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+ O DISCERNIMENTO LITERARIO A literatura com 0 seu imenso patrimédnio de historias, imagens, sons, personagens... serve para qué?* Mais ainda: serve-me para qué? A particula pronominal «me» domina, de facto, toda a pergunta ¢ suporta o seu peso. Sem aquele «me», a interrogativa seria realmente incompleta ou, pelo menos, genérica e abstara, Sem diivida, muitos, ao ouvirem falar de um «servigo» da literatura, pensam logo numa slite- ratura de servigo» ou, pior ainda, numa literatura «ao ser- ‘ov de qualquer coisa, ¢, portanto, servil. Mas aqui fala-se de outra coisa, tem-se em mente algo de muito diferente. SOKA. Son, ach Cate 2002 TegeriasseChares Du Bow Que arate digs deste nome, 4 dics : a cout rd eran eamarn-Raas HACE a Cle quem dis eta «ue sempre tose ut alr pra tim?> (C.D Bos, Clee eee ee er eee O murs ne snares te Para compreendé-lo, basta citar, entre as muiras possive tiltima poesia do escritor americano Raymond Carver: E-obtiveste 0 que querias desta vida, apesar de tudo? Sim, E que € que querias? nadlo, sentir-me Poder dizer que sou a amado sobre a Terra (Uittinne Fragunento, Esta breve e simplicissima poesia leva-nos a intuir como a Titeratura s6 «nos serves se, de um ou de outro modo, tiver a.ver com aquilo que verdadeiramente queremos da vida, se sa existéncia con- entrar numa relagio Forte ¢ real com a nos creta, com as suas tenses essenciais, com os seus descjos e os seus significados A relagao entre a vida e a literatura foi, de facto, sempre inquieta e complexa, Poderia escrever-se uma verdadeita € genuina histéria desta relagio que foi ora afirmada ora negada, ora desejada ora recusada, Jean C Jacques Maritai ycteau escreveu a A lireratuta € impossivel, € necessiirio sair dela, © Centar eximir-se & fiteracur: porque 6 @ amor et fé nos perm fem stir de nds préprios May it para onde? Provavelmente para sair do narcisismo da «interioridade» autorreferencial. Pier Vittorio Tondelli cscritor falecido, com Sida, em 1991 — apenas com 36 anos escreveu entre os seus titimos apontamentos JC Maes, Bie aa fide Hort Hess PONS. pS ODNCERLINNTO TIT ARG A fiteratura nao salva, nunea, |...] A tinica coisa que salva € 0 amor, 2 fe. reincidéncia da graga Sao palavras que recordam dramaticamente também os Liltimos versos de Clemente Rebora, poeta convertido e, ulteriormente, sacerdote ¢ religioso: Longe de mimo subterfigio da arte panvevitara via estreita que silva! A arte seria, pois, uma escapatéria, Seria uma forma tré- gica de consolagio, que confina com a percegio leopard da sinfinica inanidade do rodor. Que fazer de palavras «es cassas, ¢ talvez sem sobs, como as definia Sandro Penna, ou dle «qualquer silaba rortuosa e seca como um ramo», segun- jana do o célebre verso de Montale? O homem faz sempre a experiénci de, de modo distraido, pouco arento ao assombro c as per- guntas: vive mergulhado no concreto ¢ no horizonte das coisas manipuliveis. ede ia de viver, mas, amiti ‘em bastantes coisas para fazer ia, para uma vida algum interesse. © sservigo» da obra liters humana, joga-se sobretudo a este nivel. Ela, de facto, pro- pie-se como «uma espécie de instrumento ético», que per- mite ao leitor wdesenvolver» 0 que, talvez sem 0 livro, no observaria dentro de si. Tal & por exemplo, a convicgio radical do eseritor francés Marcel Proust. O papel da leitura liceriria & fotogrifico: «Os homens, muitas vezes, nao vem A, Seu Santee dota soséVitese di ates Pir Vii acs Be 202 MPa sts AM de temp pede, Nol VS A nape san, Mil, Mo » CO nanisH DA ITGINACAN a sua vida e, por isso, ela fica atulhada de muitas chapas fo- cognificas, que permanecem intiteis porque a inteligéncia nao as des A literatura é como um laboratério fotogrifico em que é possivel elaborar as ima- envolveu ¢ “revelou”» gens da vida para que desvelem os seus contornos € 08 seus matizes. Fis, pois, para que «serve» a literatura: para desen- volver ¢ revelar as imagens da vida, pata nos interrogarmos sobre o seu significado ¢ compreendé-lo. Serve, pois, em, poucas palavras, para fazer, de modo verdadeiro ¢ eficaz, experiencia da vida. Outra bela imagem para explicitar o papel da literatura é a edigestivay. O seu modelo ¢ a ruminatio da vaca leiteira, como afirmaram, entre outros, os monges Guillaume de Saint-Thierry ® (século Xl) e © mistico jesuita J.-J. Surin (século xVn). Este diltimo, por seu tusno, fala de westémago da alma». Mi hel de Certeau, a0 recordar as suas reflexdes, imaginou uma verdadeita e genuina «Fisiologia da leitura di- gestivan", Pode dizer-se que a leitura é um «estomago para digerir a realidade» (Pier Vittorio Tondelli), A fiteracura & a linguagem capaz de eransformar em si o mundo ¢ as expe riéncias ®. Trata-se de uma forma de vassimilagaon. Assim: a literacura serve para dizer a nossa presenga no mundo, para a «dligerir» e assimilar, para captar 0 que vai além da su- Wil ype OR ibis get ot sr sin PIS vol. Sah Moa Const a pala anion Fine pr a pot dd dings Sele SUF VEE. Honor Obst IHN pp 39. CEPEG REAR Past fie tobgae a Canlaon NBL SSE, pp RL nape ODN ERNIMENTEO LH ERAKIO perficie do vivido. Serve, pois, para interpreté-la, para d cernir nela significados e tenses fundamentais. Exponhamos 0 caso de uma experiéncia concrera, O poeta siciliano Bartolo Cattafi escreveu acerca de si: A historia dos meus versos s6 pode coincidir com @ minha histéria humana, [...] A do poeta é na minha opinido, uma pura ¢ simples condigio huma a, a poesia pertence & nossa mais intima biologia, condiciona ¢ desenvolve 0 nosso destino, € um modo como qualquer outro de sermos humanos. |.) Viagem, descoberta, (J ten- cionada ¢ empreendida decifragio do mundo, [...] cruento ato Poesia ¢, pois, para mi n, aventul esistencial ™ Eseas palavras revelam um poeta que niio encara a pala- vra poética como produto de experimentacao estilistica ou aco de aferramentas de oficio», mas fruto de uma atividade que concerne ao ser humano de modo radical. Consiste ela num modo de decifiar 0 mundo e, pottanto, € ato de discer- nimento, Escrever poesias, romances, contos ¢ até fibula é em si mesmo um ato de decifragio do mundo em que se vive, Quem Ié entra em contacto com este trabalho de deci- agi; esti pessoulmente envolvido nesta tarefa © neste de- safio, Sai dai scontagiado» para viver 0 mesmo proceso, so- licitado a olhar a realidade, inclusive a pessoal, com olhos ais atentos ¢ incisivos, na busca dos simbolos, dos valores e significados. E isto pode, decerto, definir-se como um tra- balho de discernimento cultural. nr Ge S11 a purses pr Vind ll Nrowenan Saker Rom, Ri (ie asta Fa Ciesla Ca, SN2 Log 2S 28, a

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