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MEDICINA EMBASADA EM EVIDÊNCIAS

Artigo Especial

Medicina embasada em evidências


B.B. DUNCAN, M.I.SCHMIDT
Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.

RESUMO — O aumento crescente das opções dia- telecomunicações modernas está causando uma
gnósticas e terapêuticas cria a necessidade de ava- revolução no modo em que a medicina é praticada.
liar sua efetividade, o que pode ser feito, por exem- O processo é facilitado pelo acesso dos clínicos às
plo, com o ensaio clínico randomizado. A difusão revisões quantitativas e aos guidelines (posiciona-
deste e de outros métodos da epidemiologia clínica mentos clínicos) delas derivados. As limitações das
na prática médica propicia o paradigma da “medici- fontes tradicionais de evidências médicas e as van-
na embasada em evidências”. Ao enfatizar a neces- tagens das novas fontes de evidências, como o ACP
sidade de evidências clínico-epidemiológicas sóli- Journal Club e a Cochrane Collaboration, são des-
das para as decisões clínicas, a medicina embasada critas. É importante que o médico se familiarize
em evidências forma a estrutura para a integração com os conceitos e técnicas do paradigma de medi-
dos resultados de pesquisas na prática clínica. A cina embasada em evidências.
evidência é graduada pelo delineamento de pesqui-
sa, fornecendo normas que estabelecem qual o grau
adequado para a tomada de decisão médica. A com- UNITERMOS: Epidemiologia. Medicina. Internet. Ensaio clí-
binação desse novo paradigma com o poder das nico randomizado. Terapia. Metanálise.

INTRODUÇÃO freando a aplicação de intervenções de benefício


duvidoso e de alto custo. Isso assume ainda maior
A prática médica atual apresenta avanços cientí- importância na gerência de recursos públicos,
ficos e tecnológicos inquestionáveis, abrindo um quando se constata que uma fração grande da popu-
leque grande de opções ao médico e ao paciente. No lação é excluída de ações de comprovado benefício,
entanto, as técnicas trazem consigo riscos e custos mesmo quando de baixo custo.
nem sempre compensados pelos benefícios espera- Especialmente nas duas últimas décadas, foram
dos. Além disso, existe uma diferença fundamen- desenvolvidos métodos que permitem avaliar direta-
tal entre esperar que elas funcionem e saber que mente benefícios e riscos de intervenções clínicas,
funcionam. Por exemplo, estima-se que apenas viabilizando um movimento em prol de uma medici-
metade das intervenções médicas atuais disponí- na mais efetiva e mais científica, que otimize bene-
veis tenham sido avaliadas com metodologia con- fícios e minimize riscos e custos. O emprego do hoje
fiável. Dentre essas, menos da metade mostrou-se consagrado ensaio clínico randomizado na avaliação
efetiva 1,2. da eficácia de uma intervenção foi o grande propul-
Esse cenário destoa com a expectativa geral de sor desse movimento. O uso eficaz das inter-relações
alta eficácia da medicina atual por parte de médi- metodológicas entre a pesquisa clínica e a epide-
cos e pacientes, provavelmente resultante da alta miológica — a epidemiologia clínica — ampliou o
eficácia, verificada neste século, do controle e escopo da mudança, incentivando o uso de critérios
manejo das doenças infecciosas e materno-infan- metodológicos rigorosos nos vários enfoques ou mo-
tis, e do anúncio freqüente de novas descobertas mentos do trabalho clínico — diagnóstico, avaliação
da pesquisa de bancada. Tal expectativa tende a de risco, prognóstico, tratamento e prevenção 3,4. O
estimular um caráter intervencionista na prática resultado desses avanços está propiciando a constru-
médica — norteado pelo princípio “na dúvida in- ção de um novo paradigma para a medicina — uma
tervir” — que procura introduzir as novas tecno- medicina embasada em evidências 5,6, no qual, entre
logias, com freqüência de alto risco ou de alto outras características, o médico:
custo, e cujo real impacto é pouco conhecido. Mes- — aceita a incerteza nas decisões clínicas e reco-
mo com intervenções de baixo risco, pela impossi- nhece que as ações no manejo dos pacientes são
bilidade de fazer tudo para todos, torna-se neces- freqüentemente adotadas sem o conhecimento so-
sário aperfeiçoar o processo de decisão médica, bre o seu real impacto;

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— reconhece que a experiência clínica e os conhe-


Quadro 1 – Caracterização da evidência clínico
cimentos sobre mecanismos (de doenças, de inter-
epidemiológica
venções), apesar de necessários no raciocínio clíni-
co, são insuficientes para reduzir “satisfatoriamen- Valoriza desfechos clínicos de significância ao paciente e à
te” as incertezas de algumas decisões clínicas; sociedade
— busca evidências oriundas de investigações Permite a definição de graus de evidência científica para as
condutas clínicas
sistemáticas de questões clínicas (evidência clíni-
Apresenta dados para análise objetiva do potencial impacto das
co-epidemiológica) para reduzir as incertezas; condutas clínicas
— aplica essas evidências à luz dos conhecimen-
tos sobre mecanismos, das experiências clínicas
pessoais e dos valores atribuídos pelos pacientes lado, o saber científico derivado de estudos de
para tomar a melhor decisão clínica. bancada não permitia a aplicação de seus achados
diretamente aos pacientes — porque seus modelos
CARACTERÍSTICAS DA MEDICINA explicativos, mesmo parecendo completos, com fre-
EMBASADA EM EVIDÊNCIAS qüência falhavam ao serem testados com meto-
dologia sistemática em pacientes. Um exemplo
Incerteza nas decisões clínicas disso é o uso de fármacos com ação antiarrítmica
supressora de ectopia ventricular (como a lido-
Não sendo a medicina nem mágica, nem divina,
caína) — uma prescrição quase rotineira até recen-
seu desenvolvimento se apoiou no saber científico
temente — que evitaria taquicardia e fibrilação
e na arte de aplicá-lo para o bem dos pacientes. A
ventricular e, assim, o óbito resultante dessa
aceitação — por médicos e pacientes — das incer-
arritmia em pacientes no período pós-infarto.
tezas do saber científico e, desse modo, da falibili-
Quando ensaios clínicos randomizados com esses
dade das decisões médicas é o ponto de partida na
desfechos clínicos testaram a hipótese em pacien-
construção de uma prática médica crítica e, por
tes com infarto, ficou evidente que vários fármacos
conseguinte, apta a se renovar continuamente em
prol da otimização de seu impacto na saúde dos dessa classe aumentavam — não diminuíam — seu
pacientes. risco de mortalidade 7.

Insuficiência do saber biológico e da experiência Força da evidência clínico-epidemiológica


clínica Sob este novo paradigma, o médico fortalece as
O paradigma que caracterizou a primeira — e bases de suas condutas, isto é, reduz as incertezas,
profícua — fase da Medicina Científica, basica- buscando dados analíticos de pesquisas sistemáti-
mente nos dois últimos séculos, orientou-se funda- cas em pacientes — clínicas e epidemiológicas —
mentalmente no saber biológico vigente e na expe- aqui referidos como evidência clínico-epidemio-
riência clínica não sistemática. Regras sobre o lógica. Algumas de suas características estão suma-
cuidado dos pacientes eram em geral ditadas pela riadas no quadro 1.
experiência pessoal de grandes serviços de renome Em primeiro lugar, os desfechos clínicos prio-
internacional — fundamentadas em estudos clíni- rizados em evidências clínico-epidemiológicas são
cos não-sistemáticos e nos conhecimentos sobre aqueles que apresentam um significado real ao
mecanismos de doenças e de intervenções, em paciente e à sociedade, como morte (vida), doença
geral resultantes de pesquisas de bancada. Os (cura, saúde), dor, perda de função, custo, etc.
livros-texto clássicos e as revistas médicas, que Dados que representam eventos intermediários
tanto proliferaram neste século, foram desenvolvi- (fisiopatológicos, bioquímicos, etc.), embora funda-
dos a partir dessas linhas. mentais para justificar a necessidade de estudos
Especialmente nas duas últimas décadas, a li- com desfechos mais convincentes, não se configu-
mitação de tal paradigma ficou evidente, na medi- ram, usualmente, em evidência capaz de justificar
da em que não era possível avaliar benefícios, intervenções de alto risco ou alto custo.
riscos e custos diretamente daquele saber científi- Em segundo lugar, a evidência clínico-epide-
co, impossibilitando o julgamento objetivo das evi- miológica deve captar objetivamente a realidade
dências para a escolha da melhor decisão clínica. do contexto clínico, permitindo um juízo crítico
Isso porque a experiência clínica (informal ou sobre as incertezas das decisões baseadas em tal
mesmo a publicada em grandes revistas) não era evidência. A capacidade de refletir a realidade
avaliada com metodologia analítica — capaz de clínica baseia-se na habilidade da pesquisa que
testar hipóteses clínicas — e sistemática — evitan- produz a evidência em poder captar os elementos
do os vieses comuns da pesquisa clínica. Por outro básicos da questão clínica e na validade do teste de

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MEDICINA EMBASADA EM EVIDÊNCIAS

Quadro 2 – Força (qualidade) das evidências científicas para intervenções médicas

Tipo Fonte
I. Forte Intervenção clínica sistemática com desfechos
clínico-epidemiológicos Ensaio clínico randomizado
II. Intermediária Intervenção clínica sistemática mas com desfechos
bioquímicos, fisiológicos ou celulares Ensaio clínico randomizado
Pesquisa clínica observacional com desfechos clínicos Estudos de caso-controle e de coorte
Intervenção clínica sem randomização Quase experimento
Intervenção clínica sem grupo controle Experimento não-controlado
Estudos ecológicos no tempo e no espaço Séries temporais múltiplas
III. Fraca Mecanismos (dedutiva) Pesquisa básica
Experiência clínica (indutiva) isolada ou de
grupo de peritos Dados clínicos obtidos de forma não-sistemática
Pesquisa clínica observacional, sem grupo controle Estudo de casos, de incidência, de prevalência
Adaptado de Duncan BB e Schmidt MI 36

Quadro 3 – Categorias de recomendação a favor ou contra uma intervenção clínica

Categoria Definição Justificativas para intervenção


A Evidência forte e benefício clínico significativo Benefício medido supera risco e custo calculados
apoiam a recomendação
B Evidência intermediária – ou evidência forte mas Benefício potencial alto, com risco e custo aceitáveis. Dificuldade
benefício limitado –, apoiam a recomendação em alcançar evidência mais conclusiva (por razões éticas, logísticas
ou financeiras)
C Evidência fraca apoia a recomendação (a favor ou Prognóstico sabidamente ruim e ausência de alternativa
contra a intervenção) Risco (custo) da intervenção seguramente baixo e benefício
potencial alto
D Evidência intermediária apóia a recomendação
contra a intervenção
E Evidência forte apóia a recomendação contra
a intervenção

Adaptado de ref. 37.

hipótese, evitando os potenciais vieses (e mini- menos técnica e de menor custo, tem sido pouco
mizando os erros aleatórios) em seus resultados. explorada cientificamente, mas um exemplo dela
Essa capacidade, que depende em grande parte do pode ser ilustrado pelo conceito de “demora per-
delineamento da pesquisa, pode ser graduada mitida”, aplicável no diagnóstico e terapêutica
pela força da evidência, desde uma evidência ambulatorial 9. Em qualquer das formas, é funda-
fraca, até uma evidência forte (de peso científico) mental que o grau da evidência para o uso da
(quadro 2). Embora o ideal seja alcançar sempre intervenção/não-intervenção seja reconhecido, e
um grau forte de evidência, a base para as condu- que, em caso de evidência fraca, seja justificado
tas médicas nem sempre atinge esse grau, e mui- pela gravidade do problema, pela benignidade da
tas decisões acabam sendo tomadas com graus intervenção em termos de riscos e custos, e pela
menos convincentes de evidência 8. É por essa ausência de alternativas de ação.
incerteza que a prática médica ainda se defronta Por último, a evidência clínico-epidemiológica,
com o grande dilema — na dúvida, intervir, ou na pela sua expressão quantitativa, deve permitir um
dúvida, esperar — que define, hoje, duas formas juízo objetivo sobre o potencial impacto da conduta
opostas de prática médica, uma por uma medicina médica nela baseada. Isso é feito pela análise com-
“intervencionista” e outra, por uma medicina parativa de benefícios, riscos e custos para a esco-
“minimalista”. O quadro 3 apresenta recomenda- lha da melhor intervenção, o que interessa aos
ções que procuram equilibrar as duas tendências clínicos — que querem otimizar suas decisões caso
com base em evidências. A medicina minimalista, a caso, e aos planejadores de serviços de saúde —

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Quadro 4 – Parâmetros para avaliação das condutas médicas

Enfoque clínico Parâmetros básicos Parâmetros de significância clínica (impacto)


Intervenção terapêutica ou preventiva Redução relativa de risco (RRR = 1 - RR) Número que necessita ser tratado (NNT) para
evitar um desfecho
Predição de risco Risco relativo (RR) Risco atribuível (RA) Risco atribuível na
população (RAp)
Fração atribuível na população (FAp)
Classificação diagnóstica Sensibilidade Razão de probabilidades*
Especificidade
Avaliação de benefícios e custos Custo-efetividade
Custo-utilidade
Custo-benefício
* A significância para o paciente depende também da probabilidade pré-teste. RR = Incidência de desfecho no grupo tratado (ou exposto) dividido pela
incidência no grupo não-tratado (ou não- exposto); NNT = 1 / (incidência de desfecho no grupo não-tratado menos incidência de desfecho no grupo tratado);
RA = Incidência de desfecho no grupo exposto menos incidência no grupo não-exposto; RAp = RA x freqüência de pessoas expostas na população; FAp =
RAp / incidência total na população; Sensibilidade = Testes verdadeiro-positivos entre doentes; Especificidade = Testes verdadeiro-negativos entre não-
doentes. Fonte: Duncan BB e Schmidt MI 36.

que precisam otimizar a alocação de recursos 10. própria intervenção, cuja evidência está sendo
Algumas intervenções, embora eficazes, não são julgada, pode ter-se tornado obsoleta à luz de
custo-efetivas, como, por exemplo, o tratamento avanços científicos originados após a publicação
da hipertensão leve em jovens sem envolvimento do ensaio. Nota-se, aqui, que conhecimentos
de órgão-alvo 11. Parâmetros para avaliação do im- biológicos (e às vezes a experiência clínica) so-
pacto de uma intervenção, entre outros, são enu- bre um determinado assunto podem até invali-
merados no quadro 4. dar evidências clínico-epidemiológicas, mesmo
Para aqueles que não estão habituados com os quando fortes.
elementos metodológicos descritos nos quadros 2 e Fica evidente, portanto, que o paradigma da
4, recomendamos a leitura de livros básicos de medicina embasada em evidências assume que a
epidemiologia clínica 3,4 . decisão clínica integra a evidência clínico-epide-
miológica a todas as informações clínicas possí-
Aplicação de evidências clínico-epidemiológicas à
veis, especialmente aquelas derivadas do saber
luz dos conhecimentos biológicos e de acordo com
biológico vigente, da experiência clínica prévia
as experiências clínicas pessoais e os valores dos
com pacientes semelhantes e dos valores atribu-
pacientes
ídos pelos pacientes aos desfechos clínicos en-
A aplicação da evidência clínico-epidemiológica volvidos na decisão. Assim, ao buscar bases cien-
aos pacientes depende das peculiaridades da situa- tíficas mais sólidas para as decisões médicas, o
ção clínica, e aí reside a arte do médico em captá-las novo paradigma não desconsidera os conheci-
da melhor maneira possível. O julgamento efetua- mentos e experiências adquiridos pelo médico,
do nesse processo, a partir das evidências da litera- nem desestimula seu lado artístico de captar a
tura, tem sido denominado de validade externa, realidade e proceder com o paciente, mas au-
generalização ou aplicabilidade. menta a eficácia de suas ações e reduz o caráter
Alguns exemplos da não-aplicabilidade direta autoritário de suas decisões junto aos pacientes
a um paciente de uma evidência clínico-epi- (e de seu ensino de novos médicos!). Além disso,
demiológica podem ser citados. O próprio ensaio na medida em que o modelo racionaliza o empre-
que gerou a evidência, para otimizar sua valida- go de técnicas médicas, abre espaço para uma
de interna, por exemplo, restringindo a amostra relação médico-paciente menos técnica e mais
ou padronizando excessivamente a intervenção, humana.
pode ter sacrificado em muito sua validade ex-
terna e, dessa forma, a capacidade de generaliza- A PRÁTICA DE UMA MEDICINA
ção de seus resultados. Ou, então, o resultado de EMBASADA EM EVIDÊNCIAS
um ensaio pode não se aplicar a um determinado
tipo de paciente porque este se assemelha mais Dentro do novo paradigma, há três estratégias
a um subgrupo do estudo, cujo resultado diferiu de como obter evidências clínico-epidemiológicas
do resultado geral da pesquisa. Ou, ainda, a para o esclarecimento de questões clínicas: avaliar

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e sintetizar direta e pessoalmente as evidências, está ligada a ela. Muitos serviços têm bancos de
utilizar avaliações de outros e basear-se em posi- resumos atualizados (em CD-ROM tipo MEDLINE)
ções clínicas oficiais (clinical guidelines) desen- para pesquisa bibliográfica na biblioteca ou em
volvidas dentro das premissas do paradigma. rede de microcomputadores. Hoje, através de li-
nha telefônica ou da rede eletrônica Internet,
Avaliação e síntese da literatura médica
pode-se fazer o levantamento de artigos de inte-
A habilidade de analisar independentemente a resse em bancos de resumos atualizados via
evidência clínico-epidemiológica baseia-se em BIREME ou via provedores particulares, e solici-
metodologias recentes e não faz parte, ainda, do tar cópia daqueles mais importantes.
domínio da grande maioria dos profissionais em Após a identificação e obtenção dos artigos rele-
exercício clínico — nem sequer da maioria dos vantes, o próximo passo é analisá-los criticamente
professores de faculdades de medicina —, mode- e sintetizar os achados que atendem à questão
los dos futuros médicos. Porém, a julgar pelo clínica que motivou a pesquisa. Métodos para es-
espaço dedicado a essas metodologias nas gran- sas análises e sínteses são discutidos detalhada-
des revistas médicas e pelo alcance dos recursos mente em outros locais4,13-23.
atuais em comunicação e informática médica, é A procura organizada, dentro de um serviço
apenas uma questão de tempo até que essa habi- (especialmente se acadêmico), de ensaios clínicos
lidade seja incorporada como parte integral da randomizados recentes que avaliam terapias para
prática médica brasileira. uma condição de interesse, é um exemplo factível
O primeiro passo no processo é a busca de dessa estratégia de atualização que envolve levan-
artigos básicos que permitam responder à questão tamentos individualizados dirigidos a questões clí-
clínica. No entanto, localizar os artigos-chave sem nicas específicas.
perder muito tempo com os artigos periféricos à A estratégia de analisar e sintetizar pessoalmen-
questão nem sempre é fácil. A título de orientação te as evidências é trabalhosa e demorada. Além
nesse processo, Haynes12 destaca quatro linhas de disso, exige domínio das ferramentas da epidemio-
comunicação nas revistas médicas: do clínico ao logia clínica e disponibilidade de fontes de referên-
pesquisador, entre os pesquisadores, do pesquisa- cias e de artigos. Embora seja cada vez mais acon-
dor ao clínico, e entre os clínicos. Os artigos nas selhável ao médico conhecer esses princípios de
primeiras duas linhas, embora constituindo a análise e síntese, e de integrar o modo epidemio-
grande maioria dos artigos originais encontrados lógico de pensar ao seu raciocínio clínico 24, o uso
nas revistas médicas, são de pequena utilidade na dessa estratégia é mais viável aos médicos docentes
prática clínica. Os relatos ou séries de casos são em serviços acadêmicos do que aos clínicos em
exemplos de comunicação do clínico ao pesquisa- geral. Mas, para manter-se atualizado sobre as
dor. Os estudos clínicos preliminares como os não- evidências para condutas na área específica de
controlados, os estudos com o objetivo de melhor atuação de cada um, não é necessário derivá-las por
entender a fisiopatologia ou os estudos em ani- conta própria. As outras duas estratégias descritas
mais são exemplos de comunicação entre os pes- a seguir são bem mais apropriadas a quem quer se
quisadores. Pode-se gastar muito tempo e ganhar manter atualizado, mas já preenche quase todo o
pouca informação prática com esses artigos. As seu tempo na lida com os pacientes.
comunicações do pesquisador ao clínico, por exem-
Revisões embasadas em evidências clínico-
plo, os relatos de ensaios clínicos randomizados,
epidemiológicas
as análises de decisão e as metanálises, e as
comunicações entre os clínicos, por exemplo, os A estratégia de embasar-se em avaliações feitas
artigos de revisão e os editoriais, são fontes de por outros é, certamente, menos trabalhosa. As
informação de maior rendimento. revistas médicas, internacionais e brasileiras, de-
Para localizar os artigos necessários com efici- dicam um espaço amplo para revisões de assuntos
ência é necessário acesso à pesquisa eletrônica de de interesse. Porém, para que elas sejam efetiva-
referências bibliográficas (com os respectivos re- mente úteis, devem ser desenvolvidas na ótica do
sumos) e a um acervo com um número mínimo de novo paradigma. Com a ascensão da “revisão siste-
revistas nas áreas de interesse, como em bibliote- mática” (aplicação de estratégias científicas que
cas de Faculdades de Medicina, de grandes hospi- limitam o viés no agrupamento, na análise crítica e
tais ou de associações médicas locais. A BIREME na síntese de todos os estudos de relevância sobre
(Biblioteca Regional de Medicina), em São Paulo, um tópico específico) e da metanálise (uma revisão
coordena o sistema de informação na área da sistemática que emprega métodos estatísticos
Saúde no Brasil, e a maior parte das bibliotecas para agrupar e sumariar quantitativamente os re-

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sultados de diversos estudos), padrões novos e mais Cochrance Collaboration, via o World Wide Web
rigorosos se impõem 6,25,26. Entre eles, cita-se a ne- (hppt://hiru.mcmaster.ca/cochrane/).
cessidade de especificar de maneira operacional a Encontros com colegas, consultas com especia-
questão, de definir as fontes de evidência com listas, congressos e simpósios, se desenvolvidos
critérios de inclusão e exclusão, de conduzir uma dentro da nova ótica, também podem ser recursos
busca abrangente da literatura e de examinar a importantes de atualização. Sua validade, porém,
validade dos resultados de maneira reproduzível. é proporcional à experiência dos indivíduos envol-
Estudos demonstram que fontes tradicionais de vidos com a prática do novo paradigma. Além
referência sobre condutas clínicas— revisões não- disso, sua validade pode ser comprometida por
sistemáticas e capítulos em livros-texto – são, com conflitos de interesses (financeiros ou profissio-
freqüência, pouco reproduzíveis 27, desatualizadas, nais) daqueles que fornecem a informação.
chegando a conclusões diferentes daquelas de re-
Posicionamentos clínicos
visões sistemáticas 28.
Vários livros dirigidos às questões diagnós- A terceira estratégia, basear-se em posiciona-
ticas e terapêuticas, por exemplo, o Current mentos clínicos (clinical guidelines) desenvolvidos
Medical Diagnosis and Treatment 29 , Scientific dentro do espírito do paradigma, é a estratégia que
American Medicine 30 , e, no Brasil, Medicina exige menos tempo. Aí encaixam-se os consensos e
Ambulatorial, Condutas Clínicas em Atenção as posições (guidelines) 35 de sociedades e organiza-
Primária 31 , caminham na direção do novo para- ções oficiais, baseados em revisões sistemáticas e
digma, tornando-se fontes práticas, com refe- atualizadas da literatura— incluindo as metaná-
rências bibliográficas de apoio. lises. Formulações locais de rotinas criadas por
Nos últimos anos, surgiram publicações cuja equipes multidisciplinares para seus serviços, ba-
política editorial é identificar, entre as revistas de seadas nos critérios metodológicos descritos,
maior renome, os artigos originais claramente podem alcançar grande relevância prática.
relevantes à prática clínica, apresentando um resu- Um exemplo de categorização de evidências a
mo dos artigos com comentários de peritos convida- favor ou contra uma determinada ação clínica, uma
dos. Entre essas publicações destacam-se, por apre- técnica comum no processo de geração desses
sentar critérios explícitos de escolha de artigos, as posicionamentos, é o apresentado no quadro 4.
revistas ACP Journal Club, lançada em 1991 e Cada categoria pode ser complementada por um
dirigida à medicina interna, e Evidence-Based numeral romano (do quadro 2), indicando a força,
Medicine, lançada em 1995 e abrangendo os vários ou qualidade das evidências que embasam a reco-
ramos da medicina. mendação.
Outra fonte importante de evidências, recém- Também aqui deve-se estar atento para a possi-
saída da fase inicial de organização, é a do Cochrane bilidade de conflitos de interesses profissionais
Collaboration 32-34 . Essa agremiação internacional nessas atividades, e especialmente em painéis de
de médicos e pesquisadores, organizada mais ou consenso sob o patrocínio de companhias farmacêu-
menos por especialidade, tem como objetivo catalo- ticas ou de equipamentos médicos, de conflitos
gar todos os relatos de ensaios clínicos randomi- financeiros. Embora esses encontros possam se
zados e colocar metanálises desses ensaios em constituir em fonte importante de atualização, são
banco eletrônico, eventualmente disponível na muitas vezes praticados fora das linhas gerais do
Internet. A idéia é abrir — e manter abertos — paradigma.
canais de comunicação entre clínicos e pesquisado- Ressalta-se ainda que, ao usar recomendações
res que produzem as metanálises, com fluxo bidi- estrangeiras, é importante ter em mente sua razão
recional de informação que proporcionam, aos clí- custo/benefício local, pois os recursos alocados na-
nicos, um acesso imediato às metanálises, e aos quelas sociedades para as situações clínicas em
pesquisadores, uma fonte crítica de retroalimen- questão podem ser maiores do que os disponíveis no
tação para aperfeiçoamentos posteriores. Atual- contexto local.
mente, há disponível em disquete dados da segunda
edição do Cochrane Database of Systematic Reviews PERSPECTIVAS
(CDSR), contendo 65 revisões do grupo, além de
resumos e citações de mais de 1.000 revisões siste- Com as exigências crescentes de racionalização no
máticas publicadas na literatura médica e uma emprego de tecnologias médicas, o paradigma da
bibliografia de mais de 200 artigos sobre meto- medicina embasada em evidências tende a se difun-
dologia e preparação de revisões. Informações mais dir. Avanços na área de telecomunicações estão faci-
detalhadas podem ser obtidas diretamente do litando as mudanças necessárias para sua adoção.

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MEDICINA EMBASADA EM EVIDÊNCIAS

Em países que começam a mostrar sinais dessa dramatically the time required of clinicians to
nova forma de prática médica — por exemplo, obtain the best avaliable evidence. All health profes-
Canadá, Estados Unidos e Inglaterra —, sua acei- sionals should familiarize themselves with evi-
tação de forma mais ampla se deve à vontade e dence-based medicine. [Rev Ass Med Brasil 1999;
determinação política de líderes de revistas médi- 45(3): 247-54.]
cas, faculdades de medicina, sociedades médicas e
serviços de saúde. KEY WORDS: Epidemiology. Randomized controlled clinical
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notória a necessidade de racionalização. Além dis-
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cine provides a framework for the integration of 15. Guyatt GH, Sackett DL Cook DJ, for the Evidence-Based
Medicine Working Group.User’s Guides to the Medical Lite-
research results into clinical practice. The evidence
rature II. How to use na article about therapy or prevention A.
is graded, principally on the basis of study design, Are the results of the study valid. JAMA 1993; 270: 2.598-601.
and norms are established as to what constitutes 16. Guyatt GH, Sackett DL, Vook DJ, for the Evidence-Based
adequate evidence for clinical decision-making. The Medicine Working Group. User’s Guides to the Medical
combination of this new paradigm of medical prac- Literature. II. How to use na article about therapy or preven-
tion. B. What were the results and will they help me in caring
tice with the power of modern telecommunications
for my patients. JAMA 1994; 271: 69-63.
is causing a revolution in the way medicine is 17. Jaeschke R, Guyatt G, Sackett DL, for the Evidence-Based
practiced. Its integration into clinical practice is Medicine Working Group. User’s guides to the medical litera-
being facilitated by quantitative overviews of the ture. III. How to use na article about a diagnostic test. A. Are
literature, and the creation of clinical guidelines the results of the study valid? JAMA 1994; 271: 389-91.
18. Jaeschke R, Guyatt G, Sackett DL, for the Evidence-Based
based on these reviews. Shortcomings of the tradi-
Medicine Working Group. User’s guides to the medical
tional sources of evidence have been documented. literature. III. How to use na article about a diagnostic test.
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