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Resumo
Este trabalho tem por objetivo o estabelecimento de diretrizes para a pesquisa atual em
Psicologia Histórico-Cultural por meio de uma breve revisão da trajetória percorrida por
Lev Semionovich Vigotski. Considerando as implicações advindas dos períodos históricos
prévio e posterior à revolução socialista, assim como os impactos provenientes de
diversas vertentes da psicologia do seu tempo, sustenta-se que o incremento de
abordagens históricas do processo de construção da obra do autor bielo-russo pode
competir para o incremento da compreensão atual do seu pensamento, além de auxiliar
no desenvolvimento de aplicações mais alinhadas com os significados originais da
produção intelectual vigotskiana.
Palavras-chave: Lev Semenovich Vigotski; psicologia histórico-cultural; história e
epistemologia da Psicologia
Abstract
The objective of the present work is to establish guidelines for Cultural-historical
Psychology current research through a brief review of Lev Semionovich Vigotski taken
trajectory. It takes into consideration implications which came from prior and post
socialist revolution historical periods, as well as impacts derived from several psychology
springs of his time, it is asserted that the increase in historical approaches of thinking
construction process of this byelorussian author may contribute for current
understanding enlargement of his thinking besides supporting the development of more
aligned applications with original meanings of Vigotski intellectual production.
Keywords: Vigotski; cultural-historical psychology; history and epistemology of
psychology
norte da maioria das indagações filosóficas e científicas do novo Estado, muito embora
tenha havido notórias distorções condicionadas pelo autoritarismo.
Este é um retrato da realidade histórico-social da emergência do pensamento de Lev
Semionovich Vigotski (1896-1934). Sua produção emerge dos percalços de uma trajetória
que é uma síntese do seu testemunho ocular de massacres e perseguições direcionados à
comunidade judaica da qual era membro, assim como as consequências advindas dos
impactos sociais da Primeira Grande Guerra e das ocupações alemãs e ucranianas do
território russo. Vigotski presenciou um momento histórico que exigiu a sua implicação
intelectual em tarefas que pudessem contribuir para a resolução dos graves problemas
que surgiram em decorrência da Revolução de Outubro. Naquele período, dois milhões de
cidadãos russos fugiram do país ou foram exilados, deixando em aberto numerosos postos
de trabalho fundamentais à organização da nova conjuntura estatal. Para estes cargos,
havia poucos candidatos remanescentes que reuniam condições necessárias para o
provimento das demandas sociais de um país que imerso num conturbado processo de
transição política (Van Der Veer, 2007, p. 23).
Para Vigotski, o decurso da efervescência política no início do século XX foi também um
período de grande contato com a cena cultural soviética. Foi contemporâneo de vários
autores que deram importantes contribuições à literatura mundial, dentre eles Babel,
Gorky, Belyj, Blok, Esenin, dentre outros dignos de nota. Na música eram destaque as
composições de Prokofiev, Shostakovich, Stravinsky, etc. Nas artes plásticas Kandinsky e
Malevich eram exemplos da vanguarda russa. Teve também a oportunidade de se inserir
ativamente em movimentos artísticos ao procurar levar para Gomel as melhores
companhias teatrais em atividade no Rússia. (Van Der Veer, 2007). Esta trajetória
perpassada pelas artes foi percorrida antes da sua inserção formal nos meandros das
discussões psicológicas. Tudo indica que a atuação de Vigotski num ambiente cultural
multifacetado foi decisiva para a formação do seu pensamento crítico (Van Der Veer,
2007). A gradual transição de interesses que levaram Vigotski a contemplar também os
debates críticos da psicologia parece ter consistido num movimento pessoal que visava
dar respostas às demandas sociais prementes de uma sociedade que almejava um novo
status na comunidade mundial.
À luz destes elementos biográficos de Lev Vigotski é possível hipotetizar que a sua
meteórica passagem pela história da psicologia também componha o complexo conjunto
de fatores responsáveis pelo crescente interesse que este autor permanece despertando
nos dias atuais (Blanck, 2003). Tal fato implica em pelo menos duas consequências
importantes: a primeira se refere a um aumento real dos estudos acerca das proposições
histórico-culturais no Brasil, a segunda remete ao fato de que nem sempre o grande
alcance acadêmico ou popular de uma obra proporciona avanços na compreensão das
suas proposições (Freitas, 2004). Exemplos de incorreções são notórios e numerosos na
historiografia geral e, inclusive, no próprio âmbito científico.
O caráter ahistórico e fragmentário, presente nas análises sugeridas pelas principais
correntes psicológicas do seu tempo, foi aspecto destacado e criticado por Vigotski ao
longo da sua obra. Em O significado histórico da crise da psicologia (Vigotski 1927/1991)
o autor opina acerca das tentativas até então existentes de estabelecimento de uma
psicologia geral.
Estes destinos tão semelhantes como quatro gotas da
mesma chuva, conduzem as idéias por um mesmo
caminho. (...) Cada uma destas idéias é, no seu
respectivo lugar, extraordinariamente rica quanto ao
seu conteúdo, é plena em significado, sentido e valor,
sendo frutífera. Mas quando as idéias se elevam ao
patamar das leis universais todas passam a ter o
mesmo valor, são absolutamente iguais entre si (...); a
individualidade de Stern é para Bechterew um
complexo de reflexos, para Wertheimer uma Gestalt e
para Freud sexualidade. (p. 276, Tradução do autor.)
sobre o seu interesse pelas artes, sabe-se que Vigotski escreveu vários roteiros teatrais e
mantinha estreito contato com atores, diretores e outros membros da cena artística de
Gomel. Inclusive, como observaram Van der Veer e Valsiner (2001), as primeiras
análises de cunho psicológico do autor surgem entre os anos de 1922 e 1925,
demonstrando que sua inserção nas questões da psicologia se deu a partir do seu
trânsito inicial no campo das artes. O emblema do cruzamento dos interesses artísticos e
psicológicos é o livro Psicologia da Arte de 1926, no qual Vigotski retoma uma análise
literária de Hamlet, que fora um dos seus primeiros trabalhos redigido em 1916. Para a
presente análise destaca-se o fato de que os trabalhos de 1916 e 1924, em conjunto com
a intensa atividade social de Vigotski no período, sugerem que sua figura já alcançara
notável projeção social, em contraste com as narrativas históricas que apontam a
palestra proferida no Segundo Congresso Neuropsicológico em Petrogrado como a
principal responsável pela sua inserção no âmbito acadêmico moscovita.
Somente em publicações recentes há uma preocupação maior com a contextualização
histórica da produção de Vigotski, relacionando-a com aspectos sociais e científicos
vigentes na Rússia durante a virada para o século XX (Van Der Veer, 2007). Diante
destas constatações pode-se concluir que ainda se fazem necessárias investigações das
condições históricas nas quais Vigotski produziu sua Psicologia Histórico-cultural, no
intuito de clarificar aspectos relativos à construção das suas proposições entremeio aos
percalços da trajetória pessoal do autor. Parafraseando o professor Pavel Blonsky,
Vigotski escreveu que a psicologia contemporânea pode ser compreendida somente como
a história dessa psicologia (Vigotski, 1998b, p. 86). Tomando-se esta afirmação como um
postulado, entende-se que o mesmo critério deve ser aplicado à sua proposta de
psicologia. Se ainda tomar-se como referência que “A história não é imparcial; é
altamente e inevitavelmente seletiva” (Wertheimer, 1976, p. 05) e que é por isso que
“Não existe nada que seja ’a’ história de coisa alguma” (Idem, p. 07) é necessário
cautela na delimitação das variáveis abordadas num estudo que pretenda lidar com
dados históricos para que se minimizem distorções descritivas que um olhar seletivo
possa trazer.
Em muitas fontes presentes na literatura sempre se encontram histórias escritas de
acordo com as necessidades ideológicas do tempo em que são concebidas. É a
consciência da ocorrência do fenômeno da apropriação interpretativa sobre o documental
disponível que conota cautela às análises historiográficas. Michel Foucault adverte sobre
a natureza do documental histórico.
O documento não é o feliz instrumento de uma história
que seria em si mesma e de pleno direito, memória; a
história é para uma sociedade, uma certa maneira de
dar status e elaboração à massa documental de que ela
não se separa. (1995, p. 7)
Portanto, é importante levar em conta as determinantes das divergências constatadas
em diversas versões consultadas ao longo de um trabalho investigativo, com o objetivo
de que se construam considerações que correspondam em maior medida aos fatos
históricos relacionados à trajetória de Vigotski.
O recurso à história geral e à história da ciência devem ser frequentes em explorações
científicas, tendo em vista a minimização de distorções interpretativas inevitáveis. A obra
de Vigotski recomenda este tipo de abordagem para problemáticas científicas em geral
(ver Vygotsky & Luria, 1996). A emergência da Teoria Histórico-Cultural teve como uma
de suas bases e assumiu como aspecto distintivo o pensamento histórico com suas
vicissitudes (Sirgado, 2000). Esta característica marcante é um dos temas centrais do
texto Manuscrito de 1929, redigido por Vigotski e com tradução publicada no Brasil no
ano 2000.
A palavra história (psicologia histórica) para mim
significa duas coisas: 1) abordagem geral das coisas –
neste sentido qualquer coisa tem sua história, neste
sentido Marx: uma ciência a história; (...) ciências
naturais = história da natureza, história natural; 2)
Memorandum 18, abril/2010
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a18/socigo01.pdf
Souza Jr., E.J.; Cirino, S.D. e Gomes, M.F.C. (2010). A construção do legado de Lev Vigotski: a123
necessidade de discussões históricas. Memorandum, 18, 118-129. Retirado em / / ,
da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a18/socigo01.pdf
A psicologia histórico-cultural
Desde os momentos iniciais da sua vida Vigotski foi um homem ocupado pelas questões
da educação. Relata-se que aos quinze anos de idade ele era conhecido como “o pequeno
professor” devido à sua erudição e perspicácia pedagógica. Esta vocação didática
permaneceria presente em toda a sua obra posterior (Blanck, 1996). “Vigotski
considerava a educação não apenas central para o desenvolvimento cognitivo, mas a
quintessência da atividade cultural” (Moll, 1996, p. 3). Do ponto de vista do seu sistema
de psicologia, a organização social do processo instrucional é o caminho a ser trilhado
por todo educador, seja ele um professor ou qualquer pessoa do convívio infantil, pois é
a partir das situações sociais que se sedimentam todas as atividades psicológicas
superiores (Vigotski, 1989). Nesta perspectiva, o pensamento de Vigotski se mostra em
diálogo com a filosofia de Engels, uma vez que ele entendia que a formação dos
processos psicológicos requer o uso de um instrumental simbólico que se interpõe entre
o indivíduo e o meio. Este fenômeno foi denominado mediação semiótica na Psicologia
Histórico-cultural. A sofisticação das relações mediadas física e, principalmente,
simbolicamente, dependem do processo educacional experienciado pelo sujeito da
cultura. Vigotski salientou que o desenvolvimento dos processos cognitivos se delineia no
cerne das relações que a criança estabelece com o seu meio cultural (Vigotski, 1998a)
Neste sentido, o conceito de zona de desenvolvimento proximal2 é uma síntese da
relação de dependência existente entre o desenvolvimento psicológico e os elementos
sócio-culturais presentes no entorno individual. Tais recursos incluem o convívio social
geral e a relação didática planejada que a criança mantém com o professor. A partir
deste desenho fundamental Vigotski desenvolveu trabalhos aplicados no campo
educacional, cujos exemplos são os vários artigos da área da pedologia e o livro
Psicologia Pedagógica.
Sobre o valor contemporâneo do trabalho de Vigotski constata-se a influência do seu
pensamento na área da educação em âmbito mundial. O elevado volume de publicações
científicas destinadas ao exercício docente é uma evidência marcante desta importância
(Freitas, 2004). A aplicação da produção histórico-cultural se faz presente em campos de
aplicação que vão desde a formação docente e a educação especial até o apoio a
adolescentes em situação de risco social, dentre outros (Peres, 2004; Sebastiani, 2004).
A diversidade de aplicações das proposições histórico-culturais e o considerável volume
de referências e publicações brasileiras sobre o autor são alguns dos indicadores que
competem para sustentar propostas de exploração de aspectos fundamentais da obra de
Referências
Aires, J. M. Q. (2006). A abordagem sócio-histórica na psicoterapia com adultos.
Psicologia para America Latina, 5. Retirado em 12/03/2009, da World Wide Web
http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-
350X2006000100009&lng=es&nrm=
Van Der Veer, R. V. D. & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: uma síntese (C. C. Bart, Trad.).
São Paulo: Loyola. (Original publicado em 1991).
Wertheimer, M. (1976). Pequena história da psicologia (L. L. Oliveira, Trad.). São Paulo:
Companhia Editora Nacional. (Original publicado em 1970)
Zanella, A. V.; Reis, A. C.; Titon, A. P.; Urnau, L. C. & Dassoler, T. R. (2007). Questões
de método em textos de Vigotski: Contribuições à pesquisa em psicologia.
Psicologia & sociedade, 19(2), 25-33.
Notas
1) Embora praticamente não exista produção conhecida neste intervalo, o fato de
Vigotski publicar quatro resenhas literárias em 1916 e pelo menos nove em 1924, fazem
supor que parte do que foi produzido no período ainda é desconhecida. Supõe-se que
questões políticas como a relação de Vigotski com não-bolcheviques, dada a presença de
publicações dele em periódicos judaicos, além da possibilidade de perdas documentais
causadas pelos conflitos armados da guerra civil e da ocupação alemã tenham dificultado
o acesso aos manuscritos existentes (Van Der Veer & Valsiner, 2001).
2) Para Bezerra (1999) o termo proximal não é a melhor tradução para blijáichee, a
palavra utilizada nos originais por Vigotski. O termo mais condizente seria zona de
desenvolvimento imediato. Segundo Bezerra a capacidade de resolver problemas que
necessitariam das ajudas do professor ou de outras crianças definem o termo e é a
medida dinâmica do desenvolvimento intelectual e da aprendizagem. Duarte (2004)
aponta que a tradução de Bezerra confunde o conceito de zona de desenvolvimento
proximal com o que Vigotski chamou nível de desenvolvimento atual. Para Duarte “a
zona de desenvolvimento próximo é constituída por aquilo que a criança (...) não faz
sozinha, mas pode realizar com a ajuda de outros, inclusive e principalmente do
professor.” (Duarte, 2004, prefácio à segunda edição) Vygotsky (1989, p. 97) definiu o
conceito como “a distância entre o nível de desenvolvimento que se costuma determinar
através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial,
determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou de
companheiros mais capazes.”