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A participação como um problema para as instituições de justiça – Uma análise a


partir do acordo de governança e participação para o desastre no Rio Doce1

Cristiana Losekann2
Cientista Política
Professora da Universidade Federal do Espírito Santo

Desde o rompimento da barragem de Fundão em MG, em novembro de 2015, as


pessoas afetadas pelos efeitos deste desastre passaram a denunciar a ineficiência e
negligência das empresas em reparar os danos causados. Os governos e atores estatais
diversos vêm sendo também objeto de crítica pela forma como, por incompetência ou
má-vontade, não conseguiram em quase três anos de desastre responsabilizar as
empresas pelo crime socioambiental que causaram e, pasmem, não conseguiram fazer
com que um diagnóstico amplo dos danos ao ambiente, aos indivíduos e à sociedade
fosse produzido. Dito isso, é de se esperar que a justa reparação para milhares de
famílias de MG e do ES ainda não tenha ocorrido.
Na avaliação das pessoas atingidas, comunidades e movimentos sociais, o
primeiro acordo (março de 2016) realizado entre governos e empresas, que definiu a
criação de uma Fundação (Renova) para criar e executar os programas de reparação não
é adequado e vem, na verdade, provocando mais danos. A medida foi equivocada tendo
em vista que não foi feito antes um diagnóstico amplo dos danos, mas, também, pela
falta de qualidade dos programas e sua execução. Logo, esse acordo ou outros
decorrentes dele vêm sendo criticados pelos resultados produzidos e, sobretudo, por não
levarem em consideração as necessidades e desejos das pessoas atingidas e sua
capacidade de falar por si mesmas. Assim, uma compreensão foi pouco a pouco se
consolidando no sentido de que seria a ausência do sujeito interessado nas negociações,
aquele que sofreu o dano, que estaria produzindo tais medidas equivocadas de
reparação.
Como resposta a isso foi sendo construída entre Ministério Público e Defensoria
Pública uma ideia e discurso de que a participação do atingido seria não somente
requisito fundamental democrático para qualquer processo de construção de respostas a
problemas coletivos, mas, além disso, a participação dos atores seria por si só garantia
de soluções mais justas. A consolidação do enquadramento da ‘participação’ nos

1
Firmado em 25 de Junho de 2018 e homologado judicialmente em 08 de Agosto de 2018.
2
Venho acompanhando o processo de mobilização dos direitos dos atingidos pelo rompimento da
barragem de Fundão, através de atuação no Organon – Núcleo de estudo, pesquisa e extensão em
mobilizações sociais da Universidade Federal do Espírito Santo, na Rede de Pesquisa Rio Doce e do
Observatório Interinstitucional Mariana-Rio Doce. Desenvolvo pesquisa, com apoio do CNPq, sobre as
interações entre atores do sistema de justiça e movimentos sociais em conflitos ambientais e,
especificamente neste caso. Participei, junto com outros pesquisadores, inicialmente, do GT criado pela
Força Tarefa do MPF para tratar da questão da participação dos atingidos nos processos de reparação
dos danos causados.
processos de reparação desse desastre culminou com a adoção, por atores do Ministério
Público e Defensoria Pública, da ideia de participação como um princípio a ser
respeitado a ponto de ser realizado um novo amplo acordo para tratar da questão.
Além dos aspectos específicos desse próprio processo de mobilização pelos
direitos dos atingidos, isso se explica por um contexto no qual vêm se consolidando,
entre atores e instituições de justiça, uma ideia de que a mediação via negociação seria a
solução para o problema da judicialização dos conflitos sociais, sobretudo, tendo em
vista a falta de celeridade e de efetividade da justiça. Assim, a ideia de mediação de
conflitos como substituta da judicialização vem se tornando cada vez mais corriqueira
ainda que pouco consenso haja sobre o que essa (mediação) significa.
Junto à ideia de mediação entram em cena diversas teorias que sustentam a
mediação como a melhor solução e, em especial, as teorias dos acordos que amparadas
em certas discussões da ciência política e da microeconomia foram introduzidas no
campo do direito gerando expectativas de soluções “ganha-ganha” mesmo em conflitos
onde há profunda desigualdade de poder entre as partes, tais como, conflitos entre
comunidades e empresas. Essas práticas de mediação também empurram os atores do
Ministério Público e Defensoria Pública a atuarem como negociadores, tendo que
interagir com poderosos escritórios de advocacia que gastam boa parte de seu tempo e
recursos formando quadros especializados em negociação e em evitar os litígios. Nesse
sentido, não podemos esquecer que no início de 2016, logo após o rompimento da
barragem em questão, o então presidente da mineradora Vale, Murilo Ferreira, disse que
"[...] um acordo é sempre melhor do que uma disputa judicial3”.
Adicionalmente, em evento realizado dia 12 de Julho, para apresentar o novo
acordo, um dos membros do MP justificou as limitações do acordo e seus problemas
dizendo que era preciso levar em consideração que eles estavam negociando com os
maiores e melhores escritórios de advocacia da Brasil. Essa justificativa, embora um
pouco constrangedora, foi honesta. É preciso observar que a natureza de instituições
como o MP e DP não é a de negociação. O perfil do sujeito que entra em um concurso
desses é muito diferente do perfil construído em um escritório de advocacia empresarial.
Diante desses aspectos nos perguntamos, estariam nossas instituições de justiça
preparadas para atuarem como negociadores com grandes empresas transnacionais?
Mas, além disso, no MP é bastante evidente que a ideia de mediação também
ganha espaço em resposta a uma série de críticas sobre certo estereótipo de atuação do
MP segundo o qual imperaria o protagonismo de figuras vaidosas que se sentem
heroicas e agem a partir de uma atuação substitutiva à própria sociedade civil. Assim,
não é raro encontrarmos hoje procuradores e promotores preocupados em dizer que o
“protagonismo deve ser da sociedade civil”, ou, no caso em questão, “dos atingidos”. E,
assim, abre-se uma imensa expectativa de realizar um trabalho participativo, onde a
principal função dessas instituições seria garantir que as pessoas possam falar por elas
próprias.

3
Fonte:http://www.vale.com/brasil/PT/investors/information-market/press-releases/Paginas/vale-informa-
sobre-acordo-alcancado-com-as-autoridades-brasileiras.aspx
Ainda que a intenção pareça muito louvável, mais uma vez cabe uma pergunta:
estariam essas instituições preparadas para gerar “soluções” participativas para conflitos
que envolvem a violação de direitos?
Comecemos observando quem é esse sujeito, operador do direito que estará
incumbido dessa função.
O bacharel em direito não é alguém que estudou muito sobre teorias que
debatem a questão da participação nas sociedades democráticas contemporâneas,
principalmente, se pensarmos em teorias menos normativas. Um estudante de direito
também não faz uma revisão rigorosa das experiências de participação que existem e a
enorme gama de literatura que problematiza, matiza, ou propõe discussões transversais
sobre a participação, e mesmo sobre os problemas da participação e acesso à justiça.
Como um profissional formado para pensar normativamente e utilizar instrumentos
bastante formais e rigorosos vai agir quando deseja abrir mão de todo o formalismo, sair
do gabinete e criar um mecanismo de participação que, nada mais nada menos, será
legitimador de uma decisão que se espera, encerre o conflito na arena judicial?
No afã de agir em meio a tantos fatores, expectativas, pressões e interesses, um
belo dia, esse sujeito que estudou para passar em um concurso e ser um procurador,
promotor da justiça ou um defensor do acesso à justiça se vê sentado em uma sala com
35 advogados dos mais renomados escritórios do país, encorajado a criar um sistema de
participação que pretende resolver um conflito grave entre pessoas atingidas e
poderosas empresas transnacionais. Ele crê que através desse sistema as pessoas
atingidas poderão decidir elas próprias como será feita a reparação. É fundamentalmente
disso que trata o recente acordo produzido entre MPs, DPs, governo federal e empresas,
homologado parcialmente no dia 08 de Agosto deste ano pelo juiz da 12ª vara federal de
Belo Horizonte.
Mas, e como está pensada a participação neste acordo? Porque devemos nos
preocupar com esse desejo pela participação?
Como um vício típico do campo jurídico o acordo prevê normativamente a
“efetiva participação” das pessoas atingidas, sem dizer o que se entende exatamente por
participação e por efetividade. Define um sistema complexo, criando diversas instâncias
de participação em forma de comitês locais propositivos, combinada com um sistema de
representação em instâncias decisórias da Fundação Renova e do Comitê
Interfederativo. Ao contrário de inúmeros estudos que evidenciam que quanto mais
complexo o modelo de participação em reparação de desastres menos vontade de
participar as pessoas têm, e mais desconfiança se gera no processo participativo e seus
resultados.
Mas há outra questão que é um dos problemas de fundo da proposta: a confusão
entre as noções de participação, de governança e de negociação. Essas três noções
aparecem como sinônimos no acordo, mas, na verdade, correspondem a origens
distintas e, por consequência, geram resultados muito diferentes.
O termo “participação” aparece 40 vezes ao longo do acordo e se apresenta com
significados confusos e ambíguos. É pensada como “presença”, num modelo muito
similar ao modelo de audiências públicas, que é por excelência o modelo de
“participação” existente nas instituições de justiça, cumprindo mais a função de
“oitivas” nas quais se dá ao conhecimento da autoridade de justiça uma determinada
situação, do que exatamente ideia de participação atrelada à construção de decisão. Mas,
a participação no acordo aparece também com o sentido de “representação”, de
“delegação”, de “controle”, de “engajamento”, entre outros. Esses múltiplos sentidos
estão associados a instâncias específicas que por sua vez se sobrepõem em termos de
funções. São muitos os pontos problemáticos desse novo acordo que revelam a
fragilidade do tema participação dentro das instituições de justiça. Aqui apontamos
apenas alguns deles.
O ponto positivo é a garantia das assessorias técnicas responsáveis por
assessorar os atingidos no acesso às informações necessárias e, também, responsáveis
por construir a mobilização social. Esse trabalho está ligado a um sistema de comissões
dos atingidos e prevê um Fórum de Observadores enquanto instância de controle. O
modelo é em parte resposta ao processo de mobilização dos atingidos que demandou
participação, mas, por outro lado, estabeleceu por sua iniciativa uma série de funções e
atribuições novas, gerando grande insegurança sobre sua implementação. Ao fim e ao
cabo, o acordo coloca grande parte da responsabilidade na própria capacidade do MP e
da DP de continuarem acompanhando o caso e a necessidade de criar controle sobre
essas instituições.
Em um contexto no qual a ideia de participação passa a ser articulada por
diversos atores, figurando como elemento central das expectativas de reparação, se faz
necessário evidenciar como a ideia de participação está sendo acionada pelos diferentes
atores e, sobretudo, as expectativas que se têm com a participação. Além disso, é
necessário problematizar tais expectativas com aquilo que conhecemos sobre a realidade
de conflitos socioambientais, que envolvem poderosas empresas transnacionais e
governos em contraposição a comunidades locais e movimentos sociais.
A introdução de práticas participativas sem o devido cuidado pode gerar uma
situação em que os direitos são violados ao invés de assegurados. Para evitar isso, essas
práticas precisam ser pensadas institucionalmente com seriedade e com transparência,
envolvendo os atores sociais que são os principais implicados na questão. Isso é o
oposto de projetar e negociar a participação em reuniões fechadas com os principais
escritórios de advocacia do Brasil − como disse o próprio ator do MP −, e que
representam os interesses das empresas mineradoras causadoras deste crime
socioambiental.
Finalmente, a decisão de juiz da 12ª vara federal de Belo Horizonte, que
homologou parcialmente o acordo alterando exatamente a melhor parte do acordo e,
assim, tornando-o pior, revela que se certas instituições tais como MP e DP precisam
ainda avançar na construção do entendimento do que seja participação, para outra, tal
como, o Judiciário, ainda falta uma compreensão mais fundamental da própria
relevância da participação na construção da justiça e de como esse princípio é
valorizado na nossa própria Constituição. Isso porque o juiz estabeleceu com sua
decisão que os atores por excelência da participação, nominalmente citados por ele:
movimentos sociais, ONGs, entidades religiosas, ideológicas ou partidárias, devem ser
excluídos do processo de oferta de apoio aos atingidos na forma prevista das assessorias
técnicas. Ou seja, vedando a participação nas formas de auto-organização e associação
dos atingidos o juiz demonstra desconhecer completamente que é justamente a esse tipo
de organização que cabe historicamente construção da participação. Nesse sentido, o
juiz esquece que a nossa Constituição garante a participação da sociedade civil na
defesa dos direitos difusos e coletivos, abrindo a possibilidade para que associações
civis possam ingressar com Ações Civis Públicas e coparticipar junto com MP e DP nas
providências cabíveis para a defesa desses direitos. O juiz manifesta, assim,
desconhecer que essas associações civis valorizadas constitucionalmente nada mais são
do que a formalização institucional dos movimentos sociais, ONGs e a forma que o
ordenamento jurídico estabelece para que nós possamos expressar livremente nossas
preferências ideológicas.
Ao proferir uma decisão que exclui esses atores do processo das assessorias
técnicas aos atingidos, o juiz manifesta parcialidade, pois apresenta preconceito com as
formas associativas dos próprios atingidos, buscando explicitamente interferir no único
ponto do acordo que respondia às demandas das mobilizações desses. Isso é evidente no
seguinte trecho da decisão: “fica expressamente vedada ao FUNDO BRASIL DE
DIREITOS HUMANOS4 – em qualquer hipótese – a contratação de assessorias
técnicas, cujas entidades/equipes/profissionais/indivíduos tenham qualquer vínculo de
subordinação com movimentos sociais ou ONGs atuantes na área do Desastre de
Mariana;” (página 9 da decisão).
Embora o texto da decisão afirme o contrário, a participação é, assim,
incorporada de maneira meramente retórica. Ao fazer isso o juiz entra para a história do
maior desastre ambiental do Brasil como alguém suscetível à pressão das empresas e
que pouco conhece da participação e sequer valoriza sua relevância, seus mecanismos e
seus atores conforme determina a nossa Constituição.

4
Entidade responsável por viabilizar as assessorias técnicas.

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