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O PAPEL DO ‘TRICKSTER’ NA COMPREENSÃO DOS PROCESSOS CIVILIZATÓRIOS

Qual a relação entre o personagem ‘Coelho Perna Longa’ da ‘Loney Toones’ do cinema norte-
americano ‘blockbuster’1 com Krishna, Exú, Zé Pilintra, o Coiote de contos tradicionais
indígenas norte-americanos, o Macunaíma de Mário de Andrade, o Papa Léguas do Hannah
Barbera?

O Coelho Perna Longa com sua típica frase na dublagem brasileira da década de 1970: “O que
é que há, velhinho?”. Revela toda a picardia, a malandragem, o humor, a ironia, o sarcasmo, o
caráter transgressor e a ambivalência do ‘trickster’.

E o ‘Diabo’? E o ‘Satã’? Também são um Trickster? Penso que não. Pois ‘trickster’ é ambíguo. E
já o ‘Diabo’ e o ‘Satanás’ no campo semântico da língua grega e hebraica tem usos bem
específicos.

Quanto a diabo, este chegou-nos, por via do latim diabolus, do grego clássico
διάβολος (diábolos), vocábulo constituído pelo já conhecido prefixo διά (diá) e por
βάλλω (bállō), «atirar». Neste caso, o referido prefixo exprime separação, divisão, pelo
que diabo, literalmente, indica aquele que desune, que inspira ódio ou inveja.

De acordo com o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro


Machado, a palavra demónio tem origem no grego daimónios, «que provém da
divindade, enviado por um deus; que tem carácter divino, maravilhoso, extraordinário»,
através do latim daemŏnĭu-, que era substantivo, na acepção de «pequeno génio» e
«o demónio», e adjectivo, significando «divino, maravilhoso». Do grego para o
português e para a grande parte das línguas europeias ocidentais, a palavra sofreu,
portanto, uma evolução semântica que acarretou a criação de um significado oposto
ao original (ver Orlando Neves, Dicionário da Origem das Palavras, Lisboa, Editorial
Notícias, e Alice Póvoa, Ana Costa e Ana Ferreira, As Faces Secretas das Palavras,
Porto, Edições ASA).

Quanto a Satanás, é um nome próprio que tem origem na forma latina Satănās,
adaptação do grego Satanas, por sua vez, helenização do hebraico Xatan, «inimigo».
Desta forma hebraica, também se formou o grego Satán, «inimigo, adversário; o

1
Cinema Blockbuster ou cinema ‘arrasa quarteirão’ é uma denominação com intenção pejorativa
utilizada pelos críticos de cinema de jornais e suplementos culturais para designar o cinema comercial.
Aquele cinema com fórmulas pre-determinadas já consagradas que não desafiam muito o espectador. É
um cinema de lazer, de entretenimento. Voltado para enriquecer os bolsos dos produtores americanos
e lotar as salas de cinema dos shoppings centers do planeta. Onde ele costuma e foi feito para
reproduzir o ‘american way of life’, ou, modo de viver americano. É uma estética de filme previsível que
pode estar associado não necessariamente a filmes de ação como se pensa. Como nas franquias de
‘Wolverine’, ‘X-Men’, “Homem Aranha’, ‘O Hulk’, ‘O King Kong’ e outros. Mas está pulverizado entre
outros gêneros. A intenção do cinema blockbuster é no esteio da globalização impor um único modelo
hegemônico cultural de viver. Um pensamento único. A cultura de massas pobre e empobrecedora
norte-americana.
inimigo por excelência», que deu Satã, forma alternativa a Satanás (cf. Machado, op.
cit.).
Assim, ‘Diabo’ e ‘Satanás’ tem conotações de ‘sombra’ para utilizar uma fraseologia de
Carl Gustav Jung. Enquanto, por exemplo, ‘Esu’ (Exú) não é um orixá sombrio, mas
um orixá que instaura o movimento, o caos. Enquanto Oxalá instaura a estabilidade, a
ordem.
Ou seja, a religiosidade iorubana africana não lida com o bem e mal absolutos caros à
tradição civilizatória judaico-cristã. Mas com a noção de bem e mal relativos. Ou dito
de outro modo, vou para um quarto dormir, eu quero escuridão, para descansar, para
repousar. Mas se no meio da noite acordo porque lembrei de anotar algum sonho ou
alguma revelação, eu quero a luz acesa. Então, a priori, a escuridão não é boa ou
má. Ela é necessária. Assim como a luz é necessária. Utilizo aqui o termo ‘necessária’
para valer-me da categoria ‘necessidade’, que consta como verbete em muitos
dicionários de filosofia.
Então, com este argumento, quero asseverar que o diabo cristão é o mal absoluto. É a
demonização peremptória da escuridão, da treva. Coisa inexistente na África até a
chegada dos islâmicos no século X e dos cristãos europeus no século XIV.

A palavra trickster tornou-se universalmente aceita, na literatura antropológica, para designar


um tipo de herói cultural ou civilizador que se manifesta em diversas culturas, algumas das
quais veremos neste livro. Em sentido literal, o vocábulo trickster pode ser traduzido como
“trapaceiro”, “impostor” ou “malandro”. No entanto, nenhuma dessas acepções expressa
corretamente o caráter ambíguo e transgressor do herói trickster. Segundo o antropólogo
Renato da Silva Queiroz, “o termo trickster, adotado originalmente para indicar um restrito
número de ‘heróis trapaceiros’ presentes no repertório mítico de grupos indígenas norte-
americanos, designa hoje, na literatura antropológica, uma pluralidade de personagens
semelhantes, de que se tem notícia em diferentes culturas. Trata-se, a rigor, de tipos ímpares,
cada qual com feições próprias, animados por narrativas que os conduzem através de sinuosos
caminhos” (Renato da Silva Queiroz, “O herói-trapaceiro”, Tempo Social, Revista de Sociologia
da USP, v. 1, nº 1). (N. do T.)

Muitos, incluindo eu mesmo, consideram as conotações de trickster muito limitadas para a


abrangência das atividades atribuídas a esse personagem. Alguns tentaram mudar o nome (um
escritor usa trickster-transformador-herói cultural, que é adequado, mas um tanto extenso).
Outros aderem a nomes locais, reclamando que o termo genérico trickster é uma invenção da
antropologia do século XIX e não se ajusta bem a seus objetos nativos.7 Isso é verdadeiro em
parte; termos nativos sem dúvida conferem um sentimento mais pleno à complexidade
sagrada do trickster. Mas sua astúcia não foi inventada pelos etnógrafos. Hermes2 é chamado
de mechaniôta na Grécia homérica, o que pode ser traduzido muito bem por trickster ou
“trapaceiro”.8 O trickster Legba3, da África Ocidental, é também chamado de Aflakete, que

2
Hermes é o deus mercurial. O deus dos comerciantes, dos feirantes, dos homens que trabalham
utilizando a palavra e também dos ladrões na mitologia grega.
3
Legba é a divindade do panteão daomenao na África ocidental, no chamado território etnolinguístico
‘ewe fon’, equivalente a divindade do panteão iorubano da África Ocidental conhecido por Esu
(pronuncia-se ‘Exú’).
significa “enganei você”.O personagem dos índios winnebagos é chamado de Wakdjunkaga,
que significa “o enganador”.A trapaça apareceu muito antes da antropologia.4

“O trickster é a corporificação mítica da ambiguidade e da ambivalência, da dubiedade e da


duplicidade, da contradição e do paradoxo. Qualquer discussão sobre essa velha mitologia
levanta a questão sobre onde os tricksters surgem no mundo moderno. Uma primeira resposta
é que eles aparecem onde sempre o fizeram: nas narrativas invernais dos nativos norte-
americanos, no teatro de rua chinês, nos festivais hindus que celebram Krishna, no ladrão de
manteiga, nas cerimônias divinatórias da África ocidental. Tricksters africanos viajaram para o
ocidente com o tráfico de escravos e ainda podem ser encontrados nas histórias dos afro-
americanos, no blues, no vodu haitiano e assim por diante.”

“Neste livro, eu me volto principalmente para as expressões do trickster na arte, na esperança


de descobrir onde essa imaginação disruptiva sobrevive entre nós. Um punhado de artistas
desempenham papéis centrais na minha narrativa – Picasso é um deles, mas também Marcel
Duchamp, John Cage, Allen Ginsberg, Maxine Hong Kingston e muitos outros”

Trecho da sinopse na contra-capa do livro.5

Charles Odevan Xavier

Pesquisador e ensaísta

5
HYDE, Lewis. A astúcia cria o mundo: Trikster: trapaça, mito e arte - [ tradução: Francisco R.
S. Innocêncio; revisão da tradução: Marina Vargas – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2017.

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