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Por que a palavra 'descobrimento' renovou polêmica em

Portugal sobre a conquista de terras como o Brasil


Mariana Alvim - @marianaalvim
Da BBC Brasil em São Paulo

12 maio 2018

GETTY IMAGES

Mapa antigo, datado de 1870, mostra a América do Sul; período de expansão marítima de
Portugal tem passado por revisão crítica

Ocorrida há séculos, a chegada dos portugueses a terras até então por eles
desconhecidas, como o Brasil, voltou às páginas dos jornais - e das redes
sociais - nos últimos dias envolta em polêmica. O debate gira em torno de uma
palavra: descoberta.

Ela dá nome à série de conquistas territoriais pelos portugueses a partir do


século 15, fatos mais conhecidos no Brasil como "descobrimentos". E, em um
projeto eleitoral do hoje presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando
Medina, estaria no nome de um novo equipamento cultural a ser criado na
capital portuguesa, o "Museu da Descoberta".

A proposta foi apresentada por Medina ainda em 2017, como parte do


programa político com o qual ele concorreu ao cargo e venceu. O texto
enumerava como uma das medidas "criar o Museu da Descoberta como
estrutura polinucleada na cidade que inclua alguns espaços/museus já
existentes e outros a criar de novo e que promova a reflexão sobre aquele
período histórico nas suas múltiplas abordagens, de natureza econômica,
científica, cultural nos seus aspetos mais e menos positivos, incluindo um
núcleo dedicado à temática da escravatura".

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escravidão

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mundo

Mas, em abril, o jornal português Expresso publicou uma carta com as


assinaturas de mais de cem pesquisadores de diferentes países, incluindo o
Brasil, questionando o nome do museu planejado. O principal argumento é o de
que uma instituição denominada desta forma representaria uma visão
eurocêntrica deste período histórico.

"De início, estamos nos contrapondo à denominação, e não ao museu em si. Ao


nomear, define-se a forma como a história será apresentada ao público. Neste
caso, falar em 'descobrimento' representa uma visão histórica eurocêntrica. As
terras conquistadas por Portugal já existiam, tinham sua própria história. Em
vez de descobertas, elas foram invadidas, por vezes destruídas e palco para
genocídios históricos, como o das populações indígenas no Brasil", afirmou em
entrevista à BBC Brasil a professora Junia Furtado, historiadora da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e signatária da carta.

Culpa e orgulho
Ainda segundo o manifesto, a escolha desse nome representaria "recorrer a
uma expressão frequentemente utilizada durante o Estado Novo (português)
para celebrar o passado histórico", algo que seria incompatível com "o Portugal
democrático".

O Estado Novo marcou o período do regime autoritário que Portugal viveu de


1933 a 1974, sob o comando na maior parte do tempo de Antônio de Oliveira
Salazar - o que faz esta fase ser conhecida também como "salazarismo".

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Monumento conhecido como 'Padrão dos Descobrimentos', em Lisboa; conquistas
portuguesas do século 15 foram exaltadas da monarquia ao salazarismo

Mas, para o historiador português João Pedro Marques, ainda que as


conquistas do país europeu naquele período tenham sido celebradas pelo
salazarismo, esta valorização vem de ainda antes.

"Isso já era algo presente no final da monarquia e na República (proclamada em


1910). Na corrida à África (período em que o continente africano foi marcado
por disputas e pela colonização por potências europeias), no final do século 19,
evocou-se muito a história dos descobrimentos e o que seria uma vocação dos
portugueses para se ligar a outros povos", diz Marques, para quem o nome do
museu proposto não é um problema e gera disputas por motivos ideológicos.

"(A polêmica) é fruto da atuação de grupos de ativistas que querem injetar esse
sentimento de culpa em Portugal", disse Marques em entrevista à BBC Brasil.
"Esse período é algo extraordinário para a alma portuguesa".

Em 2015, durante um evento, Fernando Medina falou sobre o seu projeto e


evocou o passado do país.

"No nosso país não temos muitas histórias para contar ao mundo, mas temos
uma grande história única a contar e chegou o momento de dar a conhecer",
disse, acrescentando que seu objetivo não era criar "um museu dos
Descobrimentos, hegemônico", mas sim "um elemento que contribua para
contar bem essa história".

A BBC Brasil tentou contato com Medina, mas a assessoria de imprensa da


Câmara Municipal de Lisboa (CML) afirmou que não foi tomada qualquer
decisão sobre o projeto do museu: "Quando houver alguma informação
relativamente a esta questão, ela será divulgada pela CML".

Revendo a história
Enquanto isso, o nome do museu tem sido tema frequente de debates entre
historiadores e nos veículos de imprensa. Alguns pesquisadores têm até
mesmo proposto alternativas ao nome, como "Museu da Viagem", "da
Expansão" ou da "Interculturalidade".

Para Laurentino Gomes, autor de best-sellers sobre a história do Brasil, tais


contestações fazem parte de um "revisionismo histórico" que coincide, em
Portugal, com dois processos históricos: a redemocratização, com a Revolução
dos Cravos, em 1974, e a progressiva integração do país à comunidade
europeia.

"Isso fez com que emergisse uma nova identidade portuguesa, que questiona o
seu passado e se contrapõe profundamente à chamada história oficial
propagada no período anterior, da ditadura salazarista. É sempre bom lembrar
que a história é uma ferramenta de construção de identidade", escreveu Gomes,
por e-mail, à BBC Brasil.

"O esforço de revisão histórica está, portanto, de acordo com um Portugal que
busca se identificar cada vez mais com a Comunidade Europeia e seus valores,
deixando no passado mitos e conceitos que os portugueses hoje julgam
anacrônicos. Como resultado, acho que Portugal tem se tornando um país mais
politicamente correto do que os seus vizinhos, tentando se ajustar ao discurso
que fortalece a construção dessa nova identidade".

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Segundo escritor brasileiro, Portugal vem vivendo um 'revisionismo histórico' sobre seu
passado

O escritor lembra, como outro exemplo deste revisionismo, protestos contra a


colocação de uma estátua do Padre Antônio Vieira no largo Trindade Coelho,
em Lisboa. O padre, que na homenagem aparece rodeado de três crianças
indígenas, é visto por alguns portugueses como um defensor dos povos
nativos, mas, por outros, como um representante de sua dizimação e da
perpetuação da escravidão africana.

De acordo com Gomes, essa revisão também é observada no Brasil, onde a


redemocratização tem papel fundamental.

"Há uma tentativa, sob o regime democrático, de desconstruir a narrativa da


história oficial que imperou durante os períodos de ditadura e na qual se
destacavam sempre os grandes feitos nacionais e seus heróis. Um exemplo
desse revisionismo no Brasil envolve, por exemplo, o imperador Pedro I. Durante
o regime militar, ele era celebrado como um herói marcial, como, por exemplo,
no filme Independência ou Morte , de 1972, com Tarcísio Meira e Glória
Menezes. Era um Dom Pedro que estava de acordo com os ideais e a estética
que os generais do regime militar queriam impor ao país numa época de
Milagre Brasileiro e do lema 'Brasil, Ame-o ou Deixe-o'", diz o escritor.

"Com a redemocratização, Dom Pedro virou um herói bastante desqualificado,


boêmio, mulherengo e de caráter duvidosos, como aparece no filme Carlota
Joaquina e na série Quinto dos Infernos ".

'Achamento'
Para Gomes, contestações ao uso da palavra "descobrimento" no Brasil ainda
estão restritas aos círculos acadêmicos e à militância dos partidos políticos de
esquerda, mas já se reflete nos livros didáticos.

Já a historiadora Junia Furtado diz que, na academia, tais debates remontam


aos anos 80 e 90, em que novas correntes da historiografia inglesa e francesa
influenciaram a produção brasileira. Ainda assim, segundo ela, as críticas não
se refletiram, em 2000, na celebração no Brasil dos 500 anos da chegada dos
portugueses ao país. Naquele ano, marcado por uma série de eventos sobre o
fato histórico, a palavra "descobrimento" esteve por todo canto.

Entre os pesquisadores, alguns propõem novos termos, como, por exemplo,


"achamento".

"A renovação da historiografia brasileira vem neste movimento da leitura dos


ditos 'desclassificados'. Em contraposição à memória dos grandes feitos, dos
heróis, passa-se a valorizar a história dessas populações. É pensar a história
não de fora para dentro, mas de dentro para fora".

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