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A Escola de Quioto

1. Kitarō NISHIDA (1870-1945)

1.1. Biografia

Após a abertura do Japão ao exterior, início do período Meiji (1868), os


primeiros filósofos estrangeiros a chegar ao Japão eram provenientes da
Alemanha e começaram por introduzir os pensadores japoneses à filosofia do
romantismo germânico – em termos muitos gerais: um movimento intelectual de
resistência ao do Iluminismo francês que combateu o modo excessivamente
racionalista e materialista de conceber o homem e o mundo, e exaltou as
dimensões da sensibilidade e espiritualidade – ao tempo muito influente. Desse
momento em diante, a afinidade entre pensadores japoneses e pensadores
japoneses não cessará de manter-se. Kitarō NISHIDA receberá a sua educação
nesse clima intelectual.

No essencial, a perspetiva de NISHIDA sobre o homem e o mundo foi


moldada pelo Zen – em termos gerais: escola japonesa do budismo Mahayana
que valoriza especialmente a meditação em detrimento de rituais religiosos ou o
estudo de escrituras – de que foi um praticante assíduo

No decurso da sua instrução pré-universitária NISHIDA estudou,


sobretudo, a língua e a literatura chinesas, assim como matemáticas. Na parte
final desse percurso, dividido entre as matemáticas e a filosofia, inclinou-se pela
última à qual se veio a dedicar.

No Verão de 1889, pouco depois de ter feito 19 anos, não conseguiu


aceder aos estudos superiores como pretendia. Frustrado, decidiu ligar-se da via
universitária e dos constrangimentos que ela impõe, procurando tornar-se um
autodidata. Insatisfeito com os resultados alcançados, em 1891 realizou com
sucesso uma espécie de exame ad hoc de admissão à universidade de Tóquio
entrando para o respetivo departamento de filosofia.
Três anos depois, em 1894, redigiu uma dissertação sobre a teoria da
causalidade de David Hume (1711-1776) para a obtenção do grau de licenciado
em filosofia.

Sucede-se uma década e meia de dificuldades para arranjar um emprego,


tendo conseguido colocações intermitentes como professor do ensino
secundário encarregue da lecionação da língua alemã.

Em 1904, após o trágico falecimento do irmão, mergulhou numa profunda


e longa depressão, pondo fim à prática do Zen e passando a dedicar-se
exclusivamente ao estudo da filosofia, em particular ao estudo da ética.

Só em 1909 conseguiu finalmente obter uma posição como leitor na


Universidade Imperial de Quioto, onde permaneceu até a sua aposentação em
1928.

1.2. Pensamento

1.2.1. Experiência pura

O primeiro período da sua reflexão filosófica esteve centrado na noção de


“experiência pura”. Para percebermos o seu alcance temos antes de abordar de
que modo dois filósofos ocidentais o ajudaram a chegar a essa noção.

Desde logo William James (1842-1910). Com efeito, NISHIDA leu


atentamente em 1904 o ensaio do filósofo estadunidense Varieties of religious
experience. Dele reteve, em primeiro lugar, a reivindicação de James de que a
filosofia deve fundamentar-se na experiência e não na teorização abstrata, e que
uma filosofia radicalmente empirista deve permanecer dentro dos limites da
experiência e resistir à tentação de pensar em ideias completamente desligadas
da experiência.
NISHIDA, à semelhança de James, duvidava da capacidade do intelecto
e respetiva formação de conceitos, para fornecer uma imagem correta ou
verdadeira da complexidade da experiência humana quotidiana ordinária. James
chegou mesmo a sustentar que, para além dos conceitos representarem um
afastamento da nossa experiência, esta, enquanto vivida, excede a nossa
capacidade de conceptualmente ou linguisticamente a articularmos.

NISHIDA manteve que os significados e os juízos constituem uma parte


abstraída da experiência original e, quando comparados com a experiência
enquanto tal, isto é, enquanto vivida ou atual, apresentam um conteúdo bem
mais pobre. Efetivamente, pode dizer-se que existem mais odores, cores,
texturas e formas na experiência do que nomes para eles.

Ser capaz de experienciar simplesmente equivale a apreender a realidade


tal como ela é, assim como a experienciar o nosso eu “profundo”, o que autentica
e radicalmente somos. Para NISHIDA a “experiência pura” é, pois, o fundamento
primordial da consciência e a base última de toda a realidade, como nada
absoluto. Com efeito, é esse o objetivo da prática do Zen: tornarmo-nos unos
com a realidade última, no sentido de nos tornamos capazes de apreender a
unicidade de todas as coisas, a unidade que é inefável e indizível porque
constitui tudo o que é anterior a todas as distinções, a todas as delimitações, a
todas as cristalizações conceptuais, aquilo que não tem qualidades
características ou forma. Se prosseguida suficientemente, a experiência pura
culmina na iluminação, na consciência do fluxo primordial da realidade como
anterior a todas as imposições intelectuais que recebe. Trata-se, em suma, de
conseguir ver o universo inteiro, com todas as suas partes, como sagrado, uma
vez que todas as coisas constituem manifestações dessa mesma fonte

Um segundo filósofo que influenciou NISHIDA na formação da noção de


“experiência pura” foi Henri Bergson (1859-1941). Com efeito, algumas ideias
deste filósofo francês parecem ter sido determinantes na elaboração do primeiro
ensaio de NISHIDA, Inquérito acerca do bem (善の研究, Zen no kenkyū),
publicado em 1911.

O filósofo francês acreditava que o pensamento distorce a experiência


previamente dada porque a recorta e dela destaca ou esconde partes da
totalidade da mesma. Segundo ele, a razão é seletiva, retendo o que é mais útil
para nós e descartando o resto. Todavia, ao fazê-lo falsifica a realidade que se
nos apresenta como um fluxo contínuo.

Bergson denominou “duração” essa apreensão do incessante fluxo da


experiência. Somente aquilo a que chamou “intuição” é capaz de apreender a
totalidade da nossa experiência no plano interior e não como objetificada, como
existente fora de nós.

Segundo ele, para podermos regressar a um autêntico experienciar temos


de desfazer o trabalho do intelecto, abandonar as suas categorias,
comparações, abstrações e análises metódicas, entrando de novo em contacto
com a riqueza e a vivacidade da experiência em fluxo e mudança. É isso que, no
fundo, significa para ele a “duração”: a sensação do fluxo que contrasta com
construção temporal do relógio. A duração intuída constitui um retorno à riqueza
do mundo enquanto experienciado, bem diferente do mundo das constructos
científicos e abstrações uteis onde a riqueza dos detalhes é feita desaparecer.

A intuição, no sentido que Bergson lhe atribui, permite obter um vislumbre


sobre a realidade que está sempre a mudar, a impelir, a mover, a expandir. A
realidade exibe essa dinâmica, essa força, essa energia que Bergson chama
“élan vital” (força vital), que incessantemente cria matéria como uma resistência
à qual responde de vários modos.

Bergson fez um apelo a um regresso à experiência liberta de toda essa


canga que ressoou em NISHIDA. Nas palavras iniciais do Inquérito acerca do
bem lê-se: «Experienciar significa conhecer os factos tais como são, conhecer
de acordo com factos, renunciando completamente às próprias fabricações.
Aquilo que habitualmente referimos como experiência apresenta-se adulterada
por algum tipo de pensamento e, por conseguinte, uso a palavra pura para
denotar a experiência tal qual é desprovida de qualquer discriminação
deliberativa por mínima que seja».

Esta ideia de purificar a experiência, de tentar experienciar diretamente o


fluxo da realidade é para NISHIDA basilar, pois é através da pura experiência
que o conhecimento do que é pode ser alcançado e que todo o restante
conhecimento, que deriva ou resulta da pura experiência, nos é dado. A
experiência é, portanto, um acontecimento da consciência. Um exemplo torna-a
mais clara: antes de interpretarmos uma cor como relativa a uma determinada
coisa, ou como semelhante a outras cores que já vimos no passado, há apenas
uma consciência de cor; só mais tarde podemos atribuir o termo “vermelho” e
chamar “cereja” ao objeto que esteja diante de nós ou dizer que possui um
vermelho mais escuro que o habitual ou qualquer outra modificação intelectual.
Todo e qualquer outro conhecimento, segundo NISHIDA, principia
necessariamente por esta experiência de totalidade.

A pura experiência é, pois, o alicerce da metafísica de NISHIDA, ou seja,


da sua conceção mais sistemática da realidade.

A experiência pura é sempre uma unidade, que pode ser complexa, e que
embora ocorrendo sempre no presente, pode dilatar-se temporalmente. Ela
antecede a distinção sujeito/objeto e a divisão da consciência nas suas
dimensões de conhecimento, sentimento e vontade. Esta unidade é uma
unidade da experiência consciente e, nesse sentido, ao mesmo tempo o nosso
eu consciente no seu ponto de partida básico e a estrutura básica de toda a
realidade.

No entender de NISHIDA «sendo os fenómenos materiais e espirituais


idênticos do ponto de vista da experiência pura (…) O poder unificador que se
encontra na base do nosso pensamento e vontade, assim como o poder
unificador que se encontra na base dos fenómenos do cosmos é essencialmente
o mesmo». Mais, o poder unificador que se encontra na «base do nosso
pensamento e vontade (o mundo do sujeito) é “diretamente idêntico” ao poder
unificador nos fenómenos do cosmos (o mundo dos objetos)». Noutras palavras:
embora nunca possamos conhecer uma flor tal como é em si mesma
independentemente da consciência humana, o facto de nós, tal como a flor,
sermos auto-expressões de Deus, ou da energia originária, indica-nos que o
mesmo poder unificador está em ação em todo o universo.

Em suma, a estratégia filosófica de NISHIDA foi tentar apreender a


realidade através da pura experiência e não através da experiência já
estruturado por um sujeito olhando para o exterior, para objetos já identificáveis
e dualisticamente separados dos sujeitos, ou por meio de dedução racional ou
indução empírica.

1.2.2. O Nada absoluto

O labor reflexivo de NISHIDA orientou-se inicialmente pela busca de uma


realidade última anterior, subjacente e transcendente ao dualismo do sujeito e
do objeto assim como a todas as distinções intelectuais. No Inquérito acerca do
bem estabeleceu psicologicamente a primazia da experiência e do ego que a
apreende.

Com o intuito de desenvolver uma imagem mais completa da própria


realidade e diminuir a dependência da experiência dessa realidade tal como é
capturada pela consciência na consciência NISHIDA começa a pensar sobre um
“nada absoluto”, uma realidade que, ainda que desprovida de características,
possa servir de fundamento para todas as coisas na sua conceção filosófica, o
mais amplo e abrangente informe (=sem forma) do qual todas as coisas derivam.

Não podemos chegar a conhecê-la através do pensamento, uma vez que


é impensável e inominável, exceto recorrendo a termos minimalistas como o de
“nada”. Seria uma realidade que permanece para além das palavras e do
pensamento. E, claro, o pensamento envolvido no pensamento do impensável é
negação daquilo que ordinariamente significa para nós “pensamento”. Como
pensarmos então aquilo que permanece para além dos limites do que
conseguimos pensar? A solução de NISHIDA é: não o pensamos; em vez disso
tornamo-nos isso, no sentido de termos um “lampejo da vida”.

Nishida torna claro que aquilo que visa – o nada inefável – é uma
perspetiva profundamente enraizada nas culturas “orientais” em geral, e no
Japão em particular: «Acho que podemos distinguir o Ocidente por ter
considerado o Ser como o fundamento da realidade, o Oriente para ter tomado
o Nada como sua base. Vou chamá-los realidade como forma e realidade sem
forma, respetivamente». O nada (isto é, Deus) pode ser encontrado na
experiência, mas, claro, nem todas as experiências puras são de Deus ou do
nada.

Como belissimamente sintetizou outro filósofo japonês, o Nada Absoluto


«(…) é isso onde Deus e os homens ainda não assumiram os seus lugares».
Deus tem qualidades e, por conseguinte, é mais do que apenas pura experiência.
O nada, enquanto mero “lugar”, não possui precisamente qualidades, porque é
anterior a todas as qualidades e distinções. O nada é esse algo ainda indiviso do
qual Deus surge. É um Nada por detrás de Deus. Em suma, esse Nada abarca
Deus, mas não o inverso.

Para NISHIDA, Deus é uma experiência, e a via que conduz a uma tal
experiência consiste no auto-cultivo permanente por intermédio da prática de
uma qualquer disciplina eleita. A religião, segundo ele, é “um acontecimento na
alma de uma pessoa” e as demonstrações racionais e fé cega pouco têm que
ver com Deus.

Este fundamento ou base da realidade deve ser apreendido através da


intuição. Este termo, “intuição”, significa na língua japonesa ter “experiência
direta” e pode referir-se a um tipo de sentimento ou sensação. Paradoxalmente,
a apreensão da realidade neste modo alcança-se por intermédio de uma
inversão do olhar, isto é, é olhando para dentro nós em vez de para fora de nós.

Uma vez que o eu profundo enquanto experiência pura não pode ser
objetificado, dito diretamente ou percebido NISHIDA denominou-o um basho, um
lugar vazio, um campo ou simplesmente nada.

O eu profundo da experiência pura não é, pois, uma construção da


consciência, mas a manifestação dessa unidade que se lhe encontra subjacente
e na raiz de todas as coisas. O eu profundo da experiência pura é, nesse sentido,
uma consciência cósmica.

A conceção de NISHIDA acerca do derradeiro, ou Deus, não é de uma


personalidade transcendente que se encontra fora do mundo. Deus é entendido
como imanente a tudo aquilo que existe, embora ao mesmo tempo
transcendente a todas as coisas particulares. O que NISHIDA parece
originalmente propor não é um panteísmo, mas o que alguns filósofos da religião
contemporâneos denominaram “pan-entismo”: Deus está em todas as coisas,
mas é mais do que todas as coisas. Sublinhe-se esta diferença: na visão do
panteísmo o universo e tudo o que nele se encontra é Deus; o pan-entismo
acresce a essa visão a ideia de Deus é mais do que tudo isso, transcendendo-o
e constituindo-se como fonte de tudo o mais. O que resulta, pois, é uma
imanência-transcendência (ou vice-versa), em que Deus é inerente a todas as
coisas e, ao mesmo tempo, transcende todas as coisas.

Enfim, para NISHIDA, a unidade da consciência não pode tornar-se objeto


de conhecimento, na medida em que transcende todas as categorias
epistémicas.

Ler: Carter (2013): 13-29; 35-40

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