You are on page 1of 3

A grande dama do feminismo no Brasil

Carmen da Silva: o feminismo na revista de caráter feminista, a seção A Arte de


Ser Mulher (1963 a 1985) e a vida de sua autora,
imprensa brasileira. Carmen da Silva, ganharam uma leitora
DUARTE, Ana Rita Fonteles. atenciosa e comprometida nos últimos anos no
que tange a essa questão. Ana Rita Fonteles
Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, Duarte apresenta neste trabalho uma consistente
reflexão sobre a memória de Carmen da Silva e
2005. 185 p.
seus escritos na revista Claudia, como um
Série História e Memória do Jornalismo. exemplo de pioneirismo nacional no que diz
respeito à publicação feminista. Embora a revista
Claudia fosse nessa época uma revista em que
as representações sobre o gênero feminino
Muito tem sido escrito sobre a imprensa e permaneciam calcadas num ideário tradicional,
as publicações feministas e suas contribuições revestido por uma tônica modernizante
para a divulgação e organização do movimento condizente aos anseios da época, Carmen da
feminista no Brasil. Apesar de Claudia não ser uma Silva tornou-se precursora nas discussões sobre a

Estudos Feministas, Florianópolis, 14(2): 549-571, maio-agosto/2006 553


questão da mulher ao desenvolver um trabalho ao contrário do que era realizado até então,
de crítica e divulgação do movimento feminista quando a presença de mulheres na imprensa era
brasileiro e suas principais bandeiras de luta. quase nula.
Carmen da Silva: o feminismo na imprensa Ana Rita nos mostra ainda que a partir desse
brasileira é produto da dissertação de mestrado momento a revista começou a acompanhar as
defendida em 2002 por Ana Rita Fonteles Duarte inquietações das leitoras, mesmo que de maneira
no Programa de Pós-Graduação em História na bastante limitada, não porque estivesse à frente
Universidade Federal do Ceará. Formada em de seu tempo, mas porque havia possibilidades
jornalismo e mestre em História, Ana Rita históricas para que esse diálogo fosse feito. Dessa
atualmente é doutoranda em História na forma, os ecos dos movimentos feministas
Universidade Federal de Santa Catarina. Aliando penetraram no editorial da revista, e pequenos
uma escrita fluente aos debates com a avanços foram feitos na medida em que as
historiografia, a autora apresenta um belo estudo discussões entravam em cena, através das cartas
sobre Carmen da Silva, comparando suas das leitoras, por exemplo. A própria Carmen da
memórias, lembranças e escritos, no intuito de Silva utilizava-se das críticas que recebia através
analisar a vida e a obra da autora como que dessas cartas como um termômetro para o que
intrínsecas à construção de seu pensamento e deveria ser discutido em sua coluna e de que
ao contexto com o qual esta dialogava. Partindo forma.
de reflexões teóricas e metodológicas promovidas Abordando a contradição que permeou a
pelos estudos de gênero, Ana Rita apresenta um história da revista e a seção de Carmen da Silva,
trabalho, em certa medida, biográfico. Ana Rita afirma que a revista, embora se
O livro divide-se em três capítulos, que denominasse como feminina, voltada à mulher
tratam, respectivamente: da formação da revista esposa-mãe-dona de casa, não poderia deixar
Claudia e da construção da figura da mulher no de desfraldar algumas das bandeiras feministas
Brasil durante dos anos 1960 e 1970; da história da época, como acontecia na seção escrita por
de Carmen da Silva e sua formação enquanto Carmen da Silva. Dessa forma, a “atitude mais
feminista; e das fases da “personagem-autora” liberal” tomada pela revista era reunir essas “vozes
na seção A Arte de Ser Mulher. dissonantes” dentro de seu editorial, mesclando
No primeiro capítulo, “Revista com nome de o ideal tradicional aos discursos modernizantes.
mulher: o feminino no Brasil dos anos 1960–1970”, No segundo capítulo, “Entre memória e
Ana Rita discorre sobre o contexto nacional no história, os caminhos de uma feminista”, a autora
qual a revista Claudia foi criada em 1961, pelo utiliza principalmente a autobiografia de Carmen
Grupo Abril. O Brasil vivia em épocas de crescente da Silva, Histórias híbridas de uma senhora de
expansão do capitalismo, submetendo todas as respeito, e entrevistas com feministas que tiveram
atividades – inclusive a imprensa – à lógica da contato com a jornalista. Confrontando a história
modernização do país. As mulheres, vistas como pessoal e a obra de sua “personagem-autora”
as principais consumidoras dos novos produtos com a história social e política do país, Ana Rita
industrializados numa sociedade em processo de mostra os caminhos percorridos por Carmen
modernização, tornaram-se o alvo na atenção desde a sua descoberta da condição da mulher
dos publicitários. Ana Rita nos mostra como, nesse até sua identificação com o feminismo de forma
sentido, Claudia inaugurou um novo estilo dentre atuante, seja no movimento organizado de
as revistas femininas da época, investindo alto mulheres, seja através de sua tribuna na revista.
nas reportagens sobre moda e o mundo Nascida em Rio Grande, RS, Carmen da Silva
doméstico. Influenciada pelo american way of nunca se identificou ao perfil correspondente ao
life, a “revista amiga” brasileira reafirmava os comportamento padrão para as moças de sua
papéis tradicionais destinados às mulheres, época. Ao voltar para o Brasil em 1962 – depois
contudo, quando as mudanças refletidas pela de passar quase vinte anos morando no Uruguai
maior participação da mulher no mercado de e na Argentina – quis ajudar a modificar o
trabalho e na educação já não podiam ser mais comportamento da mulher de classe média.
ignoradas, Claudia percebeu que precisaria dar Escreveu durante vinte e dois anos consecutivos
conta das novas discussões de maneira diferente a seção A Arte de Ser Mulher, na revista Claudia,
do que até então era feito por outras revistas. É popularizando-se, posteriormente, como “a
nesse momento que Carmen da Silva foi grande dama do feminismo brasileiro”. Aos 63
convidada a entrar para a revista em 1963, ou anos resolveu escrever sua biografia no intuito de
seja, a revista inaugurou um novo formato ao desmistificar sua própria imagem aos olhos de suas
colocar uma mulher falando para as mulheres, leitoras. Queria mostrar que era uma mulher como

554 Estudos Feministas, Florianópolis, 14(2): 549-571, maio-agosto/2006


tantas outras, bem como oferecer sua vida como enquanto indivíduos, numa tentativa de
exemplo. Segundo Ana Rita, Carmen da Silva “descoberta de si”. Nesse momento, Carmen
procurou politizar suas memórias, evidenciando apresentava um discurso moderado, usando do
as diferenças e conflitos presentes nas relações estilo psicanalítico para orientar suas leitoras. A
entre os gêneros. segunda fase de seu trabalho, segunda metade
Um dos pontos fortes desse capítulo é da década de 1960, Carmen considera uma
quando Ana Rita, através da própria história de etapa de “descoisificação” e “desalienação” das
vida narrada por Carmen da Silva em suas mulheres. Diante da frustração das mulheres com
memórias, recorda o movimento feminista o casamento, a jornalista debateu temas como
brasileiro da década de 1920, quando as a infidelidade, o divórcio e o adultério, sem, no
mulheres brasileiras reivindicavam o direito ao entanto, vitimizar as mulheres. Na terceira fase
voto, à educação, à igualdade de remuneração de seu trabalho (1971), encontramos uma
em relação aos homens e a políticas de saúde Carmen mais explicitamente engajada com a
específicas. Outra questão igualmente relevante causa feminista, começando a discutir a partir
é quando a autora fala sobre o boom de de uma perspectiva de crítica política ao sexismo
publicações de autobiografias femininas durante e à dominação masculina, na tentativa de
a década de 1970, do qual Carmen também fez desnaturalizar as diferenças de gênero. A última
parte. Conseqüência das rápidas transformações fase, iniciada em 1979, é marcada pela
ocorridas tanto no plano comportamental quanto autocrítica em relação a alguns dos pressupostos
no político durante a década de 1960, a escrita do movimento feminista internacional e pela
memorialística feita por mulheres, segundo a ligação da jornalista ao movimento de
autora, ganhou ares de recuperação e valorização da diferença. Nesse momento,
reconstrução de uma identidade. Carmen substitui o discurso da luta de classes pela
Ana Rita aborda ainda outros pontos defesa de uma cultura feminina.
interessantes na história de Carmen da Silva, O interessante a ressaltarmos nesse capítulo
como, por exemplo, suas leituras, influências, sua é a construção de Carmen da Silva enquanto
“tomada de consciência” para as questões feminista e sua atuação através de sua tribuna
relativas à diferença de tratamento entre homens na revista Claudia. Ana Rita nos apresenta com
e mulheres, seu trabalho na revista, etc. Quando clareza o quanto a seção A Arte de Ser Mulher
terminamos a leitura desse capítulo, deparamo- representou para uma vitória na batalha pelo
nos com uma personagem excepcional a nossa poder do discurso em favor do movimento
frente. A escrita de Ana Rita nos apresenta Carmen feminista. Em alguns momentos as idéias da
de maneira apaixonante, a ponto de estarmos jornalista chocaram-se com o editorial da revista,
totalmente familizarizadas/os com sua história e fazendo-se necessárias a negociação e a
aptas/os a compreender o pioneirismo de seus utilização de estratégias para que seu discurso
escritos para o movimento feminista nacional, nesse espaço fosse preservado.
tratados no terceiro e último capítulo. Em uma avaliação final, Ana Rita atenta
Em “Percorrendo trilhas”, Ana Rita aborda para o pioneirismo de Carmen da Silva e sua
as fases do trabalho de Carmen da Silva junto às contribuição para o movimento feminista no Brasil.
mulheres através da revista Claudia e do Através de pequenas aberturas que a revista
movimento feminista. Nessa parte do trabalho, a Claudia possibilitava em favor de um discurso
autora utiliza principalmente as coletâneas de modernizante, Carmen conseguiu criar não
artigos organizadas por Carmen da Silva. No apenas um lugar diferenciado, mas também um
intuito de reconstruir sua vida através da memória, espaço de debate e mudança.
Carmen escreveu não só sua própria história O trabalho de Ana Rita é um exemplo
como também reavaliou seus trabalhos e os brilhante dentre as produções que nos últimos
momentos vividos na revista. As duas coletâneas tempos têm se preocupado em contribuir para a
que organizou serviram para fazer um balanço compreensão da história dos feminismos no Brasil
de sua produção, e como uma forma de e da vivência de suas personagens, partindo de
documentar as mudanças. Analisando o processo uma perspectiva historiográfica que situa as
histórico, Carmen, como nos mostra Ana Rita, mulheres.
dividiu seu trabalho em quatro fases de acordo
com as temáticas recorrentes.
Na primeira fase, em 1963, a preocupação Joana Vieira Borges
de Carmen consistia em chamar a atenção das Universidade Federal de Santa Catarina
mulheres para a necessidade de se perceberem

Estudos Feministas, Florianópolis, 14(2): 549-571, maio-agosto/2006 555

You might also like