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XVII ENCONTRO
DIVERSIDADE MUSICAL E COMPROMISSO SOCIAL
NACIONAL SÃO PAULO, 08 A 11 DE OUTUBRO DE 2008
O PAPEL DA EDUCAÇÃO MUSICAL
DA ABEM FECHAR 1

Música no currículo escolar – Contribuições para o debate

Vera Lúcia Gomes Jardim


vera_jardim@hotmail.com
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo. O objetivo desta comunicação é apresentar novos dados, proporcionados pela pesquisa
histórica, que possibilitem a compreensão do movimento de inclusão da música como disciplina
escolar, com exemplos históricos, cujas circunstâncias nos permitem abordar, nas articulações
políticas atuais (2008), a problemática da inclusão da educação musical, no que concerne à adaptação
da música ao contexto escolar, mais especificamente sobre a estratégia para o provimento dos quadros
profissionais do magistério especializado, e a preparação técnica e profissional desse professor. Trata-
se da análise de dois projetos educacionais: a Reforma da Instrução Pública Paulista, de 1890, e o
Projeto de Educação Musical de Villa-Lobos, implantado a partir de 1930, sob a ótica da implantação
das ações e políticas públicas. Fundamentada na perspectiva da História das disciplinas escolares de
Chervel (1990), assim como nas proposições de Goodson (1995) e Julia (2001), que ressaltam a
importância do estudo histórico do currículo e das disciplinas escolares, foi possível compreender o
ensino de música na escola em sua própria dinâmica, identificando a construção dos saberes escolares
articulados aos objetivos e finalidades das filosofias educacionais aos quais se vinculou. Pela análise
de currículos, programas de ensino, legislação e outras fontes evidenciou-se um novo ramo de
conhecimento que necessitou criar um novo profissional e habilitá-lo, em instituições criadas
especificamente para tal fim, para o exercício de uma profissão paralela à do músico, no que concerne
a suas atividades de ensino.
Palavras-chave: História das disciplinas escolares, currículo, políticas públicas

Os debates atuais em torno da questão da presença/ausência da música nos currículos


escolares desconsideram, muitas vezes, informações preciosas sobre experiências anteriores
que poderiam auxiliar o entendimento e balizar alguns contornos do problema. Isto ocorre,
principalmente, pelo fato de que as pesquisas históricas sobre projetos brasileiros de educação
musical são, praticamente, inexistentes e conseqüentemente o desconhecimento dos sucessos
ou fracassos dessas tentativas não constituem um corpus de conhecimento que ofereça
subsídios para enfrentar o problema.
O objetivo deste estudo é, por meio da pesquisa histórica, trazer novos dados que
possibilitem a compreensão do movimento de inclusão e o esforço para a permanência da
música como disciplina escolar no projeto educacional republicano paulista, no período de
1890 a 1930, e no projeto de educação musical de Villa-Lobos, implantado a partir de 19301,
cujas circunstâncias nos permitem abordar a problemática da educação musical moderna, no
que concerne a adaptação da música ao contexto escolar, com a adequação da metodologia e

1
Todas as menções feitas ao ensino da música no projeto republicano paulista são baseadas em JARDIM (2003),
op. cit., e, ao projeto de educação musical dos anos 30, em JARDIM (2008), op. cit.
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conteúdos, da preparação técnica e profissional do professor, da articulação com as filosofias


educacionais e os projetos com os quais se vinculam.
A idéia de incluir a música como conhecimento necessário para a educação da criança já
constava na proposta para a Reforma do Ensino Primário e Várias Instituições
Complementares da Instrução Pública formulada por Rui Barbosa (1946), em 1883, que
indicava o canto, a música e coros para o jardim das crianças, para as escolas primárias
elementares, escolas primárias médias e superiores. Acentuando a importância do
desenvolvimento das crianças, Rui Barbosa introduzia a discussão das idéias expressas nas
filosofias educacionais em voga, que valorizavam a infância, com suas características e
necessidades específicas. Essa valorização teve em Rousseau um de seus precursores, e foi
reforçada na pedagogia pela ação de dois educadores: Pestalozzi e Fröebel. Tais concepções
enfatizavam os conhecimentos adquiridos pelos sentidos e pela intuição.
Essas experiências educacionais renovadoras vinham influenciando segmentos das
elites intelectuais brasileiras, portadoras de idéias que provocaram mudanças de mentalidade
cultural e política, concretizadas no advento da República, em 1889, no Brasil.
Segundo Souza (1998) a implantação do projeto pedagógico republicano é uma das
mais importantes inovações para a história da educação. Inovações que persistem até hoje, na
padronização e uniformidade do ensino simultâneo, na classificação dos alunos e na
ordenação e organização gradual de um plano de estudos; no estabelecimento de espaços e
tempos específicos para o trabalho escolar; na aplicação de métodos compatíveis com as
finalidades da educação; ambos, propostos pelo Estado – os mais modernos da época – e na
formação de um profissional preparado e habilitado para tal fim.
A relevância do estudo deste período justifica-se por ter sido em meados do século XIX
que correntes de pensamento pedagógico, começam a “repensar em profundidade a natureza
da formação dada aos alunos” (Chervel, 1990, p.179). Para Chervel, este é um momento de
redefinições das finalidades e objetivos do ensino primário e secundário, do surgimento do
conceito de disciplina, do conteúdo do que se pretende ensinar.
Compreender as relações entre as várias concepções educacionais que dão origem a
políticas e programas educacionais e como elas realmente são concretizadas nas práticas de
ensino, tem sido o objeto de estudo dos autores Chervel (1990), Goodson (1995), Julia (2001),
que ressaltam a importância do estudo histórico do currículo e das disciplinas escolares como
geradores de uma cultura escolar interna autônoma.
A sistematização das idéias de Pestalozzi e Fröebel, no Império, que tomaram forma e
implantação na reforma educacional da República, encontraram na música uma das áreas de
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conhecimento que sintetizava os princípios necessários para a aplicação destas filosofias.


Organizada como disciplina escolar a música trazia os elementos fundamentais que
possibilitavam a criação de uma nova sensibilidade requerida. A Música foi incluída no
currículo da Escola Normal e da Escola Preliminar (7 a 10 anos) para garantir a integralidade
dos estudos, como elemento formador da cultura geral, um dos campos do conhecimento
necessários para a constituição global do educando, como processo de reprodução do
pensamento e da possibilidade de expressão dos sentidos.
Cabe ressaltar que a música foi instituída como matéria escolar, e incluída pela primeira
vez no currículo da Escola Normal de São Paulo, pelo Decreto n.º 27 de 12 de março de 1890,
ao contrário do que é amplamente divulgado de que a organização do ensino da música no
Brasil, na educação pública fundamental, deu-se a partir de 1930, pelas ações de Villa-Lobos.
Em razão desse fato, cristaliza-se uma memória relacionada à Educação Musical, difundida
pela propaganda do Estado Novo e pelos depoimentos dos contemporâneos de Villa-Lobos,
que assenta que a introdução do ensino da Música no âmbito da educação pública era
“absolutamente original” e “inteiramente inédita”, “criada, idealizada, implantada e realizada
pelo Maestro Heitor Villa-Lobos”. Essa memória é reforçada pelos estudos que privilegiam
este período e se desinteressam por outros momentos históricos.
No decreto de 1890 ficava estabelecido que o curso da Escola Normal compreendia a
matéria Música, completado pelas seguintes aulas: música, solfejo e canto coral. Essas aulas
seriam ministradas por um professor de música contratado pelo governo. Para suprir a
demanda de professores habilitados para ensinar Música nas escolas públicas, os idealizadores
do projeto republicano paulista resolveram a questão preparando os futuros professores,
alunos do curso normal. Durante os quatro anos do curso normal, os alunos recebiam
formação especializada, teoria musical e prática coral. Dessa forma, depois de formados e no
exercício da profissão, estariam habilitados para ministrar, além das outras matérias, mais
uma disciplina: a Música.
Delimitava-se, aqui, a concepção de um professor que acrescia à sua formação um novo
conjunto de conhecimentos e que recebia a atribuição de iniciar os alunos, das classes
preliminares, na linguagem e no fazer musical. Portanto tal tarefa não era designada para ser
exercida por um músico.
As condições reais da instrução pública, quer sejam de ordem material ou humana,
concorriam para a impossibilidade da aplicação integral do projeto idealizado. Contudo, pela
análise das fontes – principalmente a legislação do período – é possível verificar o esforço do
poder público em contornar as dificuldades de sua implantação e prática efetiva, mantendo a
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Música em todos os níveis educacionais. Demonstra-se pelo cuidado na elaboração das


prescrições legais para a formação dos professores e dos alunos, revelando a estreita ligação
entre elas, além de mantê-las em consonância com as finalidades educacionais do projeto
republicano.
Além do apuro constante e de novos requisitos de formação e ensino, a estrutura
administrativa governamental impôs a necessidade da criação e ordenação de postos e uma
carreira no âmbito do funcionalismo público, ampliando a ocupação de espaços oficiais por
profissionais de carreira ou especialistas em música, com cargos de inspetores especiais de
ensino para Música (decreto n.º 3858, de 11 de junho de 1925), para acompanhamento,
fiscalização, orientação ou averiguação dos procedimentos sugeridos ou exigidos nas
atividades escolares, nas esferas local, regional ou estadual.
O ambiente, em São Paulo, era propício e já suficientemente desenvolvido e preparado.
É provável que o potencial demonstrado pela música no interior do projeto republicano tenha
despertado o interesse para novos empreendimentos políticos, sociais, culturais e artísticos,
que tomaram corpo na Reforma Francisco Campos, de 1931, e na implantação do projeto de
educação musical para o Distrito Federal, idealizado por Villa-Lobos, com sua conseqüente
oficialização, em nível federal.
A música que integra o projeto pedagógico dos anos 30 como instrumento de
mobilização das massas assume a posição estratégica de difundir os princípios norteadores da
constituição da nacionalidade, de forma controlada e fiscalizada por meio da padronização
dos cursos, do currículo, dos livros didáticos, enfim, por meio da centralização de um sistema
de ensino federal.
O problema do provimento dos quadros do magistério especializado em música
ampliava-se, tomando-se por base a implantação da disciplina na esfera federal. Villa-Lobos
demonstra ter usado estratégia semelhante a dos republicanos paulistas, visto começar,
também, pela preparação dos professores. Uma de suas primeiras ações, à frente da SEMA,
foi organizar o Curso de Pedagogia da Música e do Canto Orfeônico (março de 1932).
Os primeiros cursos foram realizados em caráter de urgência para encaminhar,
imediatamente, os professores para o trabalho com os alunos. Villa-Lobos ressaltava os
processos práticos de aprender fazendo e pelo aprendizado por ouvido (ouvir, imitar, repetir e
cantar). Tais princípios metodológicos, de iniciar o aprendizado pela prática e só depois
introduzir os elementos teóricos, já formavam a base da filosofia e das propostas do ensino da
música nas escolas públicas paulistas e constituíam uma prática escolar há cerca de trinta
anos.
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E, provavelmente, inspirado pela experiência paulista – em cujo projeto foi criado o


Orfeão Escolar, em 1912, pelos alunos da Escola Normal de São Paulo que com suas
apresentações públicas, além de atestar a eficiência do ensino musical, tornara-se veículo de
propaganda do ensino republicano para além dos muros da escola – Villa-Lobos criou o
Orfeão dos Professores (maio de 1932).
Entretanto, para adequar-se às novas finalidades educacionais, a Música, na forma do
Canto Orfeônico incorporou elementos direcionados para o bem coletivo, para a exacerbação
do civismo e do senso de responsabilidade, objetivando a educação do caráter em relação à
vida social, que nessa proposta visava à integração e à unidade social – conhecimentos
distantes de seu saber de origem. Exigiu para tanto, um profissional cada vez mais
especializado nos novos conteúdos que integraram a disciplina, que se legitimaram como um
conhecimento escolar, efetivado em todo o processo de escolarização, desde o Jardim da
Infância até os cursos de especialização profissional, utilizados, apenas, no espaço escolar e
em função da própria escola.
O grau de especialização do professor de música escolar pode ser verificado pela
gradativa exigência de especialização deste professor, que, iniciada com a Reforma de 1890,
capacitando o professor normalista nos saberes musicais, culminou com a instituição do
Professor de Canto Orfeônico, cuja habilitação com reconhecimento oficial, tornou-se
indispensável para o exercício profissional em estabelecimentos de ensino, sob fiscalização
federal.
O espaço institucional conquistado pelo magistério especializado e os mecanismos
adotados para criar estruturas de especialização de futuros profissionais, e a conseqüente
renovação dos seus quadros, tornou dispensável a presença do músico como profissional de
ensino no âmbito escolar, como também desqualificado para atender às exigências do ensino
da música como disciplina escolar.
A história das disciplinas escolares e o conhecimento dos processos históricos
favorecem o entendimento de que, justamente por se inserir no universo da escola, a Música
no currículo escolar está sujeita a todas as relações que lhe dão um caráter dinâmico, que lhe
constrangem a alterar-se e a adaptar-se em consonância com as propostas que lhe dão
sustentação, e, portanto, devem ser levadas em conta, bem como as especificidades da forma
escolar, nas propostas de reforma ou inclusão de novos (ou antigos) componentes
educacionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARBOSA, Rui. 1946. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da


Instrução Pública. In: Obras completas de Rui Barbosa. Vol. X 1883. Tomo II. Rio de
Janeiro: Ministério da Educação e Saúde.
CHERVEL, André. 1990. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de
pesquisa .Teoria & Educação, n.º 2. Porto Alegre.
Coleção das Leis e Decretos: 1890 - 1961
GOODSON, Igor F. 1995. Historia del currículum - la construccíon social d e las
disciplinas escolares. Barcelona: Pomares-Corredor.
JARDIM, Vera Lúcia Gomes. 2003. Os sons da República - O ensino da música nas escolas
públicas de São Paulo na Primeira República - 1889-1930. Dissertação de Mestrado em
Educação: História, Política, Sociedade. PUC – SP
________________________. 2008. Da arte à educação - A música nas escolas públicas -
1838-1971. Tese de Doutoramento em Educação: História, Política, Sociedade. PUC – SP
JULIA, Dominique. 2001. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de
História e Educação. Campinas, SP, nº1, jan/jun.
SOUZA, Rosa Fátima de. 1998. Templos de civilização: a implantação da escola primária
graduada no estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: Fundação Editora da UNESP.

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