Professional Documents
Culture Documents
Pereira
Alfredo Pereira Jr.
92
Rev Esc Enferm USP
2003; 37(4): 92-100.
INTRODUÇÃO tas se refletiram também na assistência psi-
Transtorno mental:
quiátrica, havendo grande interesse pelos dificuldades enfrentadas
aspectos sociais e familiares. Com os movi- pela família
O atual modelo de assistência em saúde
mental em regime aberto preconiza um ganho mentos mundialmente conhecidos de análise
terapêutico que atenda às necessidades de e crítica anti-institucional em países ociden-
relacionamento afetivo e social do paciente. tais, surgiram modelos de intervenção que
Deste modo, os Núcleos de Atenção visavam reduzir ou eliminar a utilização dos
Psicossocial (NAPS) têm desenvolvido for- hospitais psiquiátricos trazendo, entre outras
mas de assistência voltadas para tais neces- conseqüências, a família para o cenário da
sidades, que incluem a atenção a grupos de assistência.
familiares dos pacientes, coordenados por
No Brasil, a partir da década de 1970, sur-
membros da equipe multidisciplinar atuante
giu o movimento de Reforma Psiquiátrica, que
no NAPS. No contexto desta proposta, parti-
busca substituir os manicômios por iniciati-
cipamos de reuniões de grupos de familiares
vas sociais, culturais, políticas, científicas,
de pacientes no NAPS-Ribeirão Preto, onde
jurídicas, assim como modificar os conceitos
realizamos uma pesquisa tendo como objeti-
e a relação da sociedade com as pessoas por-
vo identificar as dificuldades sentidas em
tadoras de transtornos mentais. A Política de
seu convívio com o doente mental. Apresen-
Saúde Mental no Brasil foi fortemente influ-
tamos aqui um sumário das entrevistas reali-
enciada pela experiência italiana que teve à
zadas, acompanhado de uma análise do con-
frente Franco Basaglia. No entanto, na práti-
teúdo que se expressa nas mesmas. Esta aná-
ca, não encontramos uma aplicação efetiva
lise está centrada nas categorias temáticas
das diretrizes desse modelo. As propostas
que pudemos identificar como sendo as mais
expressam em seus objetivos uma preocupa-
relevantes para entender a dinâmica da rela-
ção em reduzir o número de pacientes inter-
ção entre serviço de saúde-paciente-família.
nados e o tempo de internações dos mesmos,
além de conter referência à participação das
REVISÃO HISTÓRICO- famílias e das comunidades na assistência em
BIBLIOGRÁFICA Saúde Mental, porém os papéis que compe-
tem a cada um destes parceiros não são ainda
Para abordar de modo satisfatório a ques- bem definidos ou mesmo compreendidos (1).
tão dos encargos da família do portador de
transtorno mental é necessário que se adote Nos modelos anglo-saxões, as interven-
uma perspectiva histórica. A história da as- ções relacionadas à família são desenvolvi-
sistência em psiquiatria mostra que a atenção das tendo como finalidade a questão econô-
reservada à família é relativamente recente. mica, visando a diminuição das taxas de
Enquanto apenas os manicômios respondi- internação (2). Segundo os autores citados,
am pelas necessidades de cuidados presta- essas experiências não têm a preocupação de
dos nesta área, a interação entre instituição, assumir uma perspectiva global, que propo-
paciente, família e comunidade se encontra- nha a estruturar o serviço territorial e formar
va incipiente. O problema era colocado sem- uma triangulação entre paciente-família e ser-
pre “fora”, em um espaço longínquo, alheio viço de saúde. Neste contexto, gradati-
ou estranho, o que pode ser interpretado vamente emergem novas estratégias, favore-
como indício do real afastamento frente à con- cendo um nível mais coletivo de participa-
sideração do processo saúde/doença, haven- ção, reconhecendo o valor da família na aten-
do olhares voltados apenas à doença, não ção à saúde mental e inserindo-a no projeto
contemplando a pessoa com sua história e terapêutico, em busca de uma melhor quali-
seu contexto.A partir da década de quarenta dade de vida tanto para quem é cuidado quan-
e cinqüenta do século passado, acentuando- to para quem cuida. A análise das necessida-
se mais na década de sessenta, pesquisas de des complexas de um paciente nos leva a
estudiosos na Europa e Estados Unidos vol- colocá-lo em áreas específicas (assistenciais,
taram olhares para a família e efetuaram estu- relações humanas, familiares, trabalho etc.).
dos que buscavam compreender como as re- Então, interagir com o sofrimento significará
93
lações familiares estariam diretamente ligadas interagir também com estas áreas de proble-
ao surgimento dos transtornos mentais. O mas (3). Assim, vemos que existe um consen-
término da segunda guerra mundial trouxe so que a família consiste a primeira rede
Rev Esc Enferm USP
inúmeras transformações na sociedade e es- social da pessoa; é fundamental, quer para a 2003; 37(4):92-100.
manutenção do doente mental fora do hos- tou-se que os profissionais de saúde pos-
Maria Alice O. Pereira
Alfredo Pereira Jr. pital psiquiátrico, ou em uma visão mais am- suem uma visão idealizada da família. Pri-
pla de assistência à saúde mental, que con- meiro, concebendo-a como um grupo nu-
sidera essenciais os recursos e a atuação da clear imerso numa ampla relação de paren-
comunidade. tesco que, por sua própria natureza, seria
um recurso terapêutico para o doente men-
Isso contribui para o entendimento da tal. Segundo, acreditando que a família tem
família como a unidade básica da saúde, a obrigação de ficar com o doente. Estas
num modelo de intervenção que possibilite considerações reforçam a importância do
resolver os problemas cotidianos, diminu- trabalho interdisciplinar na busca de cami-
indo o stress e, indiretamente, as recaídas (4). nhos que promovam a melhoria na qualida-
Na visão da família como a unidade básica de de vida dos núcleos familiares, criando
podemos pensar que para cumprir o papel possibilidades reais de vínculos que pode-
de provedora ela necessita, além dos recur- rão conduzir às transformações da rede de
sos institucionais, do preparo e do apoio assistência.
de profissionais.
Estudando os problemas enfrentados pela MATERIAIS E MÉTODO
convivência da família com o doente mental,
foram encontrados três tipos de sobrecarga Esta pesquisa foi realizada durante o pri-
impostas às famílias: financeira, física e emo- meiro semestre de 2001, junto ao NAPS-
cional, identificando ainda alterações nas ati- Ribeirão Preto (Núcleo de Atenção
vidades de lazer e sociabilidade(5). Foram iden- Psicossocial de Ribeirão Preto), escolhido
tificados e classificados os encargos familia- pela própria característica da assistência ofe-
res em objetivos e subjetivos(6). Os encargos recida, isto é, a pessoa portadora de trans-
objetivos incluem: tempo utilizado para a as- torno mental freqüenta o serviço participan-
sistência, redução das relações sociais e do do das atividades realizadas no local e retorna
tempo livre, dificuldade econômica, dificul- para o convívio com a família, não perdendo
dade quanto ao trabalho. Quanto aos encar- o contato com seu núcleo familiar. Os sujei-
gos subjetivos: o desenvolvimento de sinto- tos deste estudo são familiares dos usuári-
mas de ansiedade, efeitos psicossomáticos, os do NAPS que freqüentam atividades do
sentimentos de culpa, de vergonha, de deso- grupo de família, realizadas às sextas-feiras
rientação quanto às informações sobre os pela manhã e coordenadas por profissionais
distúrbios mentais e isolamento social. do serviço. A participação no estudo foi
voluntária, mediante leitura e assinatura do
Pesquisando famílias por meio de visitas termo de consentimento livre e esclarecido.
domiciliares(7) foram identificadas, entre ou- Para a inserção como sujeito, os familiares
tras, as dificuldades surgidas no enfrenta- deveriam estar convivendo com a pessoa
mento dos problemas sociais e econômicos, portadora de transtornos mentais e apresen-
a desconfiança depositada na pessoa que tarem condições de responderem à entrevis-
convive com o transtorno, o estigma, o des- ta, trazendo assim suas experiências.
prezo e o desrespeito dos que o cercam. Ou-
tro estudo teve como foco familiares que cui- Esta pesquisa se insere nos pressupos-
davam de uma pessoa portadora de doença tos dos métodos qualitativos de investiga-
mental(8). Nestes dois temas centrais foram ção. No início da coleta de dados não foi es-
encontrados o caráter relacional e temporal tabelecido o número de sujeitos, uma vez que
da convivência com o doente mental. Depois dependíamos da disponibilidade dos familia-
do estágio inicial do choque, os familiares res para participarem da pesquisa. Detivemo-
passaram a aceitar a nova situação de relaci- nos em oito entrevistas, por julgarmos serem
onamento com a pessoa. Esta aceitação foi suficientes para o objetivo proposto, de se
entendida como um processo que ocorre ao identificar dificuldades sentidas pelos famili-
longo do tempo, requerendo uma série de ares em seu convívio com o doente mental.
mudanças na vida familiar. Por outro lado, os Sete foram feitas com mães e uma com a filha
investimentos em trabalhos que visam dar de pessoas acometidas por transtorno men-
94
Rev Esc Enferm USP
esse suporte ainda são escassos, deixando
um campo de atuação carente e sem muitas
respostas. Pesquisando o drama das famílias
tal. Por meio dos sujeitos ouvidos neste es-
tudo pudemos verificar que a figura feminina
está muito presente no cuidado e no segui-
2003; 37(4): 92-100. diante da internação psiquiátrica(9), consta- mento do tratamento.
As técnicas de coleta de dados utiliza- ante do mundo externo que pede ação, movi-
Transtorno mental:
das foram Observação e Entrevista Semi- mento: “ele não tem iniciativa, não tem ilu- dificuldades enfrentadas
Estruturada, sendo que no decorrer desta são, não tem nada!”; “deixa tudo do mesmo pela família
foi utilizada a Técnica Projetiva, mais preci- jeito, é assim parado para a vida, sabe?”
samente o Desenho-Estória com Tema(10). As
entrevistas foram realizadas individualmen- Estas narrativas sugerem ponteiros de
te, nas dependências do serviço de saúde, relógios parados no tempo. Essa vivência, em
sendo direcionadas por um roteiro. Após a contraste com a continuidade do tempo ex-
autorização de cada sujeito utilizou-se o gra- terno e as solicitações da vida cotidiana, po-
vador para registro dos relatos. No decorrer dem gerar conflitos no interior do espaço fa-
das entrevistas recorreu-se ao Procedimen- miliar. A permanência dos sintomas, as falên-
to Apresen-tativo Expressivo (11) , uma cias ou fracassos ligados à vida social do
“técnica encoberta de pesquisa” que possi- paciente geram frustrações, impotências, an-
bilita a expressão de conteúdos subjacentes. gústias, provocando cansaço e isolamento
Solicitamos a cada sujeito um desenho de também nos demais membros da família. A
uma família convivendo com a pessoa que rotina no interior do universo familiar torna-
está com um problema mental, e depois pe- se repetitiva, nervosa, colocando as pessoas
dimos um nome para o desenho feito. Este envolvidas em constante contato com senti-
procedimento apresentativo-expressivo, o mentos conflitantes e produtores de tensão.
Desenho-Estória com Tema, permite uma ex- Na produção gráfica na qual foi solicitado o
pressão gráfica, a qual, juntamente com a desenho do convívio com o transtorno men-
elaboração de uma estória a respeito do de- tal, aparece um traçado com o título “Uma
senho, por parte do entrevistado, cria con- casa”. Na estória deste estão contidos isola-
dições de caminhar no sentido da percep- mento, dificuldades vividas pelos habitantes
ção de aspectos inconscientes. da casa. Isso remete à reflexão que torna-se
difícil o entendimento entre pessoas quando
Após a transcrição das entrevistas, realiza- cada uma delas vive tempos diferentes.
mos leituras do material utilizando como recur-
so a Atenção Flutuante(12). Em seguida recor- A psiquiatria tradicional muitas vezes re-
remos à Análise Temática, que pertence à pri- força esta questão quando investiga ou privi-
meira fase da Análise de Enunciação(13). Sen- legia apenas a orientação do mundo externo.
do a Análise Temática transversal, enfoca o Contrariamente, Silveira(14) enfatiza o mundo
conjunto das entrevistas através de uma rede interior e destaca a importância de investiga-
de categorias projetadas sobre os conteúdos. ções que considerem e explorem o espaço e o
Na etapa final, recortamos das entrevistas os tempo interiores. Analisando a história de vida
segmentos correspondentes aos temas emer- de pessoas acometidas pelo transtorno men-
gentes e unidades de significação respectivos tal, ela sugere que o tempo subjetivo estag-
a cada categoria. nou a partir de experiências de situações
afetivas intensas. A mesma idéia também é
enfatizada por Minkowski(15), que destacou o
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
fenômeno da afetividade modificando as
vivências de espaço e tempo do doente. Um
Os resultados possibilitaram identificar as dos sujeitos, ao elaborar a estória do desenho,
dificuldades sentidas pela família no convívio sugere esta questão: “as coisas ruins ficaram,
com a experiência de transtorno mental. Existe e tudo fica guardado na cabeça dele”.
um pensamento central em todas as narrativas: a
idéia que o transtorno mental é penoso para A dificuldade de comunicação e de
quem vivencia a doença, e não menos difícil para interação gera impotência diante deste
a família que convive no cotidiano com esta situ- descompasso que infringe o convencional, e
ação. Destacam-se as seguintes categorias: produz inúmeros desgastes relacionais entre
as pessoas envolvidas no interior do núcleo
Descompasso Temporal familiar. O desajustamento nos horários habi-
tuais é trazido na narrativa:
O descompasso entre o ritmo de vida do
paciente e o da família/sociedade aparece nos
relatos acompanhado de desânimo, de deses-
perança frente às possibilidades de reabilita-
fica no quarto, dorme de dia, fica no quar-
to, não dorme de noite, liga a televisão a
noite inteira, assim não consegue
95
Rev Esc Enferm USP
ção. Como se houvesse certa impotência di- estudar, não consegue trabalhar. 2003; 37(4):92-100.
Este descompasso dificulta a participação no pessoa doente fosse o representante das fa-
Maria Alice O. Pereira
Alfredo Pereira Jr. jogo social, trazendo também como conseqü- lências do sistema familiar. Assim, a ferida
ência a marginalidade frente ao movimento narcísica dos pais fica exposta, estimulando
da vida e um existir apático, sem conciliação indagações sobre a responsabilidade pela
com os ciclos naturais: passado, presente e origem e surgimento do quadro psicótico(17).
futuro. “Olha eu acho que ela está dormindo Muitas vezes um jogo de culpas vai se deli-
porque não está participando da vida”. Ao neando, na busca de possíveis causas para o
elaborar a estória do desenho este sujeito desencadear da doença. Mecanismos defen-
conta: “é tão feio... é tão triste”. sivos vão sendo utilizados:
Sendo o fator temporal organizador das O pai dele viveu a vida do filho e ele dei-
vivências pessoais e elemento importante xou... é como computador, programado,
para a apreensão da realidade, pode-se pen- ele quis programar a vida do filho;
sar que a dificuldade de comunicação do pa- Eu penso que muito foi do pai, o pai sem-
ciente denota um sofrimento psíquico, ou pre foi ruim para mim e para os filhos;
mesmo uma dificuldade no processo de re- O pai dele, meu marido, não gosta dele
presentação de si mesmo. As narrativas mos- (...) não conversa, não puxa conversa.
tram que no interior do convívio da família as
diferentes vivências do tempo propiciam As narrativas, além de denotarem padrões
desajustes nas relações, desencontros de rit- de relações difíceis e complexas, também fa-
mos para cada elemento do núcleo: zem alusão ao contexto, à dinâmica, à falha
de comunicação nas interações familiares,
com esse descontrole todo mundo sofre... princípio ou base da terapia familiar sistêmica.
ele não tem horário, parece que não está Os desafetos contidos no interior destes nú-
ali é parado e vai se isolando. cleos são dirigidos à figura do pai, aludindo
também, o tempo de exposição ou de confli-
Este sujeito parece referir à dificuldade de con-
tos no funcionamento da família:
vivência com alguém que vive um tempo sem
mudança, sem movimento, sem história. Tal O pai neste caso ele tem muita culpa, sem-
cena estática pode ser estendida para a dinâ- pre foi assim, muito agressivo, o filho já
mica da família; assim, a repetição das cenas veio igual;
faz com que o cotidiano familiar acabe repro- o filho se faz de bonzinho (...) traiçoeiro
duzindo um universo temporal extremamente como o pai;
reduzido, sem passado e sem futuro(16). o pai sufocou o filho....
96
é onde eu penso no erro de nós dois.
Quando ele ficou doente eu não pensei
Para estes sujeitos a experiência de doen- nada, ele manifestou muito diferente;
tado pelos profissionais, pode acentuar a zação dos sintomas. Uma redução na intensi-
responsabilização e culpa das famílias envol- dade de expressão destes fatores pode pos-
vidas. sibilitar uma maior estabilidade emocional,
contribuindo para a diminuição dos conflitos
No entanto, um sujeito deste estudo, mãe que circulam no interior da vida familiar.
de um paciente ainda jovem portador de uma
psicopatologia grave, co-divide seu senti- O pouco conhecimento sobre a doença
mento de culpa com os profissionais procu- mental é trazido pelos sujeitos, como elemento
rados: de desavença e de aumento de sobrecarga:
Aí eu sempre levei ele no médico. Na con- E muita gente não acredita! (...) Nem quem
sulta ninguém falava o que ele tinha, nem eu tenho bem próximo que é minha irmã,
eu. Era na neurologia:⎯ não ele não tem não acredita! Não acredita na doença,
nada; na psiquiatria: ⎯ não ele não tem acha que ela finge, acha que ela quer que
nada. fique paparicando. Isso maltrata mais ain-
da e eu não concordo.
O mesmo sujeito relata:
Este mesmo sujeito estende a falta de com-
O último que eu procurei foi um psiquiatra preensão ao atendimento médico recebido e
lá no centro de saúde que falou: ⎯ Ele acredita que as trocas promovidas nos gru-
estuda? Eu disse: estuda; Joga bola? Eu pos de familiares podem contribuir para a
disse: joga; aí ele falou: ah! então ele não melhoria no entendimento dos sintomas apre-
tem nada não! sentados pelo doente:
Assim, a dificuldade na identificação do Então eu acho que é falta de compreen-
problema também por parte do profissional são de tudo, né? (...) mas também dos
de saúde, traz a própria representação da do- médicos que querem internar, da falta de
ença mental como algo distante, aumentando compreensão da família. Por exemplo, aqui
o nível de angústia vivido pela família. tem reunião né? Só que os que tem que
vir não vêm, não entendem a doença, não
Desavenças/Conflitos na Família participam e isso que é duro. Porque a
pessoa está doente e a gente sofre junto
As desarmonias vividas pelas pessoas no né?;
cotidiano familiar são mencionadas como fa- Ela gosta de fazer as coisas que faz aqui,
tor de sobrecarga emocional. Um dos dese- pulseirinha, caixinha, chega em casa, mos-
nhos produzidos pelos entrevistados tem tí- tra e a minha irmã que não acredita fala
tulo de “complicado”, e a estória deste dese- que é ridículo, que é bobagem, ela não
ajuda, critica....
nho diz:
97
nele; tros”, da expressão de emoções e sentimen-
A minha outra filha também é meio tos esperados nesses grupos, além do apren-
descontrolada, de vez em quando ela me dizado de informações que poderão trazer
agride, me ofende, mas tudo de boca. mudanças de atitude para com a doença men- Rev Esc Enferm USP
2003; 37(4):92-100.
tal e, conseqüentemente para a pessoa que ela era uma pessoa boa assim de con-
Maria Alice O. Pereira
sofre essa experiência(6). Os sujeitos ouvidos versar, trabalhava, sempre muito ativa,
Alfredo Pereira Jr.
reconhecem a importância dos grupos desen- adorava se arrumar, de repente não que-
volvidos no serviço de saúde. Por outro lado, ria se arrumar, não queria mais nada...;
referem com veemência a questão da sobre- é fogo porque você lembra dela boa, dela
carga maior voltada para a figura materna e esta trabalhando....
aparece assumindo o legado a ela atribuído. Há um processo de conhecimento que os fa-
Minha mãe fala: ⎯ Dá um fim nesse trem! miliares demonstram ter adquirido por suas
Mas eu digo sempre: Não! é meu filho! E vivências, apresentando sensibilidade
isso, eu é que tenho que carregar!; advinda das experiências de sofrer psíquico
Se eu vou falar que é melhor deixar ele e de lidarem com as situações(20). Assim, os
fazer do jeito dele o outro fica com raiva, sujeitos demonstram que o conhecimento
fala que eu aceito as coisas erradas (...) adquirido vem a custa de experiências difí-
É difícil! Eu acho que a falta de paciência, ceis, decorrentes do convívio com a pessoa
de compreender, de aceitar... eu sou mãe, bastante diferente dos sonhos sonhados:
aceito tudo né?;
Ele era um menino inteligente, a professo-
Os outros em casa ficam meio revoltados...;
ra elogiava (...) ele perdeu a personalida-
Os irmãos dela acham difícil, eu também, de dele;
eles ignoram, mas ignoram porque não
E ele que queria tanto estudar, queria fa-
sabem tratar.
zer medicina, dizia que ia continuar
Vê-se que há necessidade da família em en- estudando;
contrar um local no cérebro na tentativa de en- Eu tinha vontade que meu filho conse-
tendimento do “processo incompreensível da guisse trabalhar, casar, ter casinha dele,
doença que não apresenta dor física como sinto- mas ele não consegue e é triste e eu sinto
ma principal”(18). A experiência do sofrimento uma dor assim pelo meu filho.
psíquico é a da intermitência entre o sofrimento e Na estória do desenho, o sujeito deu como
o não sofrimento, havendo assim períodos de título o nome próprio do paciente e conta: “este
diminuição dos sintomas(19). Porém, as narrati- era um menino bom, que foi bom até os 22 anos...”.
vas mostram que oscilações referentes aos sin-
tomas e as condutas apresentadas pela pessoa Diante do impacto do adoecimento de um
com transtorno mental podem confundir os inte- membro da família, os sujeitos demonstram
grantes do núcleo familiar causando conflitos: viver um processo compulsório de reorgani-
zação de suas dinâmicas. Porém, o sentimen-
eles não sabem, não sabem o caminho. E to de perda permanece trazendo desgaste
eu estou perdendo o controle né? Todo
emocional, aumentando o sofrer psíquico e
mundo de casa fica afastado (...) Eu fico
reduzindo as possibilidades de trocas afetivas
mais perto mas eu tô perdendo o controle;
que de fato propiciem interlocuções constru-
O irmão dele não acha que é doença, acha
tivas e pautadas na realidade. Assim, mais
que é malandragem, imagina!;
ou menos conscientes, as narrativas trazem a
os meus filhos acham que ele faz dificuldade em lidar com o real e o desejo de
malandragem.
não viver a situação. Na elaboração da estó-
Assim, estes sujeitos evidenciam a vulnerá- ria do desenho aparece: “ela tinha vontade
vel estabilidade emocional do contexto fami- de ver aquele filho, aquela pessoa normal
liar que diminui a capacidade individual de como ela ou outra pessoa qualquer”.
interação com o paciente e aumenta a tensão As restrições na vida social ou nas roti-
deste contexto. nas de trabalho são citadas como prejuízos
vividos e estes determinam estados emocio-
Perdas nais no interior do núcleo familiar:
Todas as pessoas ouvidas neste estudo E aí eu deixei de sair de casa porque é
estão convivendo com as questões advindas difícil para sair;
da doença mental há mais de quatro anos, e,
98
Aí eu fui faltando do serviço, chorava mui-
portanto, vêm passando por processos to, eu chorava tanto, vivia com o olho ver-
readaptativos neste período. Os relatos trazem melho. O que eu chorei, chorei muito, acho
Rev Esc Enferm USP vivências de perdas, de lamentos, e com pesar, que nem tenho mais lágrimas! Hoje eu
2003; 37(4): 92-100. mencionam o que o paciente foi no passado: xingo, não choro mais, fiquei seca, dura!.
A partir da convivência com a pessoa com da e a culpa. O sentimento de perda muitas
Transtorno mental:
transtorno mental a rotina dos membros da vezes advinha da ausência do convívio com dificuldades enfrentadas
família é alterada, em especial no que tange o ente, e a culpa, além de incidir sobre possí- pela família
REFERÊNCIAS
(1) Amarante P. Loucos pela vida: a trajetória da (4) Falloon I, Magiano L, Morosini P. Intervento
reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: psicoeducativo integrato in psichiatria. Trento:
Fiocruz; 1998. Erickson, 1997.
(2) Dell’Acqua G. Utenti, famiglie e servizi di salute (5) Koga M. Convivência com a pessoa
mentale. In: Dell’Acqua G, organizador. Per la esquizofrênica: sobrecarga familiar. [disserta-
Salute Mentale. 3ª ed. Trieste: Servizio di ção] Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de
salute Mentale; 1992. Ribeirão Preto/USP; 1997.
(8) Jeon YH, Maidar I. Caring for family members (16) Ruffiot A. O poder absoluto: a imago dos
with chronic mental illness. Qual Health Res pais combinados ou a anti-cena primária. In:
1998; 8: 5: 694-706. Vilhena J, organizador. Escutando a família:
uma abordagem psicanalítica. Rio de Janeiro:
(9) Tsu TMJA. A internação psiquiátrica e o dra- Relume-Dumará, 1991. p. 31-43.
ma das famílias. São Paulo: EDUSP, 1993.
(17) Melman J. Repensando o cuidado em relação
(10) Tsu TMJA. Vício e loucura: estudo de repre- aos familiares de pacientes com transtorno
sentações sociais de escolares sobre a doença mental. [dissertação] São Paulo: Faculdade
mental através do uso de procedimento de de Medicina da USP; 1998.
desenhos-estórias com tema. Bol Psic 1994/
95: 41: 47-55. (18) Villares C. Representações de doença por fa-
miliares de pacientes com diagnóstico de
(11) Vaisberg TMJ. O uso de procedimentos esquizofrenia. [dissertação] São Paulo: Uni-
projetivos na pesquisa de representações versidade Federal de São Paulo; 1996.
sociais: projeção e transicionalidade. [tese]
São Paulo (SP): Instituto de Psicologia USP; (19) Saraceno B. La Fine dell’ Intrattenimento.
1995. Milano: Etas Libre; 1995.
(12) Laplanche J, Pontalis JB. Vocabulário de psi- (20) Costa JF. Ordem médica e norma familiar. Rio
canálise. São Paulo: Martins Fontes; 1992. de Janeiro: Graal; 1983.
Recebido: 04/11/2002
Aprovado: 03/09/2003
100
Rev Esc Enferm USP
2003; 37(4): 92-100.