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8 Entrevista

Leishmanioses com observatório

ONLeiSH é o acrónimo para Observatório Nacional das Leishmanioses. este organismo, recentemente criado,
pretende alertar para uma realidade que ainda não é do conhecimento de muitos proprietários de cães.
a VeTeriNÁria aCTUaL falou com a Prof.ª Lenea Campino, presidente do ONLeiSH e directora da Unidade
de Leishmanioses do instituto de Higiene e Medicina Tropical.

Professora Lenea Campino,

presidente do ONLEISH

e directora da Unidade

de Leishmanioses do Instituto

de Higiene e Medicina Tropical

Um questionário, realizado junto de proprietários


de cães que visitam clínicas veterinárias, traçou um
nada tranquilizante panorama do conhecimento acer-
ca da leishmaniose canina em Portugal. Verificou-se
que entre 40% a 70% dos inquiridos não conhece a
doença, e que entre 60% e 75% não sabem como pre-
veni-la. Bem vistas as coisas, apenas 6% a 12% dos
donos dos animais questionados é que demonstram
ter um conhecimento adequado e satisfatório da leish-
maniose canina. Isto vem demonstrar que é necessá-
rio um esforço e um plano, de forma a melhor sensibili-
zar e esclarecer os donos. E esse parece ser, à primeira
vista, o principal objectivo do ONLEISH. Com isto em
mente, e na tentativa de perceber melhor o que é este
Observatório, falámos com Lenea Campino, que logo à
partida revelou que esta doença se conhece em Portu-
gal desde 1910. Assim, apesar de não ser algo de novo,
não é muito falada. E talvez faça falta...
VETERINÁRIA ACTUAL – O que são as leishmanioses?
Prof.ª Lenea Campino – São infecções provocadas por Homem estas doenças podem ser cutâneas, com uma se vê de uma leishmaniose canina. Começa por pêlo
um microrganismo, um parasita protozoário do género ou várias feridas, e não afecta órgãos internos. Geral- baço, depois as feridas...
leishmania. Estes parasitas só são visíveis ao micros- mente é benigna e cura-se por si própria, nem preci- E as hemorragias nasais acontecem muitas vezes,
cópio e passam dos reservatórios mamíferos – quase sando de tratamento. E pode também, nos humanos, tal como as conjuntivites, que, tanto uma como outra,
todos os mamíferos podem ser atingidos por este pa- apresentar a forma visceral, que afecta os órgãos in- não estão descritas nos humanos. No humano começa
rasita – a outro reservatório / hospedeiro através de ternos, sobretudo os ligados à imunidade, e que é com uma febre, e depois um mal-estar e um cansaço.
um insecto vector, que é um flebótomo. É um insecto fatal se não for tratada. Atinge preferencialmente as Já o cão não se queixa, e quando damos conta já está
de dimensões mínimas, muito mais pequeno do que crianças – daí este parasita ser apelidado de leishma- numa fase mais avançada. Penso que também passa
aquilo que se chama de mosquito, e que transporta nia infantum – até, normalmente, aos três anos, ape- muito por aí: ao fim de duas semanas de febre toda a
no seu interior o parasita. Um flebótomo fêmea pica sar de estar descrita até aos cinco anos. Se o diagnós- gente vai ao médico, enquanto o cão não vai.
um hospedeiro infectado, depois há um ciclo que são tico não for feito depressa, ou o tratamento não for – E tratamentos?
dez dias – se ele picar um e logo de seguida picar ou- feito rapidamente e da melhor forma, é fatal. Quando – O tratamento no cão não é eficaz. Controla apenas
tro não transmite – para se transformar em infeccio- o tratamento é feito da forma correcta, a percentagem a doença. Há autores que dizem que se o tratamento
so. Depois disso, o flebótomo quando picar inocula o de cura é elevada: acima dos 95%. for feito na fase inicial da infecção, que esta desapare-
parasita. No cão a forma clínica é diferente, porque conju- ce. Mas na maior parte dos casos o parasita está lá, e
– Quais as diferenças entre a leishmaniose canina e a ga as duas formas: cutânea e visceral. Há quem cha- se se pára o tratamento, começam logo as manifesta-
leishmaniose humana? me ainda no cão como leishmaniose cutânea ou visce- ções. É outra das grandes diferenças entre a leishma-
– Há manifestações clínicas que são diferentes, pelo ral apenas, mas eu chamo de viscero-cutânea, porque niose humana e a leishmaniose canina: o tratamento
menos do que se conhece e do que está descrito. No a manifestação cutânea é muitas vezes só aquilo que não é tão eficaz.
10 Entrevista

«Queremos fazer uma rede

de vigilância epidemiológica com

veterinários de todo o país, que

faça uma boa cobertura de Norte

a Sul», refere a professora

– E é contagiosa? dos cães que recebem são suspeitas de leishmanio- por uma empresa farmacêutica – a Intervet. Enquanto
– Não é contagiosa. Não é como a tuberculose. Tem se e, dessa parte, 40% tem mesmo a doença. Come- eu antes tinha muitos problemas e dizia que não que-
que haver, em princípio, a transmissão por vector. E faz çámos a fazer estudos no terreno, com o Dr. Pedro ria nada da indústria, agora juntou-se o útil ao agra-
parte do grupo das doenças transmitidas por vector. Abranches nos anos 80, que foi a primeira pessoa com dável, porque encontrei uma empresa que tem gen-
– Qual a causa normalmente atribuída para o faleci- estudos epidemiológicos no terreno da leishmanio- te muito trabalhadora e dinâmica. Como trabalho na
mento de um animal com leishmaniose canina? se canina, e verificámos, de facto, que a prevalência leishmaniose em exclusivo já há muitos anos, a cria-
– Morre devido à falha dos órgãos vitais. Não só pela é muito alta. ção do ONLEISH foi por gosto. E acho que vale mui-
doença, mas também muitas vezes pelo tratamento. Os primeiros trabalhos que fiz foram no final dos to a pena para o país que haja uma rede de vigilância
O tratamento tem efeitos secundários muito nocivos, anos 80. Já voltei a esses sítios onde fui e, com as mes- que, por exemplo, se houver uma alteração climática
sendo prolongado e bastante agressivo, seja para o mas técnicas e com a mesma metodologia, verifiquei que interrompa o equilíbrio ambiental, que o país es-
Homem ou para o cão. Só que no caso do Homem o que a prevalência aumentou muito. Por isso, não é só teja preparado. É a medicina de prevenção.
tratamento é curto e com sucesso. No cão é prolon- uma questão de dizer que agora procura-se e é mais – Que acções vão pautar a actividade do Observató-
gado. conhecida entre os veterinários e a comunidade cien- rio?
– Porque existe essa diferença? tífica. Resolvemos fazer o Observatório, que gostaría- – Primeiro está o site – www.onleish.org – onde se po-
– Na minha opinião pessoal acho que o sistema imu- mos muito que fosse já focado para a medicina huma- dem esclarecer dúvidas e colocar perguntas. Muita
nitário do cão é muito mais debilitado, não tem tanta na, mas não tivemos tempo, e as coisas têm que ser gente telefonava para mim porque, por exemplo, saiu
resistência e tem menos eficácia. A imunidade inata faladas e temos que ter grupos de trabalho. E para isto uma notícia no jornal e queriam saber onde fazer os
e adquirida que todos temos, quando somos imuno- dar resultado temos que envolver as pessoas que fa- exames e colocavam questões que teria que ser o ve-
competentes, é algo que penso que o cão não conse- zem clínica, seja clínica dos cães ou dos humanos. terinário a decidir. Neste momento temos um grupo
gue atingir. Devo dizer que o Observatório está a ser subsidiado de veterinários, e outros especialistas, que entre to-
– Porque surgiu a necessidade de criar o ONLEISH?
– Há muito tempo que a leishmaniose humana é co-
nhecida em Trás-os-Montes, e a zona de Alijó foi um
foco endémico dos anos 50/60. Íamos para lá traba-
lhar muitas vezes e não havia família que não tives-
se tido um bebé internado com leishmaniose. E co-
meçou-se a perceber que a leishmaniose canina tem
prevalências altíssimas no nosso país. Felizmente não
há proporção directa entre a prevalência no cão e no
ser humano, mas também não sabemos quando isto
muda. Não é pelo contacto directo, mas se nós tiver-
mos o Homem, o cão que é o reservatório e o vector ali
por perto, num jardim bonito... Porque nestas doenças
só precisamos que existam os três pontos no mesmo
espaço. É melhor que se esteja prevenido.
Cada vez se via mais cães com leishmaniose. Os ve-
terinários de certas zonas dizem que quase um terço

Flebótomo – insecto de dimensões


mínimas que transporta no seu interior
o parasita
12 Entrevista

«Os veterinários de certas zonas

dizem que quase um terço dos

cães que recebem são suspeitas de

leishmaniose e, dessa parte, 40% tem

mesmo a doença»

dos saberão responder às questões ou aconselhar os


visitantes.
Depois, queremos fazer uma rede de vigilância
epidemiológica com veterinários de todo o país, que
faça uma boa cobertura de Norte e Sul. Ou seja, co-
nhecer bem a realidade epidemiológica do país, que
é muito importante. Não pode haver prevenção ou
controlo de uma doença se não se tiver feito o diag-
nóstico.
Queremos envolver os veterinários. Estamos já a
marcar um workshop só para a comunidade veteriná-
ria, que irá realizar-se na região de Setúbal, que é uma
zona fortemente endémica, para que daí saiam guide-
lines de diagnóstico, dado que actualmente cada um
faz o seu, muitas vezes com resultados diferentes. É
preciso haver uma normalização: que técnicas, que
exames, etc.
Outra coisa que me faz muita impressão e que de-
veríamos tentar atingir: conseguir que as pessoas
percebam que não se devem abandonar animais. O
abandono dos animais potencia todas as doenças, e
a leishmaniose também. É preferível que não os com-
prem. Dão dinheiro para ter um animal e depois vão
abandoná-lo? Não pensam que depois se vai tornar e trazem 100. Na zona do Douro trazem 2 mil, com as pessoa que tenha o seu sistema imunitário regular,
um animal errante, cheio de doenças e que pode afec- mesmas horas, mesmas técnicas, etc. pode ser infectado e não adoece.
tar o ser humano. As pessoas, depois, também dão – E com os Verões cada vez maiores... – Os veterinários em geral estão alertados para esta
de comer e de beber aos animais de rua, que formam – O flebótomo é mais transmissor, pica mais, em dias doença?
matilhas, que se reproduzem... Ninguém está a fazer de calor e sem vento. Já percebemos que há um alar- Muito. Muitíssimo. Já as pessoas conhecem outras
bem, e estamos todos a fazer mal à saúde pública. Há gamento da época. Em vez de, por exemplo, ir de Maio doenças, como a esgana e a raiva. Também não há
muito que consciencializar as pessoas, que os animais a Setembro, já se apanham flebótomos em Novembro, campanhas de leishmaniose na televisão.
que abandonam são um foco de doenças. Os veteri- começando a aparecer em Abril. O flebótomo tem um – E a leishmaniose canina tem vacina?
nários dizem que cada vez mais há cães abandonados período de vida muito curto, e se houver uns dias de – Existe no Brasil. Julgo que também em França. A do
nas ruas. frio eles morrem. Mas, se não passam de uma época Brasil chama-se Leismune, é de investigação brasilei-
– As regiões onde é mais frequente a leishmaniose para a outra, o cão passa, e é um bom reservatório, ra. Não há ainda resultados consistentes de sucesso,
canina é na bacia mediterrânica e na América do Sul. uma vez que atravessa várias épocas de transmissão e é por isso, penso eu, que está confinada ao país. Em
Porquê? em que mantém a doença. França penso que também há, de outro laboratório,
– A leishmaniose canina existe onde existe a leishmania – Quanto tempo pode um animal viver com a doença? mas também está confinada ao país. As autoridades
infantum, que é exactamente na bacia mediterrânica e – Se fizer a terapêutica de manutenção pode viver competentes nacionais acharam que não havia as con-
na América do Sul. Já no subcontinente indiano a leish- anos. dições de controlo de qualidade e a eficácia compro-
maniose humana é provocada pela leishmania donova- – Como se previne eficazmente? vada. Assim, pode dizer-se que não existe uma vacina
ni, que não infecta o cão, e passa de Homem para Ho- – O vector tem maior actividade no crepúsculo e du- eficaz, ou de uso alargado, na Europa.
mem através do vector. Não há o reservatório cão. rante a noite, por isso devemos recolher os cães. A – E está próxima a descoberta de uma vacina eficaz?
– O aquecimento global potencia o aparecimento de maioria dos cães infectados são aqueles que dormem – Tem grandes problemas. Não há grupo de investi-
mais casos? na rua. Os cães de casa têm menos probabilidades. gação que trabalhe a leishmaniose que não tenha um
– Claro. Nós temos que ter fauna, flora, geologia e cli- Há sempre a prevenção individual, e devemos utili- projecto de vacina. Mas é um parasita intracelular, o
ma para que se crie o ecossistema para o desenvolvi- zar coleira e insecticida. Devemos utilizar insecticida que dificulta muito. É um parasita com várias espécies,
mento do insecto. A verdade, por exemplo, é que há nas paredes residuais dos canis e, por exemplo, tam- em que todas têm características diferentes. Até a es-
mudanças em Portugal devido ao aparecimento da ba- bém nos galinheiros. Existem muitos flebótomos junto pécie que existe aqui não é a espécie que existe na Ín-
cia do Alqueva. aos galinheiros, uma vez que o insecto não anda à pro- dia, por exemplo. Será que a leishmania infantum da
– Em Portugal quais as regiões onde existem mais cura do cão, servindo o coelho, a galinha... Preferem é Europa é igual à do Brasil? Não vai ser fácil. Enquan-
flebótomos? animais em vez das pessoas. Também já vi electrocu- to não houver uma vacina comprovadamente eficaz,
– Exemplos são a Serra da Arrábida e o Douro, com o tores de luz UV nos canis. de uma só dose, acessível economicamente e que dê
rio a ganhar em número. Os meus colegas vão para a Acho que não vale a pena assustar a população com grande período de protecção, não é muito bem aceite
Arrábida com as armadilhas para apanhar flebótomos a leishmaniose humana. Vale a pena prevenir. Uma comercialmente. z

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