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Provocação ao modernismo
André Botelho
“um tão perfeito instrumento de expressão [Ronald] pôde dar mais relevo
às ideias e mais propriedades às apreciações” (Lima, 1948, pp. 38 e 139).
Mais do que uma idiossincrasia do autor – embora, num determinado
plano, correspondesse ao seu estilo – a narrativa fluente respondia antes aos
objetivos a que ele se propunha naquele contexto intelectual. Como afirmou
Ronald de Carvalho, seu trabalho estava “destinado a vulgarizar, nos seus
delineamentos, a fisionomia da nossa literatura” (Carvalho, [1919]* 1922, p. * A data entre colchetes refere-se
à edição original da obra. Ela é
254). De fato, o livro foi utilizado como manual para o ensino de literatura
indicada na primeira vez que a
brasileira nas escolas durante pelo menos quatro décadas (cf. Martins, 1983, obra é citada. Nas demais, indica-
p. 465), uso didático que o tornou um dos primeiros e grandes sucessos edi- se somente a edição utilizada pelo
autor (N.E.).
toriais da livraria F. Briguiet (cf. Hallewell, 2005, p. 268). Assim, bovarismo à
parte, a autorrepresentação de Ronald de Carvalho ganha sentido sociológico
quando consideramos que iniciativas desse tipo vinham então ganhando cada
vez mais espaço no contexto do incipiente mercado editorial brasileiro como
parte de uma série de mudanças em curso (cf. Lajolo e Zilberman, 2009). E
textos submetidos a usos didáticos – as tais “utilidades de ginásio e curso se-
cundário” de que reclamava Mário de Andrade – constituem meios de sociali-
zação por excelência, atuando na transmissão de representações sobre o Brasil,
por meio das quais nos formamos moral, intelectual, política e esteticamente
(cf. Botelho, 2002). Antonio Candido, por exemplo, observava no prefácio,
datado de 1957, da primeira edição da Formação da Literatura Brasileira : “Li
também muito a Pequena história, de Ronald de Carvalho, pelos tempos do
ginásio, reproduzindo-a abundantemente em provas e exames, de tal modo
1. Traços, aliás, muito bem
estava impregnado de suas páginas” (Candido, [1959] 1964, p. 3). Assim, não capturados por Vicente do Rego
parece descabido ponderar que o livro tenha desempenhado também papel Monteiro no retrato que pintou
de Ronald de Carvalho em 1921.
relevante na rotinização de ideias, valores e práticas sobre a literatura brasileira Como observou precisamente
e, mais ainda, sobre o modernismo e seu lugar estratégico na nossa história e Sergio Miceli, ao apresentar “o
então jovem escritor e diplomata
vida cultural.
de paletó verde-escuro, gravata
Disponibilidade para a missão de que se investiu parece não ter faltado vermelha com alfinete e colari-
a Ronald de Carvalho. Recursos intelectuais, sociais e institucionais tam- nho alto engomado, ocupando a
pirâmide central de uma compo-
bém não1. E, articulando essas diferentes dimensões, nenhum outro fator sição compacta cujo fundo são as
parece ter sido mais importante do que a sua carreira no Ministério das lombadas em cores pastel bem de-
finidas de duas fileiras de livros”,
Relações Exteriores – interrompida tragicamente por sua morte aos 42 o pintor “buscava surpreender
anos de idade –, como pude discutir noutra oportunidade (cf. Botelho, por meio do contraste entre a ju-
ventude e a prontidão intelectual
2005). Entreposto de ideias mobilizado segundo as diferentes estratégias transmitidas pelo semblante com
de política cultural do Estado, o Itamaraty favoreceu a importação e a a muralha de livros coloridos que
pareciam povoar-lhe a cabeça e
difusão da produção intelectual estrangeira no país e vice-versa (da produ- moldar-lhe a existência” (Miceli,
ção brasileira no exterior). Esse duplo papel foi particularmente marcante 1996, p. 51).
que certo elenco de questões parecesse problemático e acabasse integrando motivações concretas e uma
possível originalidade quer em
centralmente o “contexto intelectual” do modernismo4. Tomo aqui, especial- relação à tradição particular da
mente, a ideia – não isenta de ambiguidades – de “simplicidade” como cri- qual o autor faz parte, quer em
relação aos seus contemporâneos.
tério de formação da literatura brasileira e discuto como ela (1) permite uma Isso ajuda a evitar os anacronis-
crítica ao legado cultural ibérico e, em contrapartida, uma defesa da aproxi- mos tão comuns em análises
históricas, que terminam por
mação da literatura à linguagem cotidiana; e (2) apresenta, a seu modo, uma conferir aos autores intenções ou
resposta aos constrangimentos trazidos pelas influências externas à dinâmica categorias carregadas de sentidos
bastante distantes daqueles dispo-
cultural brasileira – campo problemático central no modernismo brasileiro, níveis em sua época (cf. Skinner,
e muito depois dele. 1969, pp. 6-16).
Sílvio condenava, muitas vezes, mais os homens que os princípios, via a obra através
do autor, julgava a cultura pela raça. Seus erros de observação não lhe devem correr
por conta do raciocínio, que era de uma precisão admirável, mas, geralmente, por
mal do seu coração, que era um tanto feminino, tal a instabilidade das suas prefe-
rências (Carvalho, 1922, p. 340).
Ao contrário de Sílvio, José Veríssimo via apenas a obra e nunca homem, exaltava
ou condenava o escritor sem se importar com a sua categoria social ou mesmo
literária. O autor, para ele, era uma figura secundária, sem interesse imediato, a
não ser quando havia na sua vida um ou outro pormenor que pudesse explicar com
mais segurança certas particularidades da obra (Idem, p. 344).
[...] com os primeiros românticos, entre 1836 e 1846, a poesia brasileira, retomando
a trilha logo apagada da plêiade mineira, entra já a cantar com inspiração feita dum
consciente nacional. Atuando na expressão principiava essa inspiração a diferençá-
la da portuguesa. Desde então somente é possível descobrir traços diferenciais nas
letras brasileiras (Veríssimo, 1963, p. 6).
Neste ponto surge uma das convergências mais importantes entre José
Veríssimo e Sílvio Romero: a precedência da independência política sobre
a literária e intelectual. Para ambos, as condições de florescimento de uma
literatura nacional e a feição por ela assumida seriam produtos da própria
evolução histórica da sociedade. Mais do que para eles, no entanto – que
tomaram a “autonomia cultural” como consequência da “autonomia política”
do país –, o axioma da feição particular (“brasileira”) da língua portuguesa
assume para Ronald de Carvalho a condição basilar da formação de uma
literatura nacional no Brasil.
Embora desde Romero essa possibilidade estivesse, em tese, assegurada,
quando Ronald publicou sua Pequena história a autonomia linguística cons-
tituía ainda objeto de acirradas polêmicas entre literatos, filólogos e histo-
riadores literários. Publicados respectivamente em 1921 e 1922, os livros A
língua nacional, de João Ribeiro – que defendia a diferenciação, a autonomia
II
tador ideal: o Quixote que “luta sem saber com quem, contra um moinho
ou contra um exército, mas luta porque tem necessidade de aventuras para
viver” (Carvalho, 1922, p. 25). Contraposta à ideia de “estabilidade”, que,
segundo o autor, “é por onde se revelam os povos já velhos e constituídos”
(Idem, p. 128), a ideia de “aventura” é sistematicamente formulada ao longo
da Pequena história como definidora do “caráter brasileiro”:
Já se disse, no correr deste livro, que não possuímos a noção da estabilidade; ora,
sem essa qualidade primacial, que não se improvisa, e somente se adquire com o
trato e a experiência dos homens e do mundo, não haverá equilíbrio nos conceitos,
nem justeza nos comentários; não haverá filosofia na história, nem penetração na
crítica. Acresce, também, que os povos da península ibérica de quem descendemos
diretamente, para não mencionar o índio e o africano, cuja capacidade de obser-
vação é secundária, nunca se revelaram superiores por esse lado. Ali predomina,
igualmente, a paixão, o lirismo histórico obscurece a visão dos fatos, o culto da
imaginação perturba o conhecimento lógico das coisas. A irreverência de Cervantes
e a exaltação de Camões definem a raça hispano-lusa (Idem, p. 276).
O que, porém, define melhor as suas íntimas ligações com a alma brasileira e a
influência considerável que ele exerceu, e ainda exerce, em nossas letras, é a sua
concepção essencialmente epicurista e voluptuosa da vida. Os povos em formação
que, à semelhança do nosso, estão em conflito permanente de tendências e direções,
marcham por entre uma exaltação de egoísmos que só lhes deixa entrever, como fins
realizáveis e imediatos, o prazer e o gozo, na fortuna vária. As grandes abstrações
não os comovem, os sistemas transcendentes da inteligência pura não chegam a
É contra esse eterno soneto que reagimos presentemente. De fato, quem estudasse
a nossa literatura poética, durante a última metade do século XIX e o primeiro
quartel do século XX, ficaria embaraçado se quisesse atenuar a venenosa ironia
do mencionado conceito [...]. De tal modo se inveterou em nossos costumes,
que ficamos, insensivelmente, à margem de toda a evolução literária do universo
(Idem, ibidem).
Sua ingenuidade é postiça, não nos comove; seus pastores são, geralmente, vazios, sem
alma, são talvez, como aquela cigarra da ode anacreôntica, iguais aos deuses intangí-
veis do Olimpo, pois o que lhes falta justamente é sangue vermelho, sangue humano.
Cláudio tinha, sem favor, um admirável gosto para vestir e compor os seus bonecos,
à francesa ou à italiana, conforme as exigências da hora. Sabia também, e com apre-
ciável talento, corrigir a natureza, aparar-lhe as arestas, arredondar-lhe os contornos
ásperos, mas fazia-o tão cuidadosamente que, afinal, não era mais a natureza que
se apresentava nas suas éclogas ou nos seus sonetos, mas um painel decorativo,
digno de Fragonard e dos pintores galantes do século XVIII, em França. Quer em
Alvarenga Peixoto, quer em Silva Alvarenga havia muito mais larga compreensão
da terra, muito mais verdade nativista, se assim podemos dizer (Idem, p. 173).
Se é verdade que o Sr. Alberto de Oliveira sofreu a influência dos parnasianos fran-
ceses, não é menos certo que, há muito, dela se libertou, ganhando maior amplitude
os seus temas e mais simplicidade a sua poesia, sempre elegante, aliás, e sempre
correta. Demais, um grande poeta impassível é um jogo de palavras sem sentido,
uma refinada monstruosidade que só a logomaquia habitual se compraz em repisar.
O autor das “Meridionais” continua a ser, nas suas múltiplas tendências clássicas,
românticas ou parnasianas, sobretudo um lirista sensível, colorido e imaginoso.
Sua imaginação é mesmo, como expressão literária, uma das mais consideráveis de
quantas tem aparecido no Brasil (Idem, ibidem).
esses homens de letras. Pois, como ele mesmo afirma: “Ficamos, apenas, com
alguns nomes e datas na memória, mas sem poder ligá-los” (Idem, p. 282).
Radicalizando o axioma da literatura como expressão da nacionalidade,
Ronald toma a possibilidade de uma feição brasileira da língua portuguesa
não apenas como base de uma literatura brasileira nacional, mas também
como critério de avaliação das obras que justificariam tal formação. A “lin-
guagem brasileira” é perseguida na temática, bem como na dicção, sintaxe
e vocabulário das obras. A característica fundamental dessa “linguagem
brasileira” seria, como vimos, a “simplicidade” em detrimento dos artifícios
formais identificados à tradição cultural lusitana. Artifícios cultivados e
atualizados pelo ideário estético e ideológico parnasiano, mas não necessa-
riamente por todos os seus poetas. Vemos assim, portanto, como estava em
jogo um debate não apenas sobre a literatura, mas também sobre a própria
formação de um “léxico” para o Brasil moderno.
E a ideia de “simplicidade” está diretamente associada à definição do
papel atribuído à literatura de desvelar a “realidade”. Segundo Ronald, na
busca pela perfeição da forma, o modo parnasiano de versificação cristalizado
em regras acadêmicas acabou por levar inevitavelmente ao alheamento da
literatura da “realidade” tangível. Este, então, o “sentido” apontado na Pe-
quena história para a renovação estética e intelectual brasileira: aproximar a
literatura produzida no país da sua “realidade” própria – tema que integrou
de modo controverso o debate intelectual mais amplo nos anos de 1920 e
1930, sendo fundamental também no ensaísmo de interpretação do país
contemporâneo (cf. Botelho, 2010). É nesse quadro que a valorização dos
elementos tidos como “locais” e “populares” adquire sentido: “A verdadei-
ra poesia”, afirma Ronald, “nasce da boca do povo como a planta do solo
agreste e virgem. É ele o grande criador, sincero e espontâneo, das epopeias
nacionais, aquele que inspira os artistas, anima os guerreiros e dirige os
destinos da pátria” (Idem, p. 51).
A valorização da língua portuguesa falada no Brasil e sua transposição
para a escrita, ou, noutras palavras, a aproximação da língua escrita à falada,
constitui tema central do modernismo. Ele está presente de modos e com
sentidos diversos em ensaístas, literatos e poetas do período. Sua adoção
programática é central em Mário de Andrade, por exemplo. Em carta datada
de 18 de fevereiro de 1925 a Carlos Drummond de Andrade, Mário refere-se
a essa questão como a aproximação do “como falamos” ao “como somos”,
uma verdadeira “aventura que me meti de estilizar o brasileiro vulgar”. Uma
aventura, porém, “muito pensada e repensada”, já que se trataria de uma
O povo não é estúpido quando diz “vou na escola”, “me deixe”, “carneirada”,
“mapear”, “besta ruana”, “farra”, “vagão”, “futebol”. É antes inteligentíssimo nessa
aparente ignorância porque sofrendo as influências da terra, do clima, das ligações
e contatos com outras raças, das necessidades do momento e da adaptação, e da
pronúncia, do caráter, da psicologia racial modifica aos poucos uma língua que
já não lhe serve de expressão porque não expressa ou sofre essas influências e a
transforma afinal numa outra língua que se adapta a essas influências (Andrade e
Andrade, 2002, p. 100).
III
renovação proposta no livro. Ela não era, porém, desafio único ou isolado. Se-
gundo Ronald, várias causas concorreriam para a formação de uma literatura,
sendo algumas peculiares ao próprio povo e outras exteriores, que seguiriam
“como que um processo de lenta infiltração, de caldeamento intelectual
e moral” (Idem, p. 42). E embora as “causas internas” se lhe afigurassem
como as fundamentais, ele adverte que as “causas exteriores” não devem
ser desprezadas “como qualquer elemento perigoso de desnacionalização”:
“Não! As literaturas são como os seixos ao fundo quieto dos rios: precisam
de muitas e diferentes águas para se tornarem polidas. E se, por um lado,
podem ficar menores, perdem, por outro, certas arestas duras e agressivas,
infinitamente mais nocivas à sua perfeição” (Idem, p. 43; grifo no original).
As “causas externas” são entendidas na Pequena história, sobretudo,
como as influências europeias constitutivas da estrutura e da dinâmica da
nossa vida cultural como um todo. A principal decorrência prática dessa
posição – que também se mostra original em relação aos precedentes no
gênero – foi a tentativa de associar os movimentos e escolas literárias bra-
sileiras às correntes estéticas europeias, de modo a oferecer uma visão de
conjunto mais integrada dessas interdependências. Proposta como condição
da formação da literatura brasileira em termos nacionais, o declínio da in-
fluência lusitana não implicava, portanto, a negação de outras influências
exógenas, mas lhe seria contemporânea8. 8. A questão aparece na própria
periodização da literatura brasilei-
Como Sílvio Romero e José Veríssimo, Ronald de Carvalho também
ra proposta por Ronald de Car-
concebeu os processos de formação da literatura e da sociedade brasileiras valho: podemos perceber que o
sentido da formação do “período
como inteiramente congruentes, de modo que os dilemas formativos da
autonômico” é dado não apenas
literatura corresponderiam aos próprios dilemas formativos mais amplos pela decisiva decadência da in-
da sociedade brasileira. Para eles, o processo de formação da literatura fluência lusitana, como também
pela emergência da influência de
apresentava-se problemático no plano intelectual, sobretudo em função da novas correntes europeias como
questão da importação das ideias como mecanismo próprio de uma sociedade o romantismo e o naturalismo.
Como observou a propósito Lú-
formada a partir da experiência colonial. Presos mais aos efeitos do que às cia Miguel-Pereira, o período an-
causas desse mecanismo social, no entanto, esses autores compartilham do terior ao “autonômico” – chama-
do de “transformação” em função
“sentimento acabrunhador da posição em falso de tudo o que concerne à das tentativas nativistas de “neu-
cultura brasileira”, que “a bem dizer tem a idade de nossa vida mental e com tralização” da influência lusitana
(entre 1750 e 1830) – “parece ter
ela se confunde – bem como as metamorfoses do desejo sempre renovado de
sido o mais independente, por-
corrigi-la mediante alguma sublimação descalibrada” (Arantes, 1997, p. 14). que, depois dessa curta tentativa
de reação, logo surge, não mais a
Romero abordou o tema de modo bastante explícito: “Bem como na
exclusiva influência lusitana, mas
ordem social tivemos a escravidão, na esfera da literatura temos sido um a europeia, muito mais forte”
povo de servos. Os nossos mais ousados talentos, se nos aconselham o (Miguel-Pereira, 1936, p. 55).
[...] representa, sem dúvida, uma força nova da humanidade, e é lógico que possua,
como de fato possui, uma civilização mais ou menos definida, onde predominam,
é certo, as influências europeias, mas onde já se vislumbram vários indícios de uma
próxima autonomia intelectual, de que a sua literatura, já considerável e brilhante,
constitui a melhor e a mais decisiva prova (Carvalho, 1922, p. 37).
uma “nação” fundada num conjunto de valores culturais próprios que lhe
conferisse identidade e coesão social.
Curiosas essas histórias da literatura que parecem sempre incompletas,
mas, mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, insistentemente atraem novos
decifradores. É que, como muitos outros autores anteriores e posteriores,
Ronald não estava preocupado com a literatura apenas em termos das suas
características estéticas. Interessava-se também pelas respostas que estas po-
deriam dar às suas perguntas sobre a construção nacional do Brasil. Como
“meio onde nos encontramos e nos conhecemos a nós mesmos”, a literatura
resolveria, para o autor, “o antigo adágio grego, porquanto ‘reúne todas as
coisas que estão separadas, e vive separadamente em cada uma das coisas’”
(Idem, p. 322).
Embora não tenha desaparecido de todo após a Pequena história, a crença
historicista na congruência entre os processos formativos da literatura e da
sociedade ficaria, no entanto, deslocada a partir da década de 1950. Nesse
momento, as convicções da unidade nacional e da dependência cultural
que tanto animaram o modernismo dos anos de 1920 – em suas mais di-
ferentes vertentes – passaram a conviver e disputar definições do moderno
com perspectivas mais universalistas (cf. Botelho, 2009). Perspectivas que
se voltavam às formas de integração do país no capitalismo mundial, à re-
flexão sobre os impasses da sociedade de classes, bem como à realização de
uma ordem social democrática, secularizada e competitiva entre nós. Era
sobretudo a sociedade tal como se constituía – em seus movimentos, grupos
sociais, velhos e novos atores engajados no enfrentamento dos problemas
econômicos, sociais, políticos e culturais – que estava em questão na década
de 1950. Era, então, a parte igual da sociedade moderna que importava
instituir: homens, mulheres, negros, brancos, patrões, empregados, alfa-
betizados e analfabetos que sentem, pensam, agem, interagem, entram em
conflito, constroem o Brasil moderno.
Talvez por isso, quando se voltou novamente ao gênero em 1957,
Antonio Candido já tenha definido o seu estudo Formação da literatura
brasileira como – parafraseando um título de Julien Benda – uma “história
dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura” (Candido, 1964, p. 27).
Redefinição que provocou um deslocamento sutil, mas profundo, na abor-
dagem tradicional da literatura como expressão “da realidade local e, ao mes-
mo tempo, elemento positivo na construção nacional” (Idem, ibidem). Tal
deslocamento teria permitido ao autor compreender não apenas o percurso
da literatura brasileira, mas também como esse processo formativo poderia
se completar até mesmo de modo notável: sem que por isso o conjunto da
sociedade estivesse em vias de se integrar (cf. Schwarz, 1999). Problema e
perspectiva que, a despeito das mudanças em processo na sociedade brasi-
leira das últimas décadas, permanecem nos interpelando sociologicamente
e mobilizando parte da nossa mais instigante crítica da cultura.
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Resumo
Abstract
The text analyzes the Small history of Brazilian literature, by Ronald de Carvalho,
looking to explicate its intellectual context: on one hand, the tradition of literary his-
toriography from which the book inherits its main references and conventions; on the
other, the contemporary critical reflection on the direction in which Brazilian culture
and society were heading and on which the modernist sensibility and imagination
fed. This methodological strategy enables a discussion in how, based on the defence
of the “simplicity” of literary language – whose particular meaning is also described
in this article – the book contributed to making an agenda of aesthetic and cultural
renewal routine. Texto recebido e aprovado em
30/7/2011.
Keywords: Modernism; Literary historiography; Aesthetic renewal; National construc-
André Botelho é professor do
tion; Culture and society in Brazil. Departamento de Sociologia e
do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia
do IFCS/UFRJ, e pesquisador
do CNPq e da Faperj. É autor,
entre outros, de O Brasil e os dias
(Edusc, 2005) e co-organizador
de Um enigma chamado Brasil
(Companhia das Letras, 2009).
E-mail: andrebotelho@digirotas.
com.br>.