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Souza Jr., E.J.; Cirino, S.D. e Gomes, M.F.C. (2010).

A construção do legado de Lev Vigotski: a118


necessidade de discussões históricas. Memorandum, 18, 118-129. Retirado em / / ,
da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a18/socigo01.pdf

A construção do legado de Lev Vigotski: a necessidade de


discussões históricas

The construction of Vigotsky legacy: the need for historical discussions

Eustáquio José de Souza Júnior


Sérgio Dias Cirino
Maria de Fátima Cardoso Gomes
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil

Resumo
Este trabalho tem por objetivo o estabelecimento de diretrizes para a pesquisa atual em
Psicologia Histórico-Cultural por meio de uma breve revisão da trajetória percorrida por
Lev Semionovich Vigotski. Considerando as implicações advindas dos períodos históricos
prévio e posterior à revolução socialista, assim como os impactos provenientes de
diversas vertentes da psicologia do seu tempo, sustenta-se que o incremento de
abordagens históricas do processo de construção da obra do autor bielo-russo pode
competir para o incremento da compreensão atual do seu pensamento, além de auxiliar
no desenvolvimento de aplicações mais alinhadas com os significados originais da
produção intelectual vigotskiana.
Palavras-chave: Lev Semenovich Vigotski; psicologia histórico-cultural; história e
epistemologia da Psicologia

Abstract
The objective of the present work is to establish guidelines for Cultural-historical
Psychology current research through a brief review of Lev Semionovich Vigotski taken
trajectory. It takes into consideration implications which came from prior and post
socialist revolution historical periods, as well as impacts derived from several psychology
springs of his time, it is asserted that the increase in historical approaches of thinking
construction process of this byelorussian author may contribute for current
understanding enlargement of his thinking besides supporting the development of more
aligned applications with original meanings of Vigotski intellectual production.
Keywords: Vigotski; cultural-historical psychology; history and epistemology of
psychology

A realidade histórico-social da produção de Vigotski


Para compreender a sistemática que determina o curso do desenvolvimento de uma
ciência faz-se necessária a consideração do contexto ideológico em que este projeto se
insere. Tal trabalho explicita as forças originadas em ideologias vigentes que fornecem os
elementos que norteiam a seleção dos temas abordados pelo viés científico. Quando se
admite que microteorias constituam os fundamentos exclusivos das práticas científicas,
admite-se também o risco de aplicações apartadas das prescrições éticas e morais
vigentes. Neste caso, o que se percebe em muitas situações e em escala global, é um tipo
de construção intelectual sustentada sobre teorias alheias à contextualização ideológica
daquilo que se produz. Paira, portanto, sobre grande parte das práticas científicas
mundiais, um certo acordo de que o pesquisador será tão mais eficaz quanto mais se
debruçar sobre uma teoria em miniatura (Brožeck, 2003).
Em contraste, coexistiram e coexistem com tais situações posições distintas das
anteriormente descritas. No Estado Soviético, estabelecido pela revolução de 1917, a
ideologia constituída a partir de interpretações do pensamento de Karl Marx e Frederick
Engels perdurou como elemento fundamental de práticas científicas durante quase todo o
século XX. A propaganda oficial explicitava constantemente o posicionamento filosófico
sobre o qual deveria se sustentar toda dinâmica da nova sociedade sendo estas algumas
das condições históricas sob as quais as perspectivas marxistas se conformaram como
Memorandum 18, abril/2010
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a18/socigo01.pdf
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norte da maioria das indagações filosóficas e científicas do novo Estado, muito embora
tenha havido notórias distorções condicionadas pelo autoritarismo.
Este é um retrato da realidade histórico-social da emergência do pensamento de Lev
Semionovich Vigotski (1896-1934). Sua produção emerge dos percalços de uma trajetória
que é uma síntese do seu testemunho ocular de massacres e perseguições direcionados à
comunidade judaica da qual era membro, assim como as consequências advindas dos
impactos sociais da Primeira Grande Guerra e das ocupações alemãs e ucranianas do
território russo. Vigotski presenciou um momento histórico que exigiu a sua implicação
intelectual em tarefas que pudessem contribuir para a resolução dos graves problemas
que surgiram em decorrência da Revolução de Outubro. Naquele período, dois milhões de
cidadãos russos fugiram do país ou foram exilados, deixando em aberto numerosos postos
de trabalho fundamentais à organização da nova conjuntura estatal. Para estes cargos,
havia poucos candidatos remanescentes que reuniam condições necessárias para o
provimento das demandas sociais de um país que imerso num conturbado processo de
transição política (Van Der Veer, 2007, p. 23).
Para Vigotski, o decurso da efervescência política no início do século XX foi também um
período de grande contato com a cena cultural soviética. Foi contemporâneo de vários
autores que deram importantes contribuições à literatura mundial, dentre eles Babel,
Gorky, Belyj, Blok, Esenin, dentre outros dignos de nota. Na música eram destaque as
composições de Prokofiev, Shostakovich, Stravinsky, etc. Nas artes plásticas Kandinsky e
Malevich eram exemplos da vanguarda russa. Teve também a oportunidade de se inserir
ativamente em movimentos artísticos ao procurar levar para Gomel as melhores
companhias teatrais em atividade no Rússia. (Van Der Veer, 2007). Esta trajetória
perpassada pelas artes foi percorrida antes da sua inserção formal nos meandros das
discussões psicológicas. Tudo indica que a atuação de Vigotski num ambiente cultural
multifacetado foi decisiva para a formação do seu pensamento crítico (Van Der Veer,
2007). A gradual transição de interesses que levaram Vigotski a contemplar também os
debates críticos da psicologia parece ter consistido num movimento pessoal que visava
dar respostas às demandas sociais prementes de uma sociedade que almejava um novo
status na comunidade mundial.
À luz destes elementos biográficos de Lev Vigotski é possível hipotetizar que a sua
meteórica passagem pela história da psicologia também componha o complexo conjunto
de fatores responsáveis pelo crescente interesse que este autor permanece despertando
nos dias atuais (Blanck, 2003). Tal fato implica em pelo menos duas consequências
importantes: a primeira se refere a um aumento real dos estudos acerca das proposições
histórico-culturais no Brasil, a segunda remete ao fato de que nem sempre o grande
alcance acadêmico ou popular de uma obra proporciona avanços na compreensão das
suas proposições (Freitas, 2004). Exemplos de incorreções são notórios e numerosos na
historiografia geral e, inclusive, no próprio âmbito científico.
O caráter ahistórico e fragmentário, presente nas análises sugeridas pelas principais
correntes psicológicas do seu tempo, foi aspecto destacado e criticado por Vigotski ao
longo da sua obra. Em O significado histórico da crise da psicologia (Vigotski 1927/1991)
o autor opina acerca das tentativas até então existentes de estabelecimento de uma
psicologia geral.
Estes destinos tão semelhantes como quatro gotas da
mesma chuva, conduzem as idéias por um mesmo
caminho. (...) Cada uma destas idéias é, no seu
respectivo lugar, extraordinariamente rica quanto ao
seu conteúdo, é plena em significado, sentido e valor,
sendo frutífera. Mas quando as idéias se elevam ao
patamar das leis universais todas passam a ter o
mesmo valor, são absolutamente iguais entre si (...); a
individualidade de Stern é para Bechterew um
complexo de reflexos, para Wertheimer uma Gestalt e
para Freud sexualidade. (p. 276, Tradução do autor.)

Memorandum 18, abril/2010


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A Psicanálise, Psicologia da Gestalt e o Behaviorismo Watsoniano, do ponto de vista de


Vigotski, não haviam reunido as condições necessárias para se consolidarem como
conjuntos de proposições gerais de psicologia. Suas produções, fundamentadas em
princípios filosóficos distintos, teriam suas validades circunscritas a proposições teóricas
ou práticas, aplicáveis apenas no interior dos seus respectivos centros semânticos. Para
ele, aquelas vertentes de interpretação da vida psíquica eram consideravelmente
limitadas quando faziam menção a fenômenos complexos como a linguagem, o
pensamento e a consciência. Na obra inicial do epistemólogo suíço Jean Piaget, Vigotski
apontou a marca de uma “aguda contradição entre a matéria factual da ciência e suas
premissas metodológicas e teóricas” (Vigotski, 1934/2005, p. 12). A fonte desta
contradição residiria justamente nas origens epistemológicas de cada uma daquelas
perspectivas psicológicas que se digladiariam num continuum entre extremos que iam do
idealismo até o materialismo fisiológico. No contexto das idas e vindas das discussões
sobre as diferenças e interseções entre a aprendizagem e o desenvolvimento humano
observa-se, ainda hoje, uma oscilação “entre o objetivismo e o subjetivismo, ora
enfatizando os fatores externos ao desenvolvimento e à aprendizagem, ora enfatizando
os fatores internos ao desenvolvimento e à aprendizagem” (Gomes, 2002, p. 38). Já na
década de 1920, Vigotski parecia considerar que tal fato se situava na contra-mão das
inúmeras expectativas que se apresentavam para o campo da psicologia, principalmente
no contexto das necessidades emergentes no novo Estado Soviético. Para ele
o aprendizado não é desenvolvimento; entretanto, o
aprendizado adequadamente organizado resulta em
desenvolvimento mental e põe em movimento vários
processos de desenvolvimento que, de outra forma,
seriam impossíveis de acontecer. Assim, o aprendizado
é um aspecto necessário e universal do processo de
desenvolvimento das funções psicológicas
culturalmente organizadas e especificamente humanas.
(Vygotsky, 1989, p. 101)
Assim como o problema do embate entre proposições objetivistas e subjetivistas nos
processos de desenvolvimento e de aprendizagem, ele considerou a falta de um sistema
único de psicologia como um importante empecilho para o desenvolvimento dos estudos
da área e, por isso, considerava a Psicologia uma área do conhecimento a ocupar o
centro de uma crise epistemológica (Vigotsky, 1927/1991). Não obstante, é claro o
reconhecimento de Vigotski das contribuições trazidas pelos seus contemporâneos
behavioristas, gestaltistas e psicanalistas, mesmo quando divergia das suas formas de
produção de conhecimento. Há, inclusive, elementos derivados destas tendências
teóricas relatados em diversos momentos da sua obra (Silva, 2005).
Como alternativa ao negativo prognóstico estabelecido por Vigotski para o futuro de uma
Psicologia que permanecesse apartada de questionamentos metateóricos, o psicólogo
bielorusso propôs o início da construção de um sistema psicológico abrangente e
declaradamente sedimentado sobre o referencial filosófico marxista. Desta filosofia a
psicologia herdaria os conceitos fundamentais de historicidade e cultura (Sirgado, 2000),
embora se encontrem poucas referências explicativas do próprio Vigotski sobre sua
definição de cultura. O que aparece com destaque em vários momentos da sua obra é o
empenho num projeto que visava o estabelecimento de uma psicologia marxista, alheia
às tentativas de aplicação direta da dialética materialista à psicologia, como o explicitado
na passagem a seguir.
(...) a única aplicação legítima do marxismo em
psicologia seria a criação de uma psicologia geral cujos
conceitos se formulem em dependência direta da
dialética geral, uma vez que esta psicologia não seria
nada além da dialética da psicologia; toda aplicação do
marxismo à psicologia por outras vias, ou a partir de
outros pressupostos, alheios a estas considerações,
conduzirá inevitavelmente a construções escolásticas
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ou verbalistas e a dialética se descaracterizará por meio


de inventários e testes; a racionalizações acerca de
fenômenos fundamentadas em traços externos causais
e secundários; à perda total do critério objetivo e à
tendência de uma negação dos aspectos históricos
inerentes ao desenvolvimento da psicologia; a uma
revolução terminológica, simplesmente. Em síntese, a
uma grotesca deformação tanto do marxismo quanto
da psicologia. (Vygotski, 1934/1991, p. 388, Tradução
do autor.)
A afiliação filosófica de Vigotski ao marxismo foi um obstáculo à introdução do seu
trabalho no ocidente. O contato com aquilo que se produziu a respeito de Vigotski em
traduções ou em fontes históricas de segunda mão é tarefa que requer especial atenção,
uma vez que é possível colocar em questão a qualidade do material disponível no Brasil
até meados dos anos 90 (Duarte, 2004). O fato é que esta bibliografia compõe o
referencial de inúmeros estudos que abordam a Teoria Histórico-cultural no Brasil. É
provável que este seja um dos motivos que levaram a apropriações discutíveis de muitos
dos conceitos criados no cerne da obra vigotskiana. (Van Der Veer & Valsiner, 2001).
Ademais, o acesso ocidental às produções científicas e filosóficas soviéticas se deu
mediante a interferências explícitas de manobras políticas e ideológicas oriundas da
ideologia comunista e do capitalismo ocidental, durante o período histórico conhecido
como Guerra Fria. Este é um ponto de importância tendo em vista que houve percalços
não somente na imigração do trabalho de Vigotski para o ocidente, via Estados Unidos da
América, mas também no interior da própria União Soviética em dois momentos
distintos: o primeiro quando da censura de 1936 a 1956 e o segundo quando do
lançamento das Obras Escolhidas na década de 1980. Mesmo depois do fim do stalinismo
o acesso às obras de Vigotski ainda permaneceu difícil. No período de “desestalinização”
foram publicadas edições da obra vigotskiana que pudessem depor contra o recente
passado stalinista. A publicação das Obras Escolhidas só ocorreria entre 1982 e 1984, por
meio de uma editora estatal soviética secundária, a Piedagouguika. A tiragem da
coletânea foi limitada e apresentava significativas omissões (Blanck, 2003). A política de
abertura do estado soviético e a subsequente dissolução do país fizeram com que os
trabalhos de Vigotski permanecessem alvos de restrições extra-oficiais tácitas, agora
devidas à orientação marxista do seu pensamento. Foi somente no final dos anos
noventa que surgiram esforços mais sistemáticos no intuito da realização de traduções
do russo para o português (Delari Junior, 2000). Como exemplos apontam-se os
trabalhos de Paulo Bezerra nas traduções de Psicologia da Arte e A Construção do
Pensamento e da Linguagem.
De forma recorrente a literatura acadêmica narra que Vigotski foi um psicólogo
provinciano evolutivo e educacional que surgiu para o mundo em 1924 ao proferir uma
palestra hipnótica em Petrogrado. O conteúdo daquela apresentação tratava de questões
relacionadas à esterilidade dos estudos da psicologia em vigor nos âmbitos soviético e
ocidental. Sua crítica e propostas para renovação do campo de estudos teriam então
proporcionado o seu ingresso no Instituto de Psicologia Experimental de Moscou onde,
em dez anos, produziu uma vasta obra que teve o seu curso interrompido pelo
falecimento precoce em 1934.
Para biógrafos como René Van der Veer e Jaan Valsiner (2001), autores que tiveram
acesso a documentos inéditos dos arquivos da família de Vigotski, um olhar mais
cuidadoso sobre textos do autor e outras fontes que apontam para a trajetória de
Vigotski coloca este tipo de narrativa sob questão, dada a não correspondência destes
trabalhos com fatos de relevância conhecidos do percurso do autor. É sabido que sua
produção começa quando era professor secundarista e crítico literário na província russa
de Gomel. Sua sólida formação intelectual e os interesses científico, artístico e filosófico,
compõem indicativos da dimensão dos seus interesses. No período de 1917 a 19241,
Vigotski ocupou diversos postos nos círculos sociais de Gomel “tornando-se um de seus
líderes culturais mais destacados” (Van Der Veer & Valsiner, 2001, p. 21). Além disso,
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sobre o seu interesse pelas artes, sabe-se que Vigotski escreveu vários roteiros teatrais e
mantinha estreito contato com atores, diretores e outros membros da cena artística de
Gomel. Inclusive, como observaram Van der Veer e Valsiner (2001), as primeiras
análises de cunho psicológico do autor surgem entre os anos de 1922 e 1925,
demonstrando que sua inserção nas questões da psicologia se deu a partir do seu
trânsito inicial no campo das artes. O emblema do cruzamento dos interesses artísticos e
psicológicos é o livro Psicologia da Arte de 1926, no qual Vigotski retoma uma análise
literária de Hamlet, que fora um dos seus primeiros trabalhos redigido em 1916. Para a
presente análise destaca-se o fato de que os trabalhos de 1916 e 1924, em conjunto com
a intensa atividade social de Vigotski no período, sugerem que sua figura já alcançara
notável projeção social, em contraste com as narrativas históricas que apontam a
palestra proferida no Segundo Congresso Neuropsicológico em Petrogrado como a
principal responsável pela sua inserção no âmbito acadêmico moscovita.
Somente em publicações recentes há uma preocupação maior com a contextualização
histórica da produção de Vigotski, relacionando-a com aspectos sociais e científicos
vigentes na Rússia durante a virada para o século XX (Van Der Veer, 2007). Diante
destas constatações pode-se concluir que ainda se fazem necessárias investigações das
condições históricas nas quais Vigotski produziu sua Psicologia Histórico-cultural, no
intuito de clarificar aspectos relativos à construção das suas proposições entremeio aos
percalços da trajetória pessoal do autor. Parafraseando o professor Pavel Blonsky,
Vigotski escreveu que a psicologia contemporânea pode ser compreendida somente como
a história dessa psicologia (Vigotski, 1998b, p. 86). Tomando-se esta afirmação como um
postulado, entende-se que o mesmo critério deve ser aplicado à sua proposta de
psicologia. Se ainda tomar-se como referência que “A história não é imparcial; é
altamente e inevitavelmente seletiva” (Wertheimer, 1976, p. 05) e que é por isso que
“Não existe nada que seja ’a’ história de coisa alguma” (Idem, p. 07) é necessário
cautela na delimitação das variáveis abordadas num estudo que pretenda lidar com
dados históricos para que se minimizem distorções descritivas que um olhar seletivo
possa trazer.
Em muitas fontes presentes na literatura sempre se encontram histórias escritas de
acordo com as necessidades ideológicas do tempo em que são concebidas. É a
consciência da ocorrência do fenômeno da apropriação interpretativa sobre o documental
disponível que conota cautela às análises historiográficas. Michel Foucault adverte sobre
a natureza do documental histórico.
O documento não é o feliz instrumento de uma história
que seria em si mesma e de pleno direito, memória; a
história é para uma sociedade, uma certa maneira de
dar status e elaboração à massa documental de que ela
não se separa. (1995, p. 7)
Portanto, é importante levar em conta as determinantes das divergências constatadas
em diversas versões consultadas ao longo de um trabalho investigativo, com o objetivo
de que se construam considerações que correspondam em maior medida aos fatos
históricos relacionados à trajetória de Vigotski.
O recurso à história geral e à história da ciência devem ser frequentes em explorações
científicas, tendo em vista a minimização de distorções interpretativas inevitáveis. A obra
de Vigotski recomenda este tipo de abordagem para problemáticas científicas em geral
(ver Vygotsky & Luria, 1996). A emergência da Teoria Histórico-Cultural teve como uma
de suas bases e assumiu como aspecto distintivo o pensamento histórico com suas
vicissitudes (Sirgado, 2000). Esta característica marcante é um dos temas centrais do
texto Manuscrito de 1929, redigido por Vigotski e com tradução publicada no Brasil no
ano 2000.
A palavra história (psicologia histórica) para mim
significa duas coisas: 1) abordagem geral das coisas –
neste sentido qualquer coisa tem sua história, neste
sentido Marx: uma ciência a história; (...) ciências
naturais = história da natureza, história natural; 2)
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história no próprio sentido, isto é, a história do homem.


Primeira história – materialismo dialético, a segunda –
materialismo histórico. As funções superiores,
diferentemente das inferiores, no seu desenvolvimento,
são subordinadas às regularidades históricas (...). Toda
peculiaridade do psiquismo do homem está em que
nele são unidas (síntese) uma e outra história
(evolução + história). (p. 23)
Fortalecendo a posição de que a abordagem histórica é essencial à credibilidade do
conhecimento científico, podem-se citar alguns exemplos de incorreções que só uma
investigação atenta aos impactos dos elementos históricos pôde desvelar na trajetória da
Psicologia Histórico-Cultural. O livro Pensamento e Linguagem, por exemplo, é uma
publicação que, segundo o levantamento de Freitas (2004), é referência de 38% dos
estudos que se valem da teoria de Vigotski em pesquisas brasileiras apresentadas nas
reuniões da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação de 1998 à
2003. O fato que requer especial atenção é que as edições brasileiras do volume,
publicadas entre 1987 e 2003, são baseadas numa tradução norte-americana do original
em russo. Desta versão, foram retirados trechos que pudessem dar ao texto qualquer
conotação marxista. De 337 páginas presentes na tradução espanhola das Obras
Escolhidas, a edição brasileira de 2005 apresenta 194.

A psicologia histórico-cultural
Desde os momentos iniciais da sua vida Vigotski foi um homem ocupado pelas questões
da educação. Relata-se que aos quinze anos de idade ele era conhecido como “o pequeno
professor” devido à sua erudição e perspicácia pedagógica. Esta vocação didática
permaneceria presente em toda a sua obra posterior (Blanck, 1996). “Vigotski
considerava a educação não apenas central para o desenvolvimento cognitivo, mas a
quintessência da atividade cultural” (Moll, 1996, p. 3). Do ponto de vista do seu sistema
de psicologia, a organização social do processo instrucional é o caminho a ser trilhado
por todo educador, seja ele um professor ou qualquer pessoa do convívio infantil, pois é
a partir das situações sociais que se sedimentam todas as atividades psicológicas
superiores (Vigotski, 1989). Nesta perspectiva, o pensamento de Vigotski se mostra em
diálogo com a filosofia de Engels, uma vez que ele entendia que a formação dos
processos psicológicos requer o uso de um instrumental simbólico que se interpõe entre
o indivíduo e o meio. Este fenômeno foi denominado mediação semiótica na Psicologia
Histórico-cultural. A sofisticação das relações mediadas física e, principalmente,
simbolicamente, dependem do processo educacional experienciado pelo sujeito da
cultura. Vigotski salientou que o desenvolvimento dos processos cognitivos se delineia no
cerne das relações que a criança estabelece com o seu meio cultural (Vigotski, 1998a)
Neste sentido, o conceito de zona de desenvolvimento proximal2 é uma síntese da
relação de dependência existente entre o desenvolvimento psicológico e os elementos
sócio-culturais presentes no entorno individual. Tais recursos incluem o convívio social
geral e a relação didática planejada que a criança mantém com o professor. A partir
deste desenho fundamental Vigotski desenvolveu trabalhos aplicados no campo
educacional, cujos exemplos são os vários artigos da área da pedologia e o livro
Psicologia Pedagógica.
Sobre o valor contemporâneo do trabalho de Vigotski constata-se a influência do seu
pensamento na área da educação em âmbito mundial. O elevado volume de publicações
científicas destinadas ao exercício docente é uma evidência marcante desta importância
(Freitas, 2004). A aplicação da produção histórico-cultural se faz presente em campos de
aplicação que vão desde a formação docente e a educação especial até o apoio a
adolescentes em situação de risco social, dentre outros (Peres, 2004; Sebastiani, 2004).
A diversidade de aplicações das proposições histórico-culturais e o considerável volume
de referências e publicações brasileiras sobre o autor são alguns dos indicadores que
competem para sustentar propostas de exploração de aspectos fundamentais da obra de

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Vigotski não somente naquilo em que se relaciona aos campos da Psicologia e da


Educação, mas também em todas as outras áreas em que seu legado se fez presente.
A Psicologia Histórico-Cultural parece ter sido sistematicamente apresentada pela
primeira vez por Vigotski e Luria em 1928. O texto Pedologia introduzia diversos
conceitos-chave da abordagem Histórico-Cultural aplicados ao desenvolvimento cognitivo
infantil. Os achados científicos expostos no texto também seriam apresentados
posteriormente sob a forma de dois livros: as publicações O Comportamento dos Animais
e do Homem e Estudos Sobre a História do Comportamento: o Macaco, o Primitivo e a
Criança. No Brasil, a editora Artmed publicou em 1996 uma edição do livro Estudos Sobre
a História do Comportamento. O texto foi escrito em parceria com Luria e foi
originalmente publicado em 1930, não havendo republicações em língua russa devido ao
caráter polêmico do seu conteúdo que procurava estabelecer analogias entre o
desenvolvimento biológico, aspectos antropológicos em interface com o estabelecimento
de processos cognitivos.
O materialismo e o positivismo consistiam nas bases dos modelos explicativos do
comportamento bastante disseminados na cultura da virada para o século XX. Naquele
período o darwinismo era outra vigorosa perspectiva aplicada às tentativas de dissolução
dos mais diversos problemas da ciência da era moderna. Além destas, outros referenciais
também são encontrados na psicologia vigotskiana tal como as obras dos psicólogos
gestaltistas Wolfgang Köhler, Max Wertheimer e Kurt Kofka. A etnografia de Lucien Lévy-
Bruhl contribuiu para a consolidação dos pressupostos histórico-culturais no concernente
às suas heranças da antropologia. Podem-se tomar estes personagens como alguns dos
referenciais presentes em textos de Vigotski, embora não se possa creditar a eles o papel
de bases absolutas da proposta vigotskiana, dada as omissões inevitáveis e o estilo
difuso da sua escrita. Tendo em vista esta marca da obra de Vigotski, Wertsch (1996)
aponta três grandes eixos temáticos dos trabalhos do autor:
(a) o uso de um método genético, ou de
desenvolvimento; (b) a afirmação de que o
funcionamento mental superior do indivíduo provém de
processos sociais; e (c) a afirmação de que os
processos sociais e psicológicos humanos são moldados
fundamentalmente por ferramentas sociais, ou formas
de mediação. (p. 9)
A análise de aspectos relativos à gênese dos processos psicológicos indica que Vigotski
considerou o curso do desenvolvimento humano como produto da interação de quatro
planos fundamentais: a filogênese, que consiste na herança genética dos indivíduos de
uma determinada espécie. Ela confere à espécie base biológica que é refletida no
desenrolar da ontogênese. Esta consiste no desenvolvimento do indivíduo de uma dada
espécie animal ao longo do seu ciclo vital. A sociogênese é a experiência com os produtos
de uma determinada cultura, aspecto que implica numa homogeneização determinística
das sociedades humanas, uma vez que todos os indivíduos de uma certa comunidade
cultural estão expostos às mesmas contingências culturais. Por fim, a microgênese, se
atém aos processos de aprendizagem pontuais e idiossincráticos que são os focos de
convergência dos outros três planos e se complementam ao longo do desenvolvimento
humano. Esta é a porta para o não determinismo na Teoria Histórico-Cultural, pois os
outros três âmbitos genéticos, em suas definições, trazem a marca dos determinismos
biológico ou social. Eventos que podem ser considerados pertinentes ao plano
microgenético seriam a aprendizagem do uso de um lápis para colorir uma figura ou o
desenvolvimento da capacidade de usar uma determinada palavra articulada no contexto
de uma frase, assim como quaisquer outros eventos que levem à reestruturação de
processos psicológicos já estabelecidos. Segundo Góes (2000), as questões colocadas
pelo advento do conceito de microgênese na Teoria Histórico-Cultural exerceram impacto
sobre a própria metodologia investigativa dos estudos histórico-culturais. A aplicabilidade
do conceito à pesquisa e a sua adequação à tese fundamental de Vigotski de que o
sujeito cognoscente tem sua gênese nas relações mantidas com a cultura reforçam a

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ênfase de que as análises histórico-culturais devem se concentrar sobre a dinâmica


inerente às relações sociais ao longo do ciclo vital.
A unidade microanalítca da Teoria Histórico-Cultural afasta-se da racionalidade
elementarista da matriz associacionista. A sua definição preconiza análises que recorram
a unidades ao invés de elementos. Estas unidades microanalíticas englobam as
determinantes filogenéticas, ontogenéticas e sociogenéticas, preservando todas as
propriedades das origens do fenômeno psicológico que se pretende compreender. A
análise microgenética pode ser sintetizada como se segue:
(...) essa análise não é micro porque se refere à curta
duração dos eventos, mas sim por ser orientada para
minúcias indiciais – daí resulta a necessidade de recortes
num tempo que tende a ser restrito. É genética no
sentido de ser histórica, por focalizar o movimento
durante processos e relacionar condições passadas e
presentes, tentando explorar aquilo que, no presente,
está impregnado de projeção futura. É genética, como
sociogenética, por buscar relacionar os eventos
singulares com outros planos da cultura, das práticas
sociais, dos discursos circulantes, das esferas
institucionais (Góes, 2000, p. 15).
Sobre a metodologia adotada nas investigações histórico-culturais são apontados dois
trabalhos de relevância acerca do tema. O primeiro, contido no livro A História do
Desenvolvimento das Funções Psíquicas Superiores, descreve os procedimentos
delineados por Vigotski ao mesmo tempo em que expõe uma contrapartida crítica às
metodologias em uso nos âmbitos behavioristas, wundtianos e gestaltistas. Nesta mesma
linha de ação, o texto O Método Instrumental em Psicologia, contribui para a
compreensão daquilo que chamou de Técnica Funcional da Dupla Estimulação (Vigotski,
1930/1998a). O método consistia na utilização de estímulos auxiliares no entorno de
uma situação problemática para que o sujeito experimental os utilizasse no processo de
dissolução. Estes estímulos poderiam assumir a forma de signos (instrumentos
intrapsíquicos) ou instrumentos físicos. Estes, ao serem incluídos ativamente na solução
da questão experimental, exerceriam o papel de recursos que levariam à reorganização,
não somente o mundo externo por intermédio da ação física, mas também, da
reestruturação da dinâmica psíquica que ascenderia a um patamar de desenvolvimento
qualitativamente distinto daquele que o precedeu.
O estudo das funções psicológicas superiores era tema evitado pelos psicólogos norte-
americanos alinhados ao behaviorismo, assim como por aqueles afiliados à vertente
experimentalista do trabalho de Wilhelm Wundt. O argumento para isso residia na
natureza supostamente inacessível do objeto por meio da metodologia experimental.
Além disso, Vigotski considerou os estudos de tempo de reação, os estudos descritivos
das sensações conscientes e a produção comportamentalista como perspectivas
ocupadas do estudo de reações complexas “post-mortem” (Vigotski, 1930/1998b p. 90).
Vigotski entendia que aquelas perspectivas não se ocupavam do fenômeno em
emergência e do desenvolvimento histórico das funções psicológicas, mas sim, atinham-
se às formas descontextualizadas da sua ocorrência. É a estas perspectivas que a
abordagem vigotskiana emerge propondo uma teoria interpretativa e um método para a
obtenção de dados sobre o desenvolvimento.
A breve descrição do método vigotskiano exposto neste trabalho alinha-se com a sua
concepção de funcionamento psicológico como fenômeno humano, originado nas relações
mantidas com o mundo em seus âmbitos físico e da cultura. As condições artificiais,
comezinhas no método experimental e também no Método Funcional da Estimulação
Dupla, procuram estabelecer relações entre a história do estabelecimento de uma função
psíquica com o uso de instrumentos provenientes da cultura ou com o uso de signos
(Vigotski, 1998a). É por meio da manipulação de instrumentos objetivos que um
indivíduo pode realizar transformações no seu meio físico. Da mesma forma, é por meio
do uso de signos que decorrem mudanças significativas das funções psicológicas
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superiores. Este é um ponto de destaque, pois, na abordagem Histórico-Cultural, apesar


de exercerem a função de instrumental destinado à promoção de mudanças, instrumento
e signo designam objetos de naturezas distintas e promoverem mudanças
qualitativamente diferentes, muito embora estabeleçam um vínculo dialético que
possibilita a sofisticação tanto de um quanto do outro (Vigotsky, 1927/1991). Atribui-se
“à atividade simbólica uma função organizadora específica que invade o processo do uso
de instrumentos e produz formas fundamentalmente novas de comportamento”
(Vigotsky, 1927/1991, p. 32).
A constatação de que o signo é aprendido por meio de situações de convívio social
passando a sofrer apropriações inerentes ao processo de transição dos processos
culturais do meio interpsíquico para o intrapsíquico, está em harmonia com o postulado
vigotskiano de que a gênese das funções psicológicas superiores reside na história da
cultura humana. É neste sentido que indivíduo e ambiente assumem o papel de agentes
interdependentes na conformação do sujeito psicológico. Eles interagem, modificam-se
mutuamente e estabelecem uma espiral ascendente que sofistica o desenvolvimento
psicológico a cada nova atividade no meio social (Van Der Veer, 2007). Um objeto do
mundo objetivo será percebido diferentemente por uma mesma criança em diferentes
momentos do seu desenvolvimento psicossocial. Esta idéia pode ilustrar a concepção de
que o ambiente não é, absolutamente, um agente que desempenhará um mesmo papel
para crianças diferentes, assim como para uma mesma criança em momentos distintos
do seu desenvolvimento. A constituição histórica de um indivíduo, inscrita no decurso do
desenvolvimento dos seus processos cognitivos tornam o sujeito psicológico alguém
diferente na medida em que se sucedem os diversos momentos do processo de
constituição concomitante e recíproca dos ambientes físico e social, além do sujeito
psicológico que deles não pode se desvencilhar.

A construção de novos olhares sobre Vigotski


Diferentes tempos históricos fomentam o aparecimento de diferentes demandas sociais.
Na contemporaneidade encontra-se uma situação que se impõe e traz novas indagações
que fomentam olhares originais sobre muitos legados intelectuais. As heranças autorais
sempre sofrerão apropriações que modificarão com maior ou menor violência a sua
significação original (Foucault, 2000). No caso da contribuição de Vigotski, as suas
indagações como teórico do desenvolvimento, como epistemólogo ou como metodólogo
da Psicologia, apontam para o seu envolvimento numa complexa rede social, decisiva
para a emergência das suas proposições. Ao colocar em perspectiva o movimento atual
da pesquisa brasileira fundamentada no pensamento vigotskiano encontram-se
investigações que procuram identificar as relações entre Vigotski e seus contemporâneos
(Beatón, 2005; Kozulin, 1999), outras ocupadas do impacto do seu pensamento sobre
movimentos educacionais históricos (Silva, 2005), reflexões sobre a metodologia
utilizada em pesquisas de Vigotski e sua relevância atual (Zanella, Reis, Titon, Urnau, &
Dassoler, 2007), a possibilidade de abordagens clínicas psicoterápicas calcadas nos
princípios histórico-culturais (Aires, 2006), além de vários trabalhos destinados ao
refinamento conceitual da compreensão de conceitos filosóficos e teóricos presentes na
obra de Vigotski (Toassa, 2006). Estes são indicativos da multiplicidade de olhares
envolvidos nas apropriações de um trabalho que começou a ser elaborado há quase
oitenta anos. É por isso que esta revisão da trajetória deste pensador questionador da
cultura do seu tempo reconhece na abordagem histórica uma prolífica fonte de subsídios
para o estabelecimento de novas apropriações que possam ampliar as aplicações atuais
da Psicologia Histórico-Cultural. Ao mesmo tempo, esta incursão pretende contribuir para
uma maior ciência dos pesquisadores contemporâneos acerca das vozes sintetizadas
dialeticamente pelo discurso de Lev Vigotski.
Para o incentivo de novos olhares sobre o trabalho de Lev Vigotski o caminho parece
sinuoso. Não estão disponíveis traduções brasileiras do texto integral das Obras
Escolhidas de Vigotski realizadas a partir do idioma original. É digno de nota que a
barreira da língua ainda é obstáculo para a maioria dos pesquisadores brasileiros
ocupados de aspectos conceituais e aplicados da Teoria Histórico-Cultural. Resta o uso de
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material traduzido de qualidade questionável (Freitas, 2004), assim como o recurso a


biografias escritas por autores estrangeiros que tiveram a oportunidade de acessar textos
originais, dentre outras fontes de primeira mão.
Cabe então indagar sobre as demandas futuras passíveis de análises histórico-culturais,
assim como o posicionamento da comunidade científica na produção de instrumental
para aplicações do legado de Vigotski. A dinâmica social continuará o seu curso exigindo
respostas da ciência. A qualidade destas respostas deve ser avaliada partindo da
compreensão das condicionantes ideológicas vigentes nos momentos em que são dadas
respostas a questões de interesse da sociedade. Espera-se que esta reflexão possa
consistir numa modesta expressão de questões que mobilizem aqueles que fitam o
horizonte deixado pelo trabalho de Vigotski. Um trabalho que deixou portas abertas para
reflexões futuras e que dependerá daquilo que se realizar no momento presente.

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Notas
1) Embora praticamente não exista produção conhecida neste intervalo, o fato de
Vigotski publicar quatro resenhas literárias em 1916 e pelo menos nove em 1924, fazem
supor que parte do que foi produzido no período ainda é desconhecida. Supõe-se que
questões políticas como a relação de Vigotski com não-bolcheviques, dada a presença de
publicações dele em periódicos judaicos, além da possibilidade de perdas documentais
causadas pelos conflitos armados da guerra civil e da ocupação alemã tenham dificultado
o acesso aos manuscritos existentes (Van Der Veer & Valsiner, 2001).
2) Para Bezerra (1999) o termo proximal não é a melhor tradução para blijáichee, a
palavra utilizada nos originais por Vigotski. O termo mais condizente seria zona de
desenvolvimento imediato. Segundo Bezerra a capacidade de resolver problemas que
necessitariam das ajudas do professor ou de outras crianças definem o termo e é a
medida dinâmica do desenvolvimento intelectual e da aprendizagem. Duarte (2004)
aponta que a tradução de Bezerra confunde o conceito de zona de desenvolvimento
proximal com o que Vigotski chamou nível de desenvolvimento atual. Para Duarte “a
zona de desenvolvimento próximo é constituída por aquilo que a criança (...) não faz
sozinha, mas pode realizar com a ajuda de outros, inclusive e principalmente do
professor.” (Duarte, 2004, prefácio à segunda edição) Vygotsky (1989, p. 97) definiu o
conceito como “a distância entre o nível de desenvolvimento que se costuma determinar
através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial,
determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou de
companheiros mais capazes.”

Nota sobre os autores


Eustáquio José de Souza Júnior é psicólogo e mestre em Educação pela Universidade
Federal de Minas Gerais. É docente das disciplinas Análise Experimental do
Comportamento, História da Psicologia e Técnicas Psicoterápicas da Universidade
Presidente Antônio Carlos campus Bom Despacho. Também leciona na Faculdade de
Ciências Econômicas e Administrativas de Divinópolis, Minas Gerais. É Membro do
Laboratório de Psicologia e Educação Helena Antipoff (LAPEd) da Faculdade de Educação
da UFMG. Contato: eustaquiojunior@gmail.com
Sérgio Dias Cirino é Doutor em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo,
docente e pesquisador da Faculdade de Educação da UFMG. Membro do Laboratório de
Psicologia e Educação Helena Antipoff. Contato: sergiocirino99@yahoo.com
Maria de Fátima Cardoso Gomes é Doutora em Educação pela UFMG e docente da
Faculdade de Educação da UFMG. Pesquisadora do Laboratório de Psicologia e Educação
Helena Antipoff e do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de Educação
da UFMG. Contato: mafacg@gmail.com

Data de recebimento: 16/12/2009


Data de aceite: 30/02/2010
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