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13/10/2018 A uberização do sexo | Opinião | PÚBLICO

OPINIÃO ACÇÃO PARALELA

ANTÓNIO
GUERREIRO
A uberização do
sexo
12 de Outubro de 2018, 10:16

O que é feito da ideia de liberdade e


libertação sexual, nesta nossa época de
renascimento do puritanismo? A esta
pergunta, que hoje se impõe, devemos
responder com um aceno ao pensamento
lúcido de Michel Foucault, que fez uma
crítica forte dessa ideia ainda no momento
em que ela estava no auge. Segundo ele, a
ideia de “libertação sexual” caía no equívoco
de dar a entender que existiria no estado
natural uma boa sexualidade, submetida no
entanto a normas e restrições más. O que
ele — longe da euforia — viu nesses
longínquos anos 70 do século passado foi
simplesmente a passagem de um sistema de
práticas normativas a um outro, de sinal
contrário. A prossecução desta lógica (é
difícil escapar a ela) trouxe-nos até aqui, ao
puritanismo sexual, ao conservadorismo, às
fixações normativas. E elas residem até
onde menos se vêem. Por exemplo, no
casamento homossexual, que significou sem
dúvida uma conquista em matéria de
direitos civis, mas representa uma viragem
normativa da cultura homossexual, uma

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realização simétrica do heterocentrismo


que reinstitui o modelo da conjugalidade,
pondo fim à abertura, pela qual se tinha
lutado, ao “uso dos prazeres”. Podemos e
devemos regozijarmo-nos por essa vitória.
As circunstâncias do nosso tempo impõem-
nos, até por razões tácticas, que não a
desprezemos. Mas não devemos é cair na
armadilha de pensar que a hetero-
normalização do mundo gay contraria o
puritanismo vigente.

Livro de recitações
“Temos um défice cultural gritante”
António Filipe Pimentel, Director do Museu Nacional de Arte Antiga, em entrevista ao
Expresso, 5/10/2018

António Filipe Pimentel é o homo culturalis total: acredita com fervor na cultura, acha que só
ela traz a redenção e o bem-estar, aproveita todas as oportunidades para expor os seus
projectos de expansão das coisas da cultura e de integração do mundo profano da economia
no templo sagrado da Arte antiga. A sua visão do mundo é pancultural. Mas é também um
pragmático e, como se percebe em toda a entrevista que deu ao Expresso (não por acaso
incluída no suplemento de Economia), não desdenharia que alguns gabinetes instalados no
Terreiro do Paço fossem transferidos para o Museu das Janelas Verdes. Dali, o mundo é visto
com grande lucidez económico-liberal, mas também com mais elevação cultural. Mas não se
pense que o nosso homo culturalis está fora deste mundo: do princípio ao fim da entrevista,
ele exibe uma admirável competência na novilíngua empresarial. Sob a sua direcção, o MNAA
poderia tornar-se uma startup. Assim ele obtivesse um orçamento à altura dos seus sonhos
empreendedores.

O puritanismo não consiste em esconder.


Pelo contrário, ele põe fim a todo o segredo
e faz irromper a transparência, isto é, a
obscenidade. O sexo passou a estar em todo
o lado, mais visível do que nunca, excepto
no lugar onde devia estar. Repare-se como
passámos da ambiguidade sexual de
Cristiano Ronaldo, da sua região secreta
(alimentada pelas suas decisões de
reprodução assexuada), para uma

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hipervisão em grande plano, para uma


proximidade absoluta. É esta a obscenidade
em que o puritanismo se compraz.
Sabemos, desde sempre, que ele retira
satisfação da promiscuidade do olhar e
incita a uma escalada da transparência.
Toda a magia negra do sexo foi recalcada e
todo o potencial energético concentrado em
palavras que foram outrora um maná de
significação, tais como “libidinal” e
“pulsional”, desapareceram do horizonte e
do discurso. A uberização do sexo está aí,
diante de nós, sob a forma de um contrato
que não admite a hipótese de encontros
falhados. Lembremos esta curta história
narrada em tempos por Baudrillard, para
ilustrar uma economia da troca assimétrica,
em que marido e mulher entram numa
querela: “A mulher diz ao marido: ‘You give
me love because you want sex’. E o homem
responde: ‘You give me sex because you
want love’”. Esta forma de economia
doméstica, traduzida nos termos actuais,
tem um nome: violação na esfera conjugal.
Outrora, talvez se pudesse dizer assim: cada
um goza à sua maneira, do seu lado, e cada
um ignora o gozo do outro. Até porque era
sabido (mas quem se lembra hoje disso?)
que “não há relação sexual”, como tinha
declarado um célebre psicanalista que releu
Freud com uma força radical.

Baudrillard foi outro espírito lúcido que, em


1995, num texto intitulado “A sexualidade
como doença sexualmente transmissível”,
percebeu os sinais que anunciavam o que

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começava a passar-se: a obsessão do


assédio sexual, como resultado de uma
insatisfação profunda, vinda da ideia
falhada de libertação sexual e da ilusão de
progresso. Começa então a ressuscitar uma
angústia da sexualidade que Baudrillard
designa com uma analogia, o medo de
contrair a sida, e a que Sloterdijk chamou
“entropia erótica”. E cresce o fantasma do
assédio sexual: sim, porque sobre a
realidade condenável do assédio (nalguns
casos, certamente monstruosa) construiu-se
uma cena fantasmática. O puritanismo
reclama a transparência da obscenidade.
Está instalada a obsessão negativa do sexo,
chegou a hora de ajustar contas, de libertar
os ressentimentos. Não é que não haja
constas a ajustar, mas não é bom que elas
rasurem a “parte maldita” e anulem um
sentido escondido. O resultado é o
desencanto, o fim do que restava de ilusão
da profundidade.

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