Trabalho fora do trabalho: uma de me tornar etnógrafa, e este livro guarda tais vestígios [...]” (p. 272-273). etnografia das percepções. O livro se divide em três partes: “O ofício de etnógrafo”, que trata do método e da teoria da WEBER, Florence. pesquisa; “Formas e funções do trabalho paralelo”, que busca explorar a prática do Tradução de Roberta Ceva. trabalho paralelo em si e suas valorações por Rio de Janeiro: Garamond, 2009. 384 p. parte dos trabalhadores observados; e “Pertencimentos sociais, pertencimentos locais”, que explora as relações nas quais as valorações desse tipo de atividade se constroem. A análise é cuidadosa. As pessoas em geral Apesar de os estudos que têm como objeto são observadas em diferentes aspectos, não só o operariado, nas Ciências Humanas, serem pelo pertencimento àquilo que a autora chama inquestionavelmente extensos, de forma geral de operariado, mas a descendência, o sexo, a esses estão ligados a uma identidade operária renda, as relações políticas e a faixa etária são construída na relação com a fábrica – ou outro aspectos levados em conta. Considerando que, que seja seu ambiente de trabalho formal – ou para ter acesso a informações que dados então construída na resistência a ela. Nas estatísticos não resolveriam sobre o trabalho pesquisas que se preocupam em observar essas realizado fora do ambiente formal (que muitas questões mais de perto, o ideal de bom operário vezes não era declarado por medo de uma ou o de bom militante não aparece puro, estando fiscalização governamental sobre sua irregula- circulando e se relacionando de forma não ridade ou até pelo caráter de lazer atribuído pelos estática, não engessada. Florence Weber, em pesquisados a esse trabalho), a pesquisadora se sua pesquisa realizada entre trabalhadores/as de insere no ambiente estudado para obter as uma área rural francesa entre 1983 e 1985, informações. Assim, em muitos momentos, ela buscou observar exatamente o que não estava coloca suas percepções encarando-as como nem na fábrica nem no sindicato, questionando- sendo parte do meio, apesar de trabalhar com se sobre o que faziam os operários fora de seu a ideia de distanciamento entre pesquisador e trabalho em uma fábrica metalúrgica. objeto de pesquisa. Socióloga e antropóloga francesa, Nota-se que ela se preocupa em marcar Florence Weber se desloca na década de 1980 seu afastamento de abordagens que carregam de Paris para Montbard, pequena cidade na qual a alcunha de “pós-modernas”, percepção que residiu durante a infância, para, através da se completa com a ideia de que “uma interpreta- pesquisa etnográfica, buscar “descobrir, a partir ção aprofundada destes acontecimentos da observação dos comportamentos operários microscópicos [atividades reconhecidas como fora da fábrica, valores e gostos positivos que trabalho paralelo] pode torná-los exemplares” (p. permitem explicar certas práticas operárias sem 15). Mas lembra, em seu posfácio datado de reduzi-las a uma simples submissão à 2009, que seus resultados não foram marxistas necessidade” (p. 254). O foco principal da porque os operários que descreve não são pesquisadora é o “trabalho paralelo”, um termo proletários inteiramente presos à ordem industrial que ela classifica como nativo (próprio dos capitalista. Tais afirmações podem gerar debates. pesquisados) e que designa uma série de De qualquer forma, em meio a essa discussão atividades que produzem bens de uso que não sobre ser ou não marxista ou pós-estruturalista, a são voltados, ou especificamente voltados, para ideia de “trabalho paralelo” como revanche ao a mercantilização. No posfácio de 2009, trabalho na fábrica, como uma prática de resis- acrescido à edição original de 1989, a autora tência, uma das hipóteses iniciais da abordagem, faz duas afirmações que podem nos ajudar na foi abandonada no decorrer de sua pesquisa. leitura de seu trabalho: “Sem dúvida nenhuma, Sua posição perante o feminismo chama eu era marxista e feminista (nesta ordem), antes especial atenção, principalmente, quando ela
mesma reconhece, em 2009, e talvez após operárias? Mesmo que representando uma receber algumas críticas nesse sentido, que sua minoria faziam parte do quadro da fábrica. O preocupação em descrever a vida cotidiana, que elas faziam com seu tempo livre? Estando a produção doméstica e trocas não mercantis convivendo na cidade por mais de um ano e aproximá-la-ia, nesses aspectos, aos trabalhos tendo relações próximas com uma operária que feministas que se interessam pela parte invisível inclusive a ajudou na pesquisa, essas perguntas da economia. Uma primeira questão que tais poderiam ter sido feitas. Leituras de teóricas afirmações podem gerar é de que essas feministas sobre como o amor à família e a ideia discussões sobre a economia invisível, por parte de lazer 2 se entrelaçam com o trabalho dos feminismos, já existiam e tinham razoável doméstico poderiam inclusive ajudar nas circulação quando ela escreveu seu livro, em observações sobre a realização pessoal meados para o final da década de 1980.1 Mas imbricada no “trabalho paralelo”. o trabalho paralelo das mulheres é sucintamente Os debates sobre os lugares de produção citado no livro, em duas ou três linhas, apenas e lugares de reprodução continuam atuais,3 no posfácio de 2009. Quer dizer, é possível que ainda que transformados em muitos aspectos. na época da pesquisa ela intencionalmente não Talvez isso justifique a retomada desta obra (de tenha se apropriado dessas questões feministas 1989 e republicada vinte anos depois), a qual por razões políticas, pessoais ou até de no século XXI pode oferecer subsídios para se legitimidade acadêmica. pensarem as relações de trabalho diluídas na Outro ponto, que nem ao menos no vida privada, a constituição de identidades posfácio é tratado, é sobre as mulheres operárias. construídas sobre práticas laborais e a não fixidez A obra é problemática na medida em que utiliza das relações que se dão nesses espaços; este o tempo todo “os operários” como sujeito último ponto inclusive ressaltado por Florence universal, e nunca especifica com clareza que Weber em sua escrita. Para os estudos feministas se escolheu trabalhar apenas com homens. De e de gênero, talvez a maior contribuição da repente, aparece uma operária que a ajuda na pesquisadora tenha sido, paradoxalmente, o pesquisa, uma açougueira é citada. Mas o que ela considerou o resultado não feminista trabalho paralelo analisado é apenas masculino. de sua pesquisa: a conclusão de que não só as Se ao ler a obra publicada em 1989 a crítica mulheres produzem fora dos circuitos de construir-se-ia no sentido de problematizar como mercado. Essa conclusão tanto pode contribuir uma pesquisa voltada ao trabalho invisível se para estudos de masculinidades e identidades esquece das mulheres que fazem parte de seu laborais, de trabalho reprodutivo e de relações objeto (sendo o trabalho invisível de forma geral de gênero quanto para dar mais consistência referido às mulheres), após ler o posfácio de 2009 às conceituações sobre trabalho reprodutivo e a identificação da pesquisadora como femi- para se questionar a constituição hierárquica nista (ainda que seja uma identificação secundá- da noção de trabalho produtivo versus trabalho ria em relação à de marxista), pode-se questionar reprodutivo, entre outros debates afins. como uma feminista, que tomou cuidado com Notas tantas questões, invisibilizou as mulheres em sua 1 Exemplos de trabalhos europeus neste sentido em Maria obra, que quando aparecem é pelo caráter de Angeles DURAN, 1983; e Andrée KARTCHEVSKY-BULPORT et “colaboração” – termo da autora – das mulheres al., 1986. nesses trabalhos paralelos masculinos. 2 Referência em DURAN, 1983. E o trabalho paralelo feminino? Esse, ela 3 Exemplos em Cristina BRUSCHINI, 2007; e Cristina qualifica em geral como trabalho doméstico, por CARRASCO, 2008. seu caráter de obrigatoriedade. Mas a partir do Referências momento em que ao trabalho paralelo que ela analisa e conceitua são agregados valores de BRUSCHINI, Cristina. “Trabalho doméstico: inativi- satisfação pessoal e até lazer que os diferenciariam dade econômica ou trabalho não remune- de uma dupla jornada de trabalho, com rado?”. In: ARAÚJO, Clara; PICANÇO, Felícia; afirmações como “Caso se trabalhasse para um SCALON, Celi (Org.). Novas conciliações e patrão, faria-se muito menos” (p. 67), não antigas tensões? Gênero, família e trabalho entendo a dificuldade em utilizar seu próprio em perspectiva comparada. Bauru: EDUSC, conceito para uma análise voltada também às 2007. p. 21-58. mulheres. É claro que as donas de casa, esposas CARRASCO, Cristina. “Por uma economia não de operários, não eram seu objeto, apesar de se androcêntrica: debates e propostas a partir terem feito incursões sobre elas. Mas e as mulheres da economia feminista”. In: SILVEIRA, Maria
Lucia da; TITO, Neuza. Trabalho doméstico KARTCHEVSKY-BULPORT, Andrée et al. O sexo do e de cuidados: por outro paradigma de trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. sustentabilidade da vida humana. São Paulo: SOF, 2008. p. 91-104. Soraia Carolina de Mello DURAN, Maria Angeles. A dona de casa: crítica Universidade Federal de Santa Catarina política da economia doméstica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.