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UCP- Literatura Portuguesa IV - 2016.2 - Profª Msc. Aline A.

Rodrigues
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O SURREALISMO EM PORTUGAL
O surrealismo como movimento organizado começou em Portugal em 1947, no despertar do renovado
interesse sobre ele, por todo o mundo, logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial. O movimento
como tal não durou muito, mas deixou uma profunda marca quer na literatura (sobretudo na poesia) quer
na pintura.
Portugal foi talvez o primeiro país fora da França onde o surrealismo foi mencionado, poucos meses
depois da primeira proclamação do novo ismo de Breton. Aconteceu isto, na mais insólita maneira, por
um crítico imensamente conservador, 1 num prefácio a uma antologia de poemas de um bem firmado
poeta simbolista, publicado em 1925. O crítico estava bem informado acerca dos fins e estilos do
movimento na literatura, e mencionava-os para condenar tal anarquia que ele via como resultado último
de toda a Vanguarda. No fim dos anos vinte e trinta, todavia, as actividades surrealistas como tal não
tiveram repercussão, em Portugal, nos círculos de Vanguarda. Há que esperar até 1942, quando o meu
primeiro livro de poemas apareceu, incluindo exemplos de escrita automática e escudado com epígrafes
de alguns escritores surrealistas. Ao contrário do que foi erradamente escrito posteriormente, eu não fui
nunca membro de nenhum dos grupos surrealistas surgidos em Portugal, e a minha aspiração como poeta
(o que me levou a publicar em 1944 algumas traduções de textos surrealistas) não era ser um surrealista,
mas alguém que escrevia depois do que as experiências surrealistas tinham vindo fazendo e dizendo. O
meu primeiro contacto com o surrealismo data do fim dos anos 30, quando tomei conhecimento da agora
famosa e infelizmente esgotada antologia editada por Georges Hugnet. Aquele meu primeiro livro, tal
como o segundo em 1946, foi mal entendido pelos críticos que não podiam ver nem pés nem cabeça num
não declarado surrealismo que eles não conseguiam reconhecer sem um claro e polémico rótulo.
Podemos, contudo, dizer que o surrealismo era completamente ignorado em Portugal desde os anos 20 até
1942-44? Porque não atingiu formas claras, antes de 1947, como movimento? Para entender isto e
responder a estas perguntas, é importante saber alguma coisa acerca do desenvolvimento da literatura e
arte modernas em Portugal.
A literatura moderna, na maneira agressiva do Vanguardismo, começou em Portugal com a publicação,
em 1915, da revista ORPHEU, dois números, seguidos por um único número de Portugal Futurista em
1917. O «establishment» do tempo, rotulou como loucos os poetas da primeira revista, mas apreendeu a
segunda pela polícia. Destas duas revistas três grandes nomes surgiram: o poeta Fernando Pessoa e Sá-
Carneiro, o primeiro agora a caminho de reconhecimento internacional como um dos grandes poetas do
século, e o pintor José de Almada Negreiros. As primeiras tentativas escritas em prosa poética de Almada
eram já exemplos de corrente do inconsciente antes que Joyce o tivesse desenvolvido. Outras obras destes
escritores foram esparsamente publicadas em pequenas revistas depois da grande aventura de 1915-17,
mas a principal corrente das letras portuguesas seguia nessa altura as linhas pré- modernistas, como se eles
não existissem.
Havia algumas razões políticas para tal. De 1910 a 1926 Portugal foi uma república combatida pelos
conservadores e pelos monárquicos pretendendo o retorno do trono que caíra em 1910. A arte dos
modernistas era demasiado revolucionária para os conservadores, e eles eram pessoalmente demasiado
conservadores (ou apenas queriam pretender que a República era demasiado ordinária para eles) para que

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Referência a Agostinho de Campos, mencionado em dois artigos publicados em janeiro de 1974 no Diário de Notícia s, sob o
título “A primeira referência ao surrealis mo feita em Portugal” e reproduzidos como texto único em Estudos de Literatura
Portuguesa III, antecedendo no livro este aqui transcrito. A referência se repete no texto seguinte, o depoimento “Notas acer ca
do Surrealismo …”, que pode ser lido no site http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br/antologias/notas -notas-acerca-do-
surrealis mo-em-portugal/
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os republicanos não se sentissem suspeitosos. Só nos fins dos anos 20 e nos 30 a sua influência se
começou a fazer sentir, sobretudo porque um grupo – centrado na revista literária presença – iniciou uma
campanha em apoio deles. A gente da presença, com uma ou duas excepções, contudo, se eram a favor da
arte e literatura modernas, e de um renovo da cultura literária portuguesa, eram também por uma espécie
de «establishment» que não viam o experimentalismo e a Vanguarda como movimentos mas apenas como
uma influência literária que apoiava o que eles chamavam a expressão do humano. Era uma espécie de
humanismo literário muito na linha da Nouvelle Revue Françaíse. Mas, entretanto, em 1926, um golpe
militar derrubou a República e a democracia, e iniciou o regime ditatorial que só terminou em Abril
último, como toda a gente sabe. A luta da literatura moderna, tal como a da arte, foi terrível durante estes
anos. A independência do espírito tinha que ser defendida a todo o custo e a todo o momento, enquanto,
por um lado, o regime tentava integrar os escritores e artistas no sistema, e por outro lado, a censura e a
polícia coarctavam todas as tentativas de inconveniente liberdade. Para complicar ainda mais, as doutrinas
do realismo socialista começaram a ser pregadas e m sentido muito rigoroso e eram forte e criticamente
impostas, nos anos 30, por parte da extrema esquerda, e com ela uma espécie de suspeição de toda a
Vanguarda como conservadora ou burguesa decadência. Não se podia, de facto, num pais tão oprimido e
onde a pobreza era um escândalo público, proclamar doutrinas de arte ou puras literatura com consciência
limpa, sem de um modo ou de outro jogar o jogo oficial. Mas não subscrever o realismo socialista, ou
pelo menos não aplaudir os escritores e artistas supostamente a tal comprometidos, era correr o risco de
ser marcado (secretamente ou efectivamente) quase como fascista. Muitos de nós nesses anos
caminhámos em corda bamba. Só no fim dos anos 30 e nos começos dos 40, ajudados pelo facto de que a
guerra clarificara naquele momento os alinhamentos políticos (nem um importante ou significativo nome
das letras ou da arte alinhou com o fáscio), puderam alguns jovens poetas desafiar por sua conta e risco, e
ao mesmo tempo, o «establishment» presença, e a frente do neo-realismo. Durante a guerra Portugal foi
neutral, mas o governo nunca escondeu as suas simpatias para com o fascismo. Estar do lado dos Aliados
era uma maneira de estar ao lado da liberdade, incluindo nela a arte e a literatura. Curiosamente, o papel
que poetas como Aragon e Eluard, ex-surrealistas, desempenharam na resistência francesa, e o facto de
que eles eram comunistas, abriu o neo-realismo português para alguns aspectos surrealistas, ainda que se
não interessassem pelo surrealismo como tal, e tornou alguns destes aspecto sem moda nesses círculos.
Nos anos 30 e 40, sem directa referência ao surrealismo, alguns bem informados poetas como Vitorino
Nemésio, Edmundo de Bettencourt, e Adolfo Casais Monteiro, tinham já incluído nos seus poemas certas
formas menos rígidas e certos meios associativos de criar expressão. Mas foi só no fim dos anos 30 e
começos dos 40 que alguns jovens poetas como eu tentaram a renovação do Vanguardismo de 1915-17,
tendo em vista todos os desenvolvimentos da Poesia Ocidental desde então. A diferença entre estes então
jovens poetas (José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, Tomaz Kim, e eu, a quem normalmente são
acrescentados pelos críticos Sophia de Mello Breyner e Eugénio de Andrade) e os jovens poetas que irão
promover o surrealismo era que nós estávamos mais preocupados do que ninguém o conhecimento da
linguagem e das literaturas além do francês e da influência francesa, que era esmagadora em Portugal,
como ainda é desde o fim do séc. XVIII. Dadas as condições que descrevi, é compreensível que, desde os
anos 20 até aos fins dos anos 40, nenhum movimento definido tenha começado em Portugal, e que os
poetas estivessem mais interessados em experiências suas, se as faziam, do que em lançar formalmente
fosse o que fosse.
O que aconteceu com alguns jovens poetas e artistas em 1947, sob a liderança de um poeta mais velho e
pintor, António Pedro (1909-1967), tornou-se possível por várias e curiosas circunstâncias. António
Pedro tinha, durante os anos 30 e começos de 40, tentado, em vão, ser reconhecido como poeta e artista
de Vanguarda, no despertar da geração 1915. A sua poesia desenvolvera-se de um elegante
tradicionalismo em exercícios de Vanguarda que, no entanto, conservou o delicado sentido da terra e das
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coisas vivas que caracterizam a sua obra. Em 1940, uma exposição da sua pintura conjuntamente com
pintura de António DaCosta (n. 1917) foi a afirmação de dois artistas igualmente distantes quer do neo-
realismo quer da mitigada Vanguarda, ou do convencionalismo do séc. XIX que estavam a inda em voga
nos círculos conservadores. De facto, as obras de ambos eram surrealistas sem o rótulo ou pretensão de
serem um movimento. Em 1942, António Pedro publicou Apenas uma narrativa uma bela e poética
novela que permanece uma das melhores obras surrealistas em qualquer língua. Entretanto, e até ao fim
da guerra, António Pedro trabalhou para a BBC em Londres. As suas emissões, em português, foram
como que a voz da liberdade – uma voz que podia levar- nos à prisão, se apanhados a ouvi- la. Voltou a
Portugal como uma figura conhecida de todos e o homem que, com Mesens, tinha organizado em Londres
a famosa exibição surrealista de 1945. Quando voltou encontrou um pequeno grupo de jovens poetas e
artistas cansados do neo-realismo pelo qual tinham passado e queriam seguir um movimento rebelde,
diferente dos caminhos que outros tinham seguido nos últimos cinco a sete anos. Ao mesmo tempo, os
anos de 1945-47, quando a ditadura de Salazar estava abalada pela vitória dos aliados, permitiam uma
espécie de entusiasmo e esperança de mudança, que culminou, em 1949, quando Salazar anunciou
eleições presidenciais às quais um vasto espectro da «oposição» apresentou um candidato (que teve de
desistir antes da eleição por causa das perseguições governamentais).
Em Outubro de 1947 tinha havido uma reunião atendida por vários poetas e artistas jovens, e por António
Pedro, que foi na verdade o começo do grupo Surrealista Português, e que coincidiu com a exibição
organizada em Paris por Breton como renovação do surrealismo. Mas q uando o grupo, aproveitando a
oportunidade da acima mencionada eleição presidencial (durante a qual o governo levantaria a censura
para permitir alguma crítica da oposição), abriu uma exibição de pintura e colagens no atelier que
António Pedro e DaCosta tinham na «baixa» de Lisboa, o grupo estava já separado em dois: um em torno
de A. Pedro, e o outro em torno do poeta Mário Cesariny de Vasconcelos (n. 1923). O catálogo da
exposição (apesar do levantamento da censura …) tinha tido a capa censurada, porque era uma declaração
apoiando o candidato da oposição para a eleição presidencial. Outras publicações foram lançadas ao
mesmo tempo: Prato-poema da Serra de Arga, de António Pedro, um longo poema, A Ampola
Miraculosa, de Alexandre O’Neill (n. 1924), uma narrativa feita de gravuras velhas, e um Balanço das
Actividades Surrealistas, de José-Augusto França (n. 1922), que se tornou mais tarde um conhecido
crítico de arte. Na exposição dois importantes pintores se revelaram: Fernando Azevedo (n. 1923) e
Vespeira (n. 1925). A exposição foi um grande sucesso e um retumbante escândalo, mas o grupo que a
organizou não teve mais actividade colectiva como um definido grupo surrealista. No entanto, a presença
do surrealismo nas artes e letras portuguesas, desde então, data daí. O grupo saído da divisão e tendo à
frente Cesariny fez duas exposições, uma em 1949 e outra em 1950, e viriam a ser, anos mais tarde, a
única atividade organizada, e a voz do surrealismo estrito. Em 1962, Vespeira e Azevedo, juntos com um
jovem artista que se tornou mais tarde no Brasil, para onde emigrou, famoso artista, Fernando Lemos (n.
1926), fizeram uma exposição que ainda foi um sucesso de escândalo. Não cabe aqui escrever com
grande pormenor uma história de todas as actividades surrealistas portuguesas, participação individual em
exposições, publicações, etc. Mas de tudo isto o que resta ainda? Sem dúvida que uma definitiva presença
do surrealismo na arte portuguesa, que prevalece e reforça a linha de Vanguarda. Nas letras, sobretudo na
poesia, alguns poetas importantes além de António Pedro que então se converteu num reformador do
teatro português com as suas ambiciosas produções. Estes poetas são o já mencionado O’Neill, Cesariny,
e F. Lemos, e António Maria Lisboa (1928-53) que hoje se conta entre os melhore-s da língua. De todos
eles, O’Neill é aquele que melhor funde a tradição do classicismo irónico e o realismo com a fantasia
surrealista em poemas que descrevem com um agudo sentido a luta de ser-se um português em Portugal
durante estes anos. Cesariny, que tinha um forte comando do lirismo ao grande estilo, sempre sacrificou –
como o próprio Breton – muitas vezes os seus grandes dotes à intenção de ser um surrealista a qualquer
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preço. António Maria Lisboa, possesso de angustiadas e dramáticas visões teve uma trágica e curta vida, e
é talvez aquele que abraçou o surrealismo completamente. Fernando Lemos, como Almada Negreiros no
início da Vanguarda em Portugal, e António Pedro depois, trouxe à poesia a visão de um pintor
imaginativo, para quem a intensidade de expressão iguala a pura compreensão das formas. Como
movimento, o surrealismo, em Portugal, chegou tarde e viveu pouco. Mas a sua insidiosa presença tinha
sido sentida nos anos 30 e nos 40; e os resultados da sua tardia aparição ainda pa iram por sobre as artes e
as letras portuguesas.

SENA, Jorge de. In: Estudos de Literatura Portuguesa -III, Lisboa, Ed. 70, 1988 p. 239-244

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