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Qual a relação entre o personagem ‘Coelho Perna Longa’ da ‘Loney Toones’ do cinema norte-
americano ‘blockbuster’1 com Krishna, Exú, Zé Pilintra, o Coiote de contos tradicionais
indígenas norte-americanos, o Macunaíma de Mário de Andrade, o Papa Léguas do Hannah
Barbera?
O Coelho Perna Longa com sua típica frase na dublagem brasileira da década de 1970: “O que
é que há, velhinho?”. Revela toda a picardia, a malandragem, o humor, a ironia, o sarcasmo, o
caráter transgressor e a ambivalência do ‘trickster’.
E o ‘Diabo’? E o ‘Satã’? Também são um Trickster? Penso que não. Pois ‘trickster’ é ambíguo. E
já o ‘Diabo’ e o ‘Satanás’ no campo semântico da língua grega e hebraica tem usos bem
específicos.
Quanto a diabo, este chegou-nos, por via do latim diabolus, do grego clássico
διάβολος (diábolos), vocábulo constituído pelo já conhecido prefixo διά (diá) e por
βάλλω (bállō), «atirar». Neste caso, o referido prefixo exprime separação, divisão, pelo
que diabo, literalmente, indica aquele que desune, que inspira ódio ou inveja.
Quanto a Satanás, é um nome próprio que tem origem na forma latina Satănās,
adaptação do grego Satanas, por sua vez, helenização do hebraico Xatan, «inimigo».
Desta forma hebraica, também se formou o grego Satán, «inimigo, adversário; o
1
Cinema Blockbuster ou cinema ‘arrasa quarteirão’ é uma denominação com intenção pejorativa
utilizada pelos críticos de cinema de jornais e suplementos culturais para designar o cinema comercial.
Aquele cinema com fórmulas pre-determinadas já consagradas que não desafiam muito o espectador. É
um cinema de lazer, de entretenimento. Voltado para enriquecer os bolsos dos produtores americanos
e lotar as salas de cinema dos shoppings centers do planeta. Onde ele costuma e foi feito para
reproduzir o ‘american way of life’, ou, modo de viver americano. É uma estética de filme previsível que
pode estar associado não necessariamente a filmes de ação como se pensa. Como nas franquias de
‘Wolverine’, ‘X-Men’, “Homem Aranha’, ‘O Hulk’, ‘O King Kong’ e outros. Mas está pulverizado entre
outros gêneros. A intenção do cinema blockbuster é no esteio da globalização impor um único modelo
hegemônico cultural de viver. Um pensamento único. A cultura de massas pobre e empobrecedora
norte-americana.
inimigo por excelência», que deu Satã, forma alternativa a Satanás (cf. Machado, op.
cit.).
Assim, ‘Diabo’ e ‘Satanás’ tem conotações de ‘sombra’ para utilizar uma fraseologia de
Carl Gustav Jung. Enquanto, por exemplo, ‘Esu’ (Exú) não é um orixá sombrio, mas
um orixá que instaura o movimento, o caos. Enquanto Oxalá instaura a estabilidade, a
ordem.
Ou seja, a religiosidade iorubana africana não lida com o bem e mal absolutos caros à
tradição civilizatória judaico-cristã. Mas com a noção de bem e mal relativos. Ou dito
de outro modo, vou para um quarto dormir, eu quero escuridão, para descansar, para
repousar. Mas se no meio da noite acordo porque lembrei de anotar algum sonho ou
alguma revelação, eu quero a luz acesa. Então, a priori, a escuridão não é boa ou
má. Ela é necessária. Assim como a luz é necessária. Utilizo aqui o termo ‘necessária’
para valer-me da categoria ‘necessidade’, que consta como verbete em muitos
dicionários de filosofia.
Então, com este argumento, quero asseverar que o diabo cristão é o mal absoluto. É a
demonização peremptória da escuridão, da treva. Coisa inexistente na África até a
chegada dos islâmicos no século X e dos cristãos europeus no século XIV.
2
Hermes é o deus mercurial. O deus dos comerciantes, dos feirantes, dos homens que trabalham
utilizando a palavra e também dos ladrões na mitologia grega.
3
Legba é a divindade do panteão daomenao na África ocidental, no chamado território etnolinguístico
‘ewe fon’, equivalente a divindade do panteão iorubano da África Ocidental conhecido por Esu
(pronuncia-se ‘Exú’).
significa “enganei você”.O personagem dos índios winnebagos é chamado de Wakdjunkaga,
que significa “o enganador”.A trapaça apareceu muito antes da antropologia.4
Pesquisador e ensaísta
5
HYDE, Lewis. A astúcia cria o mundo: Trikster: trapaça, mito e arte - [ tradução: Francisco R.
S. Innocêncio; revisão da tradução: Marina Vargas – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2017.