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Leituras Cruzadas: O médico-objeto

IVAN MIZIARA
especial para a Folha de S.Paulo – 25/03/2003

Visão corrente entre muitos daqueles que procuram o auxílio de um médico para diminuir
seus sofrimentos é a de que a medicina, já há um bom tempo, ganhou tanto em
tecnologia quanto perdeu em humanismo. O grande desafio daqueles que se propõem a
cuidar da saúde alheia neste século 21, portanto, é conseguir conciliar a frieza de
raciocínio exigida pelos avanços tecnológicos e terapêuticos com um comportamento
mais humano, condição fundamental para uma saudável relação médico-paciente.
Reprodução

Ilustração mostra procedimento cirúrgico no início do século 20

Uma das explicações que os estudiosos da prática médica postulam para a "perda de
humanidade" na relação entre médicos e doentes é que, ao preferir viver em simbiose
com as máquinas e as mais modernas drogas, em detrimento de seu relacionamento
pessoal com os pacientes (transformados em meros objetos de estudo), o médico tende a
desvalorizar seu papel de agente ativo da cura, tornando-se, por ironia, ele também um
simples objeto.

Como toda generalização, essa é perigosa e comporta uma boa dose de erro. Mas, no
dia-a-dia, é difícil encontrar quem nunca tenha ido ao médico e tenha saído da consulta
um tanto frustrado por não ter tido tempo nem sequer de contar a história de sua moléstia
antes de receber uma enorme lista de exames por realizar e uma igualmente extensa
receita de remédios a serem adquiridos na farmácia mais próxima.

Também é comum ouvir a queixa de pacientes que deixaram o consultório mais confusos
e angustiados do que quando entraram simplesmente por não terem recebido mínimas
explicações sobre a causa de seus sofrimentos.

De sua parte, os médicos rebatem que os doentes andam reclamando demais, muitas
vezes sem razão e por puro desconhecimento dos meandros e dificuldades da ciência.
Brincadeira (de mau gosto, diga-se) captada frequentemente nos corredores hospitalares
é a afirmação de que o único especialista a não receber queixumes de seus pacientes é o
médico-legista.

O conflito, tão antigo quanto a própria medicina, tem raízes mais profundas e complexas e
não pode ser encaixotado em explicações simplistas.

As causas são várias, mas é interessante notar que, se, de um lado, o médico arroga-se
dono de todo o conhecimento e poder de cura, de outro, o paciente comporta-se de
maneira contraditória: nutre expectativas exageradas quanto à capacidade da moderna
tecnologia, ao mesmo tempo que exige de quem o atende comportamento mais
"artesanal" e "antiquado".

De tão fascinante, o sutil embate emocional entre dois indivíduos que estão em pólos
opostos, mas que dependem intimamente um do outro, pode render polêmicas acirradas,
pontos de vista dúbios, reflexões interessantes sobre o ensino da prática médica e até
bons entrechos para romances.

Neste último caso, se a obra for escrita por um dublê de médico e paciente, dotado de
talento no manuseio das palavras, tanto melhor, pois a credibilidade do texto e o prazer
do leitor estarão garantidos.

Bons exemplos dessa combinação rara são dois livros lançados recentemente: "My Own
Medicine" (ainda não disponível em português), do pneumologista americano Geoffrey
Kurland, e "Com Uma Perna Só", do neuropsicólogo britânico, hoje radicado nos Estados
Unidos, Oliver Sacks.

Diretor da divisão de pneumologia pediátrica do Hospital Infantil de Pittsburgh, Kurland


descobriu (durante exames de rotina), em 1987, aos 40 anos, um tumor em seu tórax,
posteriormente diagnosticado como um tipo raro de leucemia associado à tuberculose
pulmonar.

Repentinamente, o autor foi transportado para o limbo em que vivem os doentes com
poucas chances de sobrevivência. Sua metamorfose de profissional médico em caso
clínico é descrita de forma elegante e intensa, mas sem dramas desnecessários.

Relembrando pacientes que foram submetidos a tratamentos similares, Kurland descobre


quão humilhante, aterradora e dolorosa pode ser a doença. Submetido a duas cirurgias e
a sessões de quimioterapia, ele começa a encarar a própria profissão sob perspectivas
mais humanas.

A compaixão pelo paciente pode se apresentar de diversas formas. Como ele próprio
afirma a certa altura do livro, "eu gastava o tempo com meus pacientes e seus pais
tentando dissipar temores. Descobri que os doentes não desejam probabilidades, eles
querem certezas, por menos razoáveis que elas possam parecer".

Já Oliver Sacks, a pretexto de contar a história de um acidente, ocorrido na Noruega, em


que sofreu ruptura nos tendões do músculo da porção anterior da coxa e desarticulação
do joelho, envereda pela descrição de seu frustrante relacionamento com o famoso
professor de ortopedia que o operou em um hospital londrino.

Depois da cirurgia, com o membro inferior esquerdo engessado, Sacks torna-se vítima de
um defeito na percepção de sua imagem corporal. Preso ao leito, ele passa a ter a
impressão de que sua perna não só perdera os movimentos como deixara de existir (daí o
título do livro).

Desesperado com a situação, ao tentar relatar o que sentia aos cirurgiões que o
operaram, Sacks recebe de volta apenas descrédito e reprimendas. Ele mesmo um
médico de renome começa a sentir na pele o tratamento indiferente que muitos colegas
de profissão dispensam aos pacientes.

A partir de então, o desleixo, a arrogância e a falta de paciência com que é brindado


fazem com que reflita sobre sua própria postura profissional e perceba que também
incorrera no mesmo erro inúmeras vezes.

Autor de outro livro paradigmático sobre o comportamento médico, "Tempo de Despertar"


(transformado em filme pela diretora Penny Marshall, com Robin Williams e Robert De
Niro em atuações luminosas), Sacks aproveita o tempo de convalescença para elaborar
uma teoria neuropsicológica capaz de explicar seu problema.

Apesar de ser dono de acurada capacidade de observação, escapou-lhe um ensinamento


freudiano muito bem lembrado pelo jornalista brasileiro J.C. Ismael em outro livro recente:
"O Médico & o Paciente - Breve História de uma Relação Delicada".

Ismael enfatiza que o doente, por acreditar que a sua doença só seria possível nos
outros, passa a viver intensa inquietação existencial e, consequentemente, dolorosa
ruptura entre o ego e o corpo, fazendo com que seus sintomas se agravem ou sejam
distorcidos.

Nesse pequeno estudo, o autor, além de fazer saborosa revisão histórica das origens da
medicina, coloca os pingos nos "is" acerca da deterioração da relação médico-paciente
através dos tempos.

Para completar, realizou uma série de entrevistas com pacientes, querendo saber o que
eles esperavam receber em uma consulta médica. A conclusão foi simples: acima dos
títulos de especialização, o luxo dos consultórios etc., os doentes desejam ser
confortados, escutados, olhados e tocados pelos seus médicos. Em outras palavras,
anseiam ser tratados como indivíduos completos, e não como meros portadores de
doenças, o que já era preconizado por Hipócrates (o "pai da medicina") cerca de 400 anos
antes de Cristo.

O francês Philippe Meyer, em "A Irresponsabilidade Médica", acrescenta uma nova


variável à intrincada equação médico-paciente. Segundo o autor, nos dias de hoje "a
tecnomedicina desviou o profissional de saúde do comportamento individual de seu
paciente, de sua personalidade e alma".

Mergulhando no terreno da ficção, Meyer prevê um futuro negro para o relacionamento


médico-paciente. Em projeção futurista do que seriam o hospital e o médico do século 21,
o autor imagina uma entidade asséptica, tecnocrata e totalmente desumanizada,
controlada por "semi-robôs". Nesse misto de hotel com laboratório de exames, as
pessoas ficariam retidas "apenas o tempo estritamente necessário aos cuidados, e os
resultados da hospitalização seriam comunicados ao médico encarregado pelo paciente
por computador, servindo-se do código que garante o anonimato do doente". Nada mais
frio e desumano.
A pergunta que o autor acaba por fazer (sem fornecer uma resposta adequada, e essa é a
maior falha do livro), tendo em vista que o progresso tecnológico avança de forma
irreversível, é como introduzir "medidas de humanidade" nesse tipo de serviço e, por
conseguinte, no relacionamento dos médicos com seus pacientes.

A resposta para a questão, além da capacidade ou do talento inatos de cada profissional


para estabelecer uma comunicação sincera com o doente, parece estar nos bancos das
faculdades de medicina.

Pelo menos é essa a esperança de Ernesto Lima-Gonçalves, professor da Universidade


de São Paulo, exposta em seu livro "Médicos e Ensino da Medicina no Brasil".

Segundo o autor, a preparação do futuro médico se desenvolve no curso de graduação,


em que o aluno "precisará reconhecer e aprimorar atitudes e comportamentos que lhe
permitam relacionar-se com o doente de maneira adequada". O futuro médico deve,
principalmente, "reconhecer naquele que o procura em busca de tratamento alguém que
precisa ser ouvido e compreendido, mais do que apenas 'tratado' ".

A empreitada não é de fácil execução. Um ótimo exemplo dos percalços que um


profissional de saúde enfrenta em sua formação pode ser encontrado em "Complicações -
dilemas de um Cirurgião Diante de uma Ciência Imperfeita". Extremamente bem escrito
por Atul Gawande, médico residente de um hospital em Boston que, nas horas vagas,
costuma colaborar com artigos sobre medicina para a prestigiosa revista "The New
Yorker", o livro é um retrato fiel da rotina diária a ser enfrentada pelo futuro cirurgião, com
vários casos extraídos de seu dia-a-dia.

Com relatos muito semelhantes aos roteiros do seriado televisivo "Plantão Médico",
Gawande, inadvertidamente, acaba revelando como a deformação da relação médico-
paciente pode se iniciar nos primeiros estágios da profissão.

Um episódio do livro é emblemático. Ao tentar introduzir um cateter venoso central (tubo


colocado por meio de uma agulha que atravessa a parede torácica diretamente em um
vaso sanguíneo que chega ao coração) e falhar, o único sentimento que domina o autor é
o de vergonha por suas incapacidade e falta de habilidade, ainda mais por estar diante de
um colega mais experiente (e mais hábil). Em nenhum momento passa pela cabeça de
Gawande o sofrimento enfrentado pelo paciente ao ter seu peito perfurado diversas vezes
antes que ele, residente sem muito traquejo ainda, permitisse ao colega mais habilitado
realizar o procedimento.

Essa falta ou repressão de um sentimento básico como a compaixão pode bem estar na
origem de um futuro relacionamento médico-paciente inadequado.

Conjugar a frieza da técnica com a compaixão e a ternura pelo doente foi e será sempre a
pedra de toque da medicina. É a capacidade de realizar essa "sintonia fina" que
transmuta o médico de técnico em artista, como desejavam os gregos na Antiguidade.

Muitas vezes não é o que acontece. Infelizmente, diz Lima-Gonçalves, hoje "a prática
médica desenvolve-se por meio de uma relação sujeito-objeto, em que o médico-sujeito,
encarregado de executar a ação, dirige seu ato ao doente-objeto, sem voz e sem vez,
sem opinião e sem vontade".
Tradução: o avanço da tecnologia, a despeito de auxiliar na cura, teima em conspirar
contra o "humanismo" da medicina.

Essa situação simbiótica entre o homem e a máquina "envolve o risco de que a relação
médico-paciente se transforme em uma relação objeto-objeto, em que o médico tende a
desvalorizar sua participação e seu discernimento, submetendo-se a 'conselhos' e
'sugestões' que a máquina possa oferecer", ensina Lima-Gonçalves. Em outras palavras,
entra em cena o médico-objeto, legítimo produto do século 21.

Portanto, a questão que se impõe ao médico de hoje é se ele será capaz de aliar os
vastos conhecimentos que a velocidade estonteante da tecnologia moderna produz à
capacidade intrínseca de se relacionar com seu paciente —se poderá observá-lo como
um indivíduo completo, e não como mero portador de doença a ser tratada, à custa de
drogas e equipamentos de última geração.

Difícil é saber como ensinar esse dom. Para Lima-Gonçalves, cabe ao educador
identificar as características pessoais do futuro médico e, com elas, propor e desenvolver
outras tantas que facilitem sua relação com o paciente.

A proposta, idealmente, é perfeita. Apenas caberia uma pequena e impertinente pergunta:


se os médicos de hoje são incapazes de manter uma convivência humana com seus
doentes, quem irá ensinar aos futuros doutores essa nobre arte?

Ivan Miziara, 46, é médico, jornalista e poeta. Professor colaborador da Faculdade de


Medicina da USP, é autor de "Inventário da Luz" (BMGV Editora, 2001). Em dezembro de
2001, esteve internado no Incor e viveu o outro lado da medicina, mas foi muito bem
tratado por seus médicos.

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