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! Anhembi. São Paulo: vol. XLIV, n° 132, Nov. 1961.

FLOBJESTAN FERNANDES

UNIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS


E A ANTROPOLOGIA (1)

TEUIA que me foi atribuído — "A Unidade das


Ciências Sociais e o Papel da Sociologia e da
Antropologia — apresenta enorme amplitude e
complexidade. Para evitar formulações sumá-
rias e obscuras, tomei a liberdade de redefini-lo,
restringindo-o e tornando-o mais incisivo. Ainda
assim, não me parece assunto apropriado a
uma conferência. A razão é óbvia: os cientistas
sociais estão longe de ter alcançado suficiente harmonia de pontos
de vista, para que seja possível fazer-se, com êxito medíocre, uma
súmula dos resultados atingidos nesse terreno.
Se aceitei arcar com as responsabilidades do tema, foi menos
por julgar-me capaz de superar dificuldades bem conhecidas, às
quais sucumbiram as melhores inteligências, que por causa de sua
significação no cenário intelectual brasileiro. É que me parece
imperioso incentivar ,as preocupações teóricas dos nossos cientistas
sociais jovens. O labor científico tem metas claras. Cabe-lhe
alargar e aprofundar, incessantemente, as fronteiras do conhe-
cimento positivo comprovado do homem, das quais depende sua
capacidade de explicar as coisas e de submetê-las à controle cons-
ciente, organizado e eficaz. Nesse sentido, o tema é dos mais fru-
tíferos. Na medida em que impõe a consideração e o debate das
questões mais gerais do sistema de referência de nossas pre&oupa-
ções teóricas, obriga-nos a tomar posição diante dos grandes pro-
blemas da ciêndo* em nosso campo de trabalho.

(1) Trabalho apresentado à V Reunião Brasileira de Antropologia (Belo Ho-


rizonte, Junho de 1961), como parte de seu programa de conferências.
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UNIDADE DAS ^ P>"^meira noção que precisa ser clara-


mente entendida é a de "unidade" na
ciência. Existe uma unidade lógica na
ciência, que resulta da própria natu-
reza do raciocínio científico. Nesse sentido, é que se diz que
"o método científico é uno e o mesmo em todas as disciplinas, e
é o método de todos os espíritos educados logicamente". (2) Doutro
lado, porém, a aplicação do método científico à explicação de
ordens diversas de ocorrências envolve diferenças marcantes entre
as várias disciplinas científicas. Algumas dessas diferenças são
fundamentais e aparentemente irredutíveis. Outras, parecem pren-
der-se a condições contingentes e variáveis na utilização do método
científico. Quando se pensa na unificação- da ciência, nesse plano,
é preciso ter-se em conta o grau de coordenação e de interdepen-
dência logrado pelos distintos ramos do saber científico. Nesse
sentido, fala-se na existência da "unidade orgânica" na ciência.
Qualquer que seja o modelo pelo qual se procure descrevê-la $^
(através da idéia de "sistema da ciência", da idéia de "enciclopédia fc
unificada da ciência", etc), dois f a t o s são reconhecidos como essen- «
ciais. Primeiro que a unidade lógica da ciência faz que todos f
os ramos do conhecimento científico sejam solidários entre si, con- .[
correndo complementaria e integrativamente para a consecução dos |
fins cognitivos (empíricos, teóricos e práticos) do pensamento cien- -.1
tífico. Segundo, que o edifício da ciência como um todo se< altera
continuamente, de acordo com os progressos dd investigação funda- '
mental e seus reflexos na reorganização do universo intelectual
do cientista. i
Seria impraticável examinar aqui todas as contribuições dos T
cientistas sociais à análise ou ao equacionamento dos problemas
relacionados com a unificação das ciências sociais. Em regra, *
elas evitam as questões que se colocam, direta e inequivocamente, £
no nível da unidade lógica do pensamento científico. Essas questões f
só têm sido focalizadas à luz dos requisitos da explicação cientí- i
fica em cada domínio particular de investigações. Apenas espe- [.
cialistas associados ao "movimento da enciclopédia Internacional •
da Ciência Unificada" empreenderam esforços mais ambiciosos, J
com o fito de explorar os municípios do empirismo lógico* na f
"unificação da linguagem sociológica", concebida como uma "lin- ^
gua franca" da ciência social unificada. (3) Os resultados dessa

(2) Corroboração de um ponto-de-vista generalizado, extraída de Karl Pearson


(o enunciado seria mais precioso se a juntássemos: "... educados logicamente
no uso do raciocínio científico").
(3) Tenho em mente, em particular as contribuições de Otto Neurath (cí.
esp. "Unified Science as Encyclopedic Integration", in International Encyclo-
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tentativa demonstram que ainda é prematura a tarefa, que tais


autores se propuseram. O grau de unificação, conseguido ardua-
mente no domínio de cada ciência social de per si, é insuficiente
sequer para estabelecer um mínimo de integração aceitável uni-
versalmente pelos investigadores, em seus campos específicos de
trabalhos. Em conseqüência, os problemas que aqueles autores
se propuseram aderem a preocupações especulativas, de natureza
variavelmente extra-científica; divorciam-se quer dos objetivos da
pesquisa científica- fundamental, do modo em que eles são enca-
rados pelos cientistas sociais, quer das tendências de desenvol-
vimento teórico das ciências sociais no presente.
O interesse dos cientistas sociais pelas questões lógicas da ciên-
cia têm sido regulado pela necessidade de construir, refinar e coor-
denar padrões de investigação e de explicação ajustados à natureza,
à variedade e à complexidade de comportamento social organizado
dos seres vivos. Por isso, tais questões são bem diversas, con-
forme as etapas do pensamento científico que se considere em
seus domínios de estudos. Grosso modo, é possível distinguir três
momentos centrais nesse processo de evolução das idéias científicas.
O primeiro, caracteriza-se pela intenção de consagrar a autonomia
de dada disciplina, libertando-a ao mesmo tempo, d-a- condição de
matéria filosófica e de síntese artificial de conhecimentos gerais
sobre certa porção da realidade. Nesse momento, os especialistas
tendem a representar sua própria disciplina, como scientia scien-
tiarum, como se dela dependesse a compreensão e a explicação
unificada do comportamento social organizado dos seres vivos.
O "psicologismo" e o "sociologismo" fornecem ilustrações típicas
dessa orientação. Mas, ela não se confinou a essas disciplinas,
afetando igualmente os pontos-de-vista do economista, do an-
tropólogo, do geógrafo e do historiador. O segundo momen-
to emerge, gradualmente, com o amadurecimento do espírito
científico, resultante do progresso mais ou menos rápido da
pesquisa empírica e da sistematização teórica. São seus traços
característicos: a valorização do "ponto-de-vista especial" na
ciência, a intensificação do acúmulo de materiais empíricos e,
principalmente, o alargamento dos sistemas de referência teóricos,
através do aproveitamento dos avanços teóricos das ciências afins
e do incremento da cooperação interãisciplinar. A especialização
corrige e complementa a especialização, porém, apenas em áreas
circunscritas, como se pode verificar pelos influxos das teorias

pedia oi Unified Science, vol. I-N.° l, University of Chicago Press, Chicago, 1946,
pp. 1-27; Foundations of the Social Sciences, idem, Vol. II-N.° l, University oi
Chicago Press, 1944, Chicago, passim).
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psicológicas sobre a antropologia ou a sociologia na atualidade.


Assim se explica a limitada repercussão do intercâmbio desenvol-
vido na revisão de imagens globais sobre a importância relativa
de cada» ciência social, o caráter das relações delas entre si e a
viabilidade de formas cooperativas de investigação inter disciplinar.
Por fim, o terceiro momento surge com o aparecimento de preo-
cupações práticas entre os cientistas. Tanto na psicologia e na
economia, quanto na sociologia e na antropologia, as questões prá-
ticas suscitaram exigências integrativas especiais. Descobriu-se
que a intervenção racional na realidade impõe a consideração si-
multânea de fatores que se apresentaram como entidades isoladas
nas teorias científicas. Daí a tendência característica dos espe-
cialistas a procurar na síntese teórica uma saída para as limitações
inerentes à cada especialidade. Não obstante, mantêm-se a crença
de que a própria disciplina seria o foco central da referida sín-
tese, o que se pode comprovar facilmente através das idéias dos
principais psicólogos, sociólogos ou antropólogos contemporâneos.
Esse sumaríssimo escôrço põe em relevo algo sobre o que con-
vém insistir. Os estímulos da situação de trabalho variaram,
consideravelmente, ao longo do crescimento das ciências sociais.
Contudo, eles se mantiveram tão fracos que não chegaram a pro-
duzir resultados análogos aos que a experimentação e o método
hipotético-dedutivo provocaram na física, na química e na biologia,
em lapsos relativamente curtos de tempo. Em última instância,
seria legítimo afirmar que as ciências sociais exibem um padrão
descontínuo de crescimento teórico, embora várias influências con-
comitantes estimulem, de modo concorrente, a expansão d-a pes-
quisa fundamental, da pesquisa aplicada e de diferentes tipos de
elaboração teórica. O efeito final disso tudo redunda numa certa
incapacidade dos cientistas sociais diante de questões gerais, que
transcendam aos seus< campos imediatos de trabalho e às perspec-
tivas de colaboração inter disciplinar que eles possibilitem. É ine-
gável que se pode esperar a correção de semelhantes limitações no
futuro próximo, como decorrência da depuração dos modelos em-
pírico-indutivos de descrição da realidade, da formação de recur-
sos hipotéticos-dedutivos de explicação e do fortalecimento das ten-
dências integrativas no terreno das ciências sociais aplicadas. Mas,
isso não nos deve impedir de reconhecer a situação caótica domi-
nante, com seus reflexos negativos na organização do horizonte
intelectual dos cientistas sociais. As concepções que presidem à
escolha dos alvos dos projetos de investigação e que orientam a
elaboração interpretativa dos resultados atingidos padecem de in-
consistências elementares, que impedem uma visão de conjunto
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suficientemente ampla, provocativa e ordenada dos problemas teó-


ricos básicos das ciências, consideradas de per si e como um todo.
Essas conclusões indicam, claramente, a natureza dos proble-
mas de unificação com que se defrontam os cientistas sociais. Em
grau maior ou menor, todas as ciências sociais se encontram na
fase de transição, que separa a "ciência de observação simples"
ãa "ciência de observação controlada". Apesar dos tumultuosos
e notáveis progressos realizados nos últimos três quartos de século,
nelas os especialistas ainda lutam com a necessidade de assegu-
rem-se certos requisitos de conhecimento científico, com a delimi-
tação objetiva de alvos produtivos de investigação, a precissão no
uso de conceitos gerais, o emprego de técnicas- rigorosas de obser-
vação, de descrição e de interpretação da realidade, etc. Isso é
verdadeiro a tal ponto, que se percebe uma nítida ligação entre o
domínio progressivo dos procedimentos de trabalho científico e o
acúmulo crescente de convergências fundamentais no estudo ãa
personalidade, da sociedade e da cultura. Dai decorre que o cien-
tista social precisa apégar-se a uma espécie de puritanismo cientí-
fico, fora de moda ou aparentemente ingênuo aos olhos do físico,
do químico ou ao biólogo. Mas, esse puritanismo é essencial, como
condição para introduzir o espírito científico, os critérios e a lin-
guagem da ciência nos setores mais complexos e sutis da investi-
gação sistemática do comportamento social organizado dos seres
vivos. Onde ele falha ou é mal explorado, a pesquisa empírica
e a criação teórica sofrem colapsos sérios, afastando-se dos alvos
do conhecimento científico; e a colaboração inter'disciplinar esbarra,
por sua vez, com dificiildades insuperáveis.
Em resumo, a questão da unidade das ciências sociais ainda
se confunde com a questão do caráter científico das disciplinas
que pretendem investigar e explicar objetivamente o comporta-
mento social organizado dos seres vivos. Em nossos dias, não se
trata mais de saber se tais pretensões são legítimas e possíveis.
O que importa é outra coisa: convertê-las, definitiva e comple-
tamente, em ciências, conferindo-lhes as dimensões formais e ma-
teriais, logicamente homogêneas, do conhecimento científico. Nesse
contexto, ganham relevo os procedimentos que asseguram, pela
base, um mínimo de unidade, coordenação e integração entre as
ciências sociais. Esses procedimentos dizem respeito à delimita-
ção de alvos teóricos e às maneiras de atingi-los, mediante combi-
nações apropriadas entre os vários padrões de pesquisa empírica
sistemática e as diferentes modalidades de interpretação generali-
zadora dos fenômenos psico-sociais ou sócio-culturais.
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Essas considerações esclarecem, segundo su-


ANTROPOLOGIA ponho, o modo pelo qual me parece frutí-
E SEUS fero abordar, atualmente, as questões rela-
PROBLEMAS cionadas com a "unidade" das ciências
TEÓRICOS sociais. Á. ênfase é posta nos processos pelos
quais os conhecimentos positivos são obtidos,
em vez de concentrar-se nas implicações substanciais ou acessórias
desses conhecimentos. É óbvio que reconheço que os resultados
logrados em cada ramo das ciências sociais permitiriam tomar
outro ponto de partida. Apenas, acredito que haveria pouco inte-
resse real em ver tais questões de outro ângulo. Nas presentes
circunstâncias, os cientistas sociais devem empenhar-se o menos
possível em debates de cunho intelectualístico e, ao inverso, devem
aprofundar-se o quanto puderem em reflexões que abram perspec-
tivas favoráveis à sistematizarão rápida e segura, das explicações
consistentes sobre os fenômenos que caem em seus campos de
observação e de interpretação. Nesta parte da exposição não irei
ocupar-me, por conseguinte, da antropologia como um "corpo de
teoria- sistematizada" ou como um "sistema, teórico". Mas, com
os problemas teóricos que, em meu entender, incidem (ou deve-
riam incidir) em suas províncias.
Há assuntos que são indisfarçàvelmente delicados para os
não-especialistas, em particular quando tratam com auditório cons-
tituído por especialistas, como é o meu caso. .. Por isso, peço pef-
missão para encetar esta parte de debate através de uma longa
citação, que me parece uma condensação extremamente habilidosa
e perspicaz das ambigüidades que afligem a antropologia. Valen-
do-se de "uma imagem sugestiva e provocante, de "liberdade em
tensão", Reãfield ressalta aquilo que se poderia chamar, sem ne-
nhuma intenção jocosa ou pejorativa, de "calcanhar de Aquiles"
ou "ponto fraco de Sansão" da antropologia científica. "Pode-se
dizer, escreve, que a antropologia desfruta e ao mesmo tempo
padece das conseqüências das polaridades e das ambigüidades de
seu objeto e de seu método. A coerência da disciplina é ameçaãd
pela variedade de aproximações que os antropólogos fazem de pro-
blemas e campos de investigação que, embora vinculados à antro-
pologia, são muito separados uns dos outros. Por isso, as verdadei-
ras tensões no seio da antropologia, a disposição a arrogar-se as
questões marginais de qualquer setor do imenso e variegado estudo
do homem, torna a antropologia a mais livre e a mais explorativtà
das ciências". "A antropologia está, portanto, provo cativam ente
indecisa quanto a se seu objeto é a humanidade in totó ou o homem
como ser cultural" (. ). "De outro lado, (. ) a antropologia,
não é um coisa, mas duas: uma ciência e história do animal que é
UNIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E A ANTROPOLOGIA 459

o homem; e uma história e talvez uma ciência ou< duas daquele


objeto especial, a humanidade" (4). Diante disso, temo pelas
sugestões que vou fazer, embora elas me pareçam, em si mesmas,
úteis e procedentes.
Esse estado de "liberdade em tensão" poderia ser descrito em
outros termos, por cientistas que não se achem familiarizados com
as dificuldades e as incertezas a que nos habituamos. Há um ine-
gável lado criador nessa situação. Ela abre, praticamente, cami-
nhos insondáveis e imprevisíveis para a inteligência e a imaginação
dos cientistas sociais. A ela também é inerente,'sob outros aspectos,
uma confusão deplorável, que precisa ser combatida e superada com
decisão De Boas a Kroeber e Stewarã, a antropologia percorreu,
rapidamente, as etapas de um desenvolvimento que a colocam em
condições de rever a forma tradicional de divisão e de fundamen-
tação de seus campos de trabalho. Há pouco sentido em reiterar
e fortalecer, em nossos dias, fórmulas que se mostram' cada, vez
mais vazias de conteúdo e de significação. Entre essas fórmulas,
se acham certas noções, cunhadas em momentos em que a maleabi-
lidade se impunha sobre o rigor e a precisão, como requisito para
tornar a antropologia um empreendimento viável no âmbito da
ciência. Hoje, deveríamos descartar-nos delas, substituindo-as por
fórmulas alternativas, coerentes com os conhecimentos que dispo-
mos sobre a cultura e os processos culturais.
Não me julgo competente para discutir semelhante assunto em
profundidade. Mas, gostaria de ilustrar minha opinião, tomando
duas ou três dessas fórmulas. Consideremos, em primeiro lugar,
a própria conceituação da antropologia. A insistência em defini-la
como ciência de homem possui tanto sentido quanto chamar a física
de ciência da matéria. Na verdade, todas as ciências sociais são,
de alguma maneira, "ciências do homem"; o que me parece mais
importante, sobre elas, não ê isso, mas o fato delas investigarem
processos que se originam e que ocorrem em níveis pré-humanos de
organização da vida. Como a psicologia e a sociologia, a antropo-
logia é uma ciênoia que procura descobrir regulariáaães de forma,
de coexistência e de sucessão, que permitem explicar processos que
se manifestam em diferentes circunstâncias particulares. A ênfase
sobre o homem perturba essa compreensão, nrn medida em que tais
processos são pertinentes à cultiira e o objetivo que temos em vista
não consiste, apenas, em explicar a cultura pelo homem (o que os
psicólogos poderiam fazer de forma razoável), porém em explicar
as condições em que a cultura se torna um elemento básico na orga-

(4) Robert Bedfield, "Relations of Anthropology to the Social Sciences and


te the Humanitles, in A. L. Kroeber (ed.), Anthropology Today. An Encyclo-
pedic Inventory, The University of Chicago Press, Chicago, 1953, p. 736.
.• •

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nização ãa vida e, principalmente, o que ela representa como fator


dinâmico de integração e de diferenciação do nível socio-cultural
de organização da vida (o que só o antropólogo pode fazer de forma
razoável}. A perpetuação dessa fórmula se prende, evidentemente,
à persistência de preconceitos espiritualistas e anticientíficos, que
convertem o "antropocentrismo" — ou a hominicentricidaãe, como
o designa Kreeber — em frente de um falso abismo entre a "na-
tureza" e a "cultura", tão bem expressa na separação rígida entre
"antropologia- física" e "antropologia cultural".
Outra fórmula desastrosa vincula-se ao modo de conceber-se
o modelo de explicação científica, usualmente empregado pelos an-
tropólogos em seus campos de investigação . Como "ciência geral
ãa cultura", a antropologia tem de lidar, forçosamente, com regu-
lariãades e com uniformidaães que explicam a ordem existente em
certo nível de organização da vida. Isso pressupõe que se reconheça
a cultura "como um nível ou ordem ou emergente de fenômenos
naturais, um nível marcado por uma certa organização distintiva de
seus fenômenos característicos". (5). O fato dessas regularidaães
e uniformidaães se apresentarem em diferentes concreções empíri-
cas, oferecendo-se à observação e à interpretação como dados va-
riáveis no tempo e no espaço, ou permitindo várias espécies de
tratamento abstrato, não justifica o ponto-de-vista de que elas
compartilhem de uma natureza evasiva e protéica. Ao contrário,
se as normas do raciocínio científico representam alguma coisa,
elas impõem o ponto-de-vista inverso, segundo o qual os especia-
listas precisam munir-se de vários recursos lógicos, para poderem
reduzi-las às expressões normais do pensamento científico. Em
última/ análise, cumpriria a eles descobrir soluções terminológicas
e interpretativas ajustadas à simples reprodução de itens, pro-
cessos e totaliãaães culturais, até explanações sintéticas de fenô-
menos universais, conditio sine qua non da existência da cultura e
do nível correspondente de organização socio-cultural ãa vida.
Todas as tarefas abrangidas entre esses dois extremos seriam igual-
mente "científicas", aparentando o mesmo valor lógico para o
crescimento da antropologia como ciência.
Por fim, bem mais estranha ê a perpetuação de uma autêntica
relíquia humanística, mesmo entre antropólogos funcionalistas. O
caráter instrumental ãa cultura constitui um dado objetivo, que se
evidencia sob qualquer perspectiva de que a encaremos (seja "gené-
tica", seja "estrutural", seja "funcional", seja "axiológica", seja
"causai"). A tendência a descrever os itens, as totaliãades e os

(5) Citação extraída de A. L. Kroeber The Nature of Culture, Tine Univer-


sity of Chicago Press, Chicago, 1952, p. 4.
UNIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E A ANTROPOLOGIA 461

processos culturais independentemente desssa conexão instrumental


representa uma aberração, que colide com orientações decisivas da
antropologia científica moderna (6). Ora, as objetivações da cul-
tura não são inermes. Elas carregam consigo percepções impulsões,
aspirações e valorizações que a convertem numa poderosa força
dinâmica, da qual dependem, em escala coletiva, a conformação de
querer humano e o destino dos povos. Se os antropólogos pretendem
ser úteis à solução dos problemas práticos, é preciso que eles apro-
fundem o teor pragmático de suas contribuições, tornando a antro-
pologia uma disciplina capaz de aumentar o poder do homem sobre
as instrumentalidaães e os ãinamismos da cultura.
Da crítica a fórmulas desse gênero extraio a convicção de que
os antropólogos já estão se defrontando com a necessidade de modi-
ficar, radicalmente, a organização de seus campos de trabalho.
Os conhecimentos acumulados abriram novos horizontes, que não
têm sido devidamente aproveitados, no entanto, aparentemente por
causa da pobreza dos esquemas teóricos, que propõem e delimitam
os problemas centrais da antropologia como ciência. Neste terreno,
é patente que só os antropólogos podem determinar quais sejam os
critérios mais apropriados à atualização e refunãição da problemá-
tica dessa disciplina. Contudo, minhas experiências na análise dos
problemas metodológicos da sociologia ensinaram-me algo que pa-
rece possuir interesse para o contexto de nossa discussão. Após
longos e pacientes esforços para descobrir critérios especificamente
sociológicos, que permitissem ordenar logicamente os campos e os
problemas teóricos fundamentais da sociologia, cheguei a residtaâos
paradoxais (7). Agrupando os problemas sociológicos segundo sua
natureza e os métodos pelos quais os sociólogos têm procurado inter-
pretá-los, constatei que seria possível subdividir a sociologia, em
reduzido número de disciplinas básicas interrelacionadas, quase to-
das identificáveis através de expressões consagradas (8). Para
surprêza minha, a classificação final apresenta analogias tão pro-
fundas com a maneira pela qual alguns psicólogos tratam dos
mesmos problemas, que se poderia ter a impressão que ou explorara,

(6) Como a tendência a expurgar os modelos de explicação antropológica,


adaptando-os à interpretação nomotética dos fenômenos culturais; a tendência
a Investigar sistematicamente a influência dinâmica dos fatores culturais na
organização das bases perceptivas e cognitivas do comportamento humano; e
a tendência a legitimar e a valorizar a esfera das contribuições práticas dos
antropólogos, através da antropologia aplicada.
(7) Deve salientar que tentei explicar critérios formalmente utilizados antes
por P. Toonuies e por K. Mannheím; a única influência não sociológica apro-
veitada deliberadamente consiste num pequeno ensaio de F. Malnx (Foundations
of Biology, International Encyclopedia of Unified Science. Vol. 1-N.° 9. Univer-
sity of Chicago Press, Chicago, 1955).
(8) Um esboço das conclusões a que cheguei foi apresentado em Ensaios
de Sociologia Geral e Aplicada, Livraria Pioneira Editora, S. Paulo, 1960, pp. 20-30.
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deliberaãamente, suas idéias. No entanto, isso não sucedeu. Mes-


mo uma expressão que poderia sugerir o contrário — a de socio-
logia diferencial, empregada para evitar'as ambigüidades da noção
de sociologia histórica fora construída a partir de sugestões meto-
dológicas de Marx, tendo recebido, ainda, aplicação prévia diversa
por parte de Gurvitch (9}.
Essas experiências suscitaram em meu espírito uma suposição:
dado que a diferença entre a psicologia, a sociologia e a antro-
pologia se funda, materialmente, sobre unidades de investigação
interdependentes, não existiria uma convergência lógica fundamen-
tal entre as três disciplinas f Nesse caso, poderíamos distribuir
os diversos problemas teóricos da antropologia mais ou menos da
seguinte maneira. As questões relacionadas com a adaptação do
homem ao meio inorgânico, orgânico e super-orgânico, que podem
ser descritas e interpretadas através de elementos ou, de processos
universais da cultura, seriam objeto da antropologia sistemática.
Muitas das lacunas e das inconsistências da antropologia proce-
dem da ausência de uma disciplina que concentre a atenção aos
antropólogos nos aspectos axiomáticos da estrutura e funciona-
mento da cultura, descritos por KlucJchohn (10) como "pontos
invariáveis de referência", por surgirem à análise com o caráter
de "regular idade s panumanas" ou de "uniformidades substan-
ciais". A tão debatida supremacia teórica relativa da psicologia
e da sociologia sobre a antropologia encontra aqui sua explicação.
A falta de uma disciplina antropológica dessa ordem fés que
os antropólogos do passado (mesmo no campo da etnologia com-
parada), opusessem resistências descabidas a explanações genera-
lizadoras que levassem em conta apenas os requisitos estruturais e
dinâmicas da cultura vista como um sistema. Procediam como
se a preocupação pelo "universal" eliminasse, necessariamente, o
interesse pelo "peculiar" (ou, em sentido impróprio, pelo "his-
tórico-cultural"). Uma das maiores conquistas da antropologia
moderna- consiste em demonstrar, por meios próprios (portanto, sem
o recurso a dados da psicologia ou da sociologia), que ambas as
coisas são conciliáveis e, sob vários aspectos, uma decorrência lógica
das especializações prováveis dos antropólogos como cientistas,

(9) Quanto ao aproveitamento de sugestões de Marx: retive o contraste oue


eles propôs tão claramente entre as explicações do historiador e a do economista;
o segundo procura reter os íenômenos sociais no tempo, mas manipula tanto
os íatôres Históricos, quanto os fatores históricos presentes. Nesse sentido, o
íator histórico social seria uma espécie de elemento residual ou diferencial,
que permitiria explicar os processos sociais como processos contínuos, através
de uniformidade de seqüência (cf. P. Fernandes, Fundamentos Empíricos da
Explicação Sociológica, Comp. Ed. Nac., S. Paulo, 1959, pp. 115-126).
(10) Clyde Kruckhohn, "Universal Categories of Culture", in A. L. Kroeber
(ed..), Anthropology Today, op. cit., pp. 507-523.

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UNIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E A ANTROPOLOGIA 463

Nesse sentido, a antropologia descritiva assumiria o papel de her-


deira presuntiva de vasta herança intelectual, legada principal-
mente pela etnografia, pela arqueologia e pela antropologia física.
Os problemas classificatórios ou os problemas relativos à evolução
de sistemas culturais descontínuos caberiam à antropologia com-
parada, enquanto que a análise e a interpretação de desenvolvi-
mento cultural como um processo contínuo pertenceriam à antro-
pologia diferencial. Se é certo que lingüistas, antropólogos físicos,
arqueólogos e etnólogos se embrenharam por _vários meandros ãa
primeira disciplina, parece incontestável que nem sempre houve
autêntico interesse pela última. Ela foi alarmant emente negligen-
ciada, talvez por pensar-se que as tarefas a ela pertinentes cou-
bessem à história da cultura, à filosofia da história e à filosofia
da cultura. ÀS confusões só agora começam a dissipar-se, com a
revalorização dos problemas de evolução e com o aparecimento de
interesse científico genuíno pela observação e interpretação dos
processos de crescimento ãa cultura. Resta-nos a esperança de
que a gravitação para o estudo das chamadas "grandes civiliza-
ções" melhore as possibilidades de construção de uniformidades de
seqüência pelos antropólogos, ampliando sua contribuição à expli-
cação da dinâmica da. cultura. Os problemas vinculados à parti-
cipação dos antropólogos em projetos de mudança cultural pro-
vocada, de planejamento regional e cm outros fins práticos cons-
tituiriam o domínio da antropologia aplicada. As questões meto-
dológicas, terminológicas, "metacientíficas" ou voltadas para sín-
teses de proporções mais ou menos amplas formariam parte do
campo ãa antropologia geral, disciplina que também começa a
emergir em nossos dias (11), num clima de subserviência ao jar-
gão da filosofia idealista que não faz honra às tradições de clareza
e objetividade legada por um Franz Boas, em suas incursões assis-
temáticas pelo assunto,
Na avaliação dessas sugestões, gostaria que se atentasse para
o que importa decididamente. Se há conveniência (ou não) de,
criar disciplinas como a antropologia sistemática ou como a antro-
pologia geral; se é recomendável (ou não) substituir expressões
consagradas e tradicionais, como por exemplo a de etnografia ou
a de etnologia, por outras como antropologia descritiva, antropo-
logia comparada e antropologia diferencial — essas são questões
de importância secundária. O nome não se poderia dizer dos mo-
tivos que estão por trás delas e que me levaram a arcar com a
responsabilidade de expor, de público, tais idéias. A antropologia

(11) Tenho em mente, especialmente, Davld Bidney (Theoretical Anthro-


poloiry, Columbta University Press, New York, 1953).
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se caracteriza, entre as ciências sociais, por dois traços marcantes,


que aparecem nela, com extrema intensidade: 1,°} o acúmulo con-
siderável e ininterrupto de materiais empíricos, com freqüência
desligadas de preocupações interpretaiivas pertinentes à natureza
dos problemas que eles colocam à explicação antropológica; 2.°)
a dissociação-material e formal das diferentes disciplinas que são
consensualmente entendidas pelos antropólogos, como ramos fun-
damentais da antropologia científica. Ambos os traços prendem-
se à existência e à perpetuação de condições do labor científico
que são funestas à transformação da antropologia em ciência geral
da cultura e à integração orgânica das disciplinas que a compõem.
O acúmulo de materiais empíricos representa, uma das condições
para o progresso do ponto-de-vista científico, em qualquer domínio
de investigações; mas, só a interrogação apropriada dos fatos pode
conduzir ao fim último da ciência, que consiste na descoberta,
verificação e sistematização de explicações gerais sobre fenômenos
investigados. O essencial, nas siigestões feitas, volta-se para essa
direção. Por pouco que se esteja familizarizado com os dilemas
científicos enfrentados atualmente pelos antropólogos, é patente e
que se oculta atrás das "ambigüidades" e das "polaridades" que
ainda não foram resolvidas e superadas. Em regra, mesmo os
antropólogos de reconhecida capacidade teórica revelam grande
interesse pela focalização dos problemas substantivos da explica-
ção empírico-indutiva na antropologia, negligenciando corajosa-
mente os problemas centrais decorrentes dos modelos de explicação
exploráveis e as possibilidades de combiná-los de modo mais frutí-
fero nos diversos setores da pesquisa antropológica. Em conse-
qüência, os modelos de explicação antropológica da realidade man-
têm-se presos a um estreito empirismo e são apreciados sob grande
dose de unilateralidade, de ãogmatismo e até de intolerância.
Doutro lado, essa situação introduz grave deficiência na formação
do antropólogo. Este é antes preparado para realizar "inventá-
rios" modelar es e completos da realidade, recebendo precária in-
formação e limitado treinamento na área mais decisiva do emprego
eficaz das técnicas, processos e métodos de interpretação dos fatos,
que formam a parte lógica da antropologia, científica. O que pre-
tendia era sugerir, estritamente, uma linha de superação dessas
"moléstias infantis" na, ciência, que afetam também outras dis-
ciplinas, da psicologia e da sociologia à economia e à política, em-
bora em graus muito variados. Adotando uma estratégia nova
na organização dos campos de trabalho, independentemente de
substituir ou não termos consagrados e tradicionais, o antropólogo
poderia encarar de conjunto e sem parti pris, os problemas subs-
tantivos da investigação antropológica, os modelos de explicação
UNIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E A ANTROPOLOGIA 465

que eles pressupõem e a significação aos resultados assim alcançá-


veis para o amadurecimento ou o desenvolvimento da antropologia
como ciência.
Eis aí um panorama muito superficial das sugestões que tive
o arrojo de descrever. 'A ousadia se impunha, se pretendêssemos
orientar o debate para as questões que a unidade das ciências
sociais levanta para a antropologia. Se o ângulo escolhido para
abordar o assunto parecer impróprio ou inviável, não me resta
outra saida senão a de apelar para a indulgência dos que me
ouvem. Para justificar-me, porém, lembre as seguintes palavras
de um antropólogo ilustre. "Quando o antropólogo evoca as ta-
refas que o aguardam e tudo o que ele deverá estar em condição
de realizar, o desânimo o domina; como conseguir tudo isso com
os documentos de que dispõe? É como se a física cósmica fosse
chamada a se construir por meio das observações dos astrônomos
babilônios. No entanto, os corpos celestes subsistem, enquanto as
culturas indígenas, que fornecem nossos documentos, desaparece-
ram com ritmo rápido ou se transformaram em objetos de novo
gênero, dos quais não podemos aguardar informações do mesmo
tipo. Ajustar as técnicas de observação a um quadro teórico que
está muito adiante delas, eis uma situação paradoxal que a his-
tória da ciência ilustra raramente. Compete à antropologia mo-
derna superar esse desafio" (12). Limitei-me a insistir sobre
aspectos do "quadro teórico", que está provocando a argúcia cien-
tífica, a imaginação criadora e o espírito de síntese dos antropó-
logos modernos.
r
SIGNIFICAÇÃO 1ue Pareça, para entendermos a
jv. ' importância da antropologia em nosso sistema
ANTROPOLOGIA ^e conceP5^° do mundo precisamos à filosofia.
Os filósofos tentaram várias aproximações do
homem, a/ começar do "mundo interior" e terminando nas "condi-
ções externas" de existência do sujeito. Para ligar as duas coisas,
sob a égide das reflexões éticas de Spinoza e de Kant, apelaram para
a filosofia da cultura, através da qual pretendiam compreender
e explicar a natureza do homem. Cassirer oferece-nos um bom
exemplo das grandezas e das ãebiliãaães dessa tentativa. Fechan-
do-se sobre uma poblemática auto-suficiente, ele nos dá um re-
trato olímpico, mima época de "completai anarquia do pensa-
mento," da natureza racional de homem concebido como animal
symbolicum. A filosofia moderna conseguiu, assim, demonstrar
sob novos argumentos "a unidade substancial do homem", pro-

(12) Citação extraída de Claude Lévi-Strauss, Anthropologle Structurale,


Librairie Plen .Paris, 1958, p. 351.
466 A N H E M B l

curando defini-la pela conformidade universal das tarefas funda-


mentais da, cultura. A história cultural aparece como um pro-
cesso com sentido único — a autoliberação progressiva do homem.
"A linguagem, a arte, a religião, a ciência são várias fases desse
processo. Em todas elas, o homem descobre e prova um novo
poder — o poder de construir um mundo de si próprio, um mundo
ideal" (13). Essa gigantesca tentativa de compreensão do homem
pelos produtos de suas atividades falhou pela, carência de base
factual e teórica, que permitisse ultrapassar as prenoções "homi-
nicentristas'f e desvendar, ao mesmo tempo, em que sentido a
cultura preenche as funções que lhe foram atribuídas, mas como
parte de "fenômenos que ocorrem invariavelmente no mundo da
natureza" (14). Apesar disso, ela nos dá uma chave para enten-
der a importância da antropologia, como fonte de compreensão da
cultura e da posição do homem no cosmos, numa civilização f u n -
dada na ciência e na tecnologia científica. Ao explicar as relações
da cultura com o homem visto como parte da natureza, ela se
converte em componente intelectual básico da concepção científico-
tecnológica do mundo. Portanto, se não é a "rainha das ciências"
— noção desacreditada e inconciliável com o pensamento científico
— a antropologia vem a ser um dos fulcros de produção de conhe-
cimentos que ajusta o horizonte intelectual do homem moderno
ao mundo em que ele vive, afirmando-se como fator dinâmico de
equilíbrio de um sistema civilizatório e como coroamento do 'pró-
prio sistema das ciências. Dito isso, parece claro que muita coisa,
além da "unidade das ciências sociais", gravita em torno dos
conhecimentos positivos, produzidos pela antropologia.
Felizmente, para os fins da presente discussão não é preciso
ir tão longe. No plano em que procurei situar-me, compete-me
debater somente duas questões de maior envergadura. Primeiro, o
que representam para as ciências sociais as novas perspectivas de
desenvolvimento científico da antropologia. Segundo, se tais pers-
pectivas contêm (ou não) os germes de uma síntese de caráter
interdisciplinar, relevante para todo o conjunto das ciências
sociais.
Quanto à primeira questão, tenho a impressão de que se
exagerou o significado de alguns desenvolvimentos recentes da an-
tropologia. Realmente é fascinante e sem precedentes a variedade
de aspectos da cultura e de suas influências dinâmicas (ou cons-

(13) para apreciar as idéias de Ernest Cassirer, escolhi An Essay on Man,


An Introduction to a Philosophy of Human Culture, Yale University Press, New
Haven, 1944; citação extraída da p. 228.
(14) Citação extraída de A. L. Kroeber, Anthropology, Harcourt, Brace and
Co., New York, 1948, p. 841.
UNIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E A ANTROPOLOGIA 467

trutivas) que os antropólogos conseguiram investigar cientifica-


mente. A coordenação de iodos esses campos de investigação ofe-
rece, em si mesma, um panorama enciclopédico sem paralelos em
toda a, história cultural da humanidade. Além disso, ela repre-
senta, um progresso efetivo na extensão do ponto-de-vista, cientí-
fico ao estudo dos diferentes aspectos da cultiira. Todavia, esses
desenvolvimentos estão longe de constituir, em sentido lato, ó equi-
valente de "uma ciência generalizada do homem" (15). Trata-se
de um processo de unificação que afeta, especificamente, a inte-
gração das teorias antropológicas, mais que qualquer outra coisa.
Aproximamo-nos razoavelmente de uma ciência total da cultura,
o que não quer dizer que tenhamos caminhado na direção defini-
tiva de uma ciência integral do homem (ou, em sentido mais
amplo, de uma integração orgânica de explicações gerais das dife-
rentes formas de organização da vida no nível sócio-cultural). É
certo que os avanços realizados repercutiram no quadro de nossos
conhecimentos positivos. Graças a eles, aumentaram as convergên-
cias fundamentais (muitas delas independentes) nas descobertas
dos cientistas sociais. Doutro lado, cresceram as disposições para a
cooperação interdisciplinar e refinou-se a consciência de sua via-
bilidade, objetivos e frutos mais gerais.
Ao se reconhecer fatos dessa ordem, penso que não se subes-
tima de maneira alguma a ampla significação dos desenvolvimen-
tos da antropologia moderna para as ciências sociais. Ao contrário,
encaixa-se esses desenvolvimentos no contexto em que eles devem
ser estimados adequadamente. Os que evitam tal colocação franca
do assunto, fazem-no por temor de avaliações depreciativas ou
pejorativas da especialização. Contudo, é preciso que se restabeleça
a verdade por inteiro. A especialização não só vem a ser inevi-
tável na ciência, como ela constitui o primeiro passo para qual-
quer esforço consistente de síntese teórica. O atual movimento de
unificação das teorias antropológicas apresenta-se como um processo
de especialização dos mais promissores no quadro das ciências so-
ciais. Porém, só quando ele atingir seus fins mais distantes e
gerais, e na medida em que conseguir tal coisa com êxito apreciável,
será possível esperar-se modalidades mais complexas de colaboração
entre os cientistas sociais (sob a hipótese, naturalmente, de que
os psicólogos, os sociólogos, os economistas, etc., obtenham resul-
tados equivalentes aos dos antropólogos em seus progressos teó-
ricos). Por enquanto, os frutos são magros demais para afetar o

(15) Expressão usada por Balph Linton (cf. "Scope and Aims of Anthro-
pology", in R. Linton, ed., The Science of Man World Crisis, Columbia Uni-
versity Press, New York, 1945, p. 17).
468 A N H E M B I

padrão de unidade que se vincula ao estado ãe conglomeração sem


entrozamento, imperante no momento nas ciências sociais. Eles
sequer chegam a permitir três conseqüências ãe alcance menor,
mas ãe grande significação para essas ciências: 1.°) o teste posi-
tivo (ou pelo menos a comprovação empírica definida) ãe expli-
cações teóricas dispersas e sua reformulação em termos de nível
de abstração mais integrativo; 2.°) o aproveitamento sistemático
ãe teorias convergentes, com controle rigoroso ãe suas implicações
comuns ou gerais; 3.°) a produção de conhecimentos positivos,
congruentes com os propósitos ãe intervenção na realidade. Em
função disso, pode-se imaginar, mesmo, que os êxitos dos antro-
pólogos (como acontece com os sociólogos e, em menor escola, com
os psicólogos), revelam-se insuficientes até em face ãe exigên-cias
ãe unificação ãe suas descobertas propriamente ditas.
Quanto à segunda questão, parece insofismável que estamos
caminhando para condições de trabalho em que "especialização"
deixará ãe significar "isolamento". O padrão existente de inte-
gração das ciências sociais é, por assim dizer, mecânico. Ele se
funda em conformidaães que se produzem expontâneamente, gra-
ças à observância comum ãe certas regras ãe observação e ãe
interpretação aos fenômenos sociais, fornecidas pelo método cien-
tífico. Esse tipo ãe unidade ê altamente insatisfatório. Seja por-
que as ciências sociais lidam com unidades ãe investigações entro-
zadas entre si na realidade; seja porque necessidades teóricas e
práticas requerem, por sua vez, a recomposição dessa mesma rea-
lidade no plano abstrato. Isto é tão verdadeiro, que o progresso
de cada ciência pode ser medido: a) internamente, como demons-
trou Marx com referência à economia, pela passagem da decom-
posição e da análise para a reprodução da realidade como um
todo e para a síntese; b) em conexão com as demais ciências so-
ciais, como sugeriu Mannheim em relação à sociologia, pelas pro-
babilidades de dada disciplina servir como foco de integração ãe
conhecimentos teóricos sobre aspectos interrelacionáveis da reali-
dade. Por aí também se infere que o processo pelo qual discipli-
nas como a psicologia, a economia, a sociologia, etc., foram pro-
gressivamente assimiladas pelo ponto-de-vista científico tende a
promover, a longo termo, a gradual emergência de um padrão or-
gânico de unidade das ciências sociais Aplicando-se essas noções
à análise do que está ocorrendo na antropologia, seria legítimo
sustentar-se que as atuais tendências ãe formação ãe uma "ciência
generalizada ao homem" ou ãe uma "ciência total da cultura"
(como preferem dizer alguns antropólogos modernos) são deveras
relevantes para a transformação do padrão de unidade das ciências
sociais.
UNIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E A ANTROPOLOGIA 469

Contudo, é preciso (fue se ressalte algo essencial. Isso não se


dá por causa do teor complementar que as teorias antropológicas
possuem para as outras ciências sociais. Mas, fundamentalmente,
porque as referidas tendências se associam a um grau de cientifica-
ção, digamos assim, crescentemente mais elevado dos conceitos, hipó-
teses e explicações básicas antropologia. Se essas tendências não
impõem, de imediato, a cultura como foco de integração de conhe-
cimentos obtidos pelas demais ciências sociais, elas tornam evidente
a viabilidade, bem como a enorme importância de semelhante desi-
deratum, tentativamente explorado aqui ou ali pelos próprios an-
tropólogos. Estamos literalmente, porém, diante de tateios que
prenunciam um novo estado de coisas. As condições imperantes
de trabalho intelectual dos cientistas sociais não facilitam tais
desenvolvimentos. A questão tem menos que ver com a especiali-
zação, que com o isolamento da ciência dos problemas da vida.
Mesmo nas esferas ou nas disciplinas onde as relações entre os
cientistas sociais são vigorosas, criadoras e estimulantes, as pers-
pectivas de síntese são limitadas, porque se confinam a certas fai-
xas de cooperação inter disciplinar. Para que o antropólogo pudesse
pôr à prova suas teorias e, principalmente, demonstrar a impor-
tância relativa da cultura como foco de integração teórica rele-
vante para outras ciências sociais, seria preciso que se criassem
meios institucionais de colaboração dos cientistas sociais na solu-
- cão dos problemas humanos. Ai, a síntese se imporia, realmente,
como uma exigência capaz de absorver todos os aspectos da rea-
lidade. Os psicólogos, os antropólogos e os sociólogos teriam de
unir o que antes separaram, completando assim os serviços que
vêm prestando à ciência e à civilização que ela produziu. De mi-
nha parte, estou inclinado a supor que os antropólogos têm razão
ao enfatizar os papéis criadores que irão desempenhar nesse pro-
cesso. Eles podem fazer muito, de fato, pela melhor integração
das ciências sociais e pela formação de um padrão orgânico de
associação dessas disciplinas entre si. Mas, é duvidoso que con-
sigam objetivos dessa magnitude: 1.°) sem modificarem-se as pró-
prias relações que imperam, atualmente, entre os cientistas sociais;
2.°) sem alterar-se, de maneira substancial, a organização das
. instituições científicas em nosso campo de trabalho, as atitudes
dos cientistas sociais perante os problemas humanos de nossa civi-
lização e o modo pelo qual os dados ou as descobertas das ciências
sociais são aproveitados socialmente. Em suma, mesmo num ter-
reno tão abstrato do pensamento científico, constata-se que a mo-
dificação de uma dada situação pressupõe tipos de cooperação que
transcendem às atividades puramente intelectuais. Para favorecer
o advento de certo nível de integração orgânica das ciências sociais,
470 A N H E M B I

objetivamente reconhecível como ideal, os antropólogos precisam


unir-se com os outros cientistas sociais, para transformar em pelo
menos a parte da ordem social que interfere, de forma negativa,
nas possibilidades de desenvolvimento teórico da ciência.

FLOKBSTAN FERNANDES

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