Professional Documents
Culture Documents
Capítulo 1
Introdução à Fitoterapia
Caso clínico
Mulher de 55 anos, história de leucemia submetida a transplante de medula
óssea há 10 anos; episódio de herpes zoster disseminado; evoluiu com neuralgia
pós-herpética. Já usou anti-inflamatórios, aciclovir, corticosteroides sistêmicos e
locais, analgésicos potentes, sem melhora do quadro.
Como você poderia ajudar essa paciente?
Histórico
Fitoterapia é o estudo das plantas medicinais e suas aplicações na cura das
doenças (Ferro, 2008).
O uso de plantas medicinais e seus derivados para o tratamento das doenças
remonta às origens da humanidade. Há relatos do uso de plantas medicinais, na
Babilônia, por volta do ano 3000 a.C. Por volta de 2000 a.C. foi produzida a Matéria
Médica Chinesa.
Por volta de 500 a.C. viveu Hipócrates (460–377 a.C.). Considerado o “Pai
da Medicina,” conhecia profundamente a botânica e o uso medicinal de centenas de
espécies de plantas aromáticas. Cita, em suas obras, mais de 400 plantas, entre
elas: papoula, alecrim, sálvia e artemísia. Fundamentou a sua prática e a sua forma
de compreender o organismo humano, incluindo a personalidade, na teoria dos
quatro humores corporais (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra), e afirmava
que de acordo com os estados da mente, ou o ser entra em equilíbrio (eucrasia),
ou em doença e dor (discrasia).
Teofrasto, considerado “pai da botânica moderna” (370–285 a.C.), era grego
e estudou com Platão, em Atenas, e depois com Aristóteles. Escreveu Historia
1
Farmácia da Natureza
Plantarum, a obra de botânica mais antiga que se conhece. A sua influência sobre
os estudos das plantas se estendeu por 1800 anos. Historia Plantarum descreve um
grande número de plantas, incluindo uma descrição do local onde vegetavam,
germinação das sementes e respectivo uso na medicina e na preparação de
perfumes.
Galeno, (129–200 d.C.), foi um dos mais famosos médicos gregos. Ele
conhecia e estudava as plantas medicinais e seus poderes curativos. Em sua obra
De Simplicibus descrevia com detalhes cada planta medicinal.
A cultura, nos primeiros séculos da Alta Idade Média (V–X), sofreu um
retrocesso em termos civilizatórios. A produção intelectual foi cercada pela
ignorância e desprezo pela vida terrena. Durante este tempo, os indivíduos que
sabiam como usar as plantas medicinais começaram a ser perseguidos e acusados
de bruxaria e pacto com o demônio. O conhecimento sobre a utilização das plantas
medicinais só sobreviveu aos dias atuais dentro dos monastérios, onde os monges
copiavam à mão os livros da antiguidade. Os monastérios dos beneditinos
monopolizaram a cultura e distribuição de ervas aromáticas durante a Idade das
Trevas na Europa. Esta situação durou até o fim do século XIX. A partir do
Renascimento (1464–1534), novas luzes foram lançadas sobre a humanidade. Os
armazéns de especiarias passaram a ser conhecidos como boticas e, seus
proprietários, como boticários. Eram esses boticários que deram origem às
“matérias médicas.”
Carolus Linnaeus (1707–1778), naturalista sueco, “pai da taxonomia
botânica,” em suas obras Espécies Plantarum (1758) estabelece o ponto de partida
da nomenclatura moderna das plantas, baseado nos caracteres sexuais das flores; e
na obra Genera Plantarum (1764), amplia esse conhecimento.
No final do século XVIII e início do século XIX a química se estabelece como
uma disciplina científica e os químicos que estudavam as plantas medicinais, a partir
de recursos extremamente limitados, dedicaram-se a isolar compostos ativos de
plantas consagradas pelo uso medicinal. Princípios ativos começam a ser isolados a
partir de espécies vegetais. Em 1806, Serturner isola a morfina a partir da espécie
Papaver somniferum L. (papoula). Em 1818, Pelletier e Caventou isolam a
estricnina a partir da espécie Strychnos nux-vomica L. (noz-vômica). Já em 1831,
2
Farmácia da Natureza
Mein isola a atropina a partir da Atropa belladona L. (beladona). Mas foi somente
em 1897 que o primeiro fármaco foi produzido. A partir da espécie Salix alba L.
(salgueiro), usada medicinalmente há mais de 6000 anos, a substância salicina é
convertida em ácido salicílico e depois em ácido acetil-salicílico (AAS) pela
empresa Bayer®, tornando-se sucesso de vendas no mundo todo (DerMarderosian
& Beutler, 2011).
Fleming, em 1928, isola a penicilina a partir de um micro-organismo, dando
início à era dos antibióticos, que vai do início do século XX até meados da década de
1970. Este período foi marcado pela síntese de medicamentos a partir de correlação
estrutura-atividade. A partir da espécie Erythroxylum coca Lam. (coca), foram
sintetizadas, em 1904–1905, os anestésicos locais derivados da cocaína.
Após a segunda guerra mundial, surgem os anti-histamínicos,
antipsicóticos, antidepressivos, ansiolíticos e anti-inflamatórios sintéticos.
Assim consolida-se o paradigma ocidental da terapêutica: o fármaco é uma molécula
pura, geralmente oriunda de síntese, cujo modelo foi a aspirina. É o advento da
Indústria Farmacêutica, cujas consequências foram:
• Redução do uso de derivados vegetais como medicamentos;
• Monoterapia para o tratamento de doenças complexas;
• Desenvolvimento de drogas sintéticas;
• Quebra da conexão entre plantas e saúde humana.
Sem dúvida, os avanços na ciência proporcionaram aumento significativo da
saúde e longevidade da população e, como resultado, a Fitoterapia passou a ser
associada a curandeirismo, charlatanismo, práticas primitivas, engodo, misticismo, e
até mesmo uma “medicina para quem não tem acesso à ‘verdadeira Medicina.’ ”
Entretanto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 70–95% da
população mundial faça uso de práticas de medicina tradicional, incluindo a
fitoterapia, como única forma de terapia (WHO, 2013). O conhecimento tradicional
sobreviveu através dos curandeiros e raizeiros que, com suas garrafadas, levaram
alívio a incontável número de pessoas desassistidas pela medicina moderna.
Por todas essas razões, há dificuldades de aceitação da fitoterapia pela
comunidade médica (Robinson & Zhang, 2011; Sardesai, 2002). De fato, desde a
3
Farmácia da Natureza
300
Número de plantas medicinais
250
200
150
100
50
0
1ª 2ª 3ª 4ª 5ª
Edição
4
Farmácia da Natureza
5
Farmácia da Natureza
6
Farmácia da Natureza
7
Farmácia da Natureza
risco tóxico conhecido e não devem ser administrados pelas vias injetável e
oftálmica (BRASIL, 2014c). De acordo com a RDC nº 13/2013 (BRASIL, 2013), o
PTF é “aquele obtido com emprego exclusivo de matérias-primas ativas vegetais,
cuja segurança seja baseada por meio da tradicionalidade de uso e que seja
caracterizado pela reprodutibilidade e constância de sua qualidade.”
Não se considera MF ou PTF aquele que inclua na sua composição
substâncias ativas isoladas ou altamente purificadas, sejam elas sintéticas,
semissintéticas ou naturais e nem as associações dessas com outros extratos,
sejam eles vegetais ou de outras fontes, como a animal.
As principais diferenças entre MF e PTF estão listadas na Tabela 1.
8
Farmácia da Natureza
Nomenclatura botânica
Nomenclatura botânica é a nominação científica e formal das plantas. Tem
uma longa história, com início no período em que o latim era a língua científica da
Europa, ou quiçá até ao tempo de Teofrasto. O evento-chave foi a adoção dos
nomes binários para as espécies de plantas por Lineu na sua obra Species
Plantarum (1753). Ele deu a cada espécie de planta um nome que permanecia igual
independentemente de quais outras espécies fossem colocadas no gênero,
separando assim a taxonomia da nomenclatura. Estes nomes de espécies de Lineu
em conjunto com nomes de outros táxons de ordem superior, particularmente os das
famílias (não utilizados por Lineu), podem servir para exprimir uma grande
diversidade de pontos de vista taxonômicos.
Os nomes formais da maioria destes organismos são governados pelo Código
Internacional de Nomenclatura Botânica, ainda hoje. Um código separado foi
adotado para governar a nomenclatura das bactérias, o ICNB.
Os nomes são dados em latim para que haja mínima variação com o passar
do tempo. Os nomes são compostos pelo nome do gênero (com inicial maiúscula,
em itálico), seguido da espécie (em itálico), seguidos pela variedade (se houver),
seguidos pelo nome da autoridade classificadora, ou seja, da pessoa que nomeou a
espécie. Exemplos encontram-se na Tabela 2.
9
Farmácia da Natureza
Metabolismo vegetal
Os compostos químicos presentes nas plantas podem ser derivados do
metabolismo primário ou secundário.
Metabolismo vegetal primário. Conjunto de processos metabólicos que
desempenham uma função essencial no vegetal (fotossíntese, a respiração e o
transporte de solutos). Possui distribuição universal e engloba proteínas,
carboidratos, lipídeos e ácidos nucleicos.
Metabolismo vegetal secundário. Conjunto de processos metabólicos que
desempenham funções específicas em cada espécie ou conjunto de espécies
vegetais (defesa, competição, comunicação, reprodução). Não possui distribuição
universal, podendo ser distinto entre as espécies. Desempenha papel importante na
interação das plantas com o meio ambiente e engloba compostos fenólicos, ácidos
orgânicos, terpenos, alcaloides, entre outros (Figura 2, Tabela 3). O metabolismo
vegetal secundário é extremamente influenciado por fatores externos como
mudanças de temperatura, conteúdo de água, níveis de luz, exposição a UV e
deficiência de nutrientes minerais.
10
Farmácia da Natureza
11
Farmácia da Natureza
12
Farmácia da Natureza
da de
i
T oxic
Potência
Isolamento e purificação
13
Farmácia da Natureza
Sinergismo natural
Os vegetais possuem combinações de moléculas que foram aperfeiçoadas
por milhares de anos para desempenharem determinadas funções biológicas. Essas
combinações contêm moléculas com diversas atividades biológicas que
desempenham funções complementares (Koehn & Carter, 2005; Lila & Raskin,
2005). Os produtos naturais diferem significativamente das drogas sintéticas na
frequência de diferentes átomos, radicais e configurações espaciais (Koehn &
Carter, 2005). Elas contêm menos nitrogênio, fósforo, enxofre e halogênios, e
possuem maior complexidade molecular, riqueza estereoquímica, diversidade de
anéis e carboidratos (Schmidt et al., 2008). Além disto, derivados vegetais têm a
capacidade de modular ou inibir interações proteína-proteína, podendo modular
processos celulares como a resposta imune, sinalizações, mitose e apoptose (Koehn
& Carter, 2005).
14
Farmácia da Natureza
Falta de efeito
Existe uma crença comum de que, nos medicamentos fitoterápicos, a
quantidade de constituintes com atividade biológica seja muito pequena para que
haja efeito terapêutico. É por isto que muitos céticos afirmam que fitoterápicos não
passam de placebo. Felizmente isto não é verdadeiro (Williamson, 2001). Em um
relatório recente da American Association of Poison Control Center (AAPCC), com
dados de 1983 a 2009, nos EUA, mais de dois milhões de ingestões acidentais de
plantas foram relatados, e somente 18,5% desses episódios puderam ser
categorizados como não tóxicos. A maioria dos casos apresentava efeito irritante
gastrointestinal ou da pele, anticolinérgico, alucinógeno, depressor ou estimulante.
Além disso, esses episódios resultaram em 45 mortes (Krenzelok & Mrvos, 2011).
Estes achados demonstram que a ingestão de plantas ou extratos vegetais pode
resultar em efeito terapêutico.
Falta de legislação
As indicações e a posologia de produtos de origem vegetal varia entre as
nações e continentes, de acordo com aspectos culturais e socioeconômicos. Desde
2004, medicamentos fitoterápicos são regulados pelo FDA nos EUA, e são definidos
como “extratos complexos de uma planta para ser usado no tratamento de doenças.”
Foi só recentemente que o Brasil começou a avançar com a legislação sobre
fitoterápicos.
Hoje, um medicamento fitoterápico pode ser aprovado pela ANVISA para uma
determinada indicação, em determinada forma farmacêutica, em determinada
dosagem e posologia, para determinada faixa etária. Entretanto, muitas vezes
fazemos uso “off-label” desses medicamentos, usando-os nas situações abaixo:
• Medicamentos aprovados, porém para outras indicações
• Medicamentos aprovados, porém em outras formas farmacêuticas
• Medicamentos aprovados, porém em dosagens diferentes
• Medicamentos aprovados, porém para outras faixas etárias
• Medicamentos sem aprovação na ANVISA
Ainda não existe mecanismo legal que regule a prescrição “off-label” de
fitoterápicos.
15
Farmácia da Natureza
Falta de padronização
Outro fator que contribui para a falta de aceitação da fitoterapia pela
comunidade médica e científica, além de resultados inconsistentes em estudos pré-
clínicos e clínicos está relacionada à padronização dos extratos vegetais. Sabemos
que diversos fatores podem influenciar a concentração de compostos secundários
em uma determinada planta. Portanto, pode haver variação na atividade biológica de
plantas de diferentes lotes, que foram cultivadas em diferentes condições de solo e
clima, que foram submetidos a diferentes métodos de extração, etc (Raskin & Ripoll,
2004).
É possível que, no futuro, tenhamos áreas específicas para a produção de
determinadas plantas medicinais, da mesma maneira que hoje determinadas
16
Farmácia da Natureza
Conclusão
A fitoterapia é utilizada pela humanidade desde sua origem. Durante séculos
foi abandonada, mas sua importância tem sido recuperada nas últimas décadas. O
Brasil possui uma legislação moderna para os fitoterápicos, porém ainda há
dificuldades de aceitação desta modalidade terapêutica por parte da comunidade
científica.
Referências
17
Farmácia da Natureza
BRASIL. (2010a). Farmacopeia Brasileira (Volume 1) (5a ed., Vol. 1, p. 523). Brasília:
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
BRASIL. (2010b). Farmacopeia Brasileira (Volume 2) (5a ed., Vol. 1, p. 808). Brasília:
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
Cameron, M., Gagnier, J. J., Little, C. V, Parsons, T. J., Blümle, A., & Chrubasik, S.
(2009). Evidence of effectiveness of herbal medicinal products in the treatment
of arthritis. Part 1: Osteoarthritis. Phytother Res, 23(11), 1497–1515.
Capasso, R., Aviello, G., Borrelli, F., Romano, B., Ferro, M., Castaldo, L., … Izzo, A.
A. (2011). Inhibitory effect of standardized cannabis sativa extract and its
ingredient cannabidiol on rat and human bladder contractility. Urology, 77(4),
1006 e9–1006 e15. doi:10.1016/j.urology.2010.12.006
Carmona, F., & Pereira, A. M. S. (2013). Herbal medicines: old and new concepts,
truths and misunderstandings. Rev Bras Farmacogn, 23(2), 379–385.
18
Farmácia da Natureza
Cravotto, G., Boffa, L., Genzini, L., & Garella, D. (2010). Phytotherapeutics: An
evaluation of the potential of 1000 plants. J Clin Pharm Ther, 35(1), 11–48.
Gagnier, J. J., Boon, H., Rochon, P., Moher, D., Barnes, J., & Bombardier, C.
(2006a). Recommendations for reporting randomized controlled trials of herbal
interventions: Explanation and elaboration. Journal of Clinical Epidemiology,
59(11), 1134–1149.
Gagnier, J. J., Boon, H., Rochon, P., Moher, D., Barnes, J., & Bombardier, C.
(2006b). Reporting randomized, controlled trials of herbal interventions: an
elaborated CONSORT statement. Annals of Internal Medicine, 144(5), 364–367.
Gomez Castellanos, J. R., Prieto, J. M., & Heinrich, M. (2009). Red Lapacho
(Tabebuia impetiginosa)--a global ethnopharmacological commodity? J
Ethnopharmacol, 121(1), 1–13.
Koehn, F. E., & Carter, G. T. (2005). The evolving role of natural products in drug
discovery. Nat Rev Drug Discov, 4(3), 206–220. doi:10.1038/nrd1657
Krenzelok, E. P., & Mrvos, R. (2011). Friends and foes in the plant world: a profile of
plant ingestions and fatalities. Clin Toxicol, 49(3), 142–149.
doi:10.3109/15563650.2011.568945
Raskin, I., & Ripoll, C. (2004). Can an apple a day keep the doctor away? Current
Pharmaceutical Design, 10(27), 3419–3429.
Robinson, M. M., & Zhang, X. (2011). The World Medicines Situation 2011 (pp. 1–
14). Geneve: WHO.
Schmidt, B., Ribnicky, D. M., Poulev, A., Logendra, S., Cefalu, W. T., & Raskin, I.
(2008). A natural history of botanical therapeutics. Metabolism, 57, S3–S9.
19
Farmácia da Natureza
WHO. (2003). WHO Guidelines on good agricultural and collection practices (GACP)
for medicinal plants, 1–80.
WHO. (2007a). WHO Guidelines for assessing quality of herbal medicines with
reference to contaminants and residues.
WHO. (2007b). WHO Guidelines on good manufacturing practices (GMP) for herbal
medicines, 1–92.
20