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Resumo: A autonomia moral foi, desde os primórdios do pensamento ocidental, entendida como expo-
ente da maturidade humana. No contexto da tradição cognitivo-desenvolvimental, a construção da autonomia
é concebida, predominantemente, como um processo de separação-individuação. A teoria do desenvolvimen-
to do ego de Jane Loevinger, combinando a abordagem cognitivo-desenvolvimental com a abordagem psica-
nalítica, propõe o entendimento da autonomia moral como resultado de uma dialética de separação-inclusão,
favorecendo uma compreensão mais adequada deste fenômeno, enquanto manifestação de uma maturidade
socioafetiva.
Abstract: Since the beginnings of occidental reflection, moral autonomy was considered as a sign of
human maturity. According to the cognitive-developmental tradition, the construction of moral autonomy is
mainly a process of separation- individuation. The ego developmental theory of Jane Loevinger, combining
the cognitive developmental and the psychoanalytic approaches, propose an understanding of moral autonomy
as the result of a separation-inclusion movement. Therefore a more adequate comprehension of this phenom-
enon emerges, associated to a frame of socio-affective maturity.
A reflexão sobre a autonomia foi uma constan- Em contexto psicológico, a autonomia pode
te ao longo do pensamento ocidental. Considerou-se ser entendida na acepção emocional, comportamental
que era a expressão privilegiada da humanidade do e moral. Embora tendo em conta a interrelação entre
homem e a consagração da sua realidade estas três dimensões da autonomia, no presente texto
constitutivamente moral. A moralidade é uma neces- debruçar-nos-emos sobre a autonomia moral. Nesta
sidade no homem, exigida pelas suas próprias estrutu- perspectiva, entendemos por ser autônomo a capaci-
ras biopsicológicas e a autonomia moral é o resultado dade de estabelecer preferências e prioridades e um
tornado possível por esta hiperformalização do ser dar-se normas, com base na construção de uma pers-
humano. Enquanto expoente do desenvolvimento pes- pectiva própria. Na idéia de indivíduo autônomo,
soal, a autonomia foi, desde sempre, entendida como como ser que se singulariza, radica a idéia da exis-
estando associada a um quadro de maturidade global. tência como projeto único, cuja particularidade é
confirmada no reconhecimento e respeito pelas ou-
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tras existências como projetos únicos e singulares.
Artigo recebido para publicação e m 21/11/02; aceito e m 04/02/03.
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Considera-se, pois, que a construção da autonomia
Endereço para correspondência: Maria Luísa Branco, Departa-
mento de Psicologia e Educação, Universidade da Beira Interior,
de cada um só pode ser verdadeiramente levada a
P ó l o IV, Estrada d o Sineiro, s/n, 6 2 0 0 , Covilhã, Portugal, E- cabo num contexto facilitador da autonomia de to-
mail: lbranco@ubi.pt dos.
6 Maria Luísa Branco
No campo da psicologia, o conceito de auto- heteronomia para a autonomia. A heteronomia repre-
nomia emerge da consideração do fenômeno do de- senta, no plano moral, o paralelo do egocentrismo
senvolvimento. O estudo das mudanças de compor- intelectual primitivo, no qual radica. A impossibili-
tamento, nos seus mais variados aspectos (perceptivo, dade de compreender as regras e os valores morais
intelectual, afetivo, moral, social, etc) ocorridas ao no sentido dos adultos, conduz a criança, nos estádi-
longo do tempo configura um domínio específico que os sensório-motor e pré-operatório, a equacionar
é o da a psicologia do desenvolvimento. No presente aquelas como sagradas e absolutas. A bondade de
artigo analisaremos a construção da autonomia mo- um comportamento radica na submissão às regras
ral, no âmbito da psicologia do desenvolvimento, à estabelecidas por uma autoridade adulta exterior e
luz dos dados da tradição cognitivo- no fato de não acarretar uma punição da mesma. O
desenvolvimental, salientando a contribuição da te- castigo e a sua ausência são os critérios que permi-
oria do desenvolvimento do ego de. Jane Loevinger tem distinguir, nesta fase, o bom e o mau. Estamos
para a compreensão daquele fenômeno. aqui no nível da subjetividade mais primitiva que não
se interiorizou. A confusão entre o subjetivo e o
A Teoria de Jean Piaget: Heteronomia e Autono- objetivo, característica do realismo conceptual pró-
mia Morais prio dos estágios cognitivos menos elevados, prolon-
g a t e no realismo moral (as regras e os valores são
A tradição cognitivo-desenvolvimental tem concebidos como entidades absolutas, que emanam
origem na obra de Jean Piaget. O pressuposto básico de uma autoridade adulta aos quais é necessário obe-
desta corrente psicológica é o de que a construção decer incondicionalmente). Central no desenvolvi-
das estruturas mentais resulta da interação entre ten- mento da autonomia moral é, então, o fenômeno da
dências estruturais próprias do sujeito e a estrutura cooperação entre pares, coincidente com o desenvol-
do mundo exterior. Nesta interação radicam os está- vimento das operações concretas. O sujeito começa
gios cognitivos, que não são mais do que as transfor- a ser capaz de perspectivar as situações segundo ou-
mações progressivas que aquelas estruturas sofrem tros pontos de vista, o que corresponde ao declínio
mediante assimilações e acomodações sucessivas, do egocentrismo intelectual. Esta cooperação acar-
com vista à manutenção do equilíbrio psicológico reta, assim, o fenômeno da reciprocidade. A criança
(Piaget, 1975). Os estágios cognitivos representam, interioriza as regras morais, compreendendo a sua
como tal, diferentes formas de pensamento, forman- necessidade e apercebendo-se progressivamente da
do entre si uma seqüência invariável no desenvolvi- sua relatividade (modificabilidade segundo o contex-
mento individual. A cada estágio há subjacente uma to). O critério de bondade de uma ação desloca-se
organização própria do pensamento que se manifes- das suas conseqüências materiais (objetividade) para
ta em todas as tarefas com as quais o sujeito é con- a intenção que lhe preside (subjetividade).
frontado, evidenciando, pois, uma tendência estrutu- O respeito mútuo sucede-se, assim, ao respei-
ral. A teoria cognitivo-desenvolvimental salienta a to unilateral. A consideração da pura igualdade é subs-
importância do componente cognitivo em todos os tituída pela consciência de uma forma superior de
comportamentos e suas mudanças seqüenciais. igualdade e de reciprocidade, traduzida no conceito
Tendo embora concentrado os seus esforços de equidade (relação de reciprocidade que leva em
na compreensão do desenvolvimento cognitivo, conta a situação específica de cada indivíduo, exi-
Piaget (1932) debruçou-se igualmente sobre o desen- gindo como condição necessária o alcance das ope-
volvimento dos conceitos morais e sociais. Segundo rações formais). A experiência da igualdade e o exer-
este autor, o pensamento e os sentimentos desenvol- cício da cooperação são, então, os fatores essenciais
vem-se de forma paralela, constituindo o desenvol- que permitem o acesso à autonomia.
vimento cognitivo como uma condicionante da for- O movimento de descentralização, conducente
ma de sentir e do juízo moral. à autonomia, eqüivale à fundação da personalidade,
Tal como o desenvolvimento da inteligência, que pressupõe a consideração e subordinação a um
o desenvolvimento do juízo moral processa-se da elemento ideal, apropriado pelo próprio indivíduo,
A Construção da Autonomia Moral 7
fundamento do respeito mútuo e da cooperação. É im- feriores. Cada estágio consiste, assim, num processo
portante realçar que, segundo Piaget, não é possível falar ativo de organização do mundo, correspondendo a uma
em estágios morais, dado que uma criança predominan- totalidade estruturada. Isto significa que, quando con-
temente autônoma pode evidenciar aspectos heterônomos frontados com vários aspectos do juízo moral, os su-
e vice-versa, daí a sua preferência pelo termo fases. jeitos evidenciam sempre uma mesma lógica, que é a
do respectivo estágio em que se situam. Estes estágios
A Teoria de Lawrence Kohlberg : O Caracter
são universais e definitivos; verificam-se em todas as
Estrutural do Desenvolvimento Moral
culturas e sucedem-se segundo uma seqüência invari-
As investigações de Lawrence Kohlberg vêm ável. Uma vez atingido um estágio superior não há
no prolongamento da obra de Piaget, consistindo na retrocesso. A progressão nos estágios eqüivale a uma
aplicação do quadro conceptual definido por este autor marcha para o equilíbrio.
ao desenvolvimento moral. Kohlberg considera que é
possível detectar, na área do desenvolvimento da per- Os estágios de desenvolvimento moral e a constru-
sonalidade social, a existência de estágios ou mudanças ção da autonomia moral
estruturais, que acompanham os estágios cognitivos. Os O raciocínio moral é essencialmente um pro-
conceitos de conflito, descentração e equilibração são cesso de tomada de perspectiva, assumindo, em cada
retomados para explicar a influência do meio social estágio, uma nova estrutura lógica paralela à dos es-
sobre o desenvolvimento moral (Kohlberg,1982). tágios de Piaget e que é uma estrutura de justiça, pro-
Kohlberg definiu seis estágios do desenvolvi- gressivamente mais compreensiva, diferenciada e
mento moral, usando como metodologia a aplicação equilibrada (Kohlberg, 1981). Os estágios de desen-
de dilemas morais hipotéticos, solicitando uma res- volvimento moral traduzem, pois, formas cada vez
posta livre. Cada estágio representa uma definição pró- mais elaboradas e racionais de justificar as decisões
pria dos conceitos morais básicos, sendo possível es- e de solucionar os conflitos.
tabelecer entre eles uma seqüência hierárquica de pro- Kolhberg considera três níveis gerais de desen-
gressiva diferenciação e integração. Os tipos superio- volvimento moral, cada um dos quais subdividido em
res de pensamento moral integram e substituem os in- dois estágios. O Quadro 1 traz um resumo dos estágios.
NÍVEL P R É - C O N V E N C I O N A L
Estágio I
Obedecer, evitar a punição (ou os Superioridade dos pais, do adulto, ou Egocentrismo. O ponto de vista do
danos físicos e materiais). daqueles que castigam. outro não é considerado.
Estágio 2
Obedecer às regras que servem o Porque cada um segue o seu próprio Embora os pontos de vista possam
interesse próprio. interesse. ser diferentes, o ponto de vista
Nas partilhas é ;justo o que é igual. próprio continua a ter a primazia.
NÍVEL C O N V E N C I O N A L
Estágio 3
Fazer o que os outros (em particular Porque é necessário colocar-se no O indivíduo tenta colocar-se no lugar
os mais próximos) esperam. Ser bom, lugar dos outros. É necessário manter dos outros, mas sem considerar um
demonstrar interesse pelos outros, os comportamentos socialmente sistema de perspectivas geral.
respeitá-los, confiar neles, ser leal. aprovados. Tomada de consciência das intenções
dos outros, dos acordos e dos
Estágio 4 . desacordos.
Cumprir os seus deveres e seguir as
leis, mesmo quando estas entram em Porque é necessário manter as Os indivíduos são considerados em
conflito com as regras sociais. instituições e evitar os desequilíbrios função da posição que ocupam na
que adviriam se "toda a gente fizesse sociedade.
assim". Não há conflito lei-moral.
8 Maria Luísa Branco
NÍVEL P Ó S - C O N V E N C I O N A L
Estágio 5
Distinção entre valores individuais e Porque temos deveres decorrentes de Visão igualitária (igualdade de
direitos elementares, tais como a vida um contrato social que visa a oportunidades). Lei e moral podem
e a liberdade. reaüzação do bem para o maior entrar em conflito.
número.
Estágio 6
A igualdade e o respeito pela Porque os princípios morais são Os indivíduos são fins em si e devem
dignidade da vida humana são os universais e há que se comprometer ser considerados como tais.
princípios morais universais. na sua defesa.
Suscitam uma adesão livre.
Fonte: Moessinger (1989)
Segundo este autor, os conflitos de valores desenvolvimento, são experienciadas pelo próprio
podem ser racionalmente solucionáveis, dado que é sujeito (Kegan, 1982).
possível tender para um conjunto de princípios éti- A consciência das potencialidades e das limi-
cos universais. O conflito de valores é apenas uma tações da teoria de Piaget impeliu o diálogo com ou-
etapa do diálogo que visa atingi-lo com um acordo tras tradições psicológicas, nomeadamente com a
universal, no nível de uma generalidade superior (pelo psicanalítica. O aprofundamento da cognição social,
reconhecimento de princípios éticos universais). As- levado a cabo pelas teorias neopiagetianas, consti-
sim, a autonomia moral é alcançada nos dois últimos tuiu o elo de ligação que faltava entre estes dois
estágios de desenvolvimento moral, traduzindo-se paradigmas dominantes do desenvolvimento, facili-
numa racionalização de ideais, fruto da interação do tando a apropriação do conceito de ego pela aproxi-
indivíduo com o meio social. mação estrutural.
A importância dos vários grupos sociais (en- Neste contexto, há que fazer referência à teo-
tre os quais a escola) é salientada na criação de opor- ria de Robert Selman, que evidencia a base estrutu-
tunidades de descentralização social, que permitin- ral do conhecimento social da criança, afirmando uma
do aos indivíduos a apreciação de outras perspecti- sucessão de estágios de cognição social, correspon-
vas e o colocar-se no papel do outro, favorecem o dentes a níveis de perspectiva social. Segundo Selman
desenvolvimento moral. Assim como o egocentrismo (1980), "a cognição social não pode ser reduzida,
intelectual e moral da criança caracteriza a moralidade deforma teórica ou prática, à mera aplicação sim-
autônoma, também o estar voltado para a perspecti- ples das competências cognitivas (estrutura) à esfe-
va do outro é inseparável da autonomia. Através dela, ra social (conteúdo)" (p.14). Contudo, o desenvol-
o pensamento realiza a sua natureza relacionai. vimento da cognição social implica o desenvolvimen-
to cognitivo.
A Superação da Tradição Cognitivo- O desenvolvimento da cognição social forne-
Desenvolvimental: As Teorias do Desenvolvimento ce a base para o desenvolvimento social e para o com-
do Ego portamento da pessoa. Para Selman (1980), "a cri-
ança, em sentido geral, estrutura e compreende o
A perspectiva cognitivo-desenvolvimental, na seu ambiente social envolvente através da
sua formulação piagetiana original, caracterizava-se descentração social, e o raciocínio moral depende,
por ser uma aproximação exterior descritiva e com em parte, da sua perspectiva social" (p.36).
caráter epistemológico. Excluía o ponto de vista No quadro das teorias neopiagetianas, que re-
participativo, isto é, a forma como as diversas clamam da perspectiva estrutural do desenvolvimen-
estruturações da realidade, estabelecidas ao longo do to, a relação do eu com o não-eu (físico e social) oca-
A Construção da Autonomia Moral 9
siona uma reestruturação dialética da própria unida- estruturas (Noam, 1993). Cada estágio de desenvol-
de originária de sentido com a qual o sujeito se iden- vimento evidencia uma estrutura básica ou um senti-
tifica (o próprio). Emerge desta compreensão o con- do central. Na medida em que os estágios podem ser
ceito de desenvolvimento do ego. A consideração encarados como pontos de fixação potencial, cada
deste conceito, e do seu desenvolvimento ao longo estágio define, assim, uma tipologia ou
de um processo, corresponde à necessidade de com- caracteriologia, isto é, tipos de crianças e de adultos
preensão da pessoa como um todo, ou seja, traduz Esta concepção é necessariamente uma abstração,
uma compreensão holística que abarca as dimensões dado não ser diretamente observável, proporcionan-
já consideradas do desenvolvimento (Blasi, 1993; do um quadro de referência que permite integrar ques-
Hauser, 1993). tões várias relacionadas com o desenvolvimento.
Hauser, S. (1993). Loevinger's model and measure Selman, R. (1980). The growth of interpersonal un-
of ego development: A critical review II. derstanding. São Diego: Academic Press Inc.
Psychological Inquiry, 4, 23-30. Thorne, A. (1993). On contextualizing Loevinger's
Josselson, R. (1988). The embedded self: I and Thou stages on ego development. Psychilogical In-
revisited. Em D.K. Lapsley e EC. Power (Orgs.), quiry, 4,53-55.
Self ego, and identity (pp. 91-106). Nova Iorque:
Springer-Verlag. Obs: Este artigo retoma parcialmen-
Kegan, R. (1982). The evolving self. Cambridge: te o capítulo de revisão da literatura da dis-
Harvard University Press. sertação de mestrado 'O diplomado do en-
sino secundário e a autonomia de valores
Kohlberg, L. (1981). Essays on moral development, num quadro de maturidade global'. Lisboa:
Vol. 1. The philosophy of moral development. São UCP(1996)
Francisco: Harper & Row.
Kohlberg, L. (1982). The child as a moral philoso-
pher. Em J.K. Gardner (Org.), Readings in de-