You are on page 1of 3

Cuidados Paliativos

A Morte na Formação dos


Profissionais de Saúde
Vera Anita Bifulco*

(...) houve um tempo em que nosso poder perante a Morte era muito pequeno. E, por isso, os
homens e as mulheres dedicavam-se a ouvir a sua voz e podiam tornar-se sábios na arte de viver.
Hoje, nosso poder aumentou, a Morte foi definida como a inimiga a ser derrotada, fomos possuídos
pela fantasia onipotente de nos livrarmos de seu toque. Com isso, nos tornamos surdos às lições que
ela pode nos ensinar. E nos encontramos diante do perigo de que, quanto mais poderosos formos
perante ela (inutilmente, porque só podemos adiar...), mais tolos nos tornamos na arte de viver. E,
quando isso acontece, a morte que poderia ser conselheira sábia transforma-se em inimiga que nos
devora por detrás. Acho que, para recuperar um pouco da sabedoria de viver, seria preciso que nos
tornássemos discípulos e não inimigos da Morte. (Alves, 2002, p.76.)

A
s visitas a pacientes internados realizadas confia. Mas para obter sua confiança este profis-
pelos profissionais da área da saúde, sional precisa entender o que está se passando
* Psicóloga Integrante da Equipe principalmente médicos, têm como com aquele paciente, não pode acuar, fugir, ter
Multiprofissional de Cuidados objetivo checar o seu estado físico, mormente ele mesmo medo do enfrentamento que aquela
Paliativos do Setor de Cuidados medem a pressão, os batimentos cardíacos, situação desencadeia. Além do paciente, toda a
Paliativos da Disciplina de auscultam o coração e os pulmões, questionam sua rede de apoio necessita de cuidados espe-
Clínica Médica da EPM/Unifesp.
se o paciente conseguiu realizar as funções de ciais e de conversas francas e verdadeiramente
Chefe do Setor Psicooncologia
do Instituto Paulista de urinar e defecar, se conseguiu se alimentar, se esclarecedoras.
Cancerologia (IPC) e Clínica está hidratado. Mas a pessoa que está ali é Os médicos aprenderam que sua missão é lu-
“Saint Marie”. Mestranda pelo muito mais que aquele corpo presente, é um ser tar contra a morte.(1) Esgotados os seus recursos,
Centro de Desenvolvimento
humano em todas as suas dimensões, físicas, eles saem da arena, derrotados e impotentes. Se
do Ensino Superior em Saúde
(CEDESS/Unifesp). mentais, espirituais, sociais e culturais. Ele pode eles soubessem que sua missão é cuidar da vida,
estar com medo. Há riscos que permeiam seu e que a morte, tanto quanto o nascimento é parte
momento de vida. Temos de entender que ser da vida, eles ficariam até o fim.
portador de uma doença que ameace a continui- “Antigamente a simples presença do médico
dade da vida é uma condição peculiar e sofrida. irradiava vida”.(1)
Sua vida naquele momento foge ao seu controle Num processo de “reumanização” da morte,
e ao controle de todos os técnicos e profissio- em que essa faz parte da vida, torna-se neces-
nais que cuidam dele. E não é qualquer pessoa sário que os profissionais revejam sua prática.
que consegue tirar esse medo do paciente. Ele Cuidar da pessoa e não somente da doença.
precisa confiar. O medo desaparece quando se A morte é um fenômeno do cotidiano. Vemos

164 Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 45 • Mai-Jun/2006


sempre a morte como a morte do outro. de uma escalada para a possível cura ou
Os cursos na área de saúde,
Os outros morrem e eu ainda não. A minha convivência adequada com a enfermidade,
morte, eu penso amanhã. Esquivamos- fundamentalmente e mostrará que o paciente, acima de tudo,
nos da possibilidade da singularização pode contar com o médico irrestritamente.
da morte. para médicos e enfermeiros, Se não tiver tino pedagógico, pode usar
Atualmente vivemos um momento de o diagnóstico para matar mais depressa.
têm enfatizado os
Reumanização em todas as áreas voltadas Muitas pessoas morrem literalmente de
à saúde. procedimentos técnicos diagnóstico.(6)
Há consciência da finitude do homem e A aprendizagem está profundamente
do sentido maior de se aumentar os anos em detrimento de relacionada ao crescimento, não existe
de vida com qualidade de anos vividos. possibilidade de crescer sem aprender.
uma formação mais
A humanização evoca que o alívio da Para aprender, não basta só olhar mas ver;
dor e o controle dos sintomas em Cuida- humanista não basta só ouvir, mas escutar. Para que o
dos Paliativos devem começar desde o olhar possa transformar-se em ver e o ouvir
diagnóstico da doença crônica (oncológica Doyle(7) afirma que o controle da dor e em escutar, o intervalo estabelecido entre
ou não) até a fase avançada. Humanizar é a de outros sintomas psicológicos, sociais eles necessita ser preenchido pela nomea-
garantia de atender às necessidades desse e espirituais tornam-se prioridades para ção, possibilitada pelo pensamento.(10) Por
paciente; as equipes multiprofissionais de os profissionais da saúde, independente sua vez, a experiência está profundamente
Cuidados Paliativos reúnem médicos, psi- de sua especialidade. Complementa o relacionada com a aprendizagem, porém
cólogos, enfermeiros, assistentes sociais, autor que aliviar o sofrimento, proporcionar não qualquer experiência, mas aquela
fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais conforto físico e emocional ao paciente que é nomeada, para que ela possibilite
e o serviço de administrativo (recepção, quando a cura não é mais possível, assim a apropriação.
triagem, segurança e transporte), enfim, como prestar assistência aos seus familia- O crescimento só se torna possível
todos são importantes para confortar o res até o enfrentamento da situação de luto para quem tem a coragem de olhar e ver;
paciente e pelos seus cuidados. são todas atenções que devem integrar ouvir e escutar, pensar a respeito do que
Os indivíduos são singulares e não sua prática. ouve, escuta e faz.
podemos pretender que respondam da Kovács(11) enfatiza que nos programas Ouvir não é um ato passivo.(13)
mesma forma às nossas intervenções, de Cuidados Paliativos fala-se abertamen- Assim, esses profissionais precisam
nem que mantenham uniformemente suas te sobre o tema da Morte, o que ainda não ficar atentos, em seu trabalho, ao não dito,
respostas em longo prazo. é prática comum em nosso meio – nestes às metáforas, às linguagens simbólicas, à
Devemos distinguir dentro do Trata- se discute longamente se o paciente deve linguagem corporal, criando um clima de
mento de Cuidados Paliativos, o paciente ou não ser informado sobre a gravidade confiança. A morte pode ser aterradora,
com dor e doença avançada, mas que do seu quadro. desencadeando forças ainda não conheci-
ainda é elegível cirurgicamente e/ou para Esconder a verdade do paciente não é das vivenciadas pelos pacientes. Por isso,
tratamento adjuvante, daquele ao qual só uma mentira piedosa, na realidade é uma segundo Montigny,(14) cuidar de doentes
é possível oferecer algum tipo de conforto, falácia.(9) Ela é cruel, pois com o evoluir da terminais pode ser uma aventura e requerer
mas sem controle da doença. A filosofia de doença a sua própria natureza põe a des- dos profissionais novas forças, trabalho
Hipócrates declara que nada deveria ser coberto uma suspeita que destrói a con- com o inesperado, com fantasias de imor-
mais importante para um médico do que fiança do paciente no médico, na equipe talidade, com o desejo de sobrevivência e
os melhores interesses do paciente que o e, o que é mais doloroso, na família. com a sobrevivência dos desejos.
procura para tratamento. Doyle(7) cita o gesto crítico que está Os cursos na área de saúde, funda-
Tratar um paciente requer não somente contido em todo diagnóstico médico, em mentalmente para médicos e enfermeiros,
as considerações biológicas e psicológi- particular quando descobre uma doença têm enfatizado os procedimentos técnicos
cas, como também as familiares, sociais, grave, não adianta esconder, é melhor en- em detrimento de uma formação mais hu-
econômicas e aquelas que estão nas frentar; no entanto, como enfatiza o autor, manista. A peregrinação de cada médico
relações estabelecidas entre os sistemas o médico pode agir “pedagogicamente” na abordagem da doença grave é fazer
envolvidos: o indivíduo e seu universo e o ou não. Se souber agir pedagogicamente, o diagnóstico, planejar e efetuar a cura
sistema de saúde e de tratamento, com comunicará a doença grave com jeito, específica. A essa peregrinação Nuland(15)
suas múltiplas variáveis. fará deste diagnóstico o primeiro degrau denominou “A Charada”. A satisfação de

Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 45 • Mai-Jun/2006 165


Cuidados Paliativos

resolver a charada é a própria recompen- Emocionalmente, o profissional vê a


Há uma necessidade
sa, é o combustível que faz funcionar a morte de seu paciente como um fracasso,
maquinaria clínica dos especialistas mais da abertura de espaços uma vitória de uma grande inimiga, uma
bem treinados da medicina. É a medida da derrota pessoal, quiçá uma angústia ante
capacidade de cada médico; é o ingredien- para sensibilização e sua própria morte. O fracasso não é a per-
te mais importante de sua auto-imagem da de um paciente por morte, o fracasso
profissional. discussão do tema é não proporcionar uma finitude digna,
Lembremos que o estudante de medici- respeitosa. Mata-se o paciente ainda em
na, já no início do 1º ano, entra em contato da morte na formação vida, quando este é abandonado, pois sua
com o cadáver na sala de dissecção. Mas doença é incurável.
o cadáver não é a morte, é tão-somente o dos profissionais da “Podemos ajudar nossos pacientes
invólucro descartável do homem como um a morrer, tentando ajudá-los a viver, em
todo, isto é, aquele constituído de corpo, área da saúde vez de deixar que vegetem de forma de-
mente e espírito. Na realidade, a morte é sumana.”(12) t
um processo que pode ser instantâneo e uma falsa idéia de que, ao se combater
ou lento, despercebido ou sofrido. O pro- doenças e sintomas, estar-se-ia também REFERÊNCIAS
cesso de morte e morrer envolve etapas, lutando contra a morte. Uma boa parte
1. Alves R. O Médico. Campinas: Papirus.
fenômenos que antecedem a morte clínica dos sentimentos de onipotência poderia 2002.
propriamente dita. estar ancorada aí.(16) 2. Bifulco VA. Princípios éticos e humanitários no
cuidado de pacientes graves. Revista Meio de
Esse primeiro encontro do estudante Durante os seis anos de faculdade Cultura, 2004; ano V, n. 25.
de medicina com cadáveres, na aula de acrescidos dos de estágio e residência, 3. Bifulco VA. Reflexões sobre a morte e o morrer
nos atendimentos psicológicos de cuidados
anatomia, geralmente causa em alguns e pelo resto da vida profissional, tanto o paliativos. Prática Hospitalar. mar.-abr. 2004;
intenso sofrimento. Como a expressão de médico, a enfermeira como os demais ano VI, n. 32,.
4. Bifulco VA. Espiritualidade: conceito e aplicação
sentimentos é pouco aceita socialmente, profissionais da área da saúde, irão se dentro da prática em cuidados paliativos. Prá-
observa-se, com freqüência, a presença deparar com a morte em diversas ocasiões tica Hospitalar. jul.-ago. 2004; ano VI, n. 34.
5. Concone MH. O vestibular de anatomia. In:
de manifestações contrafóbicas, como e circunstâncias; a maioria, pela sua pró- Martins JS (ed.). A morte e os mortos na so-
fazer piadinhas, ou ficar indiferente. (5) pria formação, tenderá a não aceitar, não ciedade brasileira. São Paulo, Hucitec.1983.
6. Carvalho MMMJ. Introdução à psiconcologia
Tira-se qualquer identidade humana do compreender. Eles a temem tanto quanto (coord.). Livro Pleno. Editoral Psy, Campinas:
cadáver, pois pode ser muito angustiante o leigo. Principalmente para o médico, ele São Paulo. 1994.
7. Doyle D. Au revouir. In: 3rd Symposium and
manipular órgãos se houver o pensamento precisa vencê-la, anulá-la, provavelmente Meeting of the International Association for
que se tratava de um ser humano. A des- para afastar de si o pensamento de sua Hospice and Palliative Care. 1999, Genebre.
8. Figueiredo MTA. Educação em cuidados palia-
valorização dos valores humanos principia própria finitude.(8) tivos: uma experiência brasileira. In: O mundo
na faculdade de medicina, como coloca Há uma necessidade da abertura de da saúde. jan.-mar. 2003;27(1):165-170.
9. Figueiredo. Cuidado paliativo. In: Mimeo.
Lown.(13) O autor segue afirmando que é espaços para sensibilização e discussão 2002.
um erro iniciar o curso de medicina pela do tema da morte na formação dos pro- 10. Furlanetto EC. Como nasce um professor?
Paulus, São Paulo: 2004.
dissecação de cadáveres na aula de ana- fissionais da área da saúde tendo em vista 11. Kovács MJ. Educação para a morte: desafio
tomia. Para contrabalançar o horror dessa que vão se confrontar com o assunto em na formação de profissionais de saúde e edu-
cação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
tarefa, os estudantes preferem considerar suas atividades cotidianas. 12. Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. São
como objeto inanimado o corpo repug- Com a deficiência desta formação Paulo: Martins Fontes. 1998.
13. Lown B. A arte perdida de curar. São Paulo:
nante que cheira a formol; isso os leva a acadêmica, que não prepara os futuros JSN, 1997.
esquecer que “aquilo” já foi um ser humano médicos e profissionais da saúde para 14. Montigny JL. Distress, stress and solidary un
palliative care. Omega. Journal of Death and
como os vivos que o estudam. compreender melhor o processo de Morte Dying. 1993;27(1):159-172.
A partir daí, e durante toda a apren- e Morrer, o que vemos é um “olhar defei- 15. Nuland SB. Como morremos, reflexões sobre
o último capítulo da vida. Rocco. Rio de Ja-
dizagem desse aluno, percebe-se a des- tuoso” ante a morte de um paciente.(3) neiro: 1995.
sensibilização a elementos que possam Cada vez que o médico consegue a 16. Zaidhaft S. A morte e a formação médica. Rio
de Janeiro: Francisco Alves. 1990.
dar a entender a possibilidade de morte. cura de seu enfermo, é uma vitória pessoal
Os corpos são então transformados em contra sua própria morte.
órgãos, “partes” como ossos, sangue, e a Quando a morte ganha a batalha, leva
sua manipulação permite o conhecimento o doente e o médico.

166 Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 45 • Mai-Jun/2006

You might also like