como em
pesquisas sobre problemas de desenvolvimento e empresariado no Brasil (veja, por
exemplo, Desenvolvimento Econômico e Empresário buiustrial, São Paulo, DIFEL,
1964). Há publicações de muitos outros autores latino-americanos desde começo dos
anos 50 tentanto revitalizar a abordagem dialética.
5. A literatura brasileira sobre este tópico é considerável. Os estudos clássicos são
os conhecidos livros de Roberto Simonsen, Caio Prado e Celso Furtado sobre a economia
colonial. Do ponto de vista sociológico a análise de Florestan Fernandes sobre a
sociedade escravista e o "ancien regime" oferece interpretações penetrantes. Todos esses
livros, assim como o livro de lanni, Octavio - As metamorfoses do escravo, São Paulo,
DIFEL, 1962 e o meu próprio sobre a sociedade escrava no sul do Brasil, já estavam
publicados quando A.G. Frank discutiu as teses sobre "feudalismo" e "capitalismo".
6. Esta é a perspectiva de interpretação proposta por F.H. Cardoso e Enzo Faletto,
em Dependência y Desarrollo, Santiago, ILPES, 1976. A versão inicial foi distribuida
em Santiago em 1965.
7. Apesar disso, a concepção usual de uma análise estática de estruturas leva a falsas
interpretações de alguns dos meus escritos..Fui considerado, em criticas apressadas, como
estruturalista, dentro da tradição de Lévi-Straus, quando não defensor de análise que
desdenha a importância da luta de classes... Veja, para esse tipo de entendimento ingênuo
da metodologia que eu proponho, Myer, John - "A crown of lhorns: Cardoso and lhe
counterrevolution", LatinAmerican Perspective, spring 1975, vol. lI, n. 1.
8. Theotônio dos Santos, por exemplo, apresenta uma visão similar no estudo que
escreveu depois da discussão, em Santiago, do ensaio escrito por Faletto e por mim sobre
"Developrnent and Dependency". Veja dos Santos - "La nueva dependência", Santiago,
CESO, 1968. Em outros ensaios que publicou depois de seu primeiro artigo sobre "La
nueva dependencia", dos Santos propõe de maneira simples e clara o mesmo modelo de
conexão dialética e não mecãnica entre interesses externos e internos. Veja, especial-
mente, "Las crisis de la teoria dei desarrollo", op. cito
9. Além do livro de Kahl que é mais abrangente em termos históricos e não é
limitado à discussão sobre Dependência, ver Bodenheimer, S. (1971), op. cit., e Chilcote
and Edelstein, op. cito Ver também Paclrenham, R., op. cit., p. 4-5.
10. Mesmo dos Santos propõe uma definição formal de dependência (e, portanto,
estática e não-histórica) em seu conhecido artigo "The Structure of Dependency",
American Economic Review, 1970, p. 231-236. Vãnia Bambirra também caiu na tentação
de ajudar dos Santos a desenvolver uma "teoria da dependência" ou do capitalismo
dependente, como ele sugere em seu ensaio "La crisis de la teoria del desarrollo", esp.
p. 33. O resultado dessa tentativa foi uma nova tipologia de formas de dependência e
algumas possibilidades formais de mudanças estruturais. Veja Bambirra, Vania - El
capitalismo dependente Latinoamericano, México, Siglo Veinteuno, 1974. Bambirra
interpreta de forma equivocada a análise de situações de dependência, sugerida por
Faletto e por mim, quando ela se refere a elas como se nós estivéssemos propondo "tipos"
de dependência.

147

LJ
11. A preocupação com "leis de transfonnação" na tradição marxista é clara em
dos Santos, assim como no livro de Vânia Bambirra, Marini, Rui Mauro em - "Brazilian
Sub-Imperialism", Molllhly Review, n. 9, feb. 1972, p. 14-24 e em Sub-desarrolLo y
RevoLución, México, Siglo VeintewlO, 1969, refere-se também a algum tipo de leis
históricas. Mas a interpretação de Marine é lnais analógico-fonnal do que histórico-es-
trutural. Sua apresentação das características do capitalisJll0 dependente (ein tennos da
superexploração da força de trabalho e da permanente crise de realização do capital) não
se adequa ao processo histórico real.
12. Exemplos disso são as críticas de Packenham aos estudos de dependência e,
correspondentemente, suas contribuições para avaliar o desempenho dos Estados e
economias, em tennos de graus de independência. Veja, especialmente, seu artigo "Trend
in Brazilian dependence since 1964", march 1, 1976 (não publicado). Outros, apesar de
mna compreensão mais adequada do significado teórico dos estudos de dependência,
incorreram em falácias metodológicas. Um exemplo disto é o sugestivo trabalho de
OJase-Dum, Cris, "The effects of intemactional economic dependence on development
and inequaJites: a cross-national study", Stalúord (não publicado). O autor faz compara-
ções entre diferentes situações de dependência como se elas fonnassem parte do mesmo
"continuum" de dependência-independência. A análise toma-se, então, fonnal e a-histó-
rica. Mesmo na abordagem de Durkheim, algmna compatibilidade entre as estruturas que
estão sendo analisadas é requerida na análise comparativa para dar validade aos resulta-
dos. Além disso, nmna abordagem lústórico-estrutural a especificidade da situação
concreta é mna pré-eondição para qualquer fonnulação analítica. Entretanto, Chase-Dum
não leva em conta as distinções básicas entre estruturas de classe e políticas numa
economia de enclave, nwna econonúa de exportação controlada nacionalmente, ou nwna
economia industrializada dependente-associada. Misturando dados retirados de distintas
situações de dependência, ele pretende dar validade ou criticar afinnações que foram
apresentadas como características de fonnas específicas de dependência. Não estou
argumentando contra o uso de estatísticas ou dados empíricos (lústóricos) como um meio
de validação ou rejeição de teorias. Estou criticando seu uso inadequado, em tennos
metodológicos e teóricos. AlgW1S outros trabalhos apresentam erros que são paralelos ao
mencionado acima, com uma característica adicional: eles substituem as concepções
teóricas dos "dependentistas" pelo "significado de senso comwn do tenno" (dependência
e imperialismo). O pretexto para isso é a falta de precisão na literatura. Por precisão,
esses autores entendem wna abordagem positivista. Depois de redefinir segW1do suas
concepções a "teoria da dependência" eles pretendem submetê-la ao "teste empírico",
confrontando as hipóteses com os dados. Que hipóteses, como categorizar os dados e
quem são os autores submetidos à prova depende, obviamente, da escolha arbitrária
desses empíricos e objetivos cultores da ciência... Veja, por exemplo, Duval, Raymond
e Bruce, Russet - "Some proposals to guide research on contemporary imperialism",
Yale University, não publicado.
13. Veja, Cardoso, F.H. e Faletto, Enzo - Dependendo e DesarrolLo, op. cit., último
capítulo, "A nova dependência". Dos Santos tomou essas idéias e desenvolveu a carac-
terização em A nova dependência.
Entretanto, muitos críticos e comentadores não se deram conta das implicações do que
é novo nas situações de dependência dos países industrializados do Terceiro MWldo.
Susanne Bodenheimer, por exemplo, lnanteve a perspectiva do modelo de expansão de
mna fase do imperialismo como a principal característica da "nova industrialização": "0
sistema internacional hoje é caracterizado por: capitalismo industrial avançado (...) as
nações dominantes necessitam importar matérias-primas e, mais importante ainda,
mercadorias e mercados de capital" ("Dependency and lmperialism: the roots of Latin
America Underdevelopmente", in FaIm aIld Hodges - Readings un V.S. Imperialism,
Boston, Porter Sargent, 1971, p. 161). Além disso, o conceito de Bodenheimer de
"infra-estrutura de dependência" relaciona-se basicaIuenle às corporações multinacio-

148
nais. Deste modo, novamente, as forças externas dão forma às estruturas internas, sem
mediação interna: "a infra-estrutura de dependência pode ser vista como equivalente
funcional de wn aparato colonial formal", sustentado por c1asses-elientes que desempe-
nham, na América Latina "moderna", o papellústórico de "burguesia compradora" (veja
p. 161-163). Nesta abordagem, o método funcional-formalista está vivo, outra vez. Não
devido ao uso da palavra equivalente funcional em si, mas porque Bodenheimer está
comparando situações (a "colonial" e a "capitalista moderna") construídas sem conteúdo
Iústórico, de uma maneira que Frank algumas vezes usou quando se referiu ao feudalismo
e ao capitalismo.
14. Nesse aspecto, o ensaio mais influente foi o de Sunkel, Oswaldo, "Transnational
Capitalism and National Desintegration in Latin America", Social Economic Studies,
University of West lndies, vol. 22, n. I, March 1973. Celso Furtado escreveu alguns
artigos recentemente sobre o capitalismo contemporâneo, acentuando a reorganização
do mercado internacional sob controle das multinacionais e suas conseqüências para a
dominação política internacional.
15. A importância da burocracia de Estado e das empresas estatais na América
Latina foi enfatizada por vários "dependentistas". Veja dos Santos, "La crisis de la teoria
dei desarrollo", op. cit., p. 25, e "Dependencia econólnica y altemalivas de cambio en
América Latina", em seu Dependencia Económica y Cambio enAmérica Latina, op. cit.,
p. 93. Meus pontos de vista sobre o assunto podem ser encontrados em Autoritarismo e
DemocraliZIJção, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975. Veja, para desenvolvimentos mais
recentes da discussão sobre o papel do Estado, o penetrante ensaio de o 'Donnel,
Guillerrno - Reflexiones sobre las tendencias generales de cambio en el Estado Buro-
crático-autoritário, Buenos Aires, CEDES, 1975. Marcos Kaplan publicou ensaios
pioneiros sobre a natureza do Estado em sociedades dependentes. Veja, especialmente,
seu "Estado, dependencia externa y desarrollo en América Latina", in la Nueva Depen-
dencla, op. cit., Francisco Weffort publicou também um conhecido e elucidativo ensaio
sobre "Estado e Massas", Buenos Aires, Revista Latino-americana de Sociologia, 1966.
16. Esta não é a ocasião para lembrar a discussão sobre "marginalidade". Arubal
Quijano e José Nun contribuíram para essa discussão. Pesquisas recentes e críticas
parecem reorientar a discussão, adotando outras hipóteses com relação a emprego,
marginalidade e industrialização. Veja Singer, Paul, em várias publicações das Cadernos
CEBRAP. assim como Elizabeth Jelin e Lucio Kowarick. Vilmar Faria em sua dissertação
de doutoramento, Urban Marginality as a Structural Phenomenon: an overview ofthe
literature. University of Harvard, 1976, não só sumaria discussões anteriores, como
propõe novas abordagens para a questão, levando em consideração evidências teóricas
na questão do emprego e de desenvolvimento capitalista, sem o viés da "estagnação".
17. Sobre o subconsurnismo ver os já referidos trabalhos de Rui Mauro Marini.

149
Capítulo IV

POR UM OUTRO
DESENVOLVIMENTO'

A crise da civilização industrial - como alguns a qua-


lificam - evidenciada com maior força depois do curto
período do desafio criado pela alta de preços do petróleo
(já "absorvida", segundo alguns especialistas) trouxe à
mesa de discussões todo um rosário de novas e velhas
lamúrias pelos males do presente e, quem sabe, despertou
as esperanças do futuro. Nesta lista, longa, de problemas-
chave cuja solução é conhecida mas não aplicada, desta-
cam-se:
- o desperdício de recursos naturais não renováveis;
- a utilização de tecnologias predatórias da natureza e,
pior ainda, poupadoras de trabalho em sociedades
carentes de emprego;
- a poluição crescente do meio ambiente;
- as distorções da urbanização, correlatas com as ma-
nifestações mais negativas das formas de convivên-
cia que prevalecem nas "sociedades de massa" (au-
mento da criminalidade, uso de drogas, insegurança
pessoal, etc.).

* Publicado originalmente em Nerfin, Mare (ed.), Anolller Development: Approa-


clles and Slralegies, Uppsa1a, Dag Hammarskjold FOllildalion, 1977, p. 21-39.

151
Nos países subdesenvolvidos, a estas características
não desejáveis da civilização industrial somam-se ainda
outros problemas que nos países do Centro afetam geral-
mente apenas a minorias:
- a curva (assustadora, para os discípulos do Clube de
Roma) do crescimento da população mundial;
a possível escassez de alimentos (em determinadas
áreas, dolorosa realidade);
a falta de moradia adequada numa civilização que,
ao mesmo tempo, resplandece em prédios de aço e
vidro e pontes.de concreto protendido;
por vezes, até mesmo a falta de vestuário adequado
para a maioria, contracenando com o requinte da
moda que, através da forma atual de comunicação
instantânea, joga pela TV nos olhos das elites do
Sudeste da Ásia, da América Andina, do coração da
África e de todos os bolsões de miséria do mundo, o
fascínio de "estilos alternativos" da moda, que vão
do "gosto pelo antigo", à la Balmain, às fantasias
barrocas de Cardin, ao modernoso de Courreges ou
ao falso "estar à vontade" de Hecter, num escândalo
de desperdício da imaginação e num escárnio à po-
l
breza do mundo ;
o súbito salto de curvas de mortalidade infantil ou de
"pestes" (como a de meningite ou as de cólera) que
na auto-imagem do mundo narcísico que nasceu
orgulhoso da Revolução Industrial, deveriam estar
soterradas com as trevas da Idade Média;
as estatísticas de desnutrição e subnutrição que des-
mentem as belas palavras dos governantes ciosos do
avanço dos últimos trinta anos em países de "desen-
volvimento médio", que são aqueles, na Periferia,
que conseguiram deslanchar um processo de "indus-
trialização dependente";

152
-
- o analfabetismo, depois de tantas campanhas de "boa
vontade".
A lista seria longa para ser exaustiva, como também é
longa a relação dos remédios propostos. Dentre eles, cabe :

mencionar:
- uma utilização "racional" da natureza, que dê ênfase
ao uso de recursos renováveis e não poluidores (a luz
do solou a força das águas, por exemplo, como
alternativa ao petróleo);
- o emprego combinado de tecnologias "intermediá- ...
"

rias" e avançadas, para estabelecer um equilíbrio


entre recursos de capital acumulados e mão-de-obra
disponível;
- o balanceamento (em proveito do bem-estar coleti-
vo, e não "em vez de" crescimento econômico) do
número de filhos, orientado por critérios de "pater-
nidade responsável", que nada têm a ver com as
afliçóes agônicas dos partidários da zero growth rate,
nem com as teorias dos neofascistas que se deixam
embalar pela necessidade de "ocupar espaços va-
zios", na caolha geopolítica dos que não se preocu-
pam com a qualidade da vida nestes espaços;
- a reorientação da política de abastecimento, em be-
nefício de produtores de bens de consumo popular
(em geral médios e pequenos), que ao invés das mais
do que ilusórias green revolutions ou das teorias
sobre a capacidade de oferta elástica de alimentos a
partir da grande unidade capitalista de produção;
- o reconhecimento de que os critérios da técnica
industrial para a definição do que seja o "abrigo
adequado" são também vesgos e de que talvez a
"autoconstrução" e a transferência direta via expro-
priação e redistribuição de recursos habitacionais
têm muito maior eficácia do que os pretendidos

153
"sistemas autofinanciáveis" de fundos habitacionais
sustentados pelos bancos regionais ou domésticos:
- a modéstia, quase monástica, das sociedades não
ostentatórias, como a chinesa, para coibir o desper-
dício e o luxo no estilo de vida;
- a elevação do nível de vida das massas como única
solução real para os problemas de saúde e subnutri-
ção, especialmente das crianças e das mães, desmis-
tificando os enfoques clínicos, assistenciais ou pura-
mente médicos, que se aplicam topicamente ou a
camadas muito restritas da população;
- a crítica global da "cultura" e do sistema educa-
cional, revolucionando a concepção prevalecente,
que é elitista, sobre informação e elaboração cultural.
Cotejando-se o que é com o que vale, comparando-se
o mundo tal como existe com o mundo tal como alguns o
querem, o refrão cético de que não há novidade nas propos-
tas persiste: utopias, dirão, não penetram a "opacidade das
coisas".
E aí começamos a entrar no centro da problemática do
"outro desenvolvimento". A "opacidade das coisas", a
"lógica da situação", a "trama dos interesses constituídos"
são formas evasivas de indicar sem denunciar o problema
- seja dita a frase surrada mas verdadeira - da exploração
do homem pelo homem.
Neste sentido, se é certo que muito se tem dito e
problematizado a partir, digamos, do fim da Segunda Gran-
de Guerra, a respeito dos males e distorções da "civilização
industrial", quase tudo tem sido enfocado pelo prisma das
meias verdades, a começar pelo próprio alvo da crítica, a
sociedade industrial, como se fosse uma entidade que paira
acima do interesse de homens, grupos, classes, Estados e
nações. À medida que se desce do nível dos problemas mais
gerais (os Duter limits, p. ex.) para os problemas mais

154
a:::.-

específicos (a fome em Bangladesh ou a mortalidade infan-


til em São Paulo, p. ex.) fica mais visível que não é a
civilização industrial em si que causa os problemas, mas
são os interesses sociais e econômicos de distintas minorias
em distintos países (às vezes coligados) que dão a ela o
contorno fantasmagórico de uma civilização de Molochs
que devora seus frutos.
-; ......
O não-reconhecimento desta banalidade - a exploração i$'l
".. 0)--
"=::"-:
social e econômica, do homem pelo homem, de umas . ~:...
.........
classes por outras, de umas nações por outras - leva as :.õ J
:.j:
chamadas contra-elites a girarem em falso, sonhando com ."/
"soluções técnicas". O exemplo maior da "irracionalidade
tecnocrática" - constituído com o aval de Estados capita-
listas e socialistas, desenvolvidos e subdesenvolvidos -
encontra-se nas próprias agências especializadas da ONU,
cujos programas tudo podem e tudo sabem (de fato) no
IÚvel técnico, mas que são aplicados pelos "canais compe-
tentes" (ou seja, os governos, os grupos de interesse, as
distintas "lógicas das situações"); largadas a si mesmas,
estas agências nada mais fazem do que reproduzir e repor
as condições que criam os problemas que se quer combater.
É por isto que os céticos recalcam que não há nada de
novo sob o sol: talvez no íntimo do primeiro homem
dominado, do primeiro escravo, já existisse a semente de
uma consciência de revolta, o impulso para a dialética que
levaria à destruição do senhor. Se processos desse tipo não
se produzem não é porque não se saiba ou não se queira,
mas porque não se pode.
Assim, depois de reconhecer que o fato básico que leva
à distorção das sociedades industriais é a existência da
exploração e de identificar as formas de dominação que a
espelham, um "outro desenvolvimento" deveria enfocar,
sem rebuços, a questão do poder.
No século XIX já se ouvia o coro desta mesma insis-
tência. E lá também a disputa entre soluções ditas "utópi-

155
cas" e soluções chamadas "científicas" cortou em atrozes
divergências os primeiros críticos universais da civilização
industrial, baseada na exploração do homem pelo homem.
Na perspectiva redentora dos maiores dentre os críticos
havia a convicção otimista de que o progresso da civiliza-
ção e o da consciência viriam de mãos dadas, criando as
condições de possibilidades para uma nova era, triunfalista,
que seria constituída pela força renovadora dos oprimidos.
Um século e meio depois, estala no Ocidente a "crise
da cultura". A revolta aparece entre os filhos dos ricos,
rebenta entre os rebentos nauseados pela abundância de
uma civilização urbano-predatória que joga nas Universi-
dades, ilhando-os e cevando-os com o que de melhor e às
vezes de mais histriônico existe no arsenal das tecnicalida-
des e dos volteios "humanísticos", milhões de seres que
acabam por descobrir coisas contraditórias. Percebem que
também de pão vive o homem e que este pão é escasso para
a maioria. E percebem que só o pão não basta para os já
saciados. Partem, depois, ou para a arrogância da verdade
descoberta ("ah! se vocês fizessem como nós", diziam os
estudantes franceses aos operários, em maio de 68) ou para
a complacência rebelde dos drogados de Berkeley, das
comunas dos "naturistas", do horror à civilização, que é a
forma contemporânea de spleen byroniano. A generosida-
de e o romantismo de toda uma geração jogaram-se - quase
se exaurindo - na contratécnica, na construção de guetos
libertários, na fuga através do que se poderia qualificar de
uma espécie de jansenismo invertido, que vê na negação
extramundana do mundo (depois que se desiludem da
possibilidade de revolucioná-lo pelo exemplo) a tábua de
salvação individual para uma ordem social injusta. Daí
derivam os múltiplos grupos de "insurgentes", que não
chegam sequer a ser revoltosos para não pensar que pudes-
sem ser revolucionários. Passeiam seu nojo do mundo sob
o signo de Aquarius pelas estradas da civilização, que

156
detestam, à procura do Nepal de seus sonhos. Os mais
.disciplinados exibem suas carecas, harmoniosamente con-
tinuadas nas batinas brancas e nos pés descalços dos grupos
peripatéticos de zen-budistas mil, que cruzam a esquina da
Quinta Avenida com o Central Park, anunciando, pela sua
só presença, que não querem mais pertencer à civilização
que começou a tomar consciência de si na arquitetura
(ridícula) do Plaza e que, de repente, sacudiu o que de falso
e imaginoso, embora atraente, havia no estilo "bolo de
aniversário" do capitalismo eufórico do século XIX, para
aparecer como uma lâmina crava nos pobres passantes,
férrea e "lógica", do edifício em frente, da General Motors.
Mas o clamor que ecoa por toda parte, em benefício dos
damnés de la terre, não brotou apenas da generosidade das
belas almas: houve, e há, vozes e ações vindas do gueto
(como na expectativa marcusiana) das minorias negras nos
quentes verões de Trenton, dos campos de batalha das lutas
de libertação nacional da Argélia, do Vietnã, das colônias
negras da África, do Camboja e até mesmo da primavera,
que muitos acreditavam desnecessária e outros impossível,
das ruas de Praga.
Desta forma, o refrão contra a exploração do homem
pelo homem, que nascera desde o começo da civilização
industrial, começou a construir uma nova utopia - e sem
ela não há ação possível- que alargou, sem pô-la à margem,
a visão que a segunda metade do século XIX herdou do
passado a respeito das classes revolucionárias, portadoras
da história. Por várias razões que aqui não cabe discutir, a
ideologia contemporânea sobre a renovação, que pode
servir de cimento para um outro estilo de desenvolvimento,
é mais inclusiva e menos racionalista do que a utopia do
século XIX que, no plano das idéias, a antecede. Não crê
tão cegamente que por impulso do próprio desenvolvimen-
to das forças produtivas - e portanto da técnica - as
contradições entre a apropriação privada dos meios de

157
produção e a socialização do trabalho irão desembocar
numa nova ordem. Agrega a este patamar básico de racio-
nalidade e compreensão uma dimensão voluntariosa, ético-
estética, que quer revolucionar a própria matriz cultural da
civilização contemporânea: pretende fundar um "outro es-
tilo de desenvolvimento".
O "homem novo" do revolucionário da exemplaridade
o 'The" Guevara -, o grito dos argelinos contra a tortura,
a "guerra do povo" de Giap, o socialismo da escassez
repartida de Mao, prolongam-se contraditoriamente em
outras lutas. Num amálgama não resolvido, elas se juntam
- no plano da motivação para a busca de alternativas - com
o libertarismo quase anárquico do maio francês (défense
d'interdire), com o racismo anti-racista prenunciado por
Sartre das "almas geladas" dos negros americanos, com o
"apoliticismo" revoltado do espírito missionário das mina-
rias americanas, com os movimentos feministas (como
casá-los, meu Deus, com o Islão socialista?) e até mesmo
com o antiburocratismo latente da primavera de Praga.
É desta matriz, confusa e contraditória, que se nutre o
pensamento utópico (e como propor estratégias alternativas
sem utopias?) que sopra os ventos de um "outro desenvol-
vimento". Ele parte de uma vontade coletiva de afirmação
que às vezes aparece como se fosse um protesto solitaria-
mente idealista: prends mes désirs paur la realité car je
crois en la realité de mes désirs (inscrição nos muros da
Sorbonne em maio de 68).
É desta matriz também - embora de modo muito me-
diatizado - que nasce o movimento pela reconstrução da
ordem econômica internacional. Em vez da fria análise
sobre o imperialismo e sua força - e portanto sobre a
reprodução ampliada de uma impossibilidade de mudança
-, os povos do Terceiro Mundo, e alguns governos, vêem
na crise do petróleo e na união da OPEP sinais sensíveis de
uma vontade de mudança que começa pelo que, na lógica

158
das estruturas, deveria ser o fim: obter uma ordem mais
justa entre as nações, antes mesmo de alterar a ordem
interna das nações.
Proposta nestes termos, a estratégia da libertação inter-
nacional parece estar embebida do mesmo espírito dos que
crêem na realidade dos desejos mais do que na torça na
realidade. Entretanto, o "outro desenvolvimento" não se
nutre apenas do hidromel das utopias. A leitura correta
desta vontade de mudança bem pode ser outra: são tantas e
tão profundas as brechas internas dos sistemas de domina-
ção - criadas, por certo, graças às lutas de liberação, aos
movimentos das minorias, ao protesto urbano, etc. - que
mesmo no ápice do aparelho internacional de dominação
vêem-se as fendas das estruturas de apoio. Talvez seja esta
a característica mais saliente da forma atual pela qual se dá
a crítica da sociedade opressora: ela surge como luta, como
pressão da Periferia, como pressão da base das sociedades
do Centro, mas surge, ao mesmo tempo, como dessolida-
riedade entre parte das elites ilustradas e as classes domi-
nantes. Talvez seja por esta razão que a luta pela recons-
trução da ordem internacional e das estruturas nacionais de
dominação apareça como uma "crise de valores", pondo
em causa a cultura e a civilização industrial, tanto quanto
as bases sobre as quais elas assentam. Watergate é um
episódio que leva à nova ordem tanto quanto as areias que
bloqueiam o canal de Suez.
Se na utopia do século XIX se acreditava que a'substi-
tuição da classe dominante pelas classes exploradas poria
fim, automaticamente, à alienação, às desigualdades, a toda
forma de exploração, na utopia do século XX o fetiche das
coisas parece ser tão forte que, simbolicamente, volta-se a
"quebrar as máquinas" como fizeram os velhos cartistas
ingleses. Tem-se a desconfiança de que com a tecnologia
avançada vem necessariamente o burocratismo e, com ele,
ainda que não exista a apropriação privada dos meios de

159
r-----
. !

produção, virão a desigualdade e a espoliação social, o que,


no limite, pode manter a exploração entre as nações, mesmo
no campo socialista.
Assim, ainda confusamente (sem que se tenha demons-
trado necessariamente como e por que e, mais importante
ainda, por intermédio de quem) surge a imagem de um
mundo novo - idílico, como todo valor forte - na qual, se
nada ainda está no 6Q dia da criação, sabe-se pelo menos
que um valor paira acima de todos: a igualdade capaz de
restaurar, frente à sociedade exploradora, uma forma de
convivência baseada na comunidade. Ou seja: sabe-se, pelo
menos, para quem se quer uma nova ordem. É esta a marca
registrada da ideologia gerada pelos deserdados nesta civi-
lização da opulência em benefício de poucos e da margina-
lização da maioria. Com o élan de toda idéia genuinamente
negadora - e portanto dinâmica -, a nova utopia que quer
plasmar o estilo alternativo de desenvolvimento parte da-
quilo que o sistema não pode oferecer sem desfazer-se em
pedaços. Não há reforma técnica capaz de oferecer igual-
dade concreta (política, econômica ou social), embora haja
muitas reformas técnicas que possam resultar em mais
saúde, mais educação ou mais comida, sempre e quando
sejam mantidos certos e convenientes diferenciais na apro-
priação destes bens por alguns grupos. "Não mais ricos e
pobres; não mais nações ricas e nações pobres": é este o
lema que indica que a meta não é o Homem em geral, mas
são os deserdados da terra, os pobres, os marginalizados.
Mas,como?
Se as estratégias alternativas tivessem que ver apenas
com os alvos finais, bastariam os valores e as petições de
princípio. Na medida, contudo, em que para plasmar um
novo estilo de desenvolvimento se requerem políticas e
programas de ação, reintroduz-se o princípio de realidade,
sem o qual os valores e as utopias tomam-se flores de
estufa. E dele, contudo, que deriva a força da utopia atual:

160
a civilização industrial contemporânea criou, de fato, as
bases materiais para a igualdade com decência ao elevar os
patamares mínimos de acumulação quejá estão à disposi-
ção dos homens, tecnicamente falando.
É esta contradição - talvez pela primeira vez na História
- entre uma possibilidade concreta e uma perfomance tão
longínqua da satisfação das necessidades de todos, que faz
com que exista uma espécie de malaise, mesmo no mundo
desenvolvido, que torna cada fruição um pecado. Todos
sabem que a utopia de nosso slculo é materialmente pos-
sível. Ela não está enraizada apenas nos desejos, mas existe
como possibilidade nas coisas; e se a "lógica" das coisas
não leva à sua realização é porque os desejos (e os interes-
ses) de algumas minorias o impedem. E por isto que o
mundo contemporâneo sofre como um tormento cada grão
de trigo que morre na haste porque interessa a alguns que
ele não seja pão. E como, por outro lado, vive-se num
mundo de comunicações instantâneas e, até certo ponto, de
comunicações de massa, cada crime que é cometido no
Líbano, cada capitulação da dignidade nacional que é im-
posta por uma companhia bananicultora qualquer ao cor-
romper um presidente, cada agreement que é assinado sob
pressão - seja para derrubar Dubcek no Kremlin, seja para
obrigar, no Ministério das Colônias em Washington, os
países confederados a impor embargos a nações que não se
submetem - repercute e mina, no plano moral, a eficácia
da ordem mundial e a incolumidade dos sistemas de domi-
nação. E estes, para serem eficazes, não podem basear-se
apenas na força: a obediência requer consentimento, a
dominação exige hegemonia.
Por isso, não é de assustar que a definição de um "outro
desenvolvimento" não apenas excite a imaginação dos
povos oprimidos, afligidos por necessidades materiais, mas
que além disso desperte o interesse do pensamento social
e econômico das nações industrializadas. E, no entanto, até

161
recentemente a ideologia do desenvolvimento encobria um
outro aspecto da realidade que agora se tornou visível:
também existem bolsões de miséria nos países industriali-
zados, onde o fruto mais cobiçado da civilização industrial
- o incremento do produto nacional bruto - acabou criando
os problemas de abundância já apontados: poluição, inse-
gurança, cidades nada práticas, etc. A crítica, portanto,
desponta da situação dos negros e porto-riquenhos em
Nova Iorque, dos clúcanos em São Francisco, dos espa-
nhóis e italianos na Suíça, dos argelinos em Paris. E a ela
se junta outro tipo de crítica, a que se engendra no protesto
urbano das classes populares e no pavor à cidade que
sobressalta as classes dominantes: nos bairros ricos, esses
escandalosos bairros dos latino-americanos ricos, refugia-
dos em guetos cuidadosamente construídos, e nas fortale-
zas modernas, esses luxuosos edifícios de apartamentos ou
grandes mansões, vivem todos aqueles que, ainda que
teoricamente sejam consumidores da civilização da abun-
dância, de sobremesa têm de engolir, para iludir o medo às
cidades, o próprio isolamento em circuitos fechados de
fausto e fastio. Desse modo, os filhos dos ricos estão
marcados pelo estigma de serem donos de uma civilização
que nega a convivência, que de fato cria a situação do homo
homini lupus que os pensadores do século XVII tentaram
evitar mediante a política.
É uma civilização de pobreza para a maioria; de medo
para todos.
A alternativa para isso, além do valor da igualdade,
reside em seu complemento que requer liberdade: a neces-
sidade de participar. Está na democracia. Mas não numa
democracia relegada ao corpo quase místico de um partido
ou a um liberalismo que confunde a representatividade com
a divisão de poderes e confina todo jogo político efetivo ao
cume das grandes organizações estatais, ao parlamento, ao
executivo e ao judiciário. A democracia de participação,

162
parte inerente do "outro desenvolvimento", de saída é mais
exigente e mais inclusiva. Volta-se para as novas arenas
onde se tomam as decisões das sociedades contemporâ-
neas: o sistema educacional, o mundo do trabalho, as
organizações que controlam a comunicação de massas.
Posto que universal a demanda por igualdade, reque-
rem-se controles democráticos que neguem o autoritarismo
das práticas de ensino, as quais só fazem reproduzir em
escala ampliada a ordem estabelecida. Deve haver uma
educação, não só para a liberdade, mas na liberdade; uma
pedagogia do oprimido com escolas onde a partilha das
experiências entre gerações permita a emergência de solu-
ções novas, e não apenas a codificação daquele óbvio que
o passado nos legou.
Em certo sentido, este caminho se abre para a busca dos
meios para se chegar a uma revolução cultural. Que não se
tentou só na China, mas que insinua alternativas nos atos
da contracultura norte-americana, na mobilização das bri-
gadas de alfabetização e trabalho em Botswana2, na gene-
ralização da educação de base, nas intermináveis refonnas
da universidade e nos movimentos estudantis. A universi-
dade tradicional, mesmo nas sociedades disciplinadas, eslá
em vias de se converter num museu rodeado de ricas
experiências de re-criação da cultura, que inadvertidamente
se filtram por suas rachaduras, rejeitando uma educação
concebida tão-somente como correia de transmissão da
matriz cultural do dominador, como meio de impor a
cultura dos senhores às classes e aos povos dominados.
Ao mesmo tempo, na ausência de um fluxo de infonna-
ção democrática e em face do fracasso das grandes organi-
zações, públicas e privadas, em convocar congressos onde
as disciplinas e as nonnas de eficiência da civilização
tecnológica possam ser discutidas, compreendidas e aceitas
consensualmente por aqueles que arcarão com seus efeitos,
o mundo do trabalhador continuará sendo não só alienante

163
mas também a base para o autoritarismo, tanto nas socie-
dades capitalistas como nas socialistas. Por esta razão, um
"outro, desenvolvimento" - que se deve basear na mobili-
zação das massas - terá, ao mesmo tempo, que se haver
com a necessidade de desenterrar as sementes do totali-
tarismo mediante uma democracia de participação, implí-
cita aliás nessa mobilização. Democracia de participação
significa discutir, a nível das comunidades trabalhadoras,
educacionais e políticas, o que, o porquê e o para quem das
decisões, antes de partir para qualquer tipo de centra-
lização. Evidentemente, numa revisão crítica dos valores
herdados pelas sociedades contemporâneas, a idéia do pro-
gresso técnico e da racionalidade não é descartada, mas
redefinida. O objetivo agora é o cálculo social dos custos e
benefícios, e não a pseudo-racionalidade do mercado - que
é na verdade a racionalidade da acumulação e da apropria-
ção, por uns poucos, do resultado do trabalho da maioria.
O alvo é a expansão do bem-estar coletivo, não um aumento
da produção. Evidentemente tudo isso requer níveis eleva-
dos de inversão e acumulação, mas agora o centro de
atenção passa a ser a orientação dos investimentos e as
formas de controle sobre o processo de acumulação.
Que não se confunda a discussão deste projeto de um
"outro desenvolvimento" com a polêmica entre crescimen-
to zero e "desenvolvimento", nem com o confronto entre a
insana atitude dos que rezam "bendita seja a poluição" e a
ingenuidade dos que acreditam ser melhor deixar de pro-
duzir do que contaminar o ecossistema, ou entre os que
apregoam a ruralização do mundo e os que cantam as
virtudes da urbanização a qualquer preço. Nestes termos, a
discussão só pode dar num diálogo de surdos.
Quando os defensores de um "outro desenvolvimento"
insistem em que a racionalidade social deveria prevalecer
sobre a racionalidade instrumental, pseudotécnica, estão
simplesmente reafirmando que o mundo contemporâneo

164
pode contar com alternativas mais ricas e variadas; que, se
bem seja certo que para poder repartir é preciso crescer, por
outro lado não é verdade que o crescimento por si só levará
a uma repartição justa dos frutos do progresso técnico entre
as classes e as nações.
Num esforço por expressar de forma sintética um estilo
mais igualitário de desenvolvimento, que requer maior
participação e controle democrático sobre as decisões por
parte daqueles que sofrem suas conseqüências e, ao mesmo
tempo, uma substantiva racionalidade social no emprego
dos recursos, na utilização do espaço, na seleção de tecno-
logias e no estudo atencioso dos impactos negativos que o
processo de crescimento econômico possa ter sobre o meio
ambiente, cunhou-se o termo ecodesenvolvimento. 3 No
ecodesenvolvimento não há lugar para a posição cínica
daqueles que, nos países ricos, propõem o não-desenvolvi-
mento e na não-poluição (e, por conseguinte, a não-indus-
trialização, tal como a concebem) da Periferia. Os que
apóiam o ecodesenvolvimento não crêem no congelamento
do status quo, nem na diminuição das possibilidades das
nações subdesenvolvidas de alcançarem uma civilização
material menos carente (que seria a conseqüência do cres-
cimento zero). Ao contrário, defendem um crescimento
autônomo e diferenciado (respeitador, portanto, das carac-
terísticas culturais, espaciais e políticas do Terceiro Mun-
do).
O conceito - e a meta estratégica - que resume esta
forma de desenvolvimento é o de autoconfiança e autono-
mia. Ou seja, uma categoria política que rejeita a idéia de
que a superioridade tecnológica das grandes potências é
inevitável. E que, por isso mesmo, implica a não-aceitação
do monopólio das tecnologias sofisticadas, esta forma me-
diante a qual as economias centrais e seus setores mais
dinâmicos - as corporações transnacionais - procuram

165
garantir sua dominação sobre as economias dependentes do
Terceiro Mundo.
Até recentemente, a indiscutível primazia da tecnologia
deixava os países do Terceiro Mundo sem nenhuma outra
alternativa senão copiar o modelo da civilização industrial-
predatória, para assegurar sua integridade nacional (ou para
manter esta ilusão) e para levar a cabo um processo de
crescimento industrial que tornasse possível - talvez, e no
futuro... - o aumento do nível de vida de suas empobrecidas
massas. A descoberta militar de que as forças guerrilheiras
são capazes de derrotar os exércitos modernos, sempre e
quando tenham respaldo popular, dissipou outra ilusão
tecnocrática, no transcorrer de uma experiência histórica
que vai do desastre francês em Dien Bien Phu à derrota dos
Estados Unidos no Vietnã (propiciada em parte pelo desen-
canto com os objetivos da guerra que as elites culturais, as
minorias e os jovens dos Estados Unidos experimentaram).
Hoje, não são só os povos do Terceiro Mundo que
buscam alternativas. Também na consciência agudamente
crítica de seus mais destacados representantes técnico-cien-
tíficos vem se aninhando a convicção de que:
- o modelo tecnológico que os países industrializados
exibem não pode ser aplicado sem provocar sérios
transtornos, a menos que seja acompanhado de sig-
nificativas redefinições do controle político e de suas
conseqüências sociais;
- existem alternativas viáveis de solução; só que re-
querem imaginação, pesquisa e reorientação das in-
versões (p. ex., por que manter a custosa tradição da
Cloaca Máxima nas novas metrópoles do Terceiro
Mundo que ainda não possuem amplas redes de
esgoto, ao invés de buscar métodos de eliminação de
detritos mediante técnicas naturais e orgânicas, para
a casa ou os quarteirões?);

166
~ ,

- não existem argumentos convincentes para vincular


as economias subdesenvolvidas a formas de depen-
dência tecnológica economicamente exploradoras
baseadas em marcas registradas, know-how e outros
contratos. Estes poderiam muito bem ser transforma-
dos em patrimônio das economias nacionais, com a
condição de que os países do Terceiro Mundo se
organizem técnica, científica e politicamente para
controlar as atividades das empresas multinacionais
neste campo e obrigá-las a compartilhar o conheci-
mento técnico;
- a revolução cultural dos países do Terceiro Mundo
deveria incluir em seus objetivos a formação de
quadros tecnicamente qualificados.
Precisamente porque uma crise de confiança no modelo
industrializante-predatório se instalou entre as elites dos
países desenvolvidos e porque as novas sendas rumo ao
desenvolvimento e à coexistência internacional dependem
da ação autônoma dos homens e das mulheres do Terceiro
Mundo, os povos da Periferia estão convencidos de que são
possíveis, sim, estilos alternativos de desenvolvimento.
Uma crescente autoconfiança está levando estes povos,
através de seus representantes e de alguns governos, a
buscar o apoio mútuo em vez de confiar na ajuda prove-
niente do Centro, (particularmente a que se vincula a inte-
resses militares ou das multinacionais), sobejamente desa-
creditada.
Com base em tais valores, alguns dirigentes da comu-
nidade internacional, em declarações junto às Nações Uni-
das, em reuniões especializadas (como a que resultou na
declaração de Cocoyoc4) e em alguns foruns especiais que
vêm sendo criados para a discussão de novas estratégias de
desenvolvimento (como o Forum do Terceiro Mundo),
começaram a definir os objetivos que deveriam guiar a

"
167
nova ordem internacional e dar consistência a um "outro
desenvolvimento".
Na medida em que o conceito de autoconfiança e
autonomia reconhece implicitamente a diferença de expe-
riências históricas dos povos e defende a contribuição real
que as massas empobrecidas têm a oferecer para a solução
de seus próprios problemas, esta corrente de opinião, hoje
em voga, acaba sendo, por sua cabal honestidade, modesta:
não propõe fórmulas nem "modelos" nem planos de "ajuda
e assistência". O "outro desenvolvimento" obriga a descar-
tar, dentro das Nações Unidas, nos governos e entre as
elites, a vã pretensão de que a meta final já está clara e de
que é tecnicamente possível elaborar o programa de ajuda
e planejamento que indicará o caminho para o mundo
maravilhoso.
O ponto de partida, portanto, é totalmente oposto ao que
inspirou as fracassadas "décadas de desenvolvimento".
Nessa estratégia, computaram-se as "brechas" entre os
países industrializados e os do Terceiro Mundo; precisa-
ram-se as porcentagens do PNB que os países ricos teriam
que oferecer, à guisa de "contribuição", aos países pobres;
e os organismos especializados resolveram dar apoio finan-
ceiro e técnico aos planos e programas que seriam aplicados
no Terceiro Mundo, com o fim de aproximá-lo mais do
mundo industrializado.
Gratuito, injusto até, seria afirmar que todo o aparato
da cooperação internacional deu em nada. Existem algumas
experiências relevantes em programas específicos que real-
mente funcionaram. E a pretexto destes programas e ações
- especialmente de órgãos como as Comissões Regionais
das Nações Unidas - estabeleceu-se um rico intercâmbio
de opiniões e experiências entre técnicos e administradores
que, por sua vez, travaram contato com instituições e
personalidades do mundo industrializado, as quais acaba-
ram por se sensibilizar pelos problemas dos países do

168

L...- ~ ~ ~ •
~ .

Terceiro Mundo. Como sistema, porém, a cooperação in-


ternacional fracassou, na medida em que manteve a explo-
ração econômica internacional (à qual não só não se con-
trapunha, mas chegava mesmo a favorecer) reafirmando a
existência de uma ordem mundial assimétrica e de socie-
dades extremamente desiguais, bem como em que propa-
gou um modelo de desenvolvimento deformante.
A reorganização da ordem mundial deveria começar
com o mesmo espírito de metódica humildade que agora se
sugere aos que desejam cooperar no terreno do desenvol-
vimento internacional, com algum tipo de crítica coletiva
das Nações Unidas. Só que esta crítica deveria se basear
mais na pesquisa e no estudo da diversidade das experiên-
cias concretas por que passaram os países do Terceiro
Mundo ao enfrentar situações delicadas, do que na elabo-
ração de miméticas políticas de desenvolvimento e na
implementação de tais políticas através da parafernália dos
atuais "planos de desenvolvimento".
Uma série limitação institucional de que padece o sis-
tema das Nações Unidas reside na postura basicamente
oficiosa adotada por todos os seus organismos, que se vêem
condenados a atuar como contraponto dos governos nacio-
nais, marginalizando as sociedades civis e dando um trata-
mento quase farisaico às organizações não-governamen-
tais. Se as novas utopias, conforme se assinalou, nascem e
nutrem-se dos movimentos sociais (feminismos, lutas anti-
racistas, movimentos de jovens organizações de protesto
urbano, fornns de defesa do habitat e do meio ambiente,
etc.), toda ordem internacional que se pretenda legitima-
mente representativa dentro dos valores emergentes, e toda
organização internacional que queira de fato lutar ombro a
ombro com o povo (e não atuar como agência defensora de
modelos culturais a serem impostos ao povo) deveriam
estar mais intimamente ligadas às raízes das sociedades
nacionais.

169
Esta exigência deveria se traduzir num sistema compos-
to ao nível das agências mais ativas da ordem internacional,
numa espécie de tribuna que desse voz não apenas às
delegações dos governos, mas principalmente às minorias
políticas (que normalmente correspondem à maioria da
população). As delegações por países deveriam ser integra-
das pelas categorias sociais, como consumidores, traba-
lhadores de todo tipo, mulheres, minorias étnicas e religio-
sas, jovens, camponeses pobres, moradores de bairros pe-
riféricos, etc. Isto daria maior autenticidade aos foruns
internacionais e permitiria aos países ampliar o tipo de
representação baseado nos valores de uma democracia de
participação.
No plano de uma igualdade formal entre nações, é
ilimitado o número de reformas que se poderiam concreti-
zar com base nos ideais de "outro desenvolvimento". Basta,
aqui, uma referência ao poder de veto e às situações defacto
que levam a vetar as minorias nos organismos financeiros
especializados (p. ex., o Fundo Monetário Internacional e
o Banco Mundial) bem como nos organismos políticos. De
certo que não seria realista pretender abolir as desigualda-
des econômicas e estratégias entre as nações mediante
declarações de princípios e intenções. Mas não seria tão
ilusório propor um sistema de contrapeso que se propuses-
se, p. ex., organizar secretariados das delegações do Ter-
ceiro Mundo para criar e fortalecer grupos informais (como
o dos 77 ou o dos não-alinhados), ou organizações regio-
nais (como o recém-criado Sistema Econômico Latino-
Americano - SELA), ou ainda organizações formadas es-
pecificamente por países produtores de matérias-primas,
das quais a OPEP foi a primeira. E seria particularmente
necessário, para sermos fiéis ao princípio de autoconfiança
e autonomia, que o Terceiro Mundo tivesse acesso aos
recursos organizacionais e financeiros para que seus países
tivessem voz na discussão das metas e experiências de

170
desenvolvimento e que, além disso, se facilitasse o contato
direto e a troca de experiências entre líderes e militantes de
movimentos sociais.
A concretização de um "outro desenvolvimento" nos
países do Terceiro Mundo é ainda mais difícil. De saída,
urge precisar e desmistificar noção mesma de Terceiro
Mundo,já que as experiências lústóricas desses países, seu
relativo grau de avanço econômico e seus sistemas políticos
e sociais são extremamente variados. Vale dizer que a
linguagem usada para aludir à unidade do Terceiro Mundo
é, com muita freqüência, mais que retórica.
Pois bem, o novo enfoque dos problemas do desenvol-
vimento começa por reconhecer a diversidade dos pontos
de partida e a fase atual do processo histórico dos países
subdesenvolvidos. Qualquer pretensão de impor um marco
único às aspirações e possibilidades destes países signifi-
caria repetir o mesmo erro cometido no passado, quando
neles se procurou reproduzir a experiência dos países in-
dustrializados. Esta advertência é válida e necessária de vez
que, por muito fascinante que seja a experiência de cons-
truir sociedades socialistas em países de economia agro-
camponesa (como no Vietnã ou no Camboja), ou em países
barrados em sua aventura histórica pela experiência colo-
nial ou pela relativa falta de recursos naturais (Tanzânia e
agora Guiné) - ou ainda em países com uma experiência
cultural pelo menos tão antiga e rica quanto a ocidental
(China ou os países islâmicos do Norte de África) -, seria
precipitado e errôneo compará-los, p. ex., com grande parte
dos países da América Latina, alguns dos quais são alta-
mente urbanizados, relativamente industrializados e, em-
bora dependentes, assimilaram quase por completo a cultu-
ra ocidental (p. ex., Argentina, Uruguai, Clúle e, em certa
medida, também o Brasil). Aqui as rotas rumo à igualdade,
à democracia de participação e à autonomia seguem traça-
dos completamente distintos dos do socialismo agrário.

171
Inversamente, em certos tipos de países - grosso modo:
praticamente todos os do Sul da Asia que margeiam o
oceano Índico até o extremo do Sudeste Asiático, claro que
com as óbvias diferenças e especificidades do subcontinen-
te indiano - a concretização dos objetivos e ideais de
igualdade, de democracia participativa, de revitalização do
espaço regional em termos de ecodesenvolvimento, de
ativação das forças básicas da sociedade e de autonomia,
poderia fazer pensar em semelhanças eletivas (que são, de
fato, estruturais) com o modelo de socialismo igualitário e
frugal que parte da expropriação agrária e tem sua base
sócio-política e econômica na comuna estilo chinês. Evi-
dentemente, o fato de caracterizá-los desse modo não relega
tais países ao agrarismo (a China se industrializa); e nem
se descarta o ideal de vida proletário. Mas confere ao
processo de transição o colorido de uma democracia quase
direta, de uma via antiburocrática e de uma renovação
puritana (de fato não-urbana) dos estilos de vida que os
separa bastante, p. ex., do estilo de vida política do Magreb,
onde ao colonialismo comercial se soma o feudalismo
agrário. Neste a importância da urbanização se deve à
produção artesanal, stricto sensu, às manufaturas oriundas
da força do bazar - essa herança da Idade Média -, tudo
isso organizado através de uma tradição cultural baseada
em hierarquias e exclusões muito mais marcadas do que as
encontráveis no feudalismo agrário asiático, já deteriorado
por séculos de submissão às múltiplas burguesias mercan-
tis. De modo semelhante, a riqueza das situações sociais
derivadas da coexistência de diferentes formas de produção
reorganizada pelo neocolonialismo conseguiu liquidar a
base agrícola tradicional de muitos países da África negra,
sem contudo substituí-la por uma economia urbano-indus-
trial ou urbano-mercantil capaz de sobreviver sem vínculos
coloniais. Nesses países impõe-se, pela crise do domínio
colonial e a passagem para um estilo de desenvolvimento

172
livre, auto-sustentado, igualitário e democrático, a necessi-
dade de uma reinvenção da sociedade. O que abre à imagi-
nação do Terceiro Mundo um vasto campo de experimen-
tação.
Já aos países latino-americanos as oportunidades que
se oferecem neste sentido são muito mais restritas. Muitos
deles atravessam uma experiência histórica predetermina-
da no destino industrial urbano de suas sociedades e já não
há lugar (em alguns não houve nunca) para assentar os
alicerces de uma forma comunitária de sociedade. Outros
- especialmente aqueles em cujas sociedades ainda está
latente o peso das civilizações andinas anteriores à coloni-
zação - têm um problema rural maior e, por isso mesmo,
qualquer estratégia de desenvolvimento alternativo deveria
levar em conta o que disse um dos mais importantes pen-
sadores sociais do Continente, falando de seu país: uma
revolução, ou se faz em função da população indígena, ou
fracassa. Escusado dizer que, mesmo nestes casos, continua
sendo necessário incrementar a eficiência tecnológica das
economias locais. E longe de mim insinuar que a única
coisa relevante para a experiência histórica desses países
seja a ruralização. O que desejo é apontar para a definição
e o encadeamento dos objetívos estratégícos, os quais, para
terem legitimidade, deveriam sempre responder "por quê?"
e refletir o fato real de que o verdadeiro sujeito da história
não são os indivíduos, mas as categorias sociais.
Lembrar, de modo assim tão breve, a diversidade das
alternativas e dos fatores que condicionam os caminhos
abertos para os países do Terceiro Mundo, em sua luta pela
autonomia e pela liberdade, não implica inação ou deses-
pero diante de tamanha diversidade. Ainda que diferentes
os caminhos, as metas básicas são as mesmas. Carece, isto
sim, arquitetar alguns indicadores para poder medir seu
desempenho, aplicá-los e estudá-los pelo menos com o
lVesmo entusiasmo invertido na medição do crescimento

173

L
econômico. Há pouco mais de duas décadas, expressões
como produto nacional bruto, renda per capita, coeficien-
tes de importação, etc., eram desconhecidas da maioria dos
homens de Estado, jornalistas, estudantes e das pessoas em
geral. Com as décadas de desenvolvimento, estas medidas
de diferenciação econômica passaram a fazer parte do
linguajar do dia-a-dia.
Já é tempo de reorientar esforços para a medição dos
resultados do desenvolvimento com o auxílio de indicado-
res centrados, desta vez, na qualidade de vida e na igual-
dade na distribuição de bens e_serviços. Houve progressos
neste campo, tanto no sistema das Nações Unidas (nos
esforços de pesquisa e sistematização da UNRISD, p. ex.),
quanto em países isolados. Mas ainda não se progrediu o
bastante para que, p. ex., os créditos internacionais sejam
vinculados ao melhoramento objetivo do bem-estar do
povo e para que haja indicadores do bem-estar do povo tão
precisos como os que atualmente medem a solvência na-
cional, a taxa de inflação e o índice de crescimento.
Há instrumentos metodológicos para medir, p. ex, a
taxa de concentração da renda (como o coeficiente Gini),
as necessidades nutricionais ou as deficiências do nível de
salário mínimo. O que ainda não existe - e esta é uma área
em que é preciso empenho, se se deseja chegar a um "outro
desenvolvimento" - é a vontade política de transformar
estes índices em instrumentos de pressão para aumentar a
igualdade e melhorar a qualidade de vida. Cumpre, pois,
investir muito esforço na medição sistemática e numa
ampla publicidade, para que os resultados de simples ava-
liações possam revelar, por exemplo:
- a evolução da taxa de concentração da renda em cada
país;
- a distribuição da riqueza e dos salários (incluindo
uma análise comparativa, a nível internacional, dos
salários mais baixos e mais altos por tipos de empre-

174
sa; salário médio, mediano e modal em diferentes
tipos de empresa de vários países, diferenças entre
salários pagos em diferentes países por um mesmo
tipo de trabalho pelas mesmas empresas multina-
cionais, etc.).
- os artigos básicos da cesta de compras de um traba-
lhador urbano e de um trabalhador rural, e o número
de horas que o trabalhador emprega, em cada país,
para adquirir estes bens de consumo ordinário;
- um time budget no qual se possa ver o modo como
as diferentes classes sociais distribuem suas energias
entre lazer, trabalho, transporte, assistência médica,
etc.;
- o alcance dos sistemas de seguro social, para identi-
ficar sobretudo o relativo grau de diferenciação (ou
igualdade) nos serviços de assistência oferecidos a
diferentes categorias em cada país;
- as formas como se financia a Previdência Social, a
fim de avaliar sua eficácia real como instrumento
para a distribuição da renda e para a igualdade social,
ou a fim de desmascarar os mecanismos que permi-
tem - como sói acontecer nos países subdesenvolvi-
dos - a transferência de recursos dos pobres para os
mais pobres, sem tocar na distribuição global da
riqueza nem nos privilégios das classes de rendas
mais altas;
- os mecanismos dos sistemas tributários, especial-
mente para desvendar aspectos tais como a propor-
ção entre os impostos diretos e os indiretos, etc.
É muito longa a lista dos indicadores sociais mais
significativos. Por isso mesmo, o critério a seguir em sua
seleção deveria obedecer ao grau de sensibilidade que
possuam para medir a igualdade social. Não obstante, o
juízo crítico dos conceitos do atual modelo de desenvolvi-

175
mento não tennina aqui: também se deveria incluir como
parâmetros o grau de liberdade real do povo e sua partici-
pação no controle sobre as decisões. Na busca de métodos
para construir indicadores simples que possam ser usados
sistematicamente e que tenham uma aplicação assegurada
e universal, tudo ainda está por fazer. A defesa das liberda-
des básicas, tanto individuais como sociais, tem sido con-
fiada a umas quantas instituições e organizações - geral-
mente privadas - cujas repetidas denúncias perderam força
exatamente porque repetidas. E porque, também, partem de
entidades que têm sido acusadas muitas vezes de defender
interesses privados ou de depender ideologicamente de um
detenninado partido.
Não seria o momento de começar a criar, partindo de
um movimento que brota do Terceiro Mundo, uma espécie
de Tribunal de Consciência Política, formado por repre-
sentantes dos governos, dos sindicatos, das Igrejas, das
universidades, dos intelectuais, que anualmente pronun-
ciasse sentença - com base em regras previamente estabe-
lecidas de comum acordo - sobre o grau de progresso
alcançado pelos povos e governos em seu desenvolvimento
político? Em vez de seguir os modelos de liberdade ou de
opressão institucionalizada que o Centro propõe à Periferia,
não deveríamos buscar inspiração na democracia de parti-
cipação que emerge no Terceiro Mundo para fixar as pautas
de conduta civil, social e política que nos permitam medir
os avanços efetivos do povo nas áreas de expressão dó
pensamento, da organização de novos campos de debate e
decisão, da garantia dos direitos das minorias e das oposi-
ções, da rejeição da tortura e da violência?
As deficiências do utopismo não deveriam assustar OS
que desejam reformar tanto a ordem soci~l e econômica
quanto a moral. Também era utópico imaginar, durante a
guerra fria e a era McCarthy, que os happenings, as mar-
chas, as acusações à CIA e às intervenções em telefones, as

176
manifestações pacifistas, etc., iriam levar - nos Estados
Unidos mesmo - a uma profunda ruptura com o despotis-
mo, que foi dar em Watergate e na impossibilidade de
continuar a guerra no Vietnã.
Será impossível propor e começar a implementar nor-
mas de conduta política gestadas nas escuras profundezas
da opressão em tantos países onde a violência e a repressão
se erigiram em padrões de segurança nacional? Tais normas
podem finalmente revelar que este "outro desenvolvimen-
to" que buscamos, ainda que faça sua aparição na esfera
econômica, deságua noplano social e adquire uma dimen-
são política através da igualdade que propõe e do tipo de
participação que propugna. Mas o "outro desenvolvimen-
to" só se cumprirá quando encontrar um meio de trans-
formar a utopia em realidade do dia-a-dia, restituindo à
experiência humana uma dimensão que, ainda que moral,
não é nada irreal. Entretanto, a força desta dimensão não
está na ot:gulhosa salvação do indivíduo, mas no humilde
reconhecimento de que a expressão da existência e a inte-
gridade do indivíduo dependem de um acordo e de uma
ação que só podem ser coletivos. Neste sentido, o princípio
de autoconfiança e autonomia implica a esperança e a fé de
que já é possível inscrever nas coisas as metas que deseja-
mos alcançar. Q

. É com esta convicção que aqui se propõem a reconstru-


. ção da ordem internacional e a construção de sociedades
mais igualitárias, democráticas e autoconfiantes. Novas
sociedades, com base não no subdesenvolvimento da Peri-
feria e na estagnação do Centro, mas num estilo de desen-
volvimento cuja raison d.'être é o cálculo social de custos
e benefícios.

NOTAS
1. Ver Bourdieu, Pierre e Deisant, Yvcllc - "Le couluricr d sa griffe: contribution
à une Iheorie de la magic". Paris Acres, n. l,jan. 1975.

177

1
2. Ver Rensburg, Palrick van - Reportfrom Swallellg Hill. Educarioll cmd Employ-
mem in anAfrican Coulllry. Uppsala, The Dag Harnrnarskjõld FOWldatioll, 1974.
3. O melhor enWlciado desta problemática se encontra em Sachs, Ignacy - MEnvi-
roruunent and Styles of Development". In: Malhews, Willian H. (org.) - Outer Limits
and Hurnan Needs. Uppsala, The Dag Harnrnarskjõld FoWldation, 1976.
4. Ver Developlllelll Dialogue, Uppsala,lL 2,1974.

178
Capítulo V

o DESENVOLVIMENTO NA
BERLINDA"

Não bastou a Segunda Grande Guerra para mostrar aos


crédulos habitantes deste planeta que o século XIX termi-
nara. A crença no progresso não se abalou apesar da
destruição causada por duas Guerras Mundiais, do fanatis-
mo político hitleriano massacrando populações inteiras, em
suma, da reminiscência dos horrores da guerra numa escala
em que nem a imaginação fervente de Goya antevira e que
necessitou da sintaxe picassiana para simbolizar em Guer- ,....
nica o irracional corporificado. Talvez porque, contradito-
riamente, foi a ciência quem possibilitou a destruição máxi-
ma. A razão, domesticada nos canais técnicos, ajudou a
ponstruir a possibilidade do irracional absoluto. Tocava-se,
assim, os limites do possível: a destruição da humanidade
é uma façanha ao alcance do Dr. Strangelove. Mas conti-
nuou-se a crer, por algum tempo, na vitória da razão.
Pouco a pouco, quando a racionalidade formal atingiu
um ponto de máxima e o cientista vestiu o fetiche do grande .~
'I
sacerdote, escondendo por trás de sua sacralidade a força
do guerreiro, do empresário e do político, as indagações
mais céticas começaram a roer o coração da fera, que é o
* Publicado originalmente como "El Desarrollo en el Banquillo", Caderno do ILET,
México, DEE/Di24/e, ago/1979.

179
11

cérebro. Até que ponto o século de Luzes se corporificara


no Século do Progresso e este dera à nossa época a Vitória
da Razão?
Nesta altura, com o risco do confronto global como
possibilidade para dirimir as querelas entre Socialismo e "
Capitalismo, ou melhor, entre URSS e USA, o velho em-
pirismo do "trial and error" começou a substituir a crença
totalizante e metafísica que cada um dos dois Blocos tinha
(e em larga medida ainda a tem) de qtre encarnam isolada-
mente a vitória da razão e o apogeu do humano. Entretanto,
a reconversão da história dos deuses à crônica dos homens
vem sendo feita penosamente e nunca às custas do Olimpo.
A paixão do impossível se deslocou para o Vietnã de tantos
heroísmos, para o solo milenar de uma Judéia pavimentada
de cadáveres massacrados pela penúltima palavra da técni-
ca guerreira, para o Chifre da África das incertas fronteiras.
Já que não se pode incorrer no risco da confrontação global,
os limites orgulhosos da Razão passaram a se delinear sob
os corpos queimados dos que não sofreram o batismo da
"civilização tecnológica".
Seria difícil, depois disso, que o próprio cerne da civi-
lização ocidental permanecesse intocado: o que está em
jogo é a crença na Razão, ou pelo menos a crença no modo
pelo qual a Razão se faz presente como Técnica e como
princípio formal de ordenação do mundo.
Deriva daí também, embora nem sempre de modo
imediato, a crise da idéia de "desenvolvimento" e, mais
especificamente, de desenvolvimento econômico. Para en-
tender-se a contribuição das ciências sociais ao debate
contemporâneo e para delimitar seus alcances é necessário,
portanto, ver do ângulo deste debate o mesmo grande
problema que atormenta, a nível mais geral, o pensamento
ocidental. A consciência da existência de um "problema do
desenvolvimento", que constitui o b-a-bá da contribuição
do pensamento se não do Terceiro Mundo, pelo menos

180
sobre o Terceiro Mundo, supôs sempre um parâmetro:
sabia-se o que significava o progresso e este era almejado.
Hoje, no centro, põe-se em dúvida a idéia de progresso e
nem todos, na periferia, almejam o tipo de progresso que
pennitiu a construção da civilização contemporânea, gra-
ças ao domínio da Técnica pela Razão.
É natural que no início da crítica o alvo seja pouco claro:
pensa-se que é a razão em si quem perverte; o bom selva-
gem atrai novamente. Mas seria pouco convincente que a
erosão crítica parasse aí. O desafio que se antepõe diz
respeito precisamente ao velho problema, que foi de Marx
e de Weber também: será possível ir mais além da razão
formal e inquirir sobre os porquês e os para quem?
Ao analisar as novas propostas sobre o desenvolvimen-
to tratarei de mostrar que assistimos os primeiros balbucios
de uma nova visão do mundo. Nestas propostas faz-se
freqüentemente tábula rasa do que constituiu no passado
imediato a crença fundamental dos reformadores: a idéia
de acumulação da riqueza, de progresso técnico, de distri-
buição racional de recursos (planejamento) como instru-
mentos para atingir-se ideais humanistas. Neste ímpeto, os
revisores esquecem, freqüentemente, que se as propostas
do século XIX acreditavam na Razão, queriam alcançar
seus objetivos por intermédio da Revolução. Esta não só
englobaria um momento da vontade (e não necessariamen-
te de racionalidade) como se efetuaria pela destruição da
Dominação. Hoje junto com a descrença no progresso
surge uma espécie de desalento quanto à capacidade genui-
namente transformadora das instituições. Tal como se o
Estado tivesse engolfado a sociedade e frente ao novo
minotauro, apoiado na Técnica, só restasse o desespero
jansenista de refugiar-se do pecado no próprio ~undo,
constituindo aldeias que dariam a ilusão de serem globais
("global villages"), sem acreditar mais na possibilidade de
destruir a dominação ou pelo menos de refonnar o Estado.

181
Para os "novos filósofos", por exemplo, a dominação é um
dado e o estado revolucionário (libertador) é um contra-
senso. Assim restaria somente reforçar as áreas individuais
de reação e liberdade, num retraimento da problemática
política, até o interior das aldeias auto-suficientes.
Ora, se em algo se baseou a perspectiva desenvolvi-
mentista pelo menos tal como foi elaborada na América
Latina, foi precisamente na capacidade de identificar pro-
blemas, tentar superar obstáculos e abrir caminhos para a
acumulação da riqueza e para que se pudessem partilhar os
frutos do progresso técnico. Na arremetida nesta direção,
se houve instituição na qual nossos reformadores iluminis-
tas fizeram fé, foi no Estado. A crise da ideologia contem-
porânea atinge em cheio, portanto, o instrumental analítico
que construímos no passado.
Neste ensaio farei brevíssima síntese da "teoria do
desenvolvimento" que se elaborou na América Latina,
mostrarei o começo do movimento reflexivo que a criticou
··desde adentro", através da ·'teoria da dependência" e
procurarei assinalar as mudanças tanto nos termos em que
se coloca o problema do desenvolvimento no momento em
que se intensificam as demandas por uma "nova ordem
econômica internacional", quanto nas ideologias vigentes
sobre os novos ··estilos de desenvolvimento". Na medida
do possível, farei o contraponto entre o pensamento que
procura sintetizar as demandas da Periferia por um mundo
reformado e as orientações valorativas que se estão consti-
tuindo nas sociedades industriais avançadas. Por fim, ten-
tarei desenhar os parâmetros da Nova Utopia que parecem
estar entre a recolocação válida dos estilos de desenvolvi-
mento e a revitalização da crença na possibilidade de
controle social da Razão. Quem sabe, por esta via, o século
XX escape da camisa de força que lhe foi imposta por uma
visão demasiado otimista da capacidade da Inteligência,
sem deixar-se engolfar pelo coletivismo milenarista ou pelo

182
individualismo que ,pode ser "racional", mas dificilmente
engloba a ânsia pelo coletivo, que também é parte consti-
tutiva dos anseios contemporâneos.

A teoria "latino-americana" do desenvolvimento


o prestígio de algumas idéias nascidas na CEPAL a
respeito do desenvolvimento econômico poderia fazer crer
que se desenvolveu um corpo analítico de proposições
relativas a uma "teoria do desenvolvimento". E, de fato, em
anos recentes, como veremos adiante, tanto Celso Furtado l
quanto Osvaldo Sunkel e Pedro Val deram à tradição de
análise, dita estruturalista, formulações sintéticas na dire-
ção da consolidação de um paradigma analítico. Entretanto,
nas formulações originais os enfoques sobre o desenvolvi-
mento foram fragmentários. Se despertaram particular in-
teresse foi porque eles equacionam problemas importantes
e, apesar de serem teoricamente despretensiosos, contras-
tavam com o que a teoria econômica ortodoxa apresentava
como "verdade estabelecida".
Se tomarmos o Estudo Econômico da CEPAL de 1949
ou o artigo de Prebisch sobre "EI Desarrollo Económico de
la América Latina y algunos de sus principales problemas,,3
a preocupação central não era com uma "teoria do desen-
volvimento", mas com a explicação de desigualdades entre
economias nacionais que se estavam acentuando através
do comércio internacional. Hans Singer, economista das
Nações Unidas, publicara um artigo sobre "The distribution
of gains between investing and borrowing countries,,4,
mostrando a tendência à queda dos preços dos produtos
primários, em relação aos preços dos produtos industriais
exportados pelo Centro, mediante uma série de dados que
abarcavam mais de 70 anos. Ora, a teoria do comércio
internacional, especialmente em sua versão neoclássica,
previra o oposto: a especialização da produção e o inter-

183
câmbio, pennitindo o aproveitamento ótimo dos fatores
produtivos de acordo com a dotação de recursos dos países,
deveria provocar uma tendência à equalização relativa da
remuneração dos fatores de produção. Conseqüentemente,
o comércio internacional seria um 'organismo capaz de
tender a equalizar diferenças internacionais e não de acen-
tuá-Ias. 5
A expectativa clássica da teoria do comércio interna-
cional, desde as ricardianas, passando por Ohlin, Aba Ler-
ner, Heckscher e Samuelson, seria, à condição de que
houvesse "progresso técnico", a de que o comércio inter-
nacional (o princípio do mercado) fosse uma alavanca para
a equalização. Pouco importaria que o progresso se con-
centrasse inicialmente na indústria; o mecanismo dos pre-
ços induziria à queda relativa dos produtos industriais em
comparação com os produtos agrícolas, pennitindo dessa
forma que os exportadores destes se beneficiassem indire-
tamente dos frutos do progresso técnico. A era da razão
encontrava na indústria e no mercado a justificativa para
sua crença orgulhosa nos efeitos do progresso.
Vejamos o contraste:
- para JoOO Stuart Mill, devia depreender-se que "os
valores de intercâmbio dos artigos manufaturados,
comparados com os produtos da agricultura e das
minas, têm uma tendência absoluta e certa a baixar,
na medida em que aumentam a população e a indús-
tria... 6
- para Raul Prebisch as rendas crescem no centro com
maior rapidez do que na periferia porque o aumento
de produtividade na produção industrial não se trans-
fere para os preços porque os oligopólios defendem
sua taxa de lucro e os sindicatos fazem pressões para
manter o nível dos salários7 , e desta forma há uma
tendência à queda relativa dos preços dos produtos
primários no comércio internacional.

184
Não é difícil perceber por que afirmações aparentemen-
te tão singelas provocaram tanto ruído. Negava-se a impor-
tância do comércio internacional per se como fundamento
para a igualdade econômica entre as nações e incorporava-
se à explicação do porquê disto fatores institucionais e
estruturais que se situavam além da esfera do mercado e
da livre flutuação dos preços: a luta sindical, a capacidade
organizativa dos operários e das empresas no Centro, os
efeitos dos monopólios.
Não se negava, contudo, a necessidade da técnica, a
crença em seus efeitos multiplicadores, sua relação com a
riqueza (ou mais precisamente com a acumulação de capi-
tais) etc. Ao contrário, a ênfase era posta no estabelecimen-
to de medidas políticas para permitir que a racionalidade
técnica resultasse em proveito substantivo para as nações e
para as camadas sociais desprovidas. Não é o caso de repetir
aqui sínteses ou interpretações sobre o pensamento cepali-
no. 8 Basta destacar que os primeiros passos na análise dos
problemas do subdesenvolvimento, embora não tenham
derivado de uma teoria ou de um sistema analítico comple-
to, feriram a fundo questões-chave propostas por outras
teorias e o fizeram não só propugnando políticas alternati-
vas, mas buscando no nível estrutural as condições para
uma racionalização substantiva.
Esta perspectiva básica manteve-se, com o correr do
tempo, tanto nos textos da CEPAL como nos dos autores
latino-americanos que procuraram elaborar academica-
mente a teoria do desenvolvimento. Celso Furtado, por
exemplo, em seu livro teórico sobre o tema, Teoria e
Política do Desenvolvimento Econômico, afirma:
"Sintetizando, o desenvolvimento tem lugar mediante
aumento de produtividade no nível do conjunto econô-
mico complexo. Esse aumento de produtividade (e da
renda per capita) é determinado por fenômenos de
crescimento que têm lugar em subconjuntos, ou setores,

185
particulares. As modificações de estrutura são trans-
formações nas relações e proporções internas do siste-
ma econômico, as quais têm como causa básica modi-
ficações nas formas de produção, mas que não se pode-
riam concretizar sem modificações na forma de distri-
buição e utilização da renda".9
Renda e produtividade são os conceitos-chave para a
caracterização de Furtado. O conceito de renda corres-
ponderia "à remuneração (ou ao custo) dos fatores utiliza-
dos na produção de bens e serviços. A renda gerada em um
período determinado pode ser concebida como o custo da
produção realizada, ou como o poder de compra engendra-
do pelo processo de produção" (op. cit., p. 89-90).
Furtado percebeu e enunciou a relação entre o conceito
de desenvolvimento e o de progresso. Mas, diz ele, foi dado
um passo decisivo pelos economistas ao tomarem precisa
aquela idéia vaga. Este foi a elaboração do conceito de
"fluxo de renda", cuja expansão é susceptível de quantifi-
cação. "O aumento do fluxo da renda, por unidade de força
de trabalho utilizada, tem sido aceito, desde a época dos
clássicos, como o melhor indicador do processo de desen-
volvimento de uma economia" (p. 90).
Se a análise de Furtado parasse neste ponto ela teria
redefinido a teoria de Prebish apenas por meio de uma
formalização de sabor neoclássico com condimento keyne-
siano. Mas o autor introduz outras idéias que, até certo
ponto e paradoxalmente, ancoram as modificações de es-
trutura, concebidas na forma estrita acima mencionada, em
modificações comandadas pela demanda; e esta última,
para Furtado, não pode ser vista desligada do sistema de
preferências individuais e coletivas:
"O conceito de desenvolvimento pode ser igualmente
utilizado com referência a qualquer conjunto econômi-
co no qual a composição da procura traduz preferências

186
- ~

individuais e coletivas baseadas num sistema de valo-


res. Se o conjunto econômico apresenta estrutura sim-
ples, isto é, se a procura não é autocriada, como no caso
de uma empresa ou de um setor produtivo especia-
lizado, convém evitar o conceito de desenvolvimento e
utilizar simplesmente o de crescimento" (p. 90).
Mais adiante escreve: "o conceito de desenvolvimento
compreende a idéia de crescimento, superando-a. Com
efeito: ele se refere ao crescimento de uma estrutura com-
plexa. Essa complexidade estrutural não é uma questão de
nível tecnológico. Na verdade ela traduz a diversidade das
formas sociais e econômicas engendradas pela divisão
social do trabalho" (p. 90).
A análise de Furtado continua abrindo o flanco à crítica
marxista (e já veremos que os teóricos da dependência farão
finca-pé nesse ponto), tanto porque parte da noção de fluxo
de renda sem referir-se à exploração social que o capital
supõe, como porque enfatiza como elemento dinâmico a
demanda e não a produção. Entretanto, ela não só reintro-
duz a questão estrutural da divisão social do trabalho como
estabelece uma ponte com as teorias em voga sobre "um
outro desenvolvimento". Com efeito, Furtado não supõe,
para explicar o desenvolvimento, a autonomia do fator
técnico; e inclui como componente central da explicação o
sistema de preferências, ou o sistema de valores. Às vezes
o texto dá a impressão de que é a autonomia desse sistema
que caracteriza um autêntico desenvolvimento em contra-
posição ao mero crescimento, tema que foi retomado por
Furtado em seu ensaio sobre Os mitos do desenvolvimen-
to. 10 Não obstante, Furtado, pelo menos no livro aqui con-
siderado, não vai tão longe em sua ruptura parcial com o
estilo cepalino de análise: ele qualifica suas afirmações, de
tal modo que o problema do desenvolvimento se toma, ao
mesmo tempo, um problema de autonomia valorativa e de
aumento da produtividade física:

187
"O aumento da produtividade física com respeito ao
conjunto da força de trabalho de um sistema econômico
somente é possível mediante a introdução de formas
mais eficazes de utilização de recursos, os quais impli-
cam seja acumulação de capital, seja inovações tecno-
lógicas, ou mais correntemente a ação conjugada desses
dois fatores. Por outro lado, a realocação de recursos
que acompanha o aumento do fluxo de renda é condi-
cionada pela composição da procura, que é a expressão
do sistema de valores da comunidade" (p. 93).
A síntese proposta por nosso autor vai desde o aprovei-
tamento do instrumental de análise corrente na economia
"ortodoxa" até às preocupações com o horizonte valorativo
de opções, passando pela ênfase nos elementos estruturais
e na racionalidade no uso de fatores. Mas ela mantém a fé
no que de mais clássico o século XIX legou à ciência social
contemporânea: a idéia de otimização do uso de fatores e a
crítica, iniciada pelo marxismo, à pura racionalidade for-
mal. Só que Furtado, ao rebelar-se contra a racionalidade
formal, introduz um leque indeterminado (e, portanto, no
limite irracional) de opções: o sistema valorativo. A tensão
entre o que se quer (quem quer?) e o progresso material
possível (não apenas em termos físicos, mas das técnicas
de sua utilização) constituiria a equação não resolvida do
desenvolvimento. 11
A formulação de Sunkel e de Paz está mais próxima das
revisões da teoria cepalina que se faziam em Santiago nos
meados dos anos sessenta. Também estes autores enfatizam
a relação entre a idéia de progresso e a idéia de desenvol-
vimento. Mostram, porém, que o otimismo inerente à cren-
ça no êxito da razão - o progresso técnico - para solucionar
os problemas sociais não era aceito por todos os teóricos
do desenvolvimento. A preocupação com os efeitos do
progresso técnico sobre a acumulação, sobre a distribuição
da renda e sobre a alocação de recursos - que caracterizam

188
o debate sobre o desenvolvimento - não derivam do mero
progresso técnicO. 12 O ensaio de Aníbal Pinto sobre "La
concentración del progresso técnico y sus frutos en el
desarrollo latinoamericano"13 havia chamado suficiente-
mente a atenção para este ponto.
Mais ainda, no livro de Sunkel e Paz, a ênfase é dada
muito menos aos aspectos dinâmicos do "fluxo de renda"
e de variações na demanda do que às diferenças de estru-
tura. Àquela altura o debate sobre dependência já ganhara
adeptos entre os economistas da CEPAL:
"As noções de subdesenvolvimento e desenvolvimento
conduzem a uma apreciação muito diferente, pois se-
gundo elas as economias desenvolvidas têm uma con-
formação estrutural distinta da que caracteriza as sub-
desenvolvidas, já que a estrutura destas últimas é, em
medida significativa, uma resultante das relações que
existiram historicamente e perduram atualmente entre
' ".14
ambos grupos de palses
A noção de dependência (que convém repetir, fora
disseminadà em Santiago pela crítica sociológica) já apa-
rece incorporada ao enfoque, embora numa versão mais
próxima à da oposição entre país dominante e país domi-
nado.
"O desenvolvimento e o subdesenvolvimento podem
compreender-se, então, como estruturas parciais, mas
interdependentes, que configuram um sistema único. A
característica principal que diferencia ambas estruturas
é que a desenvolvida, em virtude de sua capacidade
endógena de crescimento, é dominante, e a subdesen-
volvida, dado o caráter induzido de sua dinâmica, é
dependente; e isto se aplica tanto entre países como
dent ro de um pals' " .15

Concebido o problema do desenvolvimento como uma


questão relativa à "capacidade endógena de crescimento"

189
e referida esta aos detenninantes históricos que estabelece-
ram uma forma de dominação, o passo à politização da
análise está dado:
"esta forma de conceber o desenvolvimento põe ênfase
na ação, nos instrumentos do poder político e nas
próprias estruturas de poder; e são estas, em última
análise, as que explicam a orientação, eficácia, intensi- "
dade e natureza da manipulação social interna e externa
da cultura, dos recursos produtivos, a técnica e os
grupos sócio-políticos" (...).
"Do mesmo modo se acentuam os aspectos relacio-
nados com a capacidade de investigação científica e
tecnológica, por ser elemento determinante - junto com
a estrutura do poder - da capacidade de ação e manipu-
lação tanto interna como das vinculações externas do
país".16
Quem diz política, na acepção acima, diz também
vontade e objetivos. Neste aspecto, Sunkel e Paz incorpo-
ram o que era a aspiração valorativa predominante entre os
que criticam os "efeitos perversos" (concentração de rendas
e de oportunidades de vida) do padrão de desenvolvimento
capitalista da periferia:
"O conceito de desenvolvimento, concebido como um
processo de mudança social, refere-se a um processo
deliberado que tem como finalidade última a equaliza-
ção das oportunidades sociais, políticas e econômicas,
tanto no plano nacional como em relação com socieda-
des que possuem padrões mais elevados de bem-estar
social". 17
Ou seja, nem Furtado nem Sunkel e Paz - o primeiro
revendo seus livros em 1975 e os últimos em 1970 - deram
ênfase à questão dos estilos de desenvolvimento; não pro-
blematizaram, como Furtado o faria posteriormente, a pos-
sibilidade e a conveniência de alcançar os mesmos padrões

190
de desenvolvimento dos países industrializados. Maior ho-
mogeneidade, sim; igualdade de condições e oportunidades
entre nações e internamente nas nações, sim; mas o pressu-
posto era: com uma política adequada, é possível e desejá-
vel generalizar o que já se alcançou como desenvolvimento
nos países industrialmente avançados.
A herança do século XIX, e mesmo de antes, da noção
de progresso se redefine, passando pelo crivo de uma
política com valores igualitários. Mas não se rompe.

o enfoque da dependência 1s
Ao mesmo tempo em que se foram desenvolvendo as
teorias cepalinas e que a prática das políticas de indus-
trialização foi revelando as dificuldades e os choques que
o processo de transformação econômico-social provocava,
elaboraram-se"contrateorias".
As conseqüências práticas do enfoque cepalino - e dos
desafios efetivos do desenvolvimento '- levaram os policy-
makers a sustentar:
a necessidade de reforçar os centros de decisão que
poderiam articular a "vontade deliberada" de alterar
uma situação que era diagnosticada como desfavo- J ••
rável; portanto, o fortalecimento do Estado e sua '~
:;.1
modernização através da criação de "agências públi-
cas de desenvolvimento" passaram a ser conside-
radas como pré-condições para melhorar o nível de
vida nacional;
a necessidade de absorver o progresso técnico ini-
cialmente através do investimento de capitais estran-
geiros, para assegurar a industrialização, que seria a
meta capaz de materializar os anseios transformado-
res;

191
- a necessidade da expansão dos mercados internos,
para deslocar o eixo da orientação principal do siste-
ma econômico do exterior para o interior; para tanto,
algumas medidas redistribucionistas deveriam ser
apoiadas. Em primeiro e principal lugar dever-se-ia
fazer uma reforma agrária que viesse junto com a
tecnificação da economia rural. Dessa maneira, as-
segurar-se-ia não só mercado para os produtos indus-
triais como oferta de alimentos à cidade, corrigin-
do-se os efeitos inflacionários das políticas indus-
trializadoras. Tudo isso sem desconsiderar o que,
desde Prebish, era fundamental: a incorporação aos
preços dos produtos de exportação dos custos de uma
mão-de-obra condignamente remunerada.
A crítica a estas políticas veio da esquerda e da direita.
Esta última, como é fácil de entender-se, colocava em
dúvida os benefícios da industrialização: tinha como argu-
mentos as análises sobre as vantagens que proporcionariaI11
a especialização da produção e o livre câmbio. As teses
cepalinas, para estes críticos, seriam enganos crassos ou
argumentos maliciosamente usados pelos que, sendo na
. verdade contrários ao sistema capitalista, preferiam dar a
batalha por partes; primeiro proporiam quimeras, como a
industrialização e o estatismo, para depois abrir o jogo
diretamente em favor do socialismo. A e.squerda criticaria
as "teorias do desenvolvimento" porque elas obscureciam
o principal: não há "desenvolvimento" sem acumulação de
capitais e esta nada mais é do que a expressão de uma
relação de exploração de classe.
Sem aprofundar a questão em termos das situações
peculiares de cada país e de cada conjuntura da economia
mundial, esta crítica era, na verdade, anterior às teorias
cepalinas. Em sua forma mais tosca (na versão dos anos
trinta e quarenta) denunciava-se o colonialismo e o impe-
rialismo como "freios ao desenvolvimento". E, natural-

192
mente, para quem considera que existe uma diferença entre
"crescimento" e "desenvolvimento" e que o último supõe
decisões autônomas dos sistemas nacionais e distribuição
mais eqüitativa dos frutos do progresso técnico, até por
definição, o imperialismo bloqueia o desenvolvimento.
Mais ainda: até meados dos anos cinqüenta o grosso dos
investimentos estrangeiros na América Latina se fazia para
controlar a produção e a comercialização de produtos agrí-
colas e de matérias-primas. Em geral os investidores estran-
geiros dos países centrais preferiam vender à periferia
produtos industriais acabados, mantendo nos países subde-
senvolvidos apenas indústria de montagem ou de repara-
ção.
Entretanto, a partir da década de 1950 como conseqüên-
cia da própria reação local, consubstanciada em políticas
industrializadoras e protecionistas, mudou a estratégia das
empresas estrangeiras (dos conglomerados e das multina-
cionais). A ação do empresariado local (privado e público)
mostrou que existiam possibilidades "técnicas" de indus-
trializar produtos de consumo corrente e de substituir as
importações, desde a época da Segunda Grande Guerra,
quando se interrompera o fluxo de importações. A partici-
pação do estado na regulamentação econômica e na prote-
ção dos mercados, bem como no deslanchar a produção de
insumos industriais básicos (aço, petróleo, energia, confor-
me os países) e, ainda por cima, a difusão de uma ideologia
favorável ao desenvolvimento, criaram desafios para a
antiga política antiindustrializante do capital estrangeiro.
Daí para frente a competição pelos mercados internos dos
países periféricos, bem como a crescente internacionaliza-
ção e diversificação da produção propiciada pela concor-
rência entre as grandes empresas oligopólicas, tomaram
obsoleta a crença no papel "antiindustrializador" do capital
estrangeiro, pelo menos no caso dos países com importan-
tes mercados internos potenciais.

193
Foi na passagem de uma conjuntura internacional para
outra (a partir de meados dos anos cinqüenta) que tanto o
empenho da CEPAL tomou-se rebarbativo, como tornou-
se falaz a idéia de que as relações imperialistas assentavam
numa aliança entre o latifúndio ("feudal" acrescentariam os
mais simplistas) e o capital estrangeiro. A crítica cepalina
era rebarbativa, entretanto, apenas num aspecto: os grandes
investidores passaram também a atuar de modo a propiciar
a industrialização. Mas esta nem fortaleceria o estado na-
cional (ampliando o conteúdo endógeno das decisões), nem
teria como pressuposto a ampliação de um mercado de
consumidores populares. Reforma agrária, políticas sala-
riais redistributivas, impostos progressivos etc., continua-
ram, por certo, a ser formulados na retórica oficial, es-
pecialmente depois da reunião da OEA de Punta deI Leste
(1961); mas não as ajustaram à prática. Esta caracterizou-se
pela concentração de rendas, pela modernização do apare-
lho de estado, pela vinculação deste último, em termos das
políticas propostas, à Grande Empresa Multinacional, pelas
"joint-ventures" unindo o setor produtivo estatal às multi-
nacionais, e assim por diante.
Quando esse quadro já se desenhava no horizonte, em
meados dos anos sessenta, o chamado "enfoque da depen-
dência" ganhou força como uma "contrateoria" ou "contra-
ideologia" que criticava, simultaneamente, as formulações
cepalinas e as formulações da esquerda tradicional. Esta
última continuava a ver na aliança "latifúndio-imperia-
lismo" o grande inimigo do desenvolvimento.
Quais eram as teses principais dos "dependentistas"?
Do ponto de vista metodológico as teorias sobre a
dependência punham ênfase no caráter histórico-estrutural
da situação de subdesenvolvimento e procuravam ligar a
emergência dessa situação, bem como sua reprodução, à
dinâmica do desenvolvimento do capitalismo em escala
mundial. Talvez se encontrem nos trabalhos de Cardoso

194

:i
I
(1964) e Frank (1966)19 as primeiras formulações mais
globalizantes sobre o caráter histórico-estrutural do subde-
senvolvimento e de crítica aos que sustentavam que os
"obstáculos ao desenvolvimento" poderiam ser removidos
pela modernização das formas de conduta e de expectativa
e pelos efeitos multiplicadores e de demonstração que os
investimentos externos ocasionariam. A ênfase posta na
análise da expansão do capitalismo internacional para ex-
plicar a natureza do subdesenvolvimento e sua ligação
estrutural com os pólos de desenvolvimento externo era
anterior às "teorias da dependência". Nas análises de ins-
piração marxista, especialmente dos historiadores 20 , mas
também de economistas, punha-se ênfase nas conexões
entre a expansão do capitalismo e seus efeitos na periferia.
Cabe recordar que a idéia de "dependência externa" era
trivialmente admitida nas análises cepalinas. O coeficiente
de "abertura" das economias locais, por exemplo, repisado
nas análises da CEPAL, media a relação entre importações
e produto nacional bruto.
O que foi específico no enfoque da dependência não
foi, portanto, a ênfase na "dependência externa" concebida
da forma acima, mas sim a análise dos padrões estruturais
que vinculam assimétrica e regularmente as economias
centrais. às periféricas. Introduzia-se, portanto, a noção de
dominação. Por este conceito, não se procurava mostrar,
como o faria Sunkel mais tarde, que para caracterizar o
"desenvolvimento autônomo" deveria existir um compo-
nente de vontade deliberada, ou de propósitos; ao contrá-
rio, a ênfase era posta na negativa: não é provável um
desenvolvimento autônomo, ceteris paribus. Não quero
discutir aqui o acerto ou o engano dessa afirmação. Quero
apenas qualificar: no pólo oposto (e descontínuo) da teoria
da dependência o que se vislumbrava não era o desenvol-
vimento autóctone mas... o socialismo. Este por certo não
se tornou explícito em muitos autores, mas a crítica à

195
possibilidade do "desenvolvimento", especialmente no que
se refere ao "desenvolvimento nacional", havia sido o
ponto de partida da análise de Dos Santos, Quijano, Marini,
Faletto e Cardoso, para mencionar apenas alguns autores.
Mais ainda, não se via a dominação apenas entre na-
ções. Procurava-se mostrar como essa supõe uma domina-
ção entre classes. Nem todos os autores que vieram a ser
considerados "dependentistas" encaravam a questão dessa
forma. Mas especialmente os sociólgos (e os acima citados
são todos sociólogos) estavam preocupados com a especi-
ficação dos padrões de exploração de classe, com a consti-
tuição de estruturas de poder e com oportunidades de
reação política. Estas seriam variáveis conforme a ligação
estrutural da economia local com as economias centrais.
Esta vinculação poderia realizar-se através "de enclaves",
de produtores nacionais ou por intermédio do desenvolvi-
mento industrial que associava os grupos empresariais
locais às multinacionais. Foi esta última forma de depen-
dência - por ser atual - a que despertou mais a atenção: era
a "nova dependência".
Na caracterização, em sentido estrito, do que estava
ocorrendo com as sociedades dependentes que se indus-
trializavam, as discrepâncias do ponto de vista são peque-
nas entre os vários autores "dependentistas" e mesmo entre
estes e os cepalinos de cepa pura. O corte se dá mais em
termos de ênfase na política e no papel da exploração entre
classes (a qual obviamente não é negada tampouco pelos
cepalinos, mas é vista de modo menos saliente do que a
exploração entre as nações)21 para explicar as característi-
cas das economias subdesenvolvidas e dependentes.
Penso que é possível resumir o modo pelo qual os
"dependentistas" articulam seus argumentos para descre-
ver as situações a que se referiam utilizando a síntese
recente de autores não comprometidos com a elaboração

196
de teorias da dependência, mas com a verificação de sua
consistência, da seguinte maneira:
- trata-se de situações nas quais existe penetração fi-
nanceira e tecnológica pelos centros capitalistas de-
senvolvidos;
esta penetração produz uma estrutura econômica
desequilibrada tanto internamente nas sociedades
periféricas como entre estas e o centro;
- a qual supõe limitações para o crescimento econômi-
co auto-sustentado na periferia;
- e propicia a emergência de padrões específicos de
relações capitalistas de classe;
- as quais requerem modificações no papel do estado
para afiançar tanto o financiamento da economia
quanto a articulação política de uma sociedade que
contém, em si, focos de inarticulação e de desequi-
l1'b1;10
. estrutura1.22
Por mais simplificadora que seja a síntese acima, ela
tem a virtude de não se deter no reconhecimento de uma
relação de "dependência econômica". Esta é, por certo, a
base sob que assenta a análise dos "dependentistas". Mas
nem ela se restringe à "penetração externa" (financeira e
tecnológica) nem esta última é vista como "fato discreto".
Ao contrário, é no movimento de expansão do capitalismo,
e conseqüentemente através de relações sociais de produ-
ção que envolvem exploração e dominação, que se registra
como-especificidade a dependência. Que especificidade é
essa?
Por um lado, no aspecto econômico, existem limitações
para o crescimento auto-sustentado: não se trata de inexis-
tência de tecnologia própria em si, ou da dívida externa por
si; ambos fenômenos são indicadores da debilidade da
acumulação capitalista na periferia. Não é apenas, portanto,
porque um estado-nação, central, domina outro, periférico,

197
que existe dependência. Essa é a expressão (ou equivale,
simplesmente) do movimento internacional do capital que,
embora se desenrole à escala mundial, formal e estrutu-
ralmente, dá-se unindo termos que são diferentes e assimé-
tricos: a reprodução do capital implica em sua circulação
no mercado internacional e nesta existe transferência de
mais-valia pelo intercâmbio desigual e existe a apropriação
de excedentes por parte das burguesias centrais graças à
deterioração dos termos de intercâmbio (aspectos superfi-
; ciais da dependência); mas implica essencialmente na ex-
tração da mais-valia através do processo de produção. E
esta extração, no caso das situações de dependência, impli-
ca na questão do controle (da "penetração") do trabalho
local por capitalistas estrangeiros (qualidade acidental, do
ângulo da extração direta da mais-valia que também pode
ser feita por capitalistas (nacionais). E também implica, na
transferência, para assegurar o circuito de produção, da
massa de recursos acumulados da periferia para o centro,
dada a heterogeneidade do sistema produtivo a nível mun-
dial e a debilidade relativa dos setores tecnológicos avan-
çados da periferia. É por isso que as "deliberações" e
"decisões" da periferia encontram obstáculos reais na es-
trutura não só do comércio mundial, mas do sistema pro-
dutivo internacional. E é óbvio que a análise destas ques-
tões tanto passa pela dinâmica da relação entre as classes
como pelas relações entre os estados-nação posto que estas
últimas são a forma concreta de articulação entre as bur-
guesias locais e as internacionais.
Por outro lado, no aspecto social, a natureza incompleta
e heterogênea da industrialização periférica (sem esquecer
que de forma ainda mais gritante ocorre algo do gênero com
as economias agro-exportadoras), produz efeitos que os
dependentistas apontaram até ao cansaço. Burguesias que
só se complementam associando-se na produção ao capital
estrangeiro ou subordinando-se no comércio mundial. Pro-

198
letariado que se distancia do resto da massa popular; com
o progresso da industrialização ou com a prosperidade dos
enclaves exportadores agrários e mineradores, "massas
marginais" que não são facilmente absorvíveis, mesmo
quando a industrialização prospera. Uma falsa "pequena
burguesia", que não corresponde diretamente ao conceito
de "burguesia pequena", aplicável à época do capitalismo
concorrencial europeu e sim à formação de amplas camadas
de assalariados (empregados de colarinho branco e técrn-
cos) gerados pela forma oligopólica e internacionalizada da
empresa multinacional que esmaga a anterior estrutura de
prestação de serviços e de comercialização. Uma estrutura
social no campo que dá margem a um amplo espectro de
relações sociais de produção, embora subordinando as
diversas classes e camadas ao grande capital (desde os
"camponeses" que trabalham a terra explorando a força de
trabalho familiar, até os trabalhadores rurais assalariados,
passando por gamas variadas de relações de meação, de
inquilinato, de trabalhadores semicompulsórios, etc.).
Por fim, no plano político, emerge um Estado-Produtor
e Repressivo que, ao mesmo tempo em que se apresenta
como nacional e, nesta medida, busca consenso, organiza
e implementa a exploração capitalista. Para tal às vezes se
choca com os interesses imediatos da burguesia local e das
multinacionais e toma-se ele próprio estado capitalista-pro-'
dutor; mas, ao mesmo tempo, se transforma em peça essen-
cial para viabilizar a acumulação privada e garantir os
padrões de distribuição da renda e de gasto público, de
circulação de bens e de formação do capital financeiro, que
tornam viável o desenvolvimento dependente-associado.
Toma-se, assim, o Estado mola do estilo de desenvolvi-
mento, excludente, concentrador de rendas e baseado num
sistema produtivo que atende à demanda das camadas de
altas rendas. Cada um dos aspectos aqui mencionados foi
tratado de forma diversa pelos autores que caracterizam as

199
situações de dependência. As controvérsias entre eles são
grandes. E a polêmica não esteve ausente da produção
intelectual latino-americana. Apesar disso, é fácil mostrar
que o enfoque da dependência singularizou-se frente aos
enfoques anteriores. Basta reler as páginas iniciais deste
ensaio, sobre os cepalinos, para verificar que os problemas
colocados pelos cepalinos - mesmo que a metodologia
estruturalista, no sentido que lhe atribuem os economistas,
tivesse sido a mesma - não são os mesmos colocados pelos
dependentistas.
Não farei comparações desnecessárias. Antes de fina-
lizar esta secção, quero referir-me, entretanto, à incorpora-
ção, por alguns "dependentistas", de um tema que, se bem
estivesse presente em alguns cepalinos, não ganhava di-
mensão que tomou na escola da dependência: o tema
cultural. Embora a "dependência cultural" tenha ficado
quase sempre por conta das implicações a serem derivadas
da situação de dependência em geral, pelo menos um autor
entre os primeiros teóricos de dependência - Aníbal Qui-
23
jan0 - colocou a questão em termos diretos. Muitos outros
referiram-se, naturalmente, à questão da autonomia tecno-
lógica e alguns, como Sunkel em seu conhecido artigo,
mencionam a "transculturização" que a internacionaliza-
ção do sistema produtivo provoca. 24 De qualquer modo, os
enfoques da dependência, além de enfatizarem a relação
entre as economias periféricas e as centrais em termos da
expansão do capitalismo e de vê-los como relações de
exploração entre classes e nações que dão às estruturas
sócio-políticas dependentes certa especificidade, mostram
também, pelo menos em algumas de suas formulações, que
existem aspectos culturais diretamente ligados à manuten-
ção da dependência.
Os autores que formularam "teorias de desenvolvimen-
to" se referem também à importância do sistema de crenças
e valores. Mas fazem-no seja para constituí-lo como variá-

200
ve1 relativamente independente, capaz de gerar demandas
novas para o sistema produtivo, seja postulando a necessi-
dade de uma autonomia cultural. Os "dependentistas" tam-
bém postulam o ideal da autonomia cultural. Entretanto,
concentram a análise nos malefícios da dependência cultu-
ral. Não aceitam colocar a questão do sujeito histórico dessa
autonomia sem colocar a questão da Revolução, pois em
geral são versados na teoria marxista.
É este, talvez, o calcanhar de Aquiles das teorias da
dependência: por intermédio de que agente histórico será
possível superar a dependência?
Prebisch, mais modesto em sua análise, tinha resposta
para as questões que colocava. Não precisava supor uma
Revolução, nem necessitava uma crítica geral à dominação
burguesa. A modernização do aparelho de estado dos países
periféricos permitiria desencadear políticas industrializa-
doras, controlando mas não rejeitando o capital estrangeiro,
e permitiria forçar a distribuição dqs ganhos do progresso
técnico em benefício dos operários e dos trabalhadores do
campo; estas seriam as medidas preliminares para assegu-
rar a igualdade entre as nações. Complementariam a bateria
de políticas reformadoras: o controle dos mecanismos do
comércio mundial (a UNCTAD mais tarde foi a expressão
disso), uma política de transferência de recursos dos países
ricos para os pobres e o acesso à tecnologia para os países
subdesenvolvidos.
Furtado, do mesmo modo, em suas obras mais antigas,
insiste em que o importante é aumentar a produtividade, o
que supõe inovações tecnológicas e investimento de capi-
tais. A ação do estado para disciplinar a demanda e para
controlar a transferência de capitais e de tecnologia sem
desnacionalizar a economia asseguraria a possibilidade do
desenvolvimento. E mesmo Sunkel pressupõe o poder au-
tônomo para "equalizar oportunidades" e supõe a criati-

201
vidade tecnológica, para que se logre o "desenvolvimento
autônomo".
E os dependentistas?
Esses, implícita ou explicitamente, ou se limitam a
constatar as deformações (do que os cepalinos chamarão
de "estilo perverso" de desenvolvimento) geradas pela
expansão do capitalismo na periferia, ou propõem o socia-
lismo como alternativa. Mas a alternativa não chega a
constituir-se na análise com a mesma força que a crítica da
situação de dependência. Ou, quando se constitui, freqüen-
temente está ancorada na idéia, que já critiquei tantas
vezes 25 , da inviabilidade da expansão capitalista na perife-
ria ou na extrema deformação que tal processo provocaria,
dados os processos de "marginalização crescente" da po-
pulação, da existência de uma lumpen-burguesia, do "de-
senvolvimento do subdesenvolvimento" etc. 26
Chama a atenção que, apesar da força inegável de
algumas das caracterizações disponíveis sobre as situações
de dependência, a análise política subseqüente tenha dei-
xado escapar a vivacidade do real para refugiar-se numa
espécie de escatologia que afirma a avalidade do princípio
da Revolução, ao mesmo tempo em que esconde a debili-
dade da proposta quanto aos caminhos para chegar-se até
ela. Esta debilidade se esconde pela apresentação de um
quadro catastrofista que dá a ilusão de levar a uma trans-
formação radical, dados os impasses econômicos crescen-
tes, mesmo que não assinale convincentemente o perfil da
classe ou das classes que poderão dar o salto negador da
ordem existente.
Por que isso?
É nesta altura que cabe voltar às especulações inicias.
Os dependentistas, tanto quanto os cepalinos, são herdeiros
da crença na racionalidade da história e não se assustam,
apesar da cara feia do progresso que eles descobrem. Acaso

202

~

não foi Marx quem nos ajudou a conviver com a idéia de
que o pólo positivo - a acumulação de riqueza - encontra
seu complemento no pólo oposto - a acumulação de miséria
- e que a oposição entre ambos faz-se de tal maneira que,
por linhas tortas, como Deus faria o Bem, chegar-se-á à
superação dos dois pólos, à condição que a força negadora
dos explorados destrua os que os oprimem? E este momen-
to de explosão revolucionária - de violência - não foi
pensado como uma condição para que o progresso pudesse
continuar? Então, por que haveriam os dependentistas de
hesitar e pôr em xeque a idéia de desenvolvimento? Desen-
volvimento, sim; capitalista, não. A distribuição dos frutos
do progresso há de ser diferente. A apropriação dos meios
pelos quais eles são logrados, também. Mas os componen-
tes formais - o modelo - estão dados pela própria história
do desenvolvimento capitalista. E os agentes históricos
desta transformação - as massas exploradas e, primus inter
pares, o proletariado - também estão dados de antemão
pela mesma teoria subjacente às explicações dependentis-
tas.
Sua alma, sua palma. O que permite aos dependentistas
tratar com soberbia as teorias cepalinas das quais nascem,
dizendo-lhes: "vejam, o Estado que vocês acreditam poder
reformar é o estado-burguês, expressão de todos os males
do subdesenvolvimento" é ao mesmo tempo seu leito de
procusto. Se os cepalinos são insuficientes na caracte-
rização e na crítica, os dependentistas tomam-se, pelo
muito amor a uma visão racional e integrada a partir da
experiência do passado europeu, supreendentemente esté-
reis: proclamam o que não deve ser, mas param a meio
caminho na crítica concreta. Não chegam a especificar, a
não ser como crença, as forças transformadoras e só colo-
cam parcialmente o ideal a alcançar: propõem o mesmo
desenvolvimento, em benefício de outras classes. Talvez
tenhamos razão. Mas a verdade é que não ajustamos ainda

203
nossas contas com os teóricos de "um outro desenvolvi-
mento".
Em lugar do Estado-Reformador dos cepalinos, apre-
sentamos a imagem da Sociedade-Reformada; mas n~o
levamos às últimas conseqüências as duas questões-chave
que surgiram no horizonte: que tipo de sociedade e refor-
mada por quem?
Cabe aqui um parênteses. Duro e comovedor. No auge
da reformulação das teorias latino-americanas do desenvol-
vimento, no mesmo momento em que os dependentistas
descreviam com vigor os efeitos da exploração de classes
e as conseqüências do capitalismo internacional sobre a
industrialização da periferia, abria-se na América Latina
uma opção política desafiante: Cuba, e, mais do que isso,
o "guevarismo".
Digamos as coisas como as vemos, dando nome aos
bois: a análise derivada da revolução cubana e, especial-
mente, a interpretação de Guevara, punham em xeque tanto
a idéia de "desenvolvimento" quanto a da possibilidade de
um desenvolvimento-dependente. Desde 1961, da Confe-
rência de Punta del-Leste, quando Guevara criticou a "re-
volução das latrinas", até sua saga boliviana de 1967,
quando a "teoria do foco" sucumbiu heroicamente com seu
formulador, a verdade é que a prática política revolu-
cionária deu xeque ao rei (embora não xeque-mate) às
pálidas teorias acadêmicas. A complementação política das
teses dependentistas não decorria da análise que elas pro-
punham, mas do enxerto que sobre elas se fez da Revolução
na Revolução de Regis Debray. E quando caiu Guevara,
legando à história além de sua inteireza moral e coragem
revolucionária as reflexões de seu Diário, o pensamento
político latino-americano continuou impotente. Não tirou
as ilações necessárias. Não foi mais longe na recolocação
das questões políticas: julgou Allende pela ótica da neces-
sidade da destruição do aparelho de estado e não do seu

204
aproveitamento pela revolução; não colocou frontalmente
a questão da teoria política do proletariado (mesmo que
fosse para reafirmá-la). Apenas endossou-a em abstrato,
mesclando aqui e ali com a justificativa da guerrilha tupa-
mara, dos montoneros ou do ERP, sem ir ao fundo da
questão do porquê do fracasso da Unidade Popular, do
movimento de Torres, e assim por diante.
Não foi só econômico que o século XIX triunfou no
pensamento latino-americano. Além da crença na raciona-
lidade da história, este pensamento abrigou, e ainda abriga,
a crença no progresso social: estacionamos nos umbrais das
questões decisivas para manter a convicção de que não
precisamos perguntar quais são os portadores concretos do
futuro. Ao deixar subentendida a resposta política aos
problemas que colocamos ou ao aceitar como soluções
remendos externos a nossa análise, não fazemos jus à
condição de intelectuais, ou seja, de homens que podem
aceitar o momento histórico da transfonnação violenta e o
grão de verdade do imprevisível, mas tratam logo de expli-
car por que, como e para quem, mesmo que mantendo
convicções sobre a inelutabilidade que amanhã será outro
dia e a Revolução se imporá.

Na senda da utopia
Nos países de industrialização avançada punha-se em
dúvida a própria noção de progresso e de desenvolvimento,
enquanto o pensamento social latino-americano se manti-
nha aferrado à racionalidade um saber suposto como pro-
vado e incorporava, à socapa, explicações pouco convin-
centes sobre o processo de transfonnação histórica sem
questionar a vaguedade da política que ele próprio propu-
nha e sem questionar as novas visões que surgiam.
Não é esta a oportunidade para acompanhar estes des-
dobramentos da história das idéias contemporâneas. Bas-

205
tam algumas anotações. Desde as colocações de Marcuse e
as rebeliões das minorias norte-americanas, passando-se
pela revolta de maio de 68 na França, desenhava-se uma
nova atitude na cultura ocidental: havia que fazer face a
uma espécie de "crise de civilização".
Esta não pode explicar-se apenas em função do "malai-
se" que a civilização capitalista urbano-industrial provo-
cou. Junto dela há outros fenômenos mais complexos, que
a sismografia cultural da intelectualidade ocidental regis-
trou: houve a "revolução cultural" da China e o desencanto
com as formas burocráticas de socialismo. Enquanto isso
na América Latina o discurso habitual sobre o desenvolvi-
mento e a dependência encontravam um piso de realidade
para assentar-se. A indignação moral diante do avanço de
um sistema produtivo discriminador e expoliador, como é
o sistema capitalista de forma ainda mais visível em suas
fases de acumulação "selvagem", alentava a idéia de Re-
volução sem pedir dela perfil mais nítido. Nos países
capitalistas avançados registrava-se uma certa perplexida-
de diante da tradição do pensamento social de crença na
filosofia da história que assegurava o progresso, o socia-
lismo e a liberação.
A partir de maio de 68 os sinais de dúvida começaram
a soar com mais insistência: sem uma revisão de valores,
sem que haja uma discussão mais substancial sobre o que
deve ser a sociedade do futuro e sem uma afinnação orgu-
lhosa dos desejos frente à realidade ("prends des désirs pour
des réalités"), seria difícil construir a sociedade justa que o
socialismo anunciou desde o século XIX, pensam os novos
críticos.
Pouco a pouco, o anarquismo começou a reviver nos
meios intelectuais de esquerda e neles se vislumbrou a
ruptura com a escatologia marxista. As tensões sino-sovié-
ticas, o movimento dos dissidentes, a súbita descoberta da
"gang dos quatro", só fez pôr mais lenha na fogueira. Um

206
vento libertário que trazia consigo as sementes de outras
utopias começou a corroer a cidadela da crença num futuro
de racionalidade e justiça, historicamente ancorada na ver-
dade objetiva da luta de classes e, hegelianamente, na
"negação da negação" (ou seja, na Revolução que supera
os óbices e torna o futuro contemporâneo dos mais encan-
ditados desejos). Tratava-se de utopias menos "racionais",
de forte sabor individualista, talvez menos coletivistas,
desconfiadas de toda e qualquer dominação e do próprio
princípio de autoridade, e que descriam das análises estru-
turais para concentrar-se em afirmações existenciais.
Não terá sido esta a primeira vaga deste tipo no Oci-
dente. E dificilmente será a última, antes do milênio. Mas
ela golpeou forte porque desta feita encontrou um terreno
próspero. O existencialismo de depois da guerra tinha o
sabor do desespero e feneceu diante da promessa da revo-
lução social; o utopismo libertário da década presente tem
a alentá-lo outras fontes, mesmo que tenha nascido nos
movimentos hippies, da contracultuta e da anticivilização
industrial em geral, também algo desesperados. As utopias
contemporâneas receberam novo alento dos efeitos sociais
e culturais negativos da civilização tecnocrático-industrial
impulsionada pelas grandes corporações econômicas mul-
tinacionais, somados à descoberta de que o socialismo
também pode padecer do burocratismo e da alienação.
Foi neste contexto - mas redefinindo as atitudes, como
já veremos - que prosperou a crítica às teorias "objetivas"
do desenvolvimento e que as questões valorativas puseram-
se com mais força na própria definição do desenvolvimento.
Por certo, existem esforços de redefinição muito diversos.
Alguns, negando a possibilidade de dar um curso substan-
tivamente racional ao processo histórico e de ver nos avan-
ços tecnológicos a força básica do desenvolvimento, não
hesitaram e formularam a utopia regressiva: é melhor parar,

207
e já; seria melhor o não-desenvolvimento do que um desen-
volvimento pervertido.
O reacionarismo implícito nessa posição não a tornaria
aceitável pelos que, bem ou mal, colocavam-se criticamen-
te, supondo a necessidade de corrigir as desigualdades entre
as nações e entre as classes. O "zero growth" não teve futuro
como idéia nas nações subdesenvolvidas. Foi rejeitado com
força o catastrofismo implícito nele, que punha de cabeça
para baixo a crença de que as sociedades são capazes de
enfrentar, absorver e dar curso razoável aos desafios da
técnica e mesmo na natureza. O curso dos sucessivos
informes do Clube de Roma, até sua aproximação de posi-
ções defendidas por países subdesenvolvidos, é exemplo
eloqüente do fenômeno da rejeição do transplante de idéia.
Essa idéia de "zero growth" era tão alheia a tudo o que de
mais caro se construíra no passado para resolver as grandes
questões sociais, que não pôde manter-se no debate con-
temporâneo sobre a igualdade entre as nações e o cresci-
mento econômico.
Limados os exageros e as distorções, uma advertência
ficou: a crença de que o estilo de desenvolvimento dos
países avançados poderá resolver as graves questões do
subdesenvolvimento e da dependência não encontrou mais
apoio no pensamento contemporâneo. Não se trataria ape-
nas do sistema social de produção ser capitalista ou socia-
lista; tratar-se-ia de que o padrão civilizatório, de base
tecnológico-industrial, gera conseqüências de efeito discu-
tível para o bem-estar dos povos.
Nem sempre a formulação das novas utopias, no que
tange às formas de desenvolvimento, assenta em pressu-
postos razoáveis. Muito do horror à abundância, de base
ética, por parte de camadas intelectuais que pertencem a
sociedades opulentas, insinua-se por entre as críticas aos
estilos malignos de desenvolvimento. Mas existe também
algo de firme na crítica:

208
- por uma parte ela incorporou preocupações reais
com a destruição de recursos não renováveis e de
destruição do meio ambiente que, inegavelmente,
aponta a certos "limites exteriores" que são parâme-
tros para o desenvolvimento, não apenas dos países
menos desenvolvidos, mas especialmente dos mais
avançados industrialmente; .
- por outra parte ela revigora ideais de igualdade a
serem buscados menos na abundância dilapidadora
e mais no uso racional de recursos relativamente
escassos;
- essa última preocupação vem junto com a reafinna-
ção da crença de que se não existe hoje melhor
distribuição de recursos entre países e dentro dos
, países não é tanto pelo nível de escassez absoluta de
riqueza mas por sua má distribuição (concentração
de renda e de riqueza e miséria voltaram a ser, como
queria Marx, duas caras da mesma moeda);
- por fim, junto com as fonnulações relativas a um
outro estilo de desenvolvimento ressurge a idéia de
que é no plano político que há de romper-se o equi-
líbrio favorável à concentração de riqueza; e que,
para começar, será possível romper o círculo da
pobreza mediante a reestruturação das relações de
troca entre as nações numa nova ordem econômica
internacional;
- como caminhos para alcançar tais objetivos novas
estratégias foram desenhadas, ressaltando que sem
mais e melhores infonnações, para assegurar a auto-
nomia de decisões e estimular a criatividade, especi-
almente embora não só, a tecnológIca, e sem que se
estabeleçam de algum modo fortes conexões dos
desfavorecidos entre si (nações e classes), a causação
circular da riqueza e da miséria não será rompida.

209
o enfoque alternativo
A noção de que o desenvolvimento não tem por obje-
tivo a acumulação de capitais, mas a satisfação das neces-
sidades básicas do homem, passou a ser uma constante nos
documentos produzidos pelas reuniões de peritos e de
representantes governamentais. Ela não é nova, por certo.
Entretanto, tal como foi formulada no século passado pela
crítica socialista ("a cada um conforme suas necessidades,
de cada um conforme suas possibilidades") para alcançar
o desiderato desta idéia seria necessário, primeiro, modifi-
car as estruturas de dominação política e de exploração
econômico-social. Só se alcançaria a igualdade e o atendi-
mento das necessidades depois que, através da luta de
classes, se instaurasse uma ordem social equânime. Conse-
qüentemente, haveria que passar por drásticas modifica-
ções políticas que iriam da Revolução Social até ao esta-
belecimento da Ditadura do Proletariado para instaurar, por
fim, uma sociedade sem dominação de classe (com um
Estado reduzido à Administração das Coisas). Mais ainda,
repudiava-se a noção de necessidades mínimas a partir de
um parâmetro fixo (tantas calorias dadas ou tantos metros
quadrados de habitação) considerando-se que as necessi-
dades eram historicamente criadas e seus limites físicos não
existiriam (graças à crença no Progresso e na infinitude dos
recursos planetários).
Que dizem hoje os paladinos do "development need-
oriented"?
Qualquer que seja o documento tomado, da Declaração
de Cocoyoc, passando pelo Colóquio de Argel até, na
formulação mais equalitária disponível, o relatório de Upp-
sala sobre "Another Development", um desenvolvimento
com essas características deve ser "ajustado às necessi-
dades humanas, tanto materiais como não-materiais. Co-
meça pela satisfação das necessidades básicas dos domi-

210

..
nados e explorados, que constituem a maioria dos habitan-
tes do mundo, e garante ao mesmo tempo a humanização
de todos os seres humanos pela satisfação de suas necessi-
dades de expressão, de criatividades e de convívio e de
compreender e dominar seu próprio destino" .
A busca de um estilo de desenvolvimento mais "equi-
librado" não nasceu com a estratégia visando satisfazer as
necessidades básicas. Bem antes desse tipo de formulação
ganhar seu "momentum" na discussão internacional, dentro
do próprio sistema das Nações Unidas existia, desde 1977,
o chamado "enfoque unificado" para o desenvolvimento.
Este procurava corrigir os excessos economicistas relativos
à obsessão com o crescimento do PNB per capita, através
de um tipo de planejamento capaz de atender se não os
"basic needs", as "necessidades sociais".27 Na busca de um
desenvolvimento econômico e social "balanceado", como
reconheceu um dos participantes mais críticos deste tipo de
estudos, Marshal Wolfe, muito do debate fazia-se ao redor
de "inovações terminológicas" quando não de confusões:
"Não é meramente acidental que as intermináveis dis-
cussões sobre o desenvolvimento não tenham tocado a
confusão entre o desenvolvimento concebido como
processos empiricamente observáveis de mudança e
crescimento no interior de sistemas sociais e o desen-
volvimento como progresso no caminho da Boa Socie-
dade segundo o critério do observador".28
Não obstante, como ocorre com as utopias progressi-
vas, a formulação genérica do desejo de satisfazer as "basic
needs" - quaisquer que sejam os critérios de definição -
acabou gerando uma crítica persistente ao grau de "pobreza
cumulativa" produzida pela expansão atual do sistema
econômico, comparável, por sua generalidade, à crítica
feita pelo socialismo utópico do século passado. Pennitiu
também que novos ângulos críticos pudessem ser assumi-
dos frente às questões do desenvolvimento.

211
Tudo isso se fez, é certo, dando margem a uma certa
inespecificidade comodista: é o "desenvolvimento selva-
gem" e não o "sistema capitalista" - como se afirma na
crítica socialista, ou, menos claramente, na crítica dos
dependentistas latino-americanos - o responsável pelos
males do mundo. Evita-se, assim, nos foruns internacio-
nais, o espinhoso problema da crítica mais concreta e
I contundente a situações sociais dadas. Ao invés do capita-

lismo estar na berlinda, são os desvios do "estilo de desen-


volvimento" que são crucificados. Ao argumento agre-
ga-se, lateralmente, que os sistemas socialistas em sua
expressão atual, se é certo que melhoraram o atendimento
das necessidades básicas, nem sempre respeitaram a parti-
cipação democrática e os "outer-limits", que é a outra
obsessão dos formuladores da nova estratégia do desenvol-
vimento. Este passou a ser algo mais abrangente. Se seu
centro é o atendimento das necessidades básicas, comple-
menta-se pelo respeito aos requerimentos ecológicos, tanto
no que se refere a uma relação adequada entre o ecossistema
local e os limites externos que a preservação da vida
presente e das gerações futuras impõem, quanto no que se
refere ao uso de tecnologias apropriadas para a exploração
racional dos recursos naturais e humanos. "
Nessa linha de preocupação creio que houve uma con-
tribuição positiva que acrescenta algo ao anterior debate
sobre desenvolvimento. No nível mais geral da análise a
noção de ecodesenvolvimento, especialmente na formula-
ção de Ignacy Sachs, sintetiza a nova posição crítica diante
da consciência da finitude de certos recursos naturais (a
temática dos recursos "não renováveis"), chama a atenção
para a existência de "outer-limits" e põe ênfase nas formas
predatórias e poluidoras de avanço tecnológico:
"O Ecodesenvolvimento é um estilo de desenvolvimen-
to que, em cada eco-região, requer as soluções especí-
ficas para os problemas peculiares a região, à luz dos ~

212 ."

-~
dados culturais e ecológicos, bem como das necessi-
dades imediatas". 29
Nas formulações de Sachs, não se trata de estabelecer
a utopia do "desenvolvimentó comunitário", que tem sido
a outra linha de propostas, surgidas especialmente da pena
de escritores asiáticos, influenciados pelo peso da econo-
mia camponesa e pela incapacidade do desenvolvimento
capitalista resolver os problemas sociais das populações
rurais. Ao contrário, o autor mantém-se na tradição de
pensamento que propugna por transfonnações de fundo,
tanto tecnológicas quanto dos sistemas sociais, mas chama
a atenção para a necessidade de tomar em conta que nas
condições políticas do mundo atual sem "self-reliance",
sem participação ativa da base da sociedade e sem uma
tecnologia "apropriada" - que respeite os outer-limits e que
tome em consideração os recursos locais, tanto humanos
quanto naturais - não haverá um desenvolvimento razoá-
vel.
De algum modo Sachs tenta compatibilizar a noção de
racionalidade formal com a racionalidade substantiva: ao
invés de propor a Razão Técnica como mola da história do
crescimento econômico, prefere uma postura na qual o
"Razoável" supõe uma adequação entre objetivos sociais e
humanos, meios disponíveis e calculabilidade técnica.
Talvez na tensão entre a utopia comunitarista e de
participação a todos os níveis, por um lado, e por outro a
preocupação com uma atitude "razoável" que tome em
consideração a base técnica necessária e os limites reais ao
desenvolvimento - tendo por objetivo o atendimento de
necessidades sociais básicas - exista o que de mais rico esse
tipo de enfoque vem deixando à análise contemporânea dos
problemas do desenvolvimento.
Na linha do desenvolvimento como produto da vontade
comunitária {desde o nível da aldeia até ao da federação de

213
interesses dos povos ou dos estados subdesenvolvidos e
oprimidos) o conceito-chave é o de "self-reliance". Na
linha da análise dos novos instrumentos de desenvolvimen-
to econômico sobressaem as ênfases postas nas tecnologias
apropriadas e nos "outer limits". No âmago do problema
do atendimento das necessidades básicas subsiste a questão
da refonna política necessária para alcançá-lo. Como do-
cumentos centrais para a compreensão destas posturas (ha-
vendo superposição entre eles) estão o Informe Dag
Hammarskjõld, 197530 e o projeto sobre a Reestruturação
da Ordem Internacional. 31 A estes se juntam os estudos do
World Order Model Project. 32
Com vistas à brevidade, resumirei aqui apenas os con-
ceitos-chave de self-reliance, por uma parte, de tecnologia
apropriada, por outra, e porei ênfase nas propostas de
construção de uma nova ordem econômica internacional,
que é o resultado político imediato desta estratégia.
Por self-reliance, muitos já o disseram, não se entende
autarquia ou auto-suficiência. Ela implica na "definição
autônoma de estilos de desenvolvimento e de vida" (Infor-
me Hammarskjõld, 1975), que estimulem a criatividade e
conduzam à melhor utilização dos fatores de produção,
diminuam a vulnerabilidade e a dependência, de tal modo
que as sociedades contem mais com suas próprias forças de
resistência, confiem em si próprias e tenham meios para
serem dignas. Aplica-se a self-reliance tanto ao nível local
(de comunidades) como nacional e internacional.
O componente valorativo em tal definição é claro.
Noções como "diginidade", "autoconfiança" etc. implicam
em escolhas. E isso não por acaso: à "lógica da produção"
imposta pelo capital (cujo maior crítico mas também me-
lhor analista foi marx), os proponentes dos outros estilos
de desenvolvimento contrapõem uma "lógica do consumo"
visando a erradicar a pobreza e a melhor distribuir os
recursos entre os grupos sociais. 33 Junto mesmo com a

214 ".1
.<
.~

.1
noção de self reliance vem a idéia de melhor distribuir
recursos e melhor organizar os estilos de consumo. Com
essa estratégia, um problema grave do mundo atual, como
o da chamada "crise energética", seria repensado mais
facilmente. Ao invés de produzir por meios técnicos devas-
tadores mais energia, seria possível balancear seu uso:
"podemos optar por padrões de consumo de baixa energia
e preferir neste sentido sistemas de habitação, de transporte
urbano e de uso do tempo que consumam essa pouca
energia".34
Decorre logicamente que tal enfoque do problema do
desenvolvimento obriga a rever os conceitos sobre tecno-
logia. Quase tautologicamente, "deve entender-sé por tec-
nologia adequada a invenção e utilização de processos e
modos de organização de trabalho que se adaptam melhor
às circunstâncias particulares, tanto econômicas como so-
ciais, de um país ou setor particulares".3s
A crítica fácil - de que com essas noções estar-se-ia
apenas reforçando o padrão de dominação vigente sem
mudar as condições produtivas dos países subdesenvolvi-
dos - é rebatida com energia por todos os que adotam a
noção de "tecnologia apropriada". Ela não significa uma
tecnologia atrasada, mas sim um blend tecnológico que,
outra vez, oriente-se pelo razoável, sem perder de vistas os
objetivos básicos do desenvolvimento (basic needs), sem
adotar um padrão puramente imitativo do que ocorreu nos
países industrializados, mas também sem desdenhar a ciên-
36
cia e o avanço das forças produtivas. A implementação de
políticas de desenvolvimento tecnológico orientadas por
essas preocupações e pelas noções de desenvolvimento
auto-sustentado visando atender às necessidades básicas
requer uma nova pauta de relações internacionais no que se
refere à Pesquisa e Desenvolvimento, que transfira tecno-
logia mas, ao mesmo tempo, leve à criação autônoma de
tecnologia e à filtragem do tipo de tecnologia a ser absor-

215
vida. Tudo isso passa pelo problema de formação de pes-
soal especializado e por políticas que evitem a fuga de
cérebros.
Como mencionei antes, a noção de que alguns recursos
naturais não são renováveis e de que existe a degradação
possível da biosfera obrigou os defensores do ecodesenvol-
vimento a adotarem uma política de respeito aos "limites
externos ao desenvolvimento" ("outer limits"). Resumida-
mente:
"O conceito de "limites exteriores" exige um esclareci-
mento. Os "limites" são o ponto a partir do qual um
recurso não renovável se esgota, ou um recurso reno-
vável, ou um ecossistema, perdem sua capacidade de
regenerar-se ou de cumprir suas funções principais nos
processos biofísicos. Os fatores determinantes são, por
um lado a quantidade de recursos e as leis da natureza,
e, por outro lado, a ação da sociedade sobre a natureza
e especialmente suas modalidades técnicas. Para definir
o qualificativo "exterior" há que precisar o contexto no
qual são considerados os limites: local, nacional, regio-
nal ou global. A escolha de um contexto tem implica-
ções políticas e científicas diversas".3?

A nova ordem econômica: ideologia e realidade


De posse dos instrumentos críticos acima indicados, os
participantes da corrente de opinião relativa às formas
alternativas de desenvolvimento viram-se numa encruzi-
lhada teórica e prática. Que conseqüências analíticas pode-
riam eles tirar do ponto de vista valorativo que assumiram
e como encaminhar as políticas transformadoras a serem
propostas? (
Não é preciso muita argúcia teórica para perceber que
a nova abordagem possui alguns parâmetros não definidos.
Por um lado as "necessidades básicas" - centro mesmo de

216

l
suas análises - acabaram por traduzir duas preocupações:
a erradicação da pobreza e a crença de que, nas condições
produtivas e tecnológicas atuais, esse objetivo só se alcan-
çará havendo uma redefinição dos estilos de vida e conse-
qüentemente dos estilos de desenvolvimento. 38 Por outro
lado, assim como os "dependentistas" se embaralharam
quando tiveram que precisar no âmbito de suas perspectivas
teóricas quais seriam os sujeitos históricos das transforma-
ções, os teóricos do "another development" tampouco são
explícitos na análise desta questão. 39 Pior ainda, enquanto
os desenvolvimentistas cepalinos bem ou mal viam' no
Estado Ilustrado (orientado para o bem-estar das classes
oprimidas) o princípio ordenador do desenvolvimento, eli-
dindo a questão da Revolução, e os dependentistas manti-
nham acesa a pira sagrada dessa última (embora sem expli-
citar de que modo e com que forças diante das trans-
formações da economia contemporânea que eles próprios
ressaltam em suas análises), os defensores do estilo alter-
nativo de desenvolvimento oscilam em seus textos entre
uma atitud~ valorizadora da dignidade humana e... a refor-
40
ma burocrático-institucional, a nível das Nações Unidas.
Bem ou mal, foi a este nível burocrático que a consti-
tuição do enfoque do "another developmenf' teve maior
seqüência. Os pontos principais da proposta para uma nova
ordem econômica internacional refletem a filosofia do
desenvolvimento antes resenhada. Insistem na necessidade
de estimular os mecanismos de self-realiance coletiva,
através de acordos entre os países subdesenvolvidos, e no
objetivo de redistribuir a riqueza mundial. Desconfiam, por
certo, das estratégias de "ajuda ao desenvolvimento" e da
transferência do padrão civilizatório dos países industriali-
zados para os subdesenvolvidos. E não deixam de criticar
as "distorções" da economia internacional:
"Muitos países industrializados têm interesses grandes
e crescentes nas economias de muitos países pobres.

217
Para citar um só caso, os rendimentos da inversão
estrangeira direta dos EE.UU., como proporção do total
dos lucros nacionais, aumentaram de 9 % em 1950 para
28% em 1969".41
Como remédio, os formuladores do novo desenvolvi-
mento propõem um aumento de controle dos investimentos
estrangeiros e uma estratégia de valorização da negociação
coletiva por parte dos países subdesenvolvidos para melho-
rar as condições de barganha entre os produtos primários e
os industrializados, no "Diálogo Norte-Sul". E não desde-
nham a importância da opinião pública mundial para alcan-
çar esses resultados. Dessa postura deriva a necessidade de
rever o sistema de informações mundiais, especialmente
42
quanto aos mass-média. A bateria de medidas e sugestões
elaboradas é considerável, especialmente nos documentos
fundamentais já referidos e nos textos do Colóquio de
Argel. Vão desde a preocupação com os bens cot'etivos
(como o fundo dos oceanos), à definição de um código de
ética para as empresas transnacionais, a reformulação do
Direito Internacional, a proposta de elaboração de indica-
dores de desempenho do desenvolvimento econômico que
tomem em conta evolução do atendimento das necessi-
dades básicas etc., até a questão da militarização da produ-
ção mundial e a necessidade de uma política desarma-
mentista,para proporcionar mais recursos para um desen-
volvimento "saudável". Tudo isso no contexto de uma
visão que valoriza a self-reliance, a criatividade local e a
diversidade dos caminhos para o desenvolvimento:
"O objetivo principal da Nova Ordem Econômica In-
ternacional deve ser organizar novas relações econômi-
cas internacionais que ponham um fim à dependência,
à injustiça e à discriminação e que facilitem a self-re-
liance" (...). "Um fator importante desta relação entre
desenvolvimento e militarização é que a corrida arma-
mentista esbanja capital e recursos naturais e humanos

218
11 --.

que seria mais útil consagrar à melhoria das condições


humanás em todo o mundo" (...) "as necessárias modi-
ficações radicais nas relações entre os Estados só serão
possíveis se também no mundo civilizado alguns países
ou certas forças sociais decidem esforçar-se por chegar
a novas relações fundadas na não-exploração, na justiça
e na dignidade".43
Por trás de tanto empenho em mudanças orientadas pela
boa vontade foram produzidas também análises sólidas,
não sobre intenções, mas sobre fatos. Nessa linha - mais
consistente com a tradição da análise clássica - foram feitos
estudos sobre os efeitos das corporações internacionais na
economia mundial contemporânea e seus desdobramentos
políticos bem como sobre a reação do Terceiro Mundo
frente a esse problema. As análises sobre as empresas
multinacionais ressaltam tanto seu crescimento como, o
que é decisivo, sua contradição com os objetivos do "ano-
ther development":
"A importância que as empresas transnacionais adqui-
riram fica exemplificada pelo fato de que o valor agre-
gado de cada uma das dez maiores empresas
transnacionais ascende a mais de 3 bilhões de dólares,
uma cifra maior do que o PNB de 80 países do mun-
,,44
do.
A partir do reconhecimento dos efeitos da ação das
empresas multinacionais na economia mundial e de sua
contradição com os valores do "desenvolvimento alterna-
tivo" Samir Amin explicita o que é suposto não discutido
na maioria dos textos:
"Na verdade, o ponto importante é se podemos definir
as alternativas como acabamos de fazê-lo, ou seja, sem
levar em conta os fins últimos, a escolha do socialismo
ou do capitalismo. Em outras palavras: é realista ter
como meta para os países do Terceiro Mundo um

219
desenvolvimento capitalista autônomo? (...) (Os países
Periféricos) poderiam tornar-se "self-reliant" sem pular
fora do sistema mundial de trocas de mercadorias de
tecnologias e de capital? Poderiam fazer isto forçando
o sistema a reajustar-se, impondo uma divisão do tra-
ballio que não seja mais desigual? Poderiam conseguir
esta meta pelos meios que definem o programa da nova
ordem econômica internacional?"4s
Sua resposta a estas indagações é clara: não existe
possibilidade de solucionar estas questões através de um
"capitalismo autônomo" na Periferia. Só o socialismo e a
luta antiimperialista dão conteúdo não:-demagógico às pro-
postas favoráveis a um outro estilo de desenvolvimento. 46
Assim, depois de longa volta, os que deram uma con-
tribuição mais crítica às categorias do novo desenvolvi-
mento vão à Canossa. De concreto existiria o tema das
multinacionais e a aspiração à igualdade e ao controle das
decisões. In between, declarações de boa-fé e de boa von-
47
tade.

Reavaliando o percurso
Não obstante a crítica contundente de Samir Amim, não
é justo pôr uma pá de cal no cadáver do enfoque alternativo
para o desenvolvimento em nome de seu irrealismo. Em-
bora este seja um componente inexcusável das propostas,
é preciso refletir melhor sobre seu significado e desconfiar
um pouco do "abre-te-Sézamo" que a proposição da saída
pelo socialismo parece conter.
Esclareço, de início: os valores de igualdade e a aspira-
ção pelo socialismo colocam-se hoje com tanta força quan-
to no século dezenove. Mas se para algo serviu a crítica
contemporânea aos efeitos desastrados de certo tipo de
desenvolvimento, foi para ressaltar que não basta a apro-
/'

220

...
priação coletiva dos meios de produção se for para produzir
o mesmo que a empresa privada é capaz de fazer; e não
basta substituir o gigantismo das multinacionais e das
burocracias dos executivos pelo mamutismo do setor esta-
tal controlado por uma burocracia fiel a um partido também
burocrático. Mesmo que este processo permita maior igual-
dade e possiJ>ilidade mais fáceis de atendimento das neces-
sidades humanas básicas (o que é indiscut~vel) e portanto
represente um avanço, subsistem algumas das questões
fundamentais do "another development".
Com efeito, a imitação dos aspectos civilizatórios da
sociedade capitalista (referentes ao consumo e à tecnologia
produtiva) pode ser explicada talvez porque a competição
entre os modelos civilizatórios continua regendo, pelo me-
nos no que diz respeito à guerra e à corrida armamentista,
o fundamental das decisões de investimento das potências
líderes do mundo contemporâneo. Mas o controle estati-
zante e não democrático - oposto à self-reliance e à parti-
cipação ampliada - não encontra escusas senão em termos
de uma estrutura de poder não controlada pela base da
sociedade nos países líderes do mundo socialista e na
difusão de uma ideologia que não atende às aspirações de
autonomia e de igualitarismo.
De pouco vale passar como gato sobre brasa por estes
problemas. Eles não têm resposta simples. As relações
entre as questões do poder mundial, as implicações da
produção técnico-industrial e o padrão cultural (o estilo de
desenvolvimento) tanto no mundo capitalista como no
mundo socialista, são reais e complexas, limitando a ação
transformadora.
Diante delas é que a crença no Estado Ilustrado dos
cepalinos toma-se parcial e ideológica, assim como a ênfa-
se na luta de classes dos dependentistas toma-se necessária,
mas insuficiente. Os teóricos do "another development"
pisam em terreno fértil quando, ingenuamente embora,

221
recolocam ideologias prenhes de utopismo. Só que este
utopismo se desfigura e empobrece quando a generosidade
das posturas ingênuas é substituída pela fragilidade das
propostas de negociações entre o mundo dos pobres e o dos
ricos ou pelo entusiasmo com reformas burocráticas da
ONU ou dos aparelhos governamentais. Ele ganha um
contorno mais promissor quando o "reformismo" proposto
dirige-se para o outro lado e tenta substituir a crença
absoluta no progresso e na razão por uma postura não
"maximalista" (do "tudo ou nada") que procura valorizar o
razoável, e tenta repor a questão da iniciativa autóctone, da
diversidade cultural e da redefinição dos estilos de consu-
mo. Enfim, uma "utopia realista", com toda a contradição
nos termos.
Noutras palavras, à condição de que não se esqueça que
existem determinantes fundamentais cujos interesses e for-
mas objetivas de atuação (as multinacionais ou o interesse
do estado, por exemplo) moldam o mundo contemporâneo
e são eles que devem ser criticados e controlados para obter
os fins almejados pela nova utopia, a ênfase crítica aos
estilos de desenvolvimento colocada pelos defensores do
"another development" corresponde a uma dimensão im-
portante da crise civilizatória atual. Esta, se aparece com
mais força pelas óbvias razões da existência da exploração
de classe no mundo capitalista, alcança, redefinida, o mun-
do socialista e coloca em xeque a forma pela qual dar-se-á
a transição das sociedades capitalistas para o socialismo.
Neste sentido, o pensamento político implícito nas
análises de desenvolvimento é pobre. Repetindo: se os
cepalinos simplesmente desdenharam a questão e os depen-
dentistas não deram nitidez às forças sociais de trans-
formação (deixando implícito que seria o Proletariado), os
I
teóricos desta década quando enfrentam concretamente o
problema colocam como sujeito do processo de trans- ·.1
formação as burocracias internacionais. É este o calcanhar

222

J
de Aquiles do pensamento atual sobre o "another develop-
ment". Revoluções sem sujeito ou Reformas com sujeitos
ocultos. Talvez se tenha no horizonte um conjunto de
alternativas dos "para que" do desenvolvimento e mesmo
dos "para quem". Falta saber quem o fará e como. Mas seria
injusto pedir aos teóricos solução para problemas que a
prática, que é mãe da teoria, ainda não aponta como uma
possibilidade objetiva.

NOTAS
1. Furtado, Celso, Teoria e política do desenvolvimellto econômico, S' ed., revista
e ampliada, São Paulo, Editora Nacional (1974), l' ed., 1967.
2. Sunkel, O. e Paz, P., EIsubdesarrollo latinoamericano y la teoria dei desarrollo,
México, Sigl0 XXI Editores, 1970.
3. Prebish, Raul, "El desarrollo económico de la América Latina y alglUlos de sus
principales problemas" (E/CN.12)89/Rev. 1,27 de abril de 19S0), Boletin Económico de
América Latina, vol. VII (1962), p. I.
4. Singer, Hans, "The distribution of gains between investing and borrowing
countries", American Economic Review, XL, May 19S0.
S. Entre os autores do século XX que reelaboraram a teoria do comércio intema-
cional é de rigor mencionar Eli Heckescher que escreveu um artigo em 1919 sobre "The
effect of foreign trade on lhe distribution of income", republicado em American Econo-
mic Association, Readings in the theory ofintemntionnl trode, Philadelphia 1949; Ohlin,
Bertil, International Trade, Harvard University Press, 1933, e Lemer, Aba, "Factor prices
and international trade", Economia, fevereiro de 19S2.
Na versão neoclássica atual - e extremando os argumentos a favor dos efeitos
igualizadores do comércio internacional - o autor mais influente talvez seja Paul
Samuelson, "International Trade and lhe Equalization of Factor Prices", Economic
Journal, junho de 1948.
6. I.S. Mill, Principies ofPolitical Econol1lY (edição Ashley), p. 703.
7. "Durante o ciclo de expansão (econômica), urna parte dos lucros se foi trans-
formando em aumento de salários, graças à concorrência dos empresários entre si e à
pressão que as organizações dos traballllldores fazem sobre todos eles. Quando, na fase
decrescente, o lucro tem que comprimir-se, a parcela que se transfonTlllra em tais
aumentos perde no Centro sua fluidez, graças à conhecida resistência à baixa dos salários.
A pressão se desloca então para a periferia com maior força do que a que se exerceria
naturalmente, se os salários e os lucros não fossem rígidos por causa das liJnitações da
concorrência. Quanto menos se possam comprimir, assim, os ingressos no Centro, tanto
mais terão que fazê-lo na Periferia", Prebisch, "EI Desarrollo etc. ", op. cit., p. 7.
8. Ver "A originalidade da cópia" neste volwne.
9. Furtado, Celso, Teoria e Política do Desenvolvimellto Econômico, São Paulo,
Companhia Editora Nacional, S' edição revista e ampliada, 1975, p. 92. A versão origiJllll
foi publicada sob o título Desenvolvimento e Su bdesenvolvimellto em 1961.
10. Furtado, Celso, O mito do desenvolvimellto econômico, Rio, Paz e Terra, 1974.

223
11. Ver Furtado, C., Teoria Política do Desenvolvimeltlo Econômico, op. cit., e
especiahnente, O mito do desenvolvimento econômico, op. cito
12. Sunkel e Paz, op. cit., p. 24.
13. Pinto, A., "La concentración dei progresso téclÚCO Ysus frutos en el desarrollo
latinoamericano", Trimestre Econômico, janeiro-março de 1965.
14. Sunkel, O. e Paz, P.: op. cit., p. 25.
15. Ibidem, p. 26. A referência a "dentro de wn pais" parece relacionar-se ao
"cololÚalismo interno", mas não está claro.
16. Idem, ibidem, p. 38.
17. Idem, ibidem, p. 39.
18. Por motivos que já expliquei em outros trabalhos, ver"A Dependência revisi-
tada" e o "Conswno da teoria da dependência", neste volwne, prefiro evitar o titulo
pretensioso de "teoria" da dependência. Não obstante, rendendo-me à voga, também
utilizarei neste ensaio a expressão "teoria da dependência".
19. Cardoso, F.H., Empresário Industrial/lO Brasil e Desenvolvimento Econômico,
São Paulo, DIFEL, 1964, capo I; Frank A.a., "The development of wlderdevelopmenC',
Monthly Review, vol. 18, n. 4, 1966.
20. Ver, por exemplo, Bagu, Sérgio, Estructura Social de lo Colonia, Buenos Aires,
Editorial El Ateneo, 1952, e Prado Jr., Caio, Formação do Brasil Colllemporáneo
(ColôlÚa), São Paulo, Editora Brasiliense, 1945 (2' edição).
21. Diga-se, de passagem, que a discussão da oposição entre classe e nação deu
margem (e continua dando) a polêmicas, equivocos, esclarecimentos e voltas atrás. Ver
especiahnente Weffort, F., "Notas sobre 'Teoria da Dependência ': teoria de classe ou
ideologia nacional", EstudosCEBRAP, n. I, São Paulo, 1971 e Cardoso, F.H., "Teoria
da dependência ou análises concretas de situações de dependência "?, idem, ibidem.
22. Duval, R. e Russet, B., "Some proposals to guide research on contemporary
imperialism", p. 2, não publicado.
23. Quijano, Arubal, "Cultura y Donúnación", Revista Latinoamericana de Cien-
cias Sociales, 12, 2,jWJho-dezembro 1971, p. 39-56.
Outro autor que encarou na direção das questões culturais o tema da dependência foi
VascolÚ, T., Dependência y Superestructura y otros ensayos, Caracas, UlÚversidad
Central, 1971.
24. SWJkel, Oswaldo, "Capitalismo Transnacional y Desintegración Nacional en
América Latina", El trimestre econômico, n. 38,2.
25. Cardoso, F.H., "0 Conswno da teoria da dependência" neste volwne e Serra,
J. e Cardoso, F.H., "As desventuras da dialética do desenvolvimento", Estudos CEBRAP,
São Paulo (23). E ainda "As contradições do desenvolvimento associado", Estudos
CEBRAP, São Paulo (8):41-75 abr.-jWl. 1974.
26. Frank, A., op. cit.
27. Wolfe, M. Idem, p. 80.
28. Para wna descrição das várias etapas do "luúfied approach to development",
bem como para a análise de seus êxitos e linútações, o melhor docwnento é o ensaio de
Marshal Wolfe, "Elusive Development: lhe quest for wúfied approach to development
analysis and planlÚng: histories and prospects", CEPAL/PVISD 186, Santiago, dezembro
de 1978.
29. Sachs, Ignacy, Environment and Styles of Development, in WilIiam Matthews
(ed.), Outer LimilS anil Humall Needs, Uppsala, The Dag Hammarskjõlf Fowldation,
1976.
30. Que Hacer, Developmenr Dialogue, n. 1-2, 1975. Como docwnentos comple-
mentares, ver a publicação editada por Chagula, W.F., Feld, B.T. e Parthsarati. A.,
Pugwash 011 SelfReliallce, Nova Dellú 1977.

224
31. Tinbergen, Jan (coordenador), ReestructuraciólI deI Orden !llIemaCiOlUlI,
R.I.O., Informe ai Club de Roma" Fondo de Cultura Económica, México 1977. Ver
também a série de ensaios publicados em homenagem a Tillbergen, por Dolman, Antony
e Ettinger, Jan van, Partners in Tomorrow, Strategiesfor a lIew illlemariollal order, E.P.
Dutton, Nova Iorque 1978.
32. Ver Falk, Richard, A Study of Future WorIds, The Free Press, 1975. Não
considerarei neste trabalho as idéias de Falk e de seus associados. José Medina Echavar-
ria, numa sugestiva revisão critica, considerou, sem embargo, que estes estudos, graças
a seu poder de síntese, ao tipo específico de uma sociologia projetiva e ao reconhecimento
explícito de seu caráter utópico, apresentam vantagens sobre outras do mesmo gênero de
visão mais "cibernética" ou então burocrático-institucional. Ver Echavarría, José Medi-
na, "Las propuestas de un nuevo orden económico internacional en perspectiva", CE-
PAL, D.S. 1148, novembro de 1976.
33. Celso Furtado foi dos primeiros latino-anlericanos a rever seu instnunental
analítico recolocando a questão da autonomia relativa da Demanda. Ver livros já citados.
34. Sachs, 1., "EI ambiente h=o", in Tinbergen, J., op. cit., p. 458.
35. King, Alexander e Lemma, A., "Investigación Científica y DesarroIlo Tecno-
lógico", in Tinbergen, ed., op. cit., p. 414.
36. Ver Herrera, Amilcar, "An approach to lhe generation of tecnologies appro-
priated for rural developrnent", Informe á UNEP, mimeo. E também as contribuições de
Amilcar Herrera e de Jorge Sabato ao Simpósio de Campinas sobre Tecnologia. Sobre a
estratégia para alcançar maior autonomia na criação tecnológica ver Parthasarathi, A.,
"Self Reliance in Science and Technology for development: some aspects of the Indian
experience", in Chagula e outros, op. cito
37. Informe Dag Hammarskjõld, op. cir., p. 36. Para fWldamentar este enfoque dos
"outer linlits" ver Matlhews, W.H. e Little, A.D. Developing tlle concept of 'outer limits'
in lhe context of m~ting basic human needs, mimeo., docwnento preparatório para o
encontro de Uppsala.
38. Foi aliás deste ângulo que o novo enfoque encontrou mais ressonância na
América Latina. Social e politicamente porque a "nova esquerda", de inspiração maoísta,
guevarista ou diretamente cristã, assumiu implicitamente o ponto de vista de que nos
países subdesenvolvidos mesmo o socialismo deveria ser constituído na parcimônia,
quase que com urna repulsa aos estilos de vida das sociedades opulentas. No plano teórico
porque autores como Ambal Pinto ou Jorge Graciarena aceitaram o repto dos estilos
altemativos de desenvolvimento e contribuíram para sua análise. Ver Graciarena, J.,
"Poder y estilos de desarrolld. Una perspectiva heterodoxa" e Pinto, A., "Notas sobre los
estilos de desarrollo en América Latina", in Revista de la Cepal, Naciones Unidas,
Santiago de Chile, n. l,jan.-set./1976. Pinto distinguia a noção de "sistema" (capitalista
e o socialista) da noção de "estrutura" que aponta para o funcionamento da economia (o
grau de diferenciação do aparellio produtivo) e para a colocação e relacionamento dela
no esquema mundial, como dominantes ou subordinadas Qmveria sociedades capitalistas
industrializadas, capitalistas subdesenvolvidas, socialistas industrializadas, socialistas
subdesenvolvidas). O estilo de desenvolvimento apontaria para o modo pelo qual "dentro
de lUJ1 determinado sistema se organizanl e distribuem os recursos hwnanos e Illateriais
com o objetivo de resolver as interrogações sobre o que, para quem e como produzir os
bens e serviços" (p. 104).
39. Diga-se de passagem que a primeira dificuldade teórica, a de centrar a teoria
de desenvolvimento na lógica das necessidades básicas, vem sendo elaborada não só por
Furtado, como já indiquei, mas por Ignacy Sachs. Ver, deste último, Sryles etc.
40. Não resumirei aqui as refoffilas propostas para o sisteIlla das Nações Unidas
porque isso fugiria demasiado do foco deste trabalho. Basta consultar "Another Deve-
lopment" ou o projeto R.I.O. para ver-se as linlms principais de sugestào. Convém dizer

225
que alguns dos principais documentos relativos aos enfoques alternativos para o desen-
volvimento foram feitos expressamente para influir nas rewúôes preparatórias das
Assembléias da ONU e especificamente para o sétimo período extraordinário de sessões
da Assembléia Geral, que tratou da nova ordem econôllÚca mWldial.
41. Tinbergem, J. (coordenador), op. cit., 167. Diga-se que se o Informe Hammars-
kjõld projetou com força os novos objetivos de desenvolvimento, o projeto R.I.O.
apresenta mais detalhada e solidamente as políticas a serem implementadas.
42. A esse respeito, ver Somavia, Juan, "Can we Wlderstand each olher? The need
for a new international information order", in Dolman e Ettinger, op. cit., p. 228 e
seguintes.
43. ColóqlÚo de Argel, p. 13; 14 e 38 respectivamente.
44. Jagairy, 1., KIÚI1, P. e Sornavia, 1., "Las empresas transnacionales" in Tinbergen
(coord.) op. cit., p. 431. Coerente com suas análises os autores acrescentam que: "Muitos
dos objetivos de desenvolvimento autônomo descrito na SegWlda Parte deste Relatório
se chocam com a lógica atual das empresas transnacionais. A autonollÚa é wn estilo de
desenvolvimento baseado no reconhecimento da diversidade cultural; como tal é wn
instrumento contra a homogeneização das culturas. Pelo contrário, a lógica das empresas
transnacionais baseia-se em que a maioria dos produtos podem vender-se com proveito
em quase todos os países em que operam, se se tem em conta apenas seus níveis de
desenvolvimento". Idem, ibidem, p. 441.
45. Anúm, Sanúr, "Some lhoughts on self-reliant development, colk,ctive self-re-
liance and annew econonúc order", Vlúted Nations, IDEP, Dakar, 1976, mimeo.
46. Arnim vai mais longe: "The fact is lhat lhe lhemes of lhe new order involve the
aspiration to control lhe natural resources and to strenghlhen the national states, wlúch
imperialism does not accept. 11 would like lherefore, to substitute for it the "Rio project"
(Reshaping of lhe International arder) which is and ideological fOffimlation of the need
to transfer some of lhe industries of lhe center to lhe peripheries wlder the wings of lhe
multinationals",op. cit., p. 25.
47. Note-se que a reação critica dos econollÚstas "ortodoxos" foi semelhante. Ver,
por exemplo, o documento escrito por Cooper, Richard, "Developed cOlUltries reactions
to calls for a new international econollÚc order", mimeo., 1977. Cooper é subsecretário
do Comércio dos V.S.A. Tenta mostrar a insubsistência dos arglUllentos morais em favor
da redistribuição da riqueza (do ponto de vista da própria filosofia moral) e o irrealismo
das demandas do Terceiro Mundo. Propõe "negociaçãcs razoáveis" que garantem o
acesso aos mercados dos paises industrializados para os países da Periferia e melhores
condições comerciais nos dois sentidos (a more frce market!).

226
ADENDO

ALTERNATIVAS ECONÔMICAS
PARA A AMÉRICA LATINA"

Em primeiro lugar, mais que meu reconhecimento e


minha satisfação por estar em Salamanca no quadro das
comemorações de seu 5 Q centenário e do 5 Q dos Descobri-
mentos, quero registrar minha gratidão: o sentido univer-
salista de Salamanca emociona os brasileiros ao mesmo
tempo que explica o ter sido um deles convidado por este
Foro.
Brasileiro há séculos pelas origens familiares, com
raízes portuguesas e ramos espanhóis, salpicado do sangue
mestiço, sempre nutri pela Espanha sentimento de respeito
e de admiração. Cada vez que cheguei a ciudad Rodrigo,
vindo de Portugal, ou a Tuy, em busca de Santiago de
Compostela, arrepiou-me o ver nas pedras seculares a
marca forte dos muros espanhóis e ao adivinhar no desenho
voluntarioso de suas cidades a alma de um povo altaneiro
que constrói civilizações.
Nunca me esqueço das páginas do grande escritor
brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda, comparando a co-
lonização espanhola na América com a portuguesa, quan-

* Palestra proferida no seminário "Nuevos escenários y nuevas polilicas para


Ibero-América", Salarnanca, 20 de julho de 1990.

227
do, em admirável capítulo de Raízes do Brasil, descreve a
cidade colonial hispânica. Ela obedecia a um plano arqui-
tetônico rígido, enquanto a cidade portuguesa se espraiava
preguiçosamente ao sabor da geografia local. Entre a "Plaza
Mayor", a partir da qual desenhavam-se geometricamente
as ruas, e o Paço Municipal (com a cadeia ao lado, por certo)
que se aninhava na primeira elevação encontrada ao acaso,
cercada desordenadamente por vielas sem plano, existe
toda uma diferença.
Diferença essa que pude constatar ao ter trabalhado - e
de perto - com um dos mais eminentes sociólogos espa-
nhóis da geração que ainda pegou os duros anos da Guerra
Civil, José Medina Echevarria. Exilado no Chile, como eu
também, só que Medina com décadas de anterioridade,
trabalhamos juntos na CEPAL na sede das Nações Unidas,
em Santiago. Sua formulação européia (germano-espanho-
la) fora tão forte que não o perturbavam as confusões
populistas, o desarranjo cultural de povos que para terem
identidade começam por negar o que são e a imitar o que
não são, como fazemos nós, os latinos-americanos. Aju-
dou-nos a pensar a América como Ibero-América, dentro
de uma perspectiva clássica, a despeito de nossa obsessão
pelo desenvolvimento econômico mesmo que feito a jatos
de desigualdade.
É com este espírito, de um ibero-americano, que pre-
tendo apresentar nesse Foro algumas dúvidas e algumas
alternativas para a economia da América Latina, diante de
um mundo que parece ser outra vez novo. Comecemos,
portanto, por aí, pela idéia de um mundo novo.

o mundo novo
Os latino-americanos que até a última geração apren-
demos a considerar-nos como parte do novo mundo senti-
mos de repente, na década de 80, um choque: não nos

228
teremos tomado antiquados? Não terá surgido um mundo
novo às nossas costas - ou quem sabe, à nossa frente - sem .
que dele tenhamos tido sequer a intuição?
cO sentimento que sempre tivemos de pertencer ao
"novo", em contraste com a "velha" Europa ou com os
Estados Unidos desgastados, era tão entranhado em nós que
a idéia de desenvolvimento econômico parecia ser proprie-
dade nossa. Além do mais, alguns países da América Ibé-
rica pareciam ser a expressão concreta do ímpeto de
crescimento que só as "nações jovens" possuem. Estudo
recente de Angus Maddison, comparando as 5 maiores
economias da OCDE com as 5 maiores de fora dela (URSS,
China, Índia, México e Brasil), mostra que o melhor de-
sempenho em termos do crescimento do produto nacional
entre 1970 e 1987 foi o do Brasil - 4,4% ao ano. Mesmo
tomando-se um indicador mais rigoroso, como o cresci-
mento per capita, o do Brasil foi o segundo (2,1 % ao ano),
superado ~penas pelo do Japão (com 2,7% ao ano).
O que houve, então, na década de 80, ou por que um
país como o Brasil deixa de ser "novo", frente, digamos, à
Itália ou à Alemanha?
Deixo de lado talvez o fundamental, por ser aqui-co-
nhecido: o salto tecnológico. Esse atua hoje como atuou a
Escola de Sagres, nos descobrimentos: depois da bússola,
da nova cartografia e da nova técnica das caravelas, de que
valiam as galés? De que vale hoje a abundância de recursos
naturais e de mão-de-obra, mesmo sendo ~aratíssima, de-
pois da informática, da microeletrônica e da biogenética?
Mas, cuidado!, não foram os portugueses - e nem
sequer os italianos com suas curiosidades ou os espanhóis
com suas Salamancas - os que mais se beneficiaram dos
inventos técnicos, nem de suas conquistas. Os holandeses,
por exemplo, souberam "ser novos" no século XVI e so-
bretudo no XVII, sem terem sido precursores, inventores

229
ou descobridores das novidades. É que sua sociedade "mo-
dernizou-se" à época.
Terá sido o protestantismo, capaz da proeza de absorver
o pragmatismo racional dos judeus portugueses e espa-
nhóis, para permitir aquela "modernização"? Talvez. Mas
o fato é que a Casa de Orange mais as companhias de
comércio, sem muita Inquisição ou Cruz, fizeram da Ho-
landa o fulgor de Flandres. No comércio, na razão e só
secundariamente na guerra foram eles os esteios do novo
mundo. Não foi propriamente o que os ibéricos plantaram
nas Américas, mas sim o que os europeus, com seu capita-
lismo vitorioso, fizeram na Europa, que criou a "moderni-
dade", dando à civilização o Século de Ouro e depois o
Iluminismo.
O Novo hoje já não é sequer o "desenvolvimento". E
nem se pense que a invenção científica e mesmo a patente
tecnológica, por si, constroem uma civilização nova. Novo
é a combinação entre "organização" (portanto, raciona-
lidade), liberdades públicas e individuais e maiores níveis
de igualdade.
Foi essa fórmula milagrosa que fez a "velha" Europa
tornar-se a esperança do futuro. E acaso aqui na Espnha
pós-Franquista (que enterrou e esconjurou o nefasto "viva
la muerte", cuja repulsa pública de maior significação
deu-se precisamente aqui em Salamanca pela boca de Una-
muno) não é esse mesmo sentimento que a renova? Não
terá sido a capacidade espanhola - a férrea vontade de
determinar-se a um propósito - que juntou a Espanha à
CEE, guardou respeito às liberdades e moveu o país na
direção de maior justiça social? Não é isso que nos faz rever
Madri já não como a capital de Castel~, mas como facho
de um eventual "mundo hispano-americano"? E mesmo
Portugal, mais modesto em suas dimensões econômicas, ao
aceitar o desafio de lançar-se à competição no Mercado
Comum não se tomou, outra vez, caravela do progresso? É

230
só percorrer o Minho agrário, acomodando-se à civilização
industrial quase à moda do "putting-out-system" para per-
ceber que lá pulsa "um outro desenvolvimento".
Não se trata apenas de crescer economicamente e de
deixar que o trickle-down effect jogue migalhas aos pobres.
Na fusão entre organização-liberdade-justiça social, a mola
do futuro não é só a acumulação (e a luta de classes por ela
posta). Há um "espírito novo" em tudo isso.
Foi Werner Sombart, talvez mais do que Max Weber,
quem se antecipou na visão desse "espírito novo". Weber,
preso ao diálogo com Marx, não rompeu a férrea lógica do
capitalismo gerada pela visão genial de Marx. Apenas quis
invertê-la, dando mais peso aos componentes "organizató-
rios" do capitalismo do que à sua brutalidade exploradora.
Mas Sombart sublinhou o essencial, que, digamos com
certa liberdade, não é a "exploração" (de resto, com as
sucessivas revoluções tecnológicas, cada vez menos rele-
vante) mas sim o espírito de aventura somado a um "méto-
do".
Esse "método" - a ciência feita tecnologia e a empresa
feita organização internacional - não é um dogma. Ele
descende de Descartes temperado por - pasmem - Pascal,
que fez da dúvida angustiosa do mundo uma rotina mesmo
para os crentes. E essa "aventura", diferentemente da busca
do desconhecido na época dos descobrimentos, é uma
antecipação mental de etapas a serem vencidas.
Como no período das grandes descobertas, tudo isso
requer também coragem, audácia. Mas já não se trata da
coragem individual do líder. O Unternehmer moderno é
uma força social enraizada nos vários níveis da sociedade,
compartilhada como uma vontade coletiva, que requer
motivação e objetivos novos, permanentemente mutáveis.
O "novo" espírito do capitalismo é, portanto, essa mistura
de espírito de empresa com motivação argamassada no

231
conhecimento científico e com propósitos coletivos de
bem-estar.
A acumulação de capitais é condição para tudo isso.
Mas já não se repõe por si, isto é, pela exploração direta da
força de trabalho em benefício de capitalistas individuais.
O capitalismo contemporâneo supõe uma "socialização
específica" que toma a mera acumulação parte de um
processo civilizatório mais amplo. Esse requer universida-
des, estados racionalizados (e não nacionalizados apenas),
burocracia dominada por alvos políticos extra-empresa,
vontade societária de liberdade e justiça social.

o "novo" cenário mundial


A base sobre a qual repousam essas transformações tem
a ver com o crescimento exponencial das forças produtivas
e com os resultados da "luta de classes", para dizer em
termos simples e diretos.
O aumento de produtividade gerou excedentes excep-
cionais que puderam ser canalizados, através de impostos
e de políticas sociais, para o desenv9lvimento social, im-
pedindo, assim, o processo de empobrecimento crescente
das grandes ma~sas.
Na Europa do pós-guerra - diante do desafio do comu-
nismo - viu-se a adoção em vários países de políticas de
tipo "social-democrática" que terminaram por beneficiar os
trabalhadores e assalariados. Os enormer orçamentos pú-
blicos, a visão keynesiana que não teme déficits e o poderio
crescente de sindicatos e partidos de esquerda tomaram as
sucessivas revoluções produtivas instrumentos favoráveis
tanto para a acumulação de riquezas como para a diminui-
ção das desigualdades sociais.
Nos EUA e no Japão - cada um com suas próprias
características - mesmo sem o élan social-democrático, a

232
política do pós-guerra foi também uma política de "welfa-
rismo", embora mitigado em comparação com a Europa
Ocidental. A tal ponto o mundo capitalista abraçou a idéia
do estado do bem-estar social que na última década ocorreu
uma espécie de "regressão ideológica" que consistiu em
revalorizar o mercado, a livre iniciativa e em debilitar a
força do Estado para coletar mais impostos. Os capitalistas
temiam que a vontade política tivesse ultrapassado as exi-
gências da acumulação para continuar o crescimento eco-
nômico.
A despeito dessa última tendência - mais claramente
expressa pelos governos de Reagan e de Margaret Thatcher
- na prática a noção de "um novo capitalismo" já estava tão
arraigada culturalmente que tanto os EUA continuaram a
praticar uma política de sustentação do déficit público,
nada ortodoxa, como as "políticas sociais" (proteção ao
desempregado, habitação popular, recursos públicos para
saúde e educação, etc.) continuaram a surtir seus efeitos até
mesmo na Inglaterra de Margareth Thatcher, apesar da
retórica antiestatal e das privatizações.
Em toda a parte o governo continuou sustentando o
crescimento econômico e o bem-estar social. E, por outro
lado, a revolução tecnológica, especialmente aquela propri-
ciada pela informática e por meios de comunicação mais
rápidos e seguros, tanto de pessoas e mercadorias como de
mensagens, possibilitou a "globalização" da economia.
Desde os anos 60, e de forma mais marcante nos últimos
20 anos, tanto houve a descentralização da produção indus:'
trial .através das empresas multinacionais, como houve
enorme - e conseqüente - aumento do comércio mundial.
Este tem crescido sempre dois ou três pontos à frente do
crescimento do produto dos países. Ao lado disso a "revo-
lução quaternária", afetando toda a rede de produção dos
serviços (dos financeiros ao telex, ao fax, aos satélites de
comunicação e assim por diante) criou novas fontes de

233
poder e de recursos, pennitindo a descentralização da pro-
dução e dos serviços, mas garantindo controles unificados.
O resultado desse processo todo (abstraindo nessa pa-
lestra as questões propriamente políticas) foi a formação
dos quadros institucionais que dão os contornos da globa-
lização mundial: os mercados comuns, os acordos bi e
multilaterais e, conseqüentemente, os temores de um futuro
marcado por "fortalezas aduaneiras" nas quais as tarifas são
substituídas por acordos não tarifários de proteção dos
mercados. E é precisamente contra isso que se batem agora
os países em desenvolvimento, visando a fortalecer o
GATI nas rodadas de Montevidéu.
Estes fatos deram origem, contraditoriamente, à noção
(ideológica) de que o mundo contemporâneo marcha para
uma revalorização do mercado e do liberalismo, quando,
na verdade, as negociações são conduzidas politicamente
pelos governos, as alianças econômicas soldaram interes-
ses entre grandes oligopólios de produção e distribuição,
ramificados à escala mundial e criou-se um novo sistema
de "planejamento espontâneo e prospectivo", não contra-
ditório com os já referidos valores de liberdade individual
porque não exclui as opções de investimento e de consumo.
É certo que nesse novo marco as políticas que fizeram
o esplendor das "bourgeoisies conquérantes" e que no
século XIX tenninaram por integrar os povos em "estados
nacionais" vêm sendo paulatinamente substituídas por ou-
tras, mais dinâmicas. O empresário individual, o "tycoon"
ou o "unternehmer", são hoje figuras arqueológicas diante
do "board of directors", das burocracias empresariais e da
amálgama entre, por um lado, ciência e organização pro-
dutiva e, por outro, a "firma-mãe" e a rede de suas afiliadas
que podem, inclusive, ser empresas familiares ou indivi-
duais de alta tecnologia. O diplomata, representante típico
das "políticas de potência" e o estado nacional por sua vez,
se debilitaram, dando lugar à ação direta de negociantes e

234
de produtores que atuam nos marcos de acordos negociados
a nível técnico-político pelos governos.
Este "novo mundo" parece ter permitido o ressur-
gimento de forças localistas, de valores culturais-nacionais
(como a língua) e da religião, ao lado da globalização das
forças produtivas e da economia.
É esse desafio (o de uma nova concepção da empresa e
da produção, inclusive quanto ao planejamento espontâneo
global, permitindo não só mais iniciativas individuais como
maior espaço público para o exercício de valores culturais,
tradicionais) que perturba tanto o Leste Europeu e a Ásia
comunísta, como a América Latina e os países do Terceiro
Mundo.
Não cabe nesta palestra discutir as vicissitudes criadas
por esta situação para a União Soviética, a China e os
demais países de economia centralmente planificada. Cabe
apenas dizer que essa nova fase do "capitalismo ocidental",
de globalização da economia com dispersão controlada,
associada a práticas de criatividade e liberdade, pôs em
xeque as concepções burocráticas do planejamento central
das economias socialistas. Tomou-se evidente a superiori-
dade tecnológica que serve de suporte à potenciação da
produtividade das empresas capitalistas e que não é alheia
à questão da liberdade e da iniciativa individual.
Diante disso, algumas correntes de opinião vêem no
desengajamento das economias do Leste do modelo sovié-
tico o ressurgimento do capitalismo, do mercado e do
liberalismo à la século XIX. Se tal viesse a ser o caso, os
países socialistas teriam perdido o bonde da história uma
vez mais. O que lhes falta não é "capital" em sentido técnico
nem apropriação individual dos meios de produção. Falta-
lhes muito mais uma "cultura de empresa", que envolva
tanto a disciplina no trabalho como o gosto pelo risco e pela
competição. Falta-lhes, precisamente, a noção nova do
"planejamento espontâneo" que não substitui a burocracia

235
pelo mercado, mas faz deste último um aferidor de tendên-
cias livremente previstas pelos grupos empresariais.
É através do mercado, da reação dos outros produtores
e dos consumidores, que as empresas dispõem dos instru-
mentos para avaliar suas decisões. A mola deste sistema é
a competição, que leva as empresas ao desenvolvimento
tecnológico crescente e fazem-nas dependentes dele para
ter lucros.
Por isso, tanto a burocratização da economia como sua
oligopolização - que é o resultado da inexistência dos
contrapesos do interesse público para preservar o funcio-
namento do mercado - acarretam conseqüências fatais ao
crescimento econômico e à manutenção de uma sociedade
de bem-estar.
O "novo" no mundo contemporâneo consistiu em ter
transformado a criatividade - a invenção tecnológica e
organizacional - em rotina, tanto na empresa como na
sociedade. E tudo isso em um clima de liberdade.

o panorama Latino-Americano
Enquanto o mundo se defronta com as alternativas
trazidas pela globalização da economia, a América Latina,
a partir da década de 80, se debate com a estagnação
econômica, a dívida externa e a inflação.
Por certo os dirigentes das economias latino-america-
nas exageraram ao persistir com políticas de captação de
empréstimos externos graças à abundância dos eurodólares
e de taxas de juros aceitáveis. Os países asiáticos que
entraram no processo de internacionalização da economia
(os NIC's asiáticos) foram mais prudentes com respeito à
captação de recursos financeiros no exterior e aplicaram
políticas mais audaciosas para a correção dos desníveis

236

i
J
sociais, incluindo, em alguns casos, a reforma agrária, e,
em todos os países, a valorização relativa dos salários.
Quando já havia sinais inquietantes no mercado finan-
ceiro internacional, antes do setembro negro de 1982, data
em que o México se declara em moratória, os NIC's lati-
no-americanos continuaram a endividar-se. Nada de signi-
ficativo fizeram, por outro lado, para melhorar as condições
de vida de suas populações. Convém não esquecer que o
grande salto (o "milagre", como foi chamado com exagero
o esforço industrializador e exportador de alguns desses
países) das economias latino-americanas nos anos setenta
deu-se sob a égide de regimes autoritaritários, de base
militar. Naquela época acreditava-se que os fundamentos
para a entrada da América Latina na "modernidade" seria
a aliança entre capitais locais. Estado e empresas multina-
cionais.
É até possível que essa estratégia de crescimento eco-
nômico fosse a mais adequada para assegurar que o "novo
capitalismo" não se asfixiasse no corporativismo estatal, no
protecionismo e na idéia de manter as economias em con-
dições de produção autárquica. Mas a realidade que dela
resultou foi uma pesada dívida externa, uma orientação
exportadora mais baseada na necessidade de produzirem-se
excedentes na balança comercial para pagar a dívida (com
contração de importações) do que na idéia da nova econo-
mia global. Foi, portanto, o reforçamento do protecionismo
até mesmo para salvaguardar empresas estrangeiras já ins-
taladas. Foi o imobilismo social e o peso desproporcional
dos oligopólios sustentados pelas políticas oficiais.
Em outros termos, o crescimento industriallatino-ame-
ricano seguiu o caminho oposto do que caracterizou o
amálgama novo do capitalismo contemporâneo. Com isso
a América Latina marcou passo enquanto a Ásia - ou partes
significativas dela - assumiu a cultura empresarial dos

237
novos tempos. Só mesmo na comparação com a África é
que a América Latina se sai melhor.
Na verdade o quadro ainda é pior do que essa descrição
faz crer. A própria perspectiva de "desenvolvimento eco-
nômico" adotada manteve, no essencial, a visão "rostowia-
na" das etapas de crescimento e a América Latina não se
envergonhou - nos seus círculos oficiais - até mesmo de
proclamar "bendita poluição" quando se tratava de atrair as
"indústrias sujas" do Primeiro Mundo. Com tal falta de
perspectiva, não é de estranhar que a "alternativa" para
competir que mais prosperou nas últimas décadas tenha
sido a tradicional: potencializar as vantagens comparativas
oferecidas por recursos naturais que se acreditavam abun-
dantes e a utilização de mão-de-obra barata.
Ora, isso no momento em que o capitalismo contempo-
râneo ganha nos países centrais as novas dimensões já
referidas só pode levar a conseqüências trágicas. A maior
tragédia consiste precisamente em que se está aceitando a
superexploração da mão-de-obra como pilar do crescimen-
to econômico e a depredação do meio ambiente como fator
de progresso.
Ocorre que, apesar das esperanças abertas pelo Relató-
rio Brandt (que pretendeu assumir uma visão keynesiana a
nível mundial, valorizando o consumo dos pobres para a
sustentação da produção dos ricos), a economia contempo-
rânea dispensa a pobreza. Ela precisa sim de investimento
e consumo, mas dos próprios produtores, não da massa de
indivíduos pobres. Na visão Keynes Brandt, à escala mun-
dial, os pobres - com a ajuda dos ricos - deixariam de ser
pobres, transformando-se em consumidores. Assim, os ri-
cos, ao ajudá-los, estariam ajudando a si próprios, criando
as bases para a prosperidade mundial.
Mas não é por este caminho que trilha a prosperidade
dos ricos. A África pode passar fome sem criar uma con-

238
juntura de "crise de demanda" na Europa e o mesmo se diga
da América Latina com respeito à economia americana.
Percebido o irrealismo dessa perspectiva só restou aos
pensadores do Primeiro Mundo que desejam - e o desejam
sinceramente - resgatar os países em vias de desenvolvi-
mento, ou criticar as instituições de ajuda internacional,
exigir mais do mesmo estilo de desenvolvimento, com
pinceladas morais de solidariedade (como no caso do Re-
latório Brundtland) ou ameaçar com a "catástrofe ecológi-
ca" e imaginar alternativas preservacionistas para os países
pobres, financiadas pelos ricos. .
Se, entretanto, à boa vontade quisermos ajuntar realis-
mo, não será por aí que a América Latina encontrará
alternativas para seu desenvolvimento.
Aceitando-se, para economizar tempo de exposição,
que haja um mínimo de homogeneidade na América Latina
e que a solução encontrad-a pelos países de maior peso
relativo no Continente possa servir para os demais (ou
possa, pelo menos, criar condições que lhes sejam mais
favoráveis), eu diria que a América Latina precisará encon-
trar solução para quatro ou cinco problemas fundamentais
interligados:
- o da dívida externa;
- o da crise fiscal e organizativa do Estado e suas
conseqüências inflacionárias;
- o da capacitação tecnológica e aumento da competi-
tividade;
- o da distribuição interna da renda;
- o de realizar sua revolução educacional e social.
Tudo isso a partir de uma perspectiva bem diferente
daquela que marcou os "anos de ouro" do desenvolvimento
econômico à base da "substituição das importações". Com
efeito, para aquele propósito, as barreiras protecionistas, a.

239
edificação de um estado capaz de dinamizar a economia (e,
portanto, de poupar e investir), a prevalência da formação
do mercado interno como catalisador do crescimento eco-
nômico e a crença no nacionalismo como pilar do interesse
do país, constituíram os ingredientes fundamentais e sufi-
cientes para a "arrancada do desenvolvimento econômico".
Isso, somado a um certo distributivismo forçado pelas
corporações e regulado pelo Estado, se não produzia o
"bem-estar social" geral, enraizava um empresariado e
dava acesso à civilização "urbano-industrial" a amplos
setores da classe média, bem como a setores mais limitados
dos trabalhadores.
Nas condições contemporâneas, a oposição entre mer-
cado interno e mercado externo perde força, o caráter
dinâmico das exportações passa a ser reconhecido como
parte do desenvolvimento do país; o Estado, diante da
enorme crise fiscal, cede espaços à iniciativa privada; a
busca de áreas competitivas a nível internacional para a
produção local (e, portanto, de capacitação tecnológica)
torna-se decisiva para a prosperidade. Ao mesmo tempo, o
clamor por mais justiça social substitui o fervor nacio-
nalista do passado.
Não sugerirei nesta aula fórmulas salvadoras para qual-
quer dos itens que listei acima. Mas não posso deixar de
referir-me, de passagem, a alguns deles, pois constituem
problemas a serem resolvidos na busca de uma alternativa
econômica.
Sobre a questão da dívida, dois comentários. Primeiro,
é preciso saber que boa parte dela se deve à contabilização
como débito de "juros flutuantes" não pagos. A partir do
momento em que, suponhamos, em um empréstimo de 100
milhões de dólares a juros de 7 % ao ano, a flutuação da taxa
internacional de juros eleva-os para 15 % ao ano (e chegou-
se a 21 %!) é óbvio que o investimento real feito tem
enormes dificuldades para amortizar a dívida. Passa-se a

240
'-....

dever sem contrapartida de investimento reaL Isso, para o


conjunto dos empréstimos, debilita a capacidade de paga-
mento do país. Pois bem, pelos cálculos do Banco Central
do Brasil, para uma dívida de mai~ ou menos 70 bilhões de
dólares aos bancos privados, cerca de 25 bilhões são con-
tábeis: referem-se a juros sobre juros e à "flutuação" da taxa
de juros, sem nunca terem significado recursos investidos
na economia.
Segundo, como a dívida foi "estatizada", os devedores
privados depositam em moeda local o correspondente a
suas remessas para honrar os débitos. O Estado - que não
produz diretamente divisas, salvo quando é proprietário de
indústrias exportadoras - precisa fazer duas coisas para
pagar as dívidas: provocar "excedentes na balança comer-
cial" (e, portanto, encorajar políticas exportadoras e frear
as importações e com elas parte do desenvolvimento) e
produzir moeda local para comprar as divisas. Como não
pode ultrapassar certos limites na coleta de impostos (e
como, por outras razões, o Estado sofre a sangria dos que
vivem às suas custas, sejam empresas - privadas e públicas
- seja a burocracia) ele acaba por emitir e/ou endividar-se
internamente para poder pagar a dívida, mesmo que o país
disponha das reservas.
Logo, dívida externa e crise fiscal do Estado estão
umbilicalmente ligadas. Como corolário, qualquer alterna-
tiva econômica para a América Latina passa por enfrentar
esses dois problemas e enfrentá-los em suas conexões.
México e Chile - e agora Venezuela - renegociam suas
dívidas e tiram proveito da noção hoje mais aceita pelas
finanças internacionais do debt relief No caso do Chile,
como o estado é proprietário do cobre, talvez uma redução
adequada do serviço da dívida possa permitir o desafogo
necessário para a retomada do crescimento. No México,
apesar das vantagens que a integração ao Hemisfério Norte
lhe ofereça, mesmo com redução da dívida, os problemas

241
crônicos de desequilíbrio das contas públicas continuarão
assolando o país. É bem verdade que o governo conseguiu
uma espécie de pacto interno que desanuviará o horizonte.
Terá assim {acilitado (e o raciocícnio é válido para a
Venezuela) o desafio de repor as finanças públicas para
retomar o crescimento com a inflação mais controlada.
Já que mencionei a inflação, é óbvio que a partir da
perspectiva que adotei, as políticas do estilo característico
do Fundo Monetário Internacional do gênero "controle da
base monetária - arrocho salarial - equilíbrio orçamentá-
rio" são insuficientes, pois não enfrentam a questão princi-
pal que é o endividamento interligado externo e interno do
Estado e propõem o impossível: que se pague a dívida e,
ao mesmo tempo, que se equilibre o orçamento.
Essas ponderações não devem ser entendidas, entretan-
to, como se eu menosprezasse a necessidade de uma pro-
funda reforma fiscal e tributária (mais necessária e mais
difícil ainda nos países organizados como federações que
dotam as províncias de autonomia no gasto público) ou que
considere desimportante o controle inflacionário. Só que
ou se faz isso repondo a capacidade de tributação, de
poupança e de investimento do Estado (portanto, impondo-
se condições aos credores externos e internos para o paga-
mento das dívidas) ou tudo não passará de trabalho de
Sísifo.
Neste panorama, as alternativas de desenvolvimento
econômico da América Latina não devem contar com o
aporte de capitais externos como fator decisivo para a
retomada do crescimento. Elas virão em pequena propor-
ção à medida em que os países forem resolvendo seus
problemas internos, porque o sistema financeiro interna-
cional dispõe de alternativas melhores e está temeroso de
investir no desenvolvimento e porque a negociação da
dívida externa, se for correta, aumentará a má vontade dos
bancos.

242
Isso não quer dizer que os países da América Latina
possam dispensar inyestimentos externos. Haverá que bus-
cá-los graças aos créditos oficiais internacionais e através
de joint ventures que transfiram tecnologia em áreas de
ponta nas quais cada país possa ser competitivo. Para tal é
indispensável a formulação de competente e séria política
de desenvolvimento industrial e tecnológico.
E neste ponto o raciocínio torna-se circular: sem que os
estados dos países latino-americanos saiam da crise fiscal
em que se encontram e sem que se reorganizem, não terão
a capacidade política nem a sustentação social para definir
e implementar políticas efetivas de crescimento econômi-
co, seja agrícola, seja, principalmente, industrial.
Dito noutros termos, as alternativas para um novo surto
de crescimento econômico no Continente dependem da
definição de rumos da política interna dos países que per-
mitam sanear as finanças e estabilizar o Estado. Não mais,
entretanto, para que o Estado substitua a sociedade civil, e
sim para que ele pennita melhor articulação desta última.
Por "melhor articulação" entendo duas coisas: que o em-
presariado local encontre condições e estímulos para inves-
tir e que os governos sustentem políticas de rendas que
comecem a reverter a atual situação de hiperconcentração
da riqueza.
Nada disso será feito, repito, sem uma "revolução edu-
cacional" e sem políticas de bem-estar que levem tanto a
mais igualdade, que é o suporte prático da liberdade, como
a níveis mais elevados de competência técnica e de organi-
zação social.
Chegamos, assim, na América Latina, a uma situação
paradoxal: para crescer economicamente os países preci-
sam, primeiro, de condições políticas, com um Estado
melhor organizado, não clientelístico e capaz de ter um
compromisso social. O crescimento que propiciará melho-
res condições internas de vida não pode mais ser encarado,

243
como no passado, como devendo "orientar-se para dentro".
Será orientado tanto para o mercado interno como para a
competição internacional. Entretanto, para atingir-se este
patamar, será necessária uma política dura de renegociação
da dívida que, provavelmente, despertará reações negativas
nos setores que sempre insistiram na necessidade de valo-
rizar-se o mercado externo: os banqueiros e investidores
internacionais.
Se as peças do quebra-cabeça fossem fáceis de encaixar J
não seria necessário talento nem política. Por isso, as j
(
dificuldades - que são muitas - para a retomada do desen-
volvimento econômico e para a entrada da América Latina
na modernidade não devem desanimar-nos, mas estimular-
nos.
Estão aí as lições da "velha" Europa que renovou-se em
30 anos. Os países latino-americanos, ao invés de insistirem
nas "etapas" restowianas, devem entender que podem dar
saltos. Se eles perceberem que para serem "modernos" e
competitivos precisam de melhor organização interna (de
base empresarial) tanto no Estado como na sociedade civil,
de maior capacitação tecnológica, de melhor educação e,
como conseqüência, de melhor distribuição de renda e,
sobretudo, que precisam de liberdade para que tudo isso
ocorra, enfrentarão o novo milênio com chances de êxito.
Vamos apostar e torcer. Com muito compromisso.

244
TRECHO DO LIVRO

Que não se confunda a discussão deste projeto de um "outro desen-


volvimento" com a polêmica entre crescimento zero e "desenvolvimen-
to", nem com o confronto entre a insana atitude dos que rezam
"bendita seja a poluição" e a ingenuidade dos que acreditam ser
melhor deixar de produzir do que contaminar o ecossistema, ou entre
os que apregoam a ruralização do mundo e os que cantam as virtudes
da urbanização a qualquer preço. Nestes termos, a discussão só pode
dar num diálogo de surdos.

Quando os defensores de um "outro desenvolvimento" insistem em


que a racionalidade social deveria prevalecer sobre a racionalidade
instrumental, pseudotécnica, estão simplesmente reafirmando que o
mundo contemporâneo pode contar com alternativas mais ricas e
variadas; que, se bem seja certo que para poder repartir é preciso
crescer, por outro lado não é verdade que o crescimento por si só
levará a uma repartição justa dos frutos do progresso técnico entre as
classes e as nações.

ISBN 85.326.0931-7

Uma vida pelo bom livro_ 9 ~oo~~~


l~llU~

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