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Artigo Especial
RESUMO — O aumento crescente das opções dia- telecomunicações modernas está causando uma
gnósticas e terapêuticas cria a necessidade de ava- revolução no modo em que a medicina é praticada.
liar sua efetividade, o que pode ser feito, por exem- O processo é facilitado pelo acesso dos clínicos às
plo, com o ensaio clínico randomizado. A difusão revisões quantitativas e aos guidelines (posiciona-
deste e de outros métodos da epidemiologia clínica mentos clínicos) delas derivados. As limitações das
na prática médica propicia o paradigma da “medici- fontes tradicionais de evidências médicas e as van-
na embasada em evidências”. Ao enfatizar a neces- tagens das novas fontes de evidências, como o ACP
sidade de evidências clínico-epidemiológicas sóli- Journal Club e a Cochrane Collaboration, são des-
das para as decisões clínicas, a medicina embasada critas. É importante que o médico se familiarize
em evidências forma a estrutura para a integração com os conceitos e técnicas do paradigma de medi-
dos resultados de pesquisas na prática clínica. A cina embasada em evidências.
evidência é graduada pelo delineamento de pesqui-
sa, fornecendo normas que estabelecem qual o grau
adequado para a tomada de decisão médica. A com- UNITERMOS: Epidemiologia. Medicina. Internet. Ensaio clí-
binação desse novo paradigma com o poder das nico randomizado. Terapia. Metanálise.
Tipo Fonte
I. Forte Intervenção clínica sistemática com desfechos
clínico-epidemiológicos Ensaio clínico randomizado
II. Intermediária Intervenção clínica sistemática mas com desfechos
bioquímicos, fisiológicos ou celulares Ensaio clínico randomizado
Pesquisa clínica observacional com desfechos clínicos Estudos de caso-controle e de coorte
Intervenção clínica sem randomização Quase experimento
Intervenção clínica sem grupo controle Experimento não-controlado
Estudos ecológicos no tempo e no espaço Séries temporais múltiplas
III. Fraca Mecanismos (dedutiva) Pesquisa básica
Experiência clínica (indutiva) isolada ou de
grupo de peritos Dados clínicos obtidos de forma não-sistemática
Pesquisa clínica observacional, sem grupo controle Estudo de casos, de incidência, de prevalência
Adaptado de Duncan BB e Schmidt MI 36
hipótese, evitando os potenciais vieses (e mini- menos técnica e de menor custo, tem sido pouco
mizando os erros aleatórios) em seus resultados. explorada cientificamente, mas um exemplo dela
Essa capacidade, que depende em grande parte do pode ser ilustrado pelo conceito de “demora per-
delineamento da pesquisa, pode ser graduada mitida”, aplicável no diagnóstico e terapêutica
pela força da evidência, desde uma evidência ambulatorial 9. Em qualquer das formas, é funda-
fraca, até uma evidência forte (de peso científico) mental que o grau da evidência para o uso da
(quadro 2). Embora o ideal seja alcançar sempre intervenção/não-intervenção seja reconhecido, e
um grau forte de evidência, a base para as condu- que, em caso de evidência fraca, seja justificado
tas médicas nem sempre atinge esse grau, e mui- pela gravidade do problema, pela benignidade da
tas decisões acabam sendo tomadas com graus intervenção em termos de riscos e custos, e pela
menos convincentes de evidência 8. É por essa ausência de alternativas de ação.
incerteza que a prática médica ainda se defronta Por último, a evidência clínico-epidemiológica,
com o grande dilema — na dúvida, intervir, ou na pela sua expressão quantitativa, deve permitir um
dúvida, esperar — que define, hoje, duas formas juízo objetivo sobre o potencial impacto da conduta
opostas de prática médica, uma por uma medicina médica nela baseada. Isso é feito pela análise com-
“intervencionista” e outra, por uma medicina parativa de benefícios, riscos e custos para a esco-
“minimalista”. O quadro 3 apresenta recomenda- lha da melhor intervenção, o que interessa aos
ções que procuram equilibrar as duas tendências clínicos — que querem otimizar suas decisões caso
com base em evidências. A medicina minimalista, a caso, e aos planejadores de serviços de saúde —
que precisam otimizar a alocação de recursos 10. própria intervenção, cuja evidência está sendo
Algumas intervenções, embora eficazes, não são julgada, pode ter-se tornado obsoleta à luz de
custo-efetivas, como, por exemplo, o tratamento avanços científicos originados após a publicação
da hipertensão leve em jovens sem envolvimento do ensaio. Nota-se, aqui, que conhecimentos
de órgão-alvo 11. Parâmetros para avaliação do im- biológicos (e às vezes a experiência clínica) so-
pacto de uma intervenção, entre outros, são enu- bre um determinado assunto podem até invali-
merados no quadro 4. dar evidências clínico-epidemiológicas, mesmo
Para aqueles que não estão habituados com os quando fortes.
elementos metodológicos descritos nos quadros 2 e Fica evidente, portanto, que o paradigma da
4, recomendamos a leitura de livros básicos de medicina embasada em evidências assume que a
epidemiologia clínica 3,4 . decisão clínica integra a evidência clínico-epide-
miológica a todas as informações clínicas possí-
Aplicação de evidências clínico-epidemiológicas à
veis, especialmente aquelas derivadas do saber
luz dos conhecimentos biológicos e de acordo com
biológico vigente, da experiência clínica prévia
as experiências clínicas pessoais e os valores dos
com pacientes semelhantes e dos valores atribu-
pacientes
ídos pelos pacientes aos desfechos clínicos en-
A aplicação da evidência clínico-epidemiológica volvidos na decisão. Assim, ao buscar bases cien-
aos pacientes depende das peculiaridades da situa- tíficas mais sólidas para as decisões médicas, o
ção clínica, e aí reside a arte do médico em captá-las novo paradigma não desconsidera os conheci-
da melhor maneira possível. O julgamento efetua- mentos e experiências adquiridos pelo médico,
do nesse processo, a partir das evidências da litera- nem desestimula seu lado artístico de captar a
tura, tem sido denominado de validade externa, realidade e proceder com o paciente, mas au-
generalização ou aplicabilidade. menta a eficácia de suas ações e reduz o caráter
Alguns exemplos da não-aplicabilidade direta autoritário de suas decisões junto aos pacientes
a um paciente de uma evidência clínico-epi- (e de seu ensino de novos médicos!). Além disso,
demiológica podem ser citados. O próprio ensaio na medida em que o modelo racionaliza o empre-
que gerou a evidência, para otimizar sua valida- go de técnicas médicas, abre espaço para uma
de interna, por exemplo, restringindo a amostra relação médico-paciente menos técnica e mais
ou padronizando excessivamente a intervenção, humana.
pode ter sacrificado em muito sua validade ex-
terna e, dessa forma, a capacidade de generaliza- A PRÁTICA DE UMA MEDICINA
ção de seus resultados. Ou, então, o resultado de EMBASADA EM EVIDÊNCIAS
um ensaio pode não se aplicar a um determinado
tipo de paciente porque este se assemelha mais Dentro do novo paradigma, há três estratégias
a um subgrupo do estudo, cujo resultado diferiu de como obter evidências clínico-epidemiológicas
do resultado geral da pesquisa. Ou, ainda, a para o esclarecimento de questões clínicas: avaliar
e sintetizar direta e pessoalmente as evidências, está ligada a ela. Muitos serviços têm bancos de
utilizar avaliações de outros e basear-se em posi- resumos atualizados (em CD-ROM tipo MEDLINE)
ções clínicas oficiais (clinical guidelines) desen- para pesquisa bibliográfica na biblioteca ou em
volvidas dentro das premissas do paradigma. rede de microcomputadores. Hoje, através de li-
nha telefônica ou da rede eletrônica Internet,
Avaliação e síntese da literatura médica
pode-se fazer o levantamento de artigos de inte-
A habilidade de analisar independentemente a resse em bancos de resumos atualizados via
evidência clínico-epidemiológica baseia-se em BIREME ou via provedores particulares, e solici-
metodologias recentes e não faz parte, ainda, do tar cópia daqueles mais importantes.
domínio da grande maioria dos profissionais em Após a identificação e obtenção dos artigos rele-
exercício clínico — nem sequer da maioria dos vantes, o próximo passo é analisá-los criticamente
professores de faculdades de medicina —, mode- e sintetizar os achados que atendem à questão
los dos futuros médicos. Porém, a julgar pelo clínica que motivou a pesquisa. Métodos para es-
espaço dedicado a essas metodologias nas gran- sas análises e sínteses são discutidos detalhada-
des revistas médicas e pelo alcance dos recursos mente em outros locais4,13-23.
atuais em comunicação e informática médica, é A procura organizada, dentro de um serviço
apenas uma questão de tempo até que essa habi- (especialmente se acadêmico), de ensaios clínicos
lidade seja incorporada como parte integral da randomizados recentes que avaliam terapias para
prática médica brasileira. uma condição de interesse, é um exemplo factível
O primeiro passo no processo é a busca de dessa estratégia de atualização que envolve levan-
artigos básicos que permitam responder à questão tamentos individualizados dirigidos a questões clí-
clínica. No entanto, localizar os artigos-chave sem nicas específicas.
perder muito tempo com os artigos periféricos à A estratégia de analisar e sintetizar pessoalmen-
questão nem sempre é fácil. A título de orientação te as evidências é trabalhosa e demorada. Além
nesse processo, Haynes12 destaca quatro linhas de disso, exige domínio das ferramentas da epidemio-
comunicação nas revistas médicas: do clínico ao logia clínica e disponibilidade de fontes de referên-
pesquisador, entre os pesquisadores, do pesquisa- cias e de artigos. Embora seja cada vez mais acon-
dor ao clínico, e entre os clínicos. Os artigos nas selhável ao médico conhecer esses princípios de
primeiras duas linhas, embora constituindo a análise e síntese, e de integrar o modo epidemio-
grande maioria dos artigos originais encontrados lógico de pensar ao seu raciocínio clínico 24, o uso
nas revistas médicas, são de pequena utilidade na dessa estratégia é mais viável aos médicos docentes
prática clínica. Os relatos ou séries de casos são em serviços acadêmicos do que aos clínicos em
exemplos de comunicação do clínico ao pesquisa- geral. Mas, para manter-se atualizado sobre as
dor. Os estudos clínicos preliminares como os não- evidências para condutas na área específica de
controlados, os estudos com o objetivo de melhor atuação de cada um, não é necessário derivá-las por
entender a fisiopatologia ou os estudos em ani- conta própria. As outras duas estratégias descritas
mais são exemplos de comunicação entre os pes- a seguir são bem mais apropriadas a quem quer se
quisadores. Pode-se gastar muito tempo e ganhar manter atualizado, mas já preenche quase todo o
pouca informação prática com esses artigos. As seu tempo na lida com os pacientes.
comunicações do pesquisador ao clínico, por exem-
Revisões embasadas em evidências clínico-
plo, os relatos de ensaios clínicos randomizados,
epidemiológicas
as análises de decisão e as metanálises, e as
comunicações entre os clínicos, por exemplo, os A estratégia de embasar-se em avaliações feitas
artigos de revisão e os editoriais, são fontes de por outros é, certamente, menos trabalhosa. As
informação de maior rendimento. revistas médicas, internacionais e brasileiras, de-
Para localizar os artigos necessários com efici- dicam um espaço amplo para revisões de assuntos
ência é necessário acesso à pesquisa eletrônica de de interesse. Porém, para que elas sejam efetiva-
referências bibliográficas (com os respectivos re- mente úteis, devem ser desenvolvidas na ótica do
sumos) e a um acervo com um número mínimo de novo paradigma. Com a ascensão da “revisão siste-
revistas nas áreas de interesse, como em bibliote- mática” (aplicação de estratégias científicas que
cas de Faculdades de Medicina, de grandes hospi- limitam o viés no agrupamento, na análise crítica e
tais ou de associações médicas locais. A BIREME na síntese de todos os estudos de relevância sobre
(Biblioteca Regional de Medicina), em São Paulo, um tópico específico) e da metanálise (uma revisão
coordena o sistema de informação na área da sistemática que emprega métodos estatísticos
Saúde no Brasil, e a maior parte das bibliotecas para agrupar e sumariar quantitativamente os re-
sultados de diversos estudos), padrões novos e mais Cochrance Collaboration, via o World Wide Web
rigorosos se impõem 6,25,26. Entre eles, cita-se a ne- (hppt://hiru.mcmaster.ca/cochrane/).
cessidade de especificar de maneira operacional a Encontros com colegas, consultas com especia-
questão, de definir as fontes de evidência com listas, congressos e simpósios, se desenvolvidos
critérios de inclusão e exclusão, de conduzir uma dentro da nova ótica, também podem ser recursos
busca abrangente da literatura e de examinar a importantes de atualização. Sua validade, porém,
validade dos resultados de maneira reproduzível. é proporcional à experiência dos indivíduos envol-
Estudos demonstram que fontes tradicionais de vidos com a prática do novo paradigma. Além
referência sobre condutas clínicas— revisões não- disso, sua validade pode ser comprometida por
sistemáticas e capítulos em livros-texto – são, com conflitos de interesses (financeiros ou profissio-
freqüência, pouco reproduzíveis 27, desatualizadas, nais) daqueles que fornecem a informação.
chegando a conclusões diferentes daquelas de re-
Posicionamentos clínicos
visões sistemáticas 28.
Vários livros dirigidos às questões diagnós- A terceira estratégia, basear-se em posiciona-
ticas e terapêuticas, por exemplo, o Current mentos clínicos (clinical guidelines) desenvolvidos
Medical Diagnosis and Treatment 29 , Scientific dentro do espírito do paradigma, é a estratégia que
American Medicine 30 , e, no Brasil, Medicina exige menos tempo. Aí encaixam-se os consensos e
Ambulatorial, Condutas Clínicas em Atenção as posições (guidelines) 35 de sociedades e organiza-
Primária 31 , caminham na direção do novo para- ções oficiais, baseados em revisões sistemáticas e
digma, tornando-se fontes práticas, com refe- atualizadas da literatura— incluindo as metaná-
rências bibliográficas de apoio. lises. Formulações locais de rotinas criadas por
Nos últimos anos, surgiram publicações cuja equipes multidisciplinares para seus serviços, ba-
política editorial é identificar, entre as revistas de seadas nos critérios metodológicos descritos,
maior renome, os artigos originais claramente podem alcançar grande relevância prática.
relevantes à prática clínica, apresentando um resu- Um exemplo de categorização de evidências a
mo dos artigos com comentários de peritos convida- favor ou contra uma determinada ação clínica, uma
dos. Entre essas publicações destacam-se, por apre- técnica comum no processo de geração desses
sentar critérios explícitos de escolha de artigos, as posicionamentos, é o apresentado no quadro 4.
revistas ACP Journal Club, lançada em 1991 e Cada categoria pode ser complementada por um
dirigida à medicina interna, e Evidence-Based numeral romano (do quadro 2), indicando a força,
Medicine, lançada em 1995 e abrangendo os vários ou qualidade das evidências que embasam a reco-
ramos da medicina. mendação.
Outra fonte importante de evidências, recém- Também aqui deve-se estar atento para a possi-
saída da fase inicial de organização, é a do Cochrane bilidade de conflitos de interesses profissionais
Collaboration 32-34 . Essa agremiação internacional nessas atividades, e especialmente em painéis de
de médicos e pesquisadores, organizada mais ou consenso sob o patrocínio de companhias farmacêu-
menos por especialidade, tem como objetivo catalo- ticas ou de equipamentos médicos, de conflitos
gar todos os relatos de ensaios clínicos randomi- financeiros. Embora esses encontros possam se
zados e colocar metanálises desses ensaios em constituir em fonte importante de atualização, são
banco eletrônico, eventualmente disponível na muitas vezes praticados fora das linhas gerais do
Internet. A idéia é abrir — e manter abertos — paradigma.
canais de comunicação entre clínicos e pesquisado- Ressalta-se ainda que, ao usar recomendações
res que produzem as metanálises, com fluxo bidi- estrangeiras, é importante ter em mente sua razão
recional de informação que proporcionam, aos clí- custo/benefício local, pois os recursos alocados na-
nicos, um acesso imediato às metanálises, e aos quelas sociedades para as situações clínicas em
pesquisadores, uma fonte crítica de retroalimen- questão podem ser maiores do que os disponíveis no
tação para aperfeiçoamentos posteriores. Atual- contexto local.
mente, há disponível em disquete dados da segunda
edição do Cochrane Database of Systematic Reviews PERSPECTIVAS
(CDSR), contendo 65 revisões do grupo, além de
resumos e citações de mais de 1.000 revisões siste- Com as exigências crescentes de racionalização no
máticas publicadas na literatura médica e uma emprego de tecnologias médicas, o paradigma da
bibliografia de mais de 200 artigos sobre meto- medicina embasada em evidências tende a se difun-
dologia e preparação de revisões. Informações mais dir. Avanços na área de telecomunicações estão faci-
detalhadas podem ser obtidas diretamente do litando as mudanças necessárias para sua adoção.
Em países que começam a mostrar sinais dessa dramatically the time required of clinicians to
nova forma de prática médica — por exemplo, obtain the best avaliable evidence. All health profes-
Canadá, Estados Unidos e Inglaterra —, sua acei- sionals should familiarize themselves with evi-
tação de forma mais ampla se deve à vontade e dence-based medicine. [Rev Ass Med Brasil 1999;
determinação política de líderes de revistas médi- 45(3): 247-54.]
cas, faculdades de medicina, sociedades médicas e
serviços de saúde. KEY WORDS: Epidemiology. Randomized controlled clinical
No Brasil, até agora, pouco tem sido feito, mas é trial. Meta-analysis. Internet. Medicine. Treatment.
notória a necessidade de racionalização. Além dis-
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