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Jean-Loup Amselle e Elikia M’Bokolo.

Au coeur de l’ethnie: ethnie, tribalisme et Etat en


Afrique. La Découverte / Poche

Etnias e espaços: por uma antropologia topológica

Jean-Loup Amselle*

É um truísmo afirmar que a questão da “etnia” está no cerne da antropologia e é


constitutiva de seus procedimentos. No entanto, é fácil constatar que este tema de investigação
não suscitou, até um período recente, um entusiasmo exagerado da parte da maioria dos
antropólogos. De fato, temos o sentimento, ao percorrer a literatura, de que o tratamento do
problema da etnia é considerado pelos pesquisadores de campo como uma corvéia da qual é
preciso se desvencilhar o mais rápido possível para abordar os “verdadeiros” domínios: o
parentesco, a economia ou o simbolismo, por exemplo. A definição da etnia estudada deveria
constituir a interrogação epistemológica fundamental de qualquer estudo monográfico e, em
um certo sentido, todos os demais aspectos deveriam dela decorrer, mas percebe-se que há
muitas vezes um hiato entre um capítulo liminar que, por menos que nele nos detenhamos,
mostra a relativa imprecisão dos contornos do objeto, e o resto da obra, em que as
considerações sobre a organização de parentesco e a estrutura religiosa dão prova da mais
perfeita segurança.
Esse relativo “esquecimento” ou “desinteresse” por parte dos antropólogos está, sem
dúvida, ligado à própria história da disciplina e das diferentes tendências que a animaram. É
cada vez mais evidente que a antropologia se formou sobre a base daquilo que a história
rejeitou e que desde então essa recusa desde então se manteve. Sem pretender fazer aqui um
inventário clássico que consiste em passar em revista cada escola antropológica e examinar a
maneira como esta tratou o problema da “etnia”, basta observar que as correntes que mais
fortemente marcaram o pensamento antropológico – o evolucionismo, o funcionalismo, o
culturalismo e o estruturalismo – são doutrinas essencialmente a-históricas.
*
Ecole des hautes études en sciences sociales, Centre d’études africaines.
Se considerarmos, de acordo com M. Augé [1979] **, o espaço sobre o qual se estende o
pensamento antropológico contemporâneo, veremos claramente por que a pergunta sobre a
etnia não pode estar no centro da reflexão dos etnólogos. Segundo M. Augé, esse espaço
antropológico está dividido entre duas grandes correntes: uma que se interessa pelo sentido e
pelo símbolo, e outra que trata essencialmente da função. A primeira corrente compreende a
escola de M. Griaule e os estruturalistas, a segunda os funcionalistas e os marxistas, que M.
Augé alinha, com toda razão, na mesma categoria.
É bastante evidente, se considerarmos a primeira tendência, que nem as disciplinas de
M. Griaule, que conferem prioridade àquilo que as sociedades dizem sobre si mesmas, nem os
estruturalistas, que precisam de várias sociedades ou pelo menos de vários sistemas de
parentesco ou de mitos para pensar as possibilidades diferenciais do espírito humano e
estabelecer sua transformação no sentido matemático do termo, podem colocar o tema da etnia
no centro de seus procedimentos.
No que concerne à segunda tendência, aquela que compreende os funcionalistas e os
marxistas, a questão é mais complexa. É sabido que o pai fundador da escola funcionalista, B.
Malinowski, rejeita a história, por ele identificada com o evolucionismo. Como não existe
seqüência-tipo “selvagem, bárbaro, civilizado”, trata-se de apreender cada sociedade em sua
especificidade mas sem que seja considerada ao mesmo tempo a possibilidade de estabelecer
sua micro-história. É assim que, depois de L. Mair, B. Malinowski [1961, 27] postula a
existência de um grau zero da mudança correspondente ao meio rural e considera o estudo do
“contato cultural” a partir do estado originário das sociedades camponesas africanas. Pode-se
igualmente observar, em sentido inverso, que S. F. Nadel, que integra a filiação de B.
Malinowski, é um daqueles que, como veremos, cunhou uma das melhores definições possíveis
de etnia.
Se acostarmos agora em plagas marxistas, a situação se mostra ainda mais ambígua. É
bem verdade que poderíamos esperar que os antropólogos que invocam Marx tenham
particularmente focalizado sua abordagem sobre a etnia, dada sua referência constante à
história. Mas não é isso que acontece: com exceção do estudo de M. Godelier [1973, 93-131]

**
As referências bibliográficas estão ao fim de cada capítulo.
sobre a noção vizinha, mas na realidade distinta, pelo menos à primeira aproximação, de
“tribo”, os marxistas não brilharam particularmente por sua reflexão teórica sobre este ponto. E
é fácil entender por quê: por vezes assimilando a história unicamente à evolução das forças
produtivas, e preocupados que estão em identificar um ou vários modos de produção que se
combinam no interior de uma formação social, eles descuidaram da análise da “produção das
formas1” e satisfizeram-se com a apreensão empirista da etnia tal como esta lhes havia sido
transmitida por seus predecessores – muitas vezes administradores coloniais ou missionários 2 –
que lhes fornecia um contexto cômodo no interior do qual eles podiam acomodar esses
conceitos [J. Copans, 1981].
Desse ponto de vista, é preciso observar a existência de um fosso considerável entre a
ausência de uma reflexão marxista de ordem geral sobre a etnia e a qualidade do
questionamento sobre a realidade dos grupos étnicos tal como ela aparece nas monografias de
tais autores [C. Meillasoux, 1964; E. Terray, 1969]. Podemos nos perguntar, a esse respeito, se
os antropólogos não foram prisioneiros de uma problemática exageradamente influenciada por
uma leitura neopositivista do marxismo (Althusser) e pela condenação que esta implicava de
todo e qualquer historicismo e se, de um outro ponto de vista, não recaiu sobre eles o peso da
instituição antropológica que leva cada pesquisador a identificar seu próprio nome com uma
etnia particular [C. Meillasoux, 1979]. Essa corrente marxista está, todavia, sujeita a uma
evolução sensível, e podemos constatar que alguns de seus representantes estão voltando a
questionar a abordagem monoétnica a que recorriam [C. Meillasoux, 1978] e a se reaproximar
da terceira corrente de que trataremos agora, a que P. Mercier [1966] chamou de “dinamista”.
A esse deslocamento se vinculam os nomes de M. Gluckman, G. Balandier, P. Mercier,
J. Lombard, G. Nicolas e J. Copans. Estes autores estão bastante próximos do marxismo, no
sentido de que insistem sobre a necessidade de se proceder a uma abordagem histórica de cada
sociedade ou, mais precisamente, do meio escolhido como campo de investigação: aldeia,
chefaria, reino etc. Essa primazia concedida à história intervém da seguinte maneira: convém
apreender o conjunto das determinações que pesam sobre um determinado espaço social e
enfatizar a rede de forças ao mesmo tempo “externas” e “internas” que o estruturam; em uma
1
Sobre este ponto, pode-se consultar meu artigo de ordem geral [AMSELLE, 1979a].
2
Ver a este respeito J.-P. CHRÉTIEN (1981).
palavra, analisar “a eficácia de um sistema em um lugar” [J.-L. Amselle, 1974, 103]. Isto leva a
ressaltar o quadro “político”, em seu sentido mais amplo, desse espaço e a inseri-lo em um
conjunto que o ultrapassa. Essa reflexão deveria desembocar, senão em uma definição
operacional da etnia (precisamos de uma?), pelo menos na desconstrução do objeto étnico que
sempre representa um freio para o progresso da disciplina. Mas antes de ver a que poderia
chegar a extrapolação da problemática étnica, precisamos examinar as diferentes definições de
etnia que foram propostas pelos antropólogos.

Definições

O termo “etnia” (do grego ethnos: povo, nação) surgiu recentemente na língua francesa
(1896); nos séculos XVI e XVII, como observa P. Mercier [1961, 62], o termo “nação”
equivalia ao de “tribo”. O surgimento e a especificação tardios dos termos “tribo” e “etnia”
levam, desde já, a colocar um problema ao qual retornaremos, o da congruência entre um
período histórico (colonialismo e neocolonialismo) e a utilização de uma determinada noção.
Se esses termos adquiriram um uso maciço, em detrimento de outras palavras como
“nação”, é sem dúvida porque se tratava de classificar à parte algumas sociedades, negando-
lhes uma qualidade específica. Convinha definir as sociedades ameríndias, africanas e asiáticas
como outras e diferentes das nossas, suprimindo-lhes aquilo pelas quais elas pudessem
participar de uma humanidade comum. Essa qualidade que as tornava dessemelhantes e
inferiores a nossas próprias sociedades é, muito evidentemente, a historicidade, e nesse sentido
as noções de “etnia” e “tribo” estão ligadas às outras distinções pelas quais se opera a grande
separação entre antropologia e sociologia: sociedade sem história / sociedade com história,
sociedade pré-industrial / sociedade industrial, comunidade / sociedade 3.

3
Pode-se observar que o uso antigo do termo etnia não é desvinculado do nosso. Os gregos opunham, com efeito, ethnos
(pl. ethnè) e polis (“cidade”). As sociedades de cultura grega mas às quais “faltava” a organização em cidades-Estado eram
ethnè. O termo é freqüentemente traduzido por “tribo” (alemão: stamm) ou por “Estado tribal”. Segundo V. EHRENBERG
(1976, 54), é “possível” que o ethnos “esteja muito mais próximo da sociedade primitiva”. A etnologia, tomada ao pé da
letra, é portanto uma ciência das sociedades “a-políticas” e desprovidas, por esta razão, da possibilidade de serem “sujeitos”
de sua própria história. Uma definição negativa se perpetua na tradição eclesiástica que define ethnè como “as nações, os
gentios, os pagãos, em oposição aos cristãos” (Littré, verbete “Ethnique”).
Os antropólogos se viram, portanto, prisioneiros de certas categorias no interior das
quais lhes foi preciso se situar para estudar as sociedades em que são especialistas, no exato
momento em que estas estavam imobilizadas pela colonização [M. Piault, 1970, 23]. E isso
talvez explique o fato de que, ao lado de estudos brilhantes sobre o parentesco e a religião, haja
tão poucas análises sobre a categoria “etnia”.

Etnia e tribo

Desde o início, estamos colocados diante da existência de dois termos cuja significação
em francês é vizinha, mas o segundo adquiriu na literatura antropológica anglo-saxã um sentido
particular. O termo “tribo”, em francês, tem mais ou menos o mesmo uso que o termo etnia,
mas entre os antropólogos anglo-saxões ele designa um tipo de organização social própria: o
das sociedades segmentárias. Estas são classicamente definidas pela presença de elementos
sociais de natureza idêntica (linhagem etc.) e que provêm das cisões sucessivas de uma mesma
célula inicial, e nisto se distinguem das sociedades estatais de poder centralizado. É esse
sentido da palavra “tribo” que designa ao mesmo tempo um tipo de sociedade e um estágio da
evolução humana que M. Godelier [1973] submete a uma interrogação epistemológica.
Contrariamente a esse autor, não proponho, pelo menos em um primeiro momento, fazer uma
reflexão sobre as organizações de tipo segmentário, mas sim apresentar as múltiplas definições
da etnia ou do grupo étnico visto como uma sociedade global. Alguns autores tais como E.
Gellner [1965] estimam, aliás, que esse procedimento não faz sentido para as regiões que eles
estudam. Eles se recusam a aplicar-lhes os termos “etnia” e “tribo” e consideram que as zonas
rurais do norte da África abrigam apenas organizações de tipo segmentário. E nós mesmos
teremos que nos perguntar se se trata verdadeiramente de uma oposição de tipo geográfico ou
cultural ou se as sociedades segmentárias africanas nem sempre se definem, de certa maneira,
como no caso norte-africano, em relação às cidades e aos Estados pré-coloniais.
As definições do termo “etnia” são bem pouco numerosas e todas giram em torno de
algumas grandes características.
Para M. Fortes [1945, 16], a etnia nada representa além do horizonte mais longínquo que
os grupos conhecem, além do qual as relações de cooperação e de oposição não são mais
significativas, ou só o são excepcionalmente. M. Fortes insiste igualmente sobre o caráter
relativo da realidade étnica que varia em função da posição geográfica e social ocupada pelo
observador.
Em sua obra dedicada aos nubas da Nigéria, S. F. Nadel [1947, 13] caracteriza a tribo da
seguinte maneira: “A tribo existe, não em virtude de uma unidade ou identidade qualquer, mas
em virtude de uma unidade ideológica e de uma identidade aceita como um dogma”. Alguns
anos antes, em Byzance noire, S. F. Nadel [1971, 45] apresentava uma definição um pouco
parecida: “Chama-se tribo a um povo ou agrupamento unitário cujos membros reivindicam seu
pertencimento a um agrupamento desse tipo”, mas acrescentava um dado importante a respeito
dos nupés: estes últimos identificam, segundo ele, reino e tribo.
J. Richard Molard [1952, 14] considera que entre “os negros primitivos da floresta [...] o
conjunto étnico é uma zona de paz entre comunidades de parentelas reais ou fictícias, as
relações são menos tensas entre elas do que com as coletividades de etnias vizinhas”.
Para P. Mercier [1961, 65], etnia é um “grupo fechado, que descende de um ancestral
comum, ou, em termos mais gerais, que tem uma mesma origem, possui uma cultura
homogênea e fala uma língua comum, e é também uma unidade de ordem política”. Em sua
monografia sobre os sombas no Benin, ele oferece uma definição próxima à de Nadel: “O
conceito de pertencimento étnico, diz ele, exprime em grande parte uma teoria elaborada por
uma determinada população” [1968, 76], ou a etnia somba é “a coincidência de um grupo, por
mais heterogêneo que ele seja, mas que tenha realizado ao menos a unidade lingüística com um
espaço” [1968, 421]. Mas ele também acrescenta duas nuances que atenuam o caráter um
pouco rígido dessas duas definições. Para Mercier, de fato, “a etnia, como qualquer um de seus
componentes, é apenas um segmento sociogeográfico de um conjunto mais vasto, e não se deve
considerá-lo isoladamente”, mas “recolocá-lo no conjunto de uma paisagem étnica regional
considerada em uma perspectiva histórica” [1968, 76].
Para G. Nicolas [1973, 103], “Uma etnia, em sua origem, é antes de tudo um conjunto
social relativamente fechado e durável, enraizado em um passado de caráter mais ou menos
mítico. Esse grupo tem um nome, costumes, valores, geralmente uma língua, próprios. Ele se
afirma como diferente de seus vizinhos. O universo étnico é constituído de um mosaico [...] de
linhagens. Existe um profundo parentesco entre etnia e linhagem ou clã, parentesco que é no
mais das vezes sustentado por um vocabulário familiar, ou mesmo um mito de origem, que
estabelece a descendência comum dos membros do grupo a partir de um casal inicial ou de um
herói mítico”. G. Nicolas [1973, 104] acrescenta que a realidade étnica possui uma imprecisão
característica e que o quadro étnico apenas raramente coincide com a formação política de
base: “Uma etnia pode, assim, corresponder a uma ou várias tribos ou nações, como uma
cultura ou uma civilização”. Enfim, para ele, “uma etnia não é nem uma cultura nem uma
sociedade, mas um composto específico, em equilíbrio mais ou menos instável, de cultural e de
social” [1973, 107].
Por seu lado, J. Honigmann4 estima que “em geral os antropólogos estão de acordo
quanto aos critérios por meio dos quais uma tribo (enquanto sistema de organização social)
pode ser descrita: um território comum, uma tradição de descendência comum, uma linguagem
comum, uma cultura comum e um nome comum, com todos esses critérios formando a base da
união de grupos menores tais como aldeias, bandos, distritos, linhagens”.
Finalmente, segundo F. Barth [1969, 10-11], “O termo grupo étnico serve em geral na
literatura antropológica para designar uma população que: 1) tem uma grande autonomia de
reprodução biológica, 2) compartilha valores culturais fundamentais que se atualizam em
formas culturais que possuem uma unidade patente, 3) constitui um campo de comunicação e
de interação, 4) tem um modo de pertencimento que distingue a si mesmo e que é distinguido
pelos outros enquanto constitui uma categoria distinta de outras categorias de mesmo tipo”.
Para F. Barth, o quarto ponto, o da atribuição (imputação), é o mais importante: “Uma
atribuição categorial é uma atribuição étnica se ela classifica uma pessoa nos termos de sua
identidade mais fundamental e mais geral, identidade que se pode presumir que seja
determinada por sua origem e seu ambiente. Na medida em que os atores utilizam suas
identidades étnicas para se categorizar a si mesmos e aos outros com objetivos de interação,
eles formam grupos étnicos no sentido organizacional do termo” [1969, 13-14]. F. Barth
4
J. HONIGMANN, art. “Tribo”, in A Dictionnary of the Social Sciences, 1964, p. 729, citado por M. GODELIER [1973,
102].
introduz igualmente a noção de “limites étnicos”, limites que são ao mesmo tempo mantidos e
ultrapassados pelas populações.
Esse rápido inventário das diferentes definições de etnia tais como as podemos encontrar
na literatura geográfica e antropológica era necessária para mostrar a grande convergência de
posições sobre o tema. Sua extensão provavelmente não teria chegado a resultados
radicalmente diferentes, tanto que, apesar de o conjunto dos antropólogos estar, no geral, de
acordo sobre a definição da etnia, muitas vezes eles têm dificuldade em indicar com precisão o
que colocam sob tal vocábulo.
Através das diferentes acepções que passamos em revista aparece um certo número de
critérios comuns, tais como: a língua, um espaço, costumes, valores, um nome, uma mesma
descendência e a consciência que os atores sociais têm de pertencer a um mesmo grupo. O
modo de existência do objeto étnico proviria, portanto, da coincidência desses diferentes
critérios. Além da proximidade da noção de etnia com a de “raça”, vemos o quanto a definição
desse termo está maculada de etnocentrismo e o quanto ela é tributária da concepção de Estado-
nação, tal como esta foi elaborada na Europa.
Sem forçar muito as coisas, poderíamos dizer que o denominador comum a todas essas
definições da etnia corresponde em definitivo a um Estado-nação de caráter territorial fajuto.
Distinguir rebaixando era a preocupação do pensamento colonial, e assim como era necessário
“encontrar o chefe”, era preciso encontrar, no seio do magma de populações que residiam nos
países conquistados, entidades específicas5.
No entanto, estando prisioneiros das categorias coloniais de investigação, alguns
etnólogos procederam ao mesmo tempo a uma torção da noção que os fez ir além do
estereótipo com o qual estavam confrontados. E a esse respeito, seria oportuno nos

5
Sobre a ligação entre as atitudes racistas e a utilização das noções de “etnia” e “etnicidade”, talvez não seja inútil citar in
extenso esta passagem do “professor” Montandon, nomeado por X. sob a Ocupação alemã para o posto de “etnólogo” do
Comissariado para as Questões Judias: “Quando um homem com o patrônimo Silberstein foi batizado cristão, descende de
cristãos há três gerações, segundo seus documentos, desposou uma mulher ariana e batizou seus filhos, mas se detém no
momento de passar a fronteira suíça pela apreensão de ser tomado por um ariano condenado à deportação como tantos
outros não feudatários nas possessões judias, dizemos que esse homem tem mentalidade judia e que a lei deveria dar a
possibilidade de registrá-lo novamente como judeu: é o que aconteceria se ao invés de falar de raça judia e de explicar a
raça pela religião, a lei se contentasse em falar simplesmente de etnicidade judia [grifo meu], determinável pelo conjunto
dos critérios fornecidos pela biologia, a língua, a religião, a sociologia e a psicologia.” Citado por B. BLUMENKRANZ
(éd.), Histoire des Juifs en France, Privat, Toulouse, 1971, p. 406-407.
perguntarmos com J.-P. Dozon [1981, 63] se não teriam sido os melhores entre os antropólogos
que, partindo do quadro étnico, tentaram mostrar que este não era adequado ao seu objeto.
Nesse sentido, os empreendimentos teóricos de Nadel, de Mercier, de Barth, assim como as
monografias verdadeiramente inovadoras como a de W. Watson [1958] ou ainda as precauções
metodológicas de C. Meillassoux [1964] e de E. Terray [1969] me parecem, na medida em que
subvertem as categorias coloniais, muito mais audaciosas em seu princípio do que as tentativas
de fazer, com muita dificuldade, com que as realidades estudadas caibam nos conceitos de
“modo de produção” e de “formação social”. Será que uma conduta desse tipo não consiste
muitas vezes em colar imprudentemente em uma história desconhecida ou incompreendida
noções-fetiche [J.-L. Amselle, 1974]? Talvez ela não seja desprovida de analogia com a dos
etnólogos coloniais que distribuíam arbitrariamente entre etnônimos populações das quais eles
não sabiam quase nada. Falar da “formação social X” ao invés de “etnia X” na verdade não
muda grande coisa.
A corrente dinamista, tal como a pudemos identificar no cerne da antropologia, encetou
um processo de desconstrução do objeto étnico que deve, agora, ser levado ao seu termo. É
bem evidente que esta reflexão não deve ser conduzida com um fim exclusivamente crítico,
mas deve igualmente contribuir para desvelar as características específicas das realidades
etnológicas, o que até este momento nem os conceitos marxistas nem aqueles mais clássicos da
antropologia (“etnia”, “clã”, “linhagem” etc.) conseguiram fazer. Desse ponto de vista, a
interrogação sobre esses conceitos mobiliza a disciplina antropológica em sua integralidade.
O lance inicial desse movimento de desconstrução foi dado a partir de 1942 por Nadel
[1971, 46], que mostrava em Byzance noire como a realidade étnica dos nupés da Nigéria se
imbricava em conjuntos cada vez mais vastos: “A unidade cultural é também mais vasta do que
a unidade tribal. A organização política e social dos nupés é comum a várias tribos da África
ocidental: elas partilham sua religião tradicional com grupos vizinhos ao norte, a leste, ao sul, e
sua religião moderna, o Islã, com todo o Sudão. Pois podemos, com efeito, falar, com
propriedade, de uma cultura da África ocidental, ou de uma cultura dos grupos que vivem no
interior do oeste da África (opondo-a àquela dos grupos que habitam a floresta subtropical ou a
região costeira). No fim das contas, parece que a cultura surge como que cristalizada sob a
forma de uma cultura tribal e que a área dessa unidade cultural surge, então, de certos pontos de
vista, como tendo a mesma extensão que a tribo”.
No entanto, esse esforço de relativização do grupo étnico e de esvaziamento do termo
“tribo” em favor do termo “reino” não será feito por Nadel no que concerne aos nubas do
Sudão. De fato, sua definição a propósito dessas populações (“a identidade e a unidade
ideológicas aceitas como um dogma”) não é plenamente satisfatória. E considerar que Nadel
não estava em condições de apreender as verdadeiras determinações do conjunto nuba, ou seja,
a inserção de populações montanhesas muito diversas em um conjunto político dominado pelos
árabes do Sudão, não significa ofender o grande antropólogo que ele foi.
Voltamos a encontrar a mesma dificuldade com M. Fortes [1945], que toma para si essa
preocupação com o relativismo étnico, mas que dela não tira todas as conseqüências no que
concerne aos talensis do Gana. De fato, como bem mostrou E. Skinner [1972, 33-35], M. Fortes
oculta a inserção dessa sociedade, na época pré-colonial, no reino Mamprusi, para dela fazer o
modelo das sociedades segmentárias acéfalas. Será preciso esperar P. Mercier, J. Lombard e F.
Barth para que a abertura teórica aberta por Nadel seja aprofundada. P. Mercier é, sem dúvida,
aquele que foi mais longe em sua tentativa de desconstrução do objeto étnico. Em seu livro
sobre os sombas, ele sublinha a necessidade de ressituar este grupo na geografia e na história e
de incluí-lo em quadros mais amplos. E procede igualmente, o que é capital para qualquer
tentativa de definição de uma unidade social, qualquer que seja ela, a um inventário do campo
semântico do termo “somba”, cuidado que encontramos também em J. Lombard [1964, 42-43]
e M. Izard [1977] no tocante às “sociedades englobantes”6 dos baribás do Benin e mossis de
Burkina Faso. Entretanto, P. Mercier aferra-se – e nisso voltamos ao peso da instituição
antropológica – a uma certa especificidade de seu objeto e é levado, tomando emprestada de C.
Lévi-Strauss a noção de “limiaridade”, a reintroduzir uma idéia próxima daquela de M. Fortes:
a etnia deixa de funcionar no ponto em que se enfraquece a comunicação entre seus membros.
P. Mercier volta, portanto, a uma concepção das sociedades africanas pré-coloniais
consideradas como conjuntos descontínuos [J.-L. Amselle, 1974, 107-108]. F. Barth [1969]
coloca, como já vimos, a noção de “limite” no centro de sua conduta. Ele mostra que as

6
Para uma explicação desta noção, ver adiante.
separações entre etnias servem para estabelecer esquemas de identificação socialmente
significantes e que, paralelamente, produz-se um fluxo contínuo de populações através desses
“limites”. E abre, assim, caminho para uma análise das relações entre etnias concebidas como
relações de força.
É em certas monografias que esse processo de dissolução das etnias específicas é levado
mais longe. C. Meillassoux [1964, 16] chega ao ponto de se perguntar se os gouros da Costa do
Marfim realmente existem como etnia. As únicas unidades sociais que lhe parecem pertinentes
são as áreas matrimoniais, enquanto que a consciência de pertencer a um mesmo grupo parece-
lhe resultar da ação da Agrupação Democrática Africana (RDA).
E. Terray [1969, 36] é ainda mais categórico a propósito dos didas da Costa do Marfim.
Para ele, “não existe ponto de vista do qual se possa observar essa sociedade como uma
totalidade” e, em uma abordagem que lembra a de Meillassoux, ele observa que, segundo os
traços verificados, obtêm-se áreas culturais ou muito maiores, ou muito menores do que a
região dida [p. 31]. Ele afirma, todavia, mas sem dar muitos detalhes, que existe um conjunto
dida, mas que este “resulta de uma classificação elaborada do exterior e aceita pelos
interessados nas ocasiões relativamente raras em que eles sentem sua necessidade”. Para
concluir, ele demonstra ceticismo ao estimar que no oeste florestal marfinense “é de fato a
própria noção de etnia que deve ser contestada” [p. 35]. Ainda que Meillassoux e Terray nos
forneçam indicações preciosas que nos ajudarão a “reconstruir” o objeto antropológico,
podemos considerar que foi com W. Watson, aluno de M. Gluckman, que se produziu a
verdadeira ruptura com a etnologia colonial. Em Tribal Cohesion in a Money Economy, obra
maior mas relativamente incompreendida, sobretudo na França, Watson mostrava já em 1958
que a “coesão tribal” dos mambués da Zâmbia, ou seja, na verdade a própria constituição da
tribo, era conseqüência da colonização britânica 7. Essa região que foi organizada em
comunidades aldeãs independentes e em que os homens se dedicavam principalmente à guerra
passou por profundas perturbações com a conquista inglesa. Liberados das tarefas defensivas
pela pax anglica e substituídos pelas mulheres na agricultura, os homens puderam migrar em
direção às minas de Copperbelt.

7
Ver também E. COLSON [1951, 1953] e M. FRIED [1968].
A instalação da administração indireta e o apoio concedido aos chefes pelos britânicos
permitiram a estes últimos ampliar seu poder sobre a terra e controlar a circulação dos
migrantes entre as zonas rurais e mineiras, de tal maneira que essa região antes segmentada se
transformou em um conjunto politicamente centralizado e dotado de uma consciência coletiva.
É nesse quadro de análise que se situa J.-P. Dozon [1981] quando nega qualquer espécie de
realidade a uma entidade betê pré-colonial e vê no surgimento da “etnia” betê uma “produção”
e uma “criação” coloniais8.
A causa parece, portanto, entendida: não havia nada que se parecesse com uma etnia
durante o período pré-colonial. As etnias procedem tão-somente da ação do colonizador que,
em sua vontade de territorializar o continente africano, desmembrou entidades étnicas as quais
foram logo em seguida reapropriadas pelas populações. Nessa perspectiva, a “etnia”, como
várias instituições presumidamente primitivas, seria apenas mais um arcaísmo. Mas se não
havia etnias antes da colonização, o que havia, então? Em que quadros os atores sociais se
organizavam?

Os espaços pré-coloniais

Atualmente, um número crescente de pesquisadores está de acordo sobre o caráter


primeiro, na época pré-colonial, de um “espaço internacional” [Copans, 1978, 97], de “relações
simplécticas” [Meillassoux, 1978, 132] ou de “cadeias de sociedades” [Amselle, 1977, 275], ou
seja, definitivamente sobre a primazia das relações intersocietais. As sociedades locais, com o
seu modo de produção, de redistribuição etc., longe de serem mônadas dobradas sobre si
mesmas, estavam integradas em formas gerais englobantes que as determinavam e lhes davam
um conteúdo específico. Eis porque cada sociedade local deve ser concebida como o efeito de
uma rede de relações que, por falta de ser explorada em totalidade, não poderia fornecer a
chave do funcionamento de cada elemento. Essa atitude implica a definição das diferentes
redes que dão forma às sociedades locais, o reconhecimento da existência de um
desenvolvimento desigual pré-colonial e, em determinado prazo, uma mudança de perspectiva

8
Ver também seu texto neste volume.
em antropologia que consiste em explicar o menos elaborado pelo mais elaborado, no interior
de filogenias específicas e limitadas9.
Toda uma tradição da antropologia deve, portanto, ser descartada, aquela que vê nas
sociedades mais “simples” ou mais “primitivas” os ancestrais contemporâneos das sociedades
mais desenvolvidas ou ainda modos de resistência ao Estado e ao capitalismo. É claro que são
visadas aqui todas as formas de evolucionismo marxista ou não marxista (selvagens, bárbaros,
civilizados), os procedimentos tipológicos (sociedade com Estado/sociedade sem Estado),
assim como a “nova antropologia” [Amselle, éd. 1979b] que, pretendendo nos apresentar
“sociedades contra o Estado”, na verdade nos fornece apenas subprodutos do Estado.
Poder-se-á objetar a essa posição que o que é verdadeiro para o continente africano
talvez não o seja para as sociedades ameríndias ou asiáticas em que a “vida de relações”, como
dizem os geógrafos, é menos desenvolvida e em que as sociedades são mais bem preservadas
dos contatos com o exterior. Os continentes americano e asiático manifestam, no entanto, como
mostra a antropologia, uma mesma continuidade no tecido que une as diferentes sociedades,
cada uma das quais devendo ser concebida, de qualquer modo, como o ponto último de toda
uma rede de relações de forças10.
Sob essa ótica, é preciso definir uma série de espaços sociais que estruturavam o
continente africano na época pré-colonial. Trata-se: 1) dos espaços de trocas; 2) dos espaços
estatais, políticos e de guerra; 3) dos espaços lingüísticos; 4) dos espaços culturais e religiosos.

Os espaços de troca

Tão longe quanto as diferentes fontes permitem remontar na história do continente


africano, encontram-se redes de troca entre unidades sociais de porte e estrutura diversos. Quer
se trate da circulação das mulheres, do comércio transaariano impulsionado pelo Magreb e o
mundo árabe, do comércio ao longo do golfo da Guiné efetuado por africanos bem antes da
9
H. S. LEWIS citado por M. GODELIER [op. cit., 124].
10
Ver, por exemplo, para o sudeste da Ásia, B. HOURS [1973, 2-28], que a respeito dos Lavè do Laos mostra como essas
populações foram expulsas para as montanhas pelos invasores budistas Lao e são consideradas como “escravos” do reino, e
para a América Latina a obra de André Marcel d’ANS, que revela que a presença do Inca, ou seja, na verdade, do Estado,
impregna os mitos dos caxinauás, população de “caçadores-coletores” (Le Dit des vrais hommes. Mythes, contes légendes et
traditions des Indiens Cashinaua, 10/18, UGE, 1978).
chegada dos portugueses no século XV ou da presença secular dos comerciantes árabes nas
costas africanas do leste e sem falar do tráfico interno e externo dos cativos do século XVI ao
XIX, nem um só ponto do continente parece ter estado ao abrigo dessa vida muito ativa de
relações. Essas trocas, quer tenham sido obra de comerciantes estáveis ou itinerantes, de grupos
que praticam a troca ou de povos negociantes, manifestam o caráter primeiro do espaço
internacional ou da “economia-mundo” [F. Braudel, 1979, 11-34] que constituía a África antes
da colonização.
A existência dessas trocas (comerciais ou não) é igualmente o indicador do
desenvolvimento desigual que afetava o conjunto do continente africano desde aquela época. É
assim que podemos notar uma diferença de potencial entre o Sudão medieval e o mundo árabe,
diferença de potencial que se exerce pelo viés do tráfico de escravos árabe. Encontramos essa
dominação árabe no leste do continente e esse processo de subdesenvolvimento que se inicia
bem antes da chegada dos primeiros europeus [Alpers, 1973]. Essas relações de troca desigual
provocam também uma hierarquização e um desnivelamento que se traduzem por numerosas
migrações. Inicialmente migrações de povos que partem à procura de certos bens econômicos:
o ouro, a noz de cola etc. [Deluz, 1970, 121; Lovejoy, 1980a], assim como migrações de
comerciantes que intervêm provavelmente em seguida à queda dos grandes impérios medievais
e que constituem esse fenômeno de redes comerciais internacionais tal como foi observado por
vários autores [Cohen, 1969; Amselle, 1977; Lovejoy, 1980b]. A importância dessas trocas
representa, portanto, um primeiro fator de estruturação dos espaços pré-coloniais. E essa
estruturação se manifesta de várias maneiras. Inicialmente, pela existência de espaços de
produção11. Podemos, assim, observar – e contrariamente aos clichês particularmente
difundidos sobre o caráter auto-subsistente das sociedades africanas pré-coloniais –, uma
especialização, uma divisão social do trabalho e um comércio a longa distância concernente a
certos bens preciosos tais como a noz de cola, o sal, o ouro, os têxteis, os cativos, mas
igualmente de víveres como o arroz, o inhame e o sorgo, que serviam, naturalmente, para
abastecer os centros urbanos mas constituíam, além disso, objeto de um comércio entre zonas

11
Pode parecer curioso, contrariamente à tradição, colocar a produção depois das trocas, mas de fato, como bem mostrou H.
DENIS, a “determinação em última instância pela produção” é um manobra teórica de Marx (“L’Economie” de Marx,
histoire d’un échec, Paris, PUF, 1980, p. 46-111).
agrícolas distintas [Chaveau et al., 1981]. Esses espaços de produção desenhavam, assim,
regiões econômicas especializadas neste ou naquele produto. A própria realização do valor
dessa produção se operava no interior de espaços de trocas que podiam coincidir com as áreas
de mercados que eram freqüentados pelos próprios produtores, por povos negociantes ou por
comerciantes profissionais. Esses espaços de trocas extrapolavam largamente o local de
produção de cada bem, pois este podia encontrar seu consumidor final a muitas centenas ou
milhares de quilômetros de distância.
Esse processo de realização do valor se efetuava essencialmente de três maneiras: pela
transferência (dom e contra-dom), pelo escambo e pela troca monetarizada. É bem sabido que
verdadeiras moedas – búzios, sompe, gwinzin, manilles, corais azuis etc. – circulavam no
continente africano antes da colonização. O espaço de circulação dessas moedas, os diferentes
lugares em que elas tinham valor delimitavam, por sua vez, verdadeiras zonas monetárias que
representavam uma outra forma de estruturação do espaço africano pré-colonial.
Do mesmo modo, a troca restrita e generalizada de mulheres ou a compra de cativos
levava à definição de áreas matrimoniais que com freqüência constituíam – notadamente no
caso dos gouros da Costa do Marfim – as únicas unidades sociais pertinentes na África pré-
colonial e que se articulavam com as outras áreas de trocas que acabam de ser analisadas
[Couty et al., 1981].
O conjunto desses processos socioeconômicos manifestava a extroversão das sociedades
africanas pré-coloniais, assim como a existência de uma pequena produção comercial e de um
setor capitalístico que se apoiava em uma rede relativamente densa de cidades – Tombouctou,
Djenné, Kong, Kano etc. – nas quais residiam os diferentes grupos de comerciantes que se
encontravam nessa época (julas, hauçás, soninquês etc.) [Amselle, 1980 e Amselle e Le Bris,
1981].
Espaços de produção, espaços de circulação e espaços de consumo representavam,
assim, um primeiro esquadrinhamento do continente africano e marcavam a predominância de
uma forma geral englobante sobre as diferentes sociedades locais consideradas como bens.
Os espaços estatais, políticos e de guerra

Tão longe quanto se pode remontar à história da África, encontram-se Estados, reinos e
impérios que podiam agrupar vários milhares ou dezenas de milhares de aldeias e que por vezes
se estendiam sobre superfícies consideráveis. Basta citar os impérios medievais do Gana, do
Mali e do Songai, os reinos Mossi e Ashanti, os do Daomé e do Congo etc., para estarmos
convencidos disso. É cada vez mais evidente para os antropólogos e historiadores africanistas
que existe um elo entre o surgimento dos grandes impérios, a existência de um grande comércio
internacional e o desenvolvimento do escravismo, instituição que forma o substrato econômico
dessas organizações estatais. Por outro lado, as camadas dirigentes desses Estados,
notadamente as dos impérios medievais, em muitos casos eram apenas os representantes locais
de outras classes dominantes situadas na extremidade das redes comerciais internacionais, no
Magreb e no mundo árabe, por exemplo.
É, sem dúvida alguma, no interior de um esquadrinhamento estatal desse tipo que é
preciso recolocar um grande número de movimentos de população que se produziram na África
na época pré-colonial. A relação entre essas redes estatais e as migrações pré-coloniais é
complexa e não poderia ser considerada de maneira unívoca. Podemos notar, em primeiro
lugar, que a constituição do Estado em uma determinada região é muitas vezes resultado da
vinda de um grupo de guerreiros que impõe sua dominação sobre uma população de primeiros
ocupantes. Por vezes esse grupo de conquistadores é, ele mesmo, oriundo daquilo que se
poderia chamar de “dissidência estatal”, de maneira que a aldeia ou a chefaria que criam é,
nesse sentido, filha daquele ou daquela de quem eles são originários 12. Mas, podemos observar,
além disso, que uma “dissidência estatal” e o fato de que um conflito no interior de um reino
provoca a partida de alguns grupos podem não levar à reconstituição de uma organização
política de natureza análoga.
Um bom exemplo dessa situação é fornecido pelo caso de uma fração dos baúles que é
originária do reino Ashanti e se reconstituiu na Costa do Marfim sobre a base de pequenas

12
Cf., para os mossis, IZARD (1975, 219) e (1977), e SKINNER, op. cit., p. 35 sq.
chefarias ou de sistemas regidos pelas relações de parentesco 13. Uma boa parte das populações
da Costa do Marfim, qualificadas de segmentárias, provém, aliás, das áreas culturais mandê e
acã, elas mesmas grandes produtoras de formas estatais, o que nos leva a perguntar,
extrapolando um pouco, se as chefarias, de um lado, e as sociedades linhagistas, de outro, não
são, em muitos casos, “contrações” de formas estatais 14.
Um outro caso, do Mali, permitirá levar mais longe a demonstração. Foi assim que, logo
depois da queda de Biton Kulubali, fundador do reino de Segu no século XVIII, um dos seus
grupos de dependentes fugiu da região para ir se instalar a trezentos quilômetros dali, no
Jitumu, onde se tornou uma “linhagem” Kulubali, considerada como parte integrante dos
“primeiros ocupantes”15.
Tais exemplos de dispersão, de edificação ou, ao contrário, de contração estatais
abundam na África pré-colonial. Eles incitam a abandonar uma visão evolucionista da história
e a restringir a importância das diferentes tipologias utilizadas em antropologia (sociedades
segmentárias versus sociedades de Estado), as quais tendem a considerar as formas mais
reduzidas como ancestrais das formas mais desenvolvidas, as sociedades linhagistas como
predecessoras das sociedades estatais e a estabelecer um corte radical entre a linhagem e o
Estado.
Ora, se há um ponto relativamente pacífico entre um certo número de africanistas, é que
as formas de organização social que podemos identificar na África pré-colonial são produto de
fenômenos de diástole e sístole, de vai-e-vem constantes, em uma palavra de processos de
composição, decomposição e recomposição que se desenrolam no interior de um espaço
continental.

13
A literatura sobre os baúles é abundante: P. e M.A. de SALVERTE MARMIER, “Les étapes du peuplement”, in Cote
d’Ivoire, ministère du Plan, Etude régionale de Bouaké, 1962-1964, 1: Le peuplement, Abidjan, 1965, 11-58; P. ETIENNE,
Essais de sociologie baoulé, thèse de 3e cycle, Paris, Sorbonne, 1975, multigr.; T.C. WEISKEL, French Colonial Rule and
the Baule Peoples: Resistance and Collaboration, 1899-1911, Ph.D. thesis, Balliol College, Oxford, 387 p. multigr., 1976;
J.-P. CHAVEAU, Notes d’histoire économique et sociale, Kokumbo et sa région, Baoule sud, Travaux et Documents de
l’Orstom, nº 104, Paris, 1979.
14
Cf. DOZON, op. cit., TERRAY, op. cit., DELUZ, op. cit. A tese da origem mandê de certas populações como os “dãs” e
os “gouros”, por exemplo, está, não obstante, sob suspeita, na medida em que ela é uma criação de “griôs” “malinqués”,
hábeis em incorporar todos os povos do oeste africano na “matriz” mandê (DELUZ, ibid, 140) ou de pesquisadores como
Delafosse, que constituíram grupos lingüísticos totalmente arbitrários (exemplo: mandê tan/ mandê fu).
15
Observação pessoal feita entre os kulibali de Sugula, Mali (18-2-1978).
Não temos a intenção de explicar o conjunto dos movimentos de população pré-
coloniais pelas crises ou o declínio dos diferentes Estados ou chefarias que nasceram nessa
região; é bem evidente que as sociedades linhagistas ou segmentárias engendram, elas mesmas,
certas migrações (cf. os lobis do Alto VoltaN.T. e da Costa do Marfim) [M. Fiéloux, 1980], mas é
forçoso constatar que nem todas as sociedades podem ser postas em um mesmo plano e que
algumas pesam mais do que outras.
Nesse sentido, seria possível proceder a uma primeira distinção bastante grosseira que
consiste em opor as “sociedades englobantes” às “sociedades englobadas”. As primeiras, ou
seja, os Estados, os impérios, os reinos e as chefarias, estão ligadas à determinação: são elas
que possuem a capacidade máxima de delimitação do espaço. Esses Estados exercem uma forte
pressão sobre as sociedades de agricultores e favorecem as divisões em seu interior, acentuando
assim seu caráter “segmentário”. Eles fazem dessas sociedades simples apêndices e as farão
surgir mais tarde, sob a colonização, como falsos arcaísmos (talensis/mamprusis,
sombas/baribás, dogons/mossis, tucolores; kirdis/fulas). É todo o problema das sociedades
encravadas ou intersticiais que é levantado aqui, sociedades que em muitos casos se refugiaram
em maciços montanhosos (falésia de Bandiagara, montes do norte de Camarões, maciços do
norte do Togo e do norte do Benim) e que por isso praticavam uma agricultura intensiva. Essas
sociedades só se reproduziam no interior de um espaço que Estados ou chefarias quiseram lhes
conceder. Quando a pressão desses Estados desaparece com a colonização, elas serão objeto de
um descerramento e se espalharão pelas planícies circundantes (exemplo: os dogons que
desceram para a planície do Seno). Algumas dessas sociedades tornam-se, na época
contemporânea, “minorias étnicas” no caso em que o recrutamento do pessoal político atual é
idêntico no plano lingüístico àquele dos Estados pré-coloniais. Da mesma maneira, a aldeia
africana que foi apresentada como uma organização social e espacial muitas vezes é apenas o
resultado de uma criação que se pode, em certos casos, datar de forma precisa. Assim, as
aldeias bwa do Alto Volta só surgiram no século XIX, depois da pressão que os peúles do
Macina exerciam sobre essa população. Antes, só existiam nessa zona aglomerações linhagistas

N.T.
Antiga colônia, atual Burkina Faso, estado independente.
dispersas [Capron, 1973, 87-88; Savonet, 1979, 41]. Esse fenômeno é encontrado em muitas
outras regiões da África.
Vários tipos de relações entre “sociedades englobantes” e “sociedades englobadas”
podem existir na África pré-colonial. As sociedades englobadas podem estar submetidas ao
pagamento de um tributo em objetos ou em dinheiro (exemplo: ouro e búzios no reino de
Segu), e nesse caso estamos falando de relações tributárias, ou são vítimas de razias por parte
desses mesmos reinos e, então, trata-se de relações predatórias.
Chegamos, assim, por vezes à existência de redes de relações de sujeição, como no Gana
pré-colonial, em que o império Ashanti impunha um tributo em escravos ao reino Gonja, que
por sua vez realizava razias para capturar escravos entre os gurunsis, os konkombas, os
lodaagas e os talensis, sociedades qualificadas hoje como “segmentárias” 16.
Essas próprias relações tributárias ou predatórias provocavam intensos movimentos de
população servil em direção aos Estados cuja base repousava sobre o escravismo e ativas
correntes de troca quando esses escravos eram vendidos para comerciantes que iam, eles
mesmos, revendê-los em outros pontos do continente, notadamente nas costas em que eram
expedidos para a América.
A oposição “sociedades englobantes” / “sociedades englobadas” regia igualmente as
relações entre os agricultores sedentários bantos e os caçadores nômades pigmeus da floresta
congolesa. Neste último caso, trata-se de sociedades que não são muito diferentes
culturalmente, ou mesmo geneticamente, das sociedades sedentárias; foram expulsas para a
floresta pelos agricultores bantos e reduzidas à caça como único modo de subsistência [S.
Bahuchet e H. Guillaume, 1979]17.

Os espaços lingüísticos

16
Cf. J. GOODY, Technology, Tradition and the State in Africa, OUP, Londres, 1971. Deve-se observar que o termo
“gurunsi” seria, segundo ROUCH [1956, 63-64], uma palavra dagomba que serve para designar os “homens do mato” entre
os quais os dagombas iam caçar seus escravos, ou ainda o nome dado pelos mossis aos autóctones expulsos por eles para
além do Volta Vermelho. Isso deve ser associado à etimologia do termo “somba”, palavra baribá que tem por referente o
campo de razia ocidental desse reino, MERCIER [1968, 8].
17
Esse processo de expulsão dá conta, a nosso ver, das contradições do mito banto relativo aos pigmeus aka e que faz destes
últimos ao mesmo tempo civilizadores e selvagens.
Se há um conceito que foi freqüentemente afirmado com apoio na existência da noção
de “etnia”, este conceito é o de língua. Uma língua comum parece ser o índice principal, senão
determinante, da condição de existência de um grupo étnico: a “etnia bambara” fala bambara, a
“etnia baúle” fala baúle etc. Ora, se existe um campo em que é grande a confusão em matéria
de pesquisa africanista, este campo é a lingüística. Enquanto que em antropologia as pesquisas
recentes permitem operar, cada dia mais, uma desconstrução do objeto étnico, graças
notadamente ao estudo das migrações pré-coloniais, da história do povoamento, das redes de
trocas, das formas políticas, a focalização dos estudos lingüísticos na morfologia e na sintaxe
não permite proceder a uma abordagem conveniente dos problemas lingüísticos considerados
em uma perspectiva geográfica e histórica.
O que falta particularmente aos antropólogos é a definição de áreas lingüísticas
relativamente bem delimitadas e situadas no tempo. É bem verdade que em países onde a
escolarização é fraca, é mais difícil do que nas regiões onde as línguas são maciçamente
ensinadas na escola definir precisamente tais áreas, em função da própria dialetização maior
dessas línguas. Mas essa tarefa continua, todavia, primordial, pois ela condiciona os progressos
da história antropológica africana.
Muitos antropólogos, com efeito, insistiram na reduzida homogeneidade lingüística das
diferentes “etnias” das quais eles presumidamente deram conta. Muitas vezes a língua falada
por um dos segmentos da “etnia” tem mais afinidades com a língua da sociedade vizinha do
que com um outro segmento do mesmo “grupo étnico”. Exemplos desse tipo abundam: “betês”
mais próximos de alguns “didas” do que de outros “betês”; “didas” lingüisticamente menos
afastados de alguns “gouros” do que de outros “didas”; “dogons” que, originários de aldeias
situadas a dez quilômetros de distância, não se entendem e são obrigados a falar peúle 18. Por
outro lado, a idéia segundo a qual a língua determina o pertencimento a uma “etnia” deixa
intocado o problema de grupos para os quais existe uma contradição entre o “etnônimo” e a
língua efetivamente falada. É o caso das pessoas do Wasolon, no Mali, que reivindicam um
pertencimento peúle, o que, como veremos, tem um significado essencialmente político, e que
falam uma forma de bambara-malinqué [Amselle et al., 1979c].

18
Observação pessoal.
É importante, por conseguinte, estabelecer espécies de cortes sincrônicos de áreas
lingüísticas. É provável que cheguemos, dessa maneira, a distinguir diferentes tipos de áreas
lingüísticas em função do lugar de cada sociedade no conjunto africano pré-colonial: áreas
lingüísticas “segmentadas”, ou seja, áreas em que a intercompreensão é de pequena extensão
geográfica e correspondem a sociedades “englobadas” ou “segmentárias”, opostas a áreas
lingüísticas de grande extensão correspondentes a sociedades “englobantes”, estatais ou
imperiais19.
Essa oposição recobre em parte uma outra distinção, aquela relativa ao par línguas
veiculares/línguas vernaculares. Na África, as línguas veiculares como o bambara-malinqué-
diúla ou o hauçá são muitas vezes oriundas de grandes formações estatais (império do Mali,
reino de Segu, Samori ou Estados hauçá). A difusão dessas línguas está ligada às conquistas
realizadas por esses Estados, mas também às redes comerciais internacionais pré-coloniais das
quais se originaram e cuja ação foi, por vezes, reforçada pelo colonizador 20.

Os espaços culturais e religiosos

O processo de desconstrução do “objeto étnico” como objeto ideológico exige a


identificação, no interior da realidade africana pré-colonial, de um certo número de “traços”
que, na falta de coisa melhor, podemos chamar de “culturais” e cujos mapas é preciso
estabelecer. Por “traço cultural” entendemos tanto a vida material quanto as estruturas sociais e
religiosas.
Ao lado dos atos concernentes à produção, à distribuição e ao consumo, que foram
evocados anteriormente, seria necessário conhecer a repartição no espaço de instituições tão
diversas quanto as técnicas, os estilos arquitetônicos, as formas artísticas, as maneiras à mesa,
as regras de parentesco e de aliança, os cultos religiosos, as sociedades secretas etc. 21.

19
Ver, a este respeito, P. ALEXANDRE, Langues et langage en Afrique noire, Paris, Payot, 1967, p. 22, e M. HOUIS,
Anthropologie linguistique de l’Afrique noire, Paris, PUF, p. 09-110.
20
Acontece especialmente na Costa do Marfim, onde os “diúlas” prosperaram à sombra da colonização francesa.
21
Um bom exemplo desse tipo de síntese é fornecido pelo trabalho de Y. Person, Samori, une révolution dioula, t. 2, IFAN,
Dakar, 1968, p. 47-48. Ver também o quadro que indica as principais características regionais da região “gouro” em
DELUZ, op. cit., p. 18-19.
Esses mapas teriam o mérito de delimitar “áreas culturais” e “áreas de poder 22” que não
recortariam aquelas operadas pelos sempiternos “mapas étnicos” da África e seriam muito
reveladores dos contatos, dos laços entre as diferentes “sociedades”, em uma palavra do peso e
do trabalho da história sobre os diferentes elementos do conjunto africano pré-colonial.
Do mesmo modo, seria precioso conhecer, para cada período histórico, a difusão de
grandes religiões universalistas e em particular do Islã. Esse estudo permitiria notadamente
identificar as ondas sucessivas e os refluxos do islamismo no oeste e no Leste da África e
determinar se algumas regiões, consideradas atualmente como “pagãs”, não são, na verdade,
sobrevivências da fase de islamização que a precedeu.
Assim, no vale do Alto Níger, no Mali, cultos hoje considerados como absolutamente
animistas são dedicados a relíquias de marabutos que viveram há séculos. Da mesma forma, a
geomancia que é vista pelos muçulmanos de Bamako como uma instituição tipicamente
politeísta é, sem dúvida, algo que subsiste de um processo de islamização muito antigo.
Evidenciar a oposição muçulmanos-pagãos, que desempenhava e ainda desempenha um
papel muito importante na África, seria, enfim, o meio de ressaltar um certo número de
pretensas clivagens “étnicas” – peúle/dogon, fulbe/massai; maninca, jula/banmana etc. – e de
conferir um conteúdo concreto, isto é, sincrônico e espacial, ao paradigma
“selvagens/civilizados”, que foi totalmente obscurecido pelo evolucionismo antigo ou
moderno23.

Paradigmas e mutações étnicas

Se conferimos ao conjunto primazia sobre as partes, e se aceitamos o caráter


logicamente primordial de um espaço internacional africano pré-colonial sobre os diferentes
elementos que o constituem, somos então levados a admitir a existência de “cadeias de
sociedades” no interior das quais os atores sociais se movem. Estes últimos, em função do lugar
que ocupam nos diferentes sistemas sociais, estão em condições de circunscrever na língua uma

22
Penso particularmente, aqui, nos agrupamentos territoriais de funerais e de “poro” senufo (C. Fai, comunicação pessoal).
23
Faço aqui alusão tanto ao evolucionismo de Morgan quanto ao mais recente de G. DELEUZE e F. GUATTARI ( l’Anti-
Œdipe, Paris, Minuit, 1972).
série de elementos significantes ou de semas que por uma soma de transformações sucessivas
darão origem a um “paradigma étnico”.
Somos, dessa forma, confrontados com os problemas da “atribuição” e da “identificação
étnica”, tais como F. Barth [1969] bem os analisou: um ator social, em função do contexto em
que se encontra, operará no interior do corpus categorial posto à sua disposição pela língua
uma escolha de identificação. Esse poderá, por sua vez, mudar, e chegaremos assim a quadros
de transformação e de conjugação semelhantes ao que nos é fornecido, por exemplo, por G.
Dieterlen [1955, 42] quando apresenta a lista das correspondências entre os patrônimos
“malinqués” e um grande número de “etnias” do oeste da África. A existência de tais corpus
categoriais, e as mutações “étnicas” [J. Galais, 1962] que eles permitem, é, portanto, o indício
mais eloqüente da presença dessas “cadeias de sociedades” e sinal de que as estratégias sociais
pré-coloniais se produziam muitas vezes em escala continental. Mais do que considerar as
fronteiras étnicas como limites geográficos, é preciso considerar estes como barreiras
semânticas ou sistemas de classificação, ou seja, definitivamente como categorias sociais.

“Etnia”, uma criação pré-colonial?

Levar em conta tais sistemas de classificação leva também a nuançar um pouco a nossa
afirmação preliminar segundo a qual a “etnia” seria puramente uma criação colonial. É bem
verdade que não se trata de negar que, em certos casos, o termo que foi isolado pelo
colonizador e que em seguida forneceu o etnônimo não designava nenhuma unidade social
pertinente à época pré-colonial. Assim, J.-P. Dozon [1981, 474] pôde mostrar a propósito dos
betês da Costa do Marfim que o termo “betê”, que significa “perdão” e remete à submissão das
populações dessa região aos franceses, foi aplicado pela administração colonial a um território
arbitrariamente recortado por ela no meio de um continuum cultural. Entretanto, seria
igualmente falso pensar que a noção ideológica de “tribo”, de “raça” ou de “etnia” não tinha
nenhuma espécie de correspondência nas línguas africanas. Em bambara-malinqué, por
exemplo, existe uma noção, a de shiya, que corresponde bem à de raça, etnia, ou mesmo clã ou
linhagem. Nessa língua e nessa sociedade, encontramos, de fato, como na nossa, noções
ideológicas que permitem o agrupamento de um certo número de agentes sob a ficção de um
pertencimento ou de uma descendência comum 24. O caso dos peúles falantes do maninca do
Wasolon, no Mali, é, desse ponto de vista, muito revelador, pois essas populações, cuja análise
mais sumária revela origens muito diversas, declaram em certas ocasiões descenderem dos
quatro filhos de uma mesma mulher [Amselle et al., 1979c, 426, nº 96].
Nessa perspectiva, o questionamento epistemológico da noção de “etnia” incita a
reexaminar de maneira crítica faces inteiras da antropologia, e em particular as noções de “clã”
e de “linhagem”, que, como bem viram P. Mercier [1961] e G. Nicolas [1973], estão em
continuidade direta com as de “etnia” ou de “raça”25.
Todas essas noções que a antropologia muitas vezes utiliza de maneira não crítica, isto é,
redobrando a ideologia da sociedade das quais elas são extraídas, não são, na verdade, nada
além das “formas simbólicas” que permitem a reunião de certos efetivos humanos sob o
estandarte de uma comunidade imaginária de sangue ou de raça, e isto notadamente no
contexto de Estados26.
Vejamos o paradigma “banmanan fin” (bambara negro) – “fula” (peúle) – “maninka”
(malinqué) tal como podemos encontrá-lo em materiais relativos à história de várias chefarias
do sul do Mali27. Percebemos rapidamente, ao analisar esses termos, que os diferentes
elementos do paradigma são utilizados pela “linhagem máxima” Jakite Sabashi em função dos
diferentes contextos sociais no interior dos quais ela se encontra. Assim, o ancestral dos Jakite
Sabashi, originalmente “soninquê” ou “banmanan fin” e portando o nome Jara ou Konate, se
tornará “fula” e assumirá o patrônimo Jakite para se assimilar ao grupo política e culturalmente
dominantes no Wasolon. Do mesmo modo, um de seus filhos deixará essa região, fundará a

24
Ver também as noções de “kabila” e de “bonson”.
25
“O caso das ‘linhagens’ e dos ‘clãs’ é, no entanto, bastante parecido com o da ‘etnia’. Mas nós tendemos a ver nessas
noções expressões de realidades sociais invariáveis. No entanto, esses conceitos, e sobretudo as construções feitas a partir
desses conceitos, são ideologias. Como todas as ideologias, aquela que se fundamenta na linhagem segmentária ou no clã
não corresponde à organização social vivida, mas a influenciou. Ela exprime antes aquilo que deveria ser, e não aquilo que
é.” (J. VANSINA, 1980, 135)
26
M. IZARD [1977, 310-311] mostra, assim, que o termo mooga é reivindicado apenas pelo povo (talse) do reino do
Yatenga. Ver também, sobre este ponto, C.-H. PERROT [1981].
27
Cf. AMSELLE et al., 1979, e Yaya Konate, Kuruba Mali, 8-1-1981.
uma certa distância dali uma chefaria-filha trazendo o mesmo nome que aquela criada por seu
pai e retomará o patrônimo Konate para se integrar aos “maninka” dominantes na região 28.
Assim, os patrônimos, os nomes de “clã” ou de “linhagem” e os etnônimos podem ser
considerados como uma gama de elementos que os atores sociais utilizam para enfrentar as
diferentes situações políticas que se lhes apresentam. Estamos, aqui, novamente diante da
preocupação de S. F. Nadel [1971], para quem a noção de “tribo” tem um caráter
essencialmente político. Na África pré-colonial, apenas as unidades locais de caráter político
são pertinentes, o que explica o fato de os patrônimos, os etnônimos, os sistemas de
classificação serem espécies de estandartes ou de símbolos que servem de sinal de
reconhecimento, ou ainda “emblemas onomásticos” [J. Berque, 1974, 26], ou seja,
definitivamente formas de dominação. Desse ponto de vista, não há mais “etnia” na época pré-
colonial do que na época atual, no sentido em que estaríamos diante de entidades homogêneas,
racial, cultural e lingüisticamente; o que sempre prevaleceu, ao contrário, são unidades sociais
desiguais e heterogêneas quanto a sua composição.
É bem verdade que se pode observar uma continuidade no uso de certas categorias na
época pré-colonial e atual, e constatar uma retomada pelo colonizador de termos que já eram
empregados antes de sua chegada (“peúle”, “bambara”, “diúla” 29 etc.), mas isso manifesta
simplesmente o fato de que o “etnônimo” é um “significante flutuante30” e de que sua utilização
é de natureza “performativa31”, de maneira que opor determinada significação de um etnônimo

28
Poderiam objetar que estamos reintroduzindo sub-repticiamente nomes de etnias, de clãs e de linhagens. Como
perguntávamos a um de nossos informantes se o ancestral dessa “linhagem máxima” não era de fato um “senufo”, ele nos
respondeu que os “senufo” eram “banmanan fin”, querendo dizer com isso que seu ancestral era um pagão “fin”, com a cor
negra indicando o caráter particularmente pagão desse personagem. O termo “fula” designa a zona controlada antigamente
pelos povos do Wasolon [AMSELLE et al., 1979c, nota 61, p. 416]. Quanto ao termo “maninca”, ele é a deformação do
termo “mandenka”, que significa “povos do Mande” e tem como referente um espaço político que se estende do Kurusa
(Guiné) ao Wayewayanko (perto de Bamako) e de Kita a Kara, no Sandarrani (Mamadi Keita, Narena, Mali, 29-12-1980).
Deve-se observar que os patrônimos (jamu) como Jakite ou Konate eram pouco empregados antes da colonização. Trata-se
de nomes de honra ou de divisas que eram utilizadas sobretudo pelos griôs (jeli).
29
Para os diferentes usos do termo “diúla”, ver AMSELLE [1977, 227-228].
30
Utilizo esta noção em um sentido ligeiramente diferente daquele de C. LÉVI-STRAUSS (“Introduction à l’oeuvre de M.
Mauss”, in M. MAUSS, Sociologie et Anthropologie, Paris, PUF, 1960, p. XLIX). Para mim, um significante flutuante é um
significante que remete a uma multiplicidade de significados.
31
Sobre a noção de “performativo”, ver J.-L. AUSTIN (Quand dire, c’est faire, Le Seuil, 1970, p. 39-42) e E.
BENVENISTE (“La philosophie analytique et le langage”, in Problèmes de linguistique générale. Paris, Gallimard, 1966, p.
269 sq.). Ao afirmar que a utilização do “etnônimo” é “performativo”, quero dizer simplesmente que a aplicação de um
significante a um grupo social cria por si mesma esse grupo social.
a uma outra não tem muito sentido enquanto não tiver sido estabelecida a lista completa dos
usos sociais de um mesmo termo32.
Desse modo, é perfeitamente legítimo reivindicar a condição de peúle ou bambara. O
que é contestável, em compensação, é considerar que esse modo de identificação existiu desde
sempre, ou seja, fazer dele uma essência. Um etnônimo pode receber uma multiplicidade de
sentidos em função das épocas, dos lugares ou das situações sociais; vincular-se a um desses
sentidos não é condenável; o que é condenável é afirmar que esse sentido é único ou, o que dá
no mesmo, que a série de sentidos que revestiu a categoria está acabada 33.

Os espaços coloniais

Em alguns casos, como vimos aqui, a “etnia” é, portanto, uma criação pré-colonial, no
sentido de que ela é um modo de agrupamento ideológico de um certo número de agentes e isso
em perfeita continuidade com as menores unidades sociais que são os “clãs” e as “linhagens” 34.
Quando as potências européias se apossam da África, assistimos por vezes a uma simples
retomada de alguns “etnônimos” que são empregados no mesmo contexto ou em contextos
diferentes. Mas, em outros casos, observamos a nomeação de um lexema novo, e sem
referência a uma unidade social pré-colonial, a um espaço circunscrito pela administração
colonial. A utilização recorrente de taxonomias étnicas marca bem a continuidade existente
entre a política do Estado pré-colonial e a do Estado colonial. Em ambos os casos, um mesmo
projeto preside o processo de territorialização: agrupar populações e designá-las por categorias
comuns a fim de melhor controlá-las.
O fenômeno maior da colonização é, assim, a instauração de novos recortes territoriais
(“círculos”, “distritos”, “territórios”), isto é, o fracionamento 35 dessa “economia-mundo” que a
África pré-colonial constituía em uma miríade de pequenos espaços sociais que logo serão
32
“Gostaria absolutamente de assinalar que erro funesto cometemos sempre que abordamos a explicação do emprego de
uma palavra tendo considerado seriamente apenas uma parte mínima dos contextos em que ela é de fato empregada.”.
Citado por G. LANE in J.-L. AUSTIN, op. cit., p. 15.
33
Ver neste volume o texto de J. Bazin.
34
Não quero afirmar que os grupos de filiação não existem, mas que é preferível postular uma heterogeneidade primeira a
fim de melhor definir os limites da homogeneidade desses grupos.
35
Cf. AMSELLE [1981].
erigidos em igual número de “raças”, “tribos” e “etnias” 36. Ao passo que, antes da colonização,
esses diferentes espaços estavam imbricados no interior de “cadeias de sociedades”,
assistiremos com a conquista a um empreendimento de desarticulação das relações entre as
sociedades locais.
Esse fenômeno tomará, essencialmente, três formas: a criação ex nihilo de “etnias”,
como no caso dos “betês” da Costa do Marfim; a transposição semântica de etnônimos
utilizados antes da colonização em contextos novos (“bambara”, “diúla”), ou a transformação
de unidades políticas ou de topônimos pré-coloniais em “etnias” (“mandenka” – “malinqué”;
“gurma” – “gourmantche”). São novos recortes territoriais que serão, em um primeiro
momento, retomados, por seu lado, pelos etnólogos que tratarão “dogons”, “senufos” como
“sujeitos” étnicos [Dozon, 1981, 2-5], quando essas populações estavam divididas em unidades
de tamanho bem menor (áreas matrimoniais, localizações linhagistas, tribos, federações de
aldeias, agrupamentos territoriais de sociedades secretas etc.), ou estavam englobadas, em
função de sua dependência em relação a Estados ou a redes comerciais internacionais, em
entidades muito mais vastas, ou ainda – o que parece ocorrer com mais freqüência –
combinavam essas duas características.
Em um segundo momento, esses “etnônimos” e essas “etnias” criados pelo colonizador
serão reivindicados pelos agentes que deles farão um instrumento ideológico de determinação
social. Chamados a se situar em relação a espaços novos, isto é, essencialmente em relação a
um espaço estatal colonial e pós-colonial, as diferentes regiões reivindicarão igualmente como
signos distintivos os “etnônimos” inventados ou transpostos pela administração colonial.
A vontade de afirmação étnica surgirá, assim, como um meio de resistência à pressão
das regiões concorrentes, e a luta no interior do aparelho de Estado tomará a forma do
tribalismo. Esse fenômeno será tanto mais patente quanto a colonização terá aumentado as
migrações para as cidades e pessoas originárias de uma mesma região serão levadas a se
agrupar em meio urbano fora dos contextos linhagistas e aldeões37.

O tribalismo moderno
36
Cf. AMSELLE [1974].
37
Encontra-se um bom exemplo desse processo em DOZON, op. cit.
Se existe um ponto em torno do qual a maioria dos antropólogos está de acordo, este é o
do pretenso “tribalismo” atual na África. P. Mercier [1961], M. Gluckman [1960], J.
Wallerstein [1960], J. Lombard [1969] e R. Sklar [1981] mostram, todos de forma convincente,
que o “tribalismo” do qual podemos nos fartar à vontade nos meios de comunicação quando
estes tratam da África (Zaire, Chade, Etiópia, Nigéria etc.) é sempre o sinal de outra coisa, a
máscara de conflitos de ordem social, política e econômica. Essa análise é uma daquelas que
devem ser imputadas à antropologia, e gostaríamos de vê-la retomada e difundida no ensino e
nos meios de comunicação de massa. Nenhum antropólogo digno deste nome ousaria, hoje,
analisar, na África ou alhures, qualquer revolta, qualquer greve ou qualquer movimento social
que seja em termos “tribalistas”. É preciso, conseqüentemente, sublinhar o mérito dos
etnólogos neste ponto, pois para eles teria sido fácil, ao contrário, enfatizar a estranheza e o
exotismo de alguns costumes bárbaros, e isto em perfeita continuidade com as tendências
profundas da ideologia dominante.
Mas há uma outra razão pela qual a análise desses antropólogos nos é preciosa, a que
concerne à “tentação tribalista” permanente dos Estados africanos contemporâneos. Tal como
pudemos observar depois de muitos outros pesquisadores, o discurso do poder quando precisa
enfrentar uma revolta camponesa, por exemplo [Amselle, 1978] sempre se exprime em uma
linguagem “tribalista” ou “regionalista”. Essa projeção do Estado neocolonial sobre
movimentos que se sublevam contra ele é indício de uma fragilidade e de uma ausência de
controle de grandes frações da população.
Definir um movimento social, qualquer que seja, como “tribalista” ou “regionalista” é
tentar desqualificá-lo negando-lhe qualquer legitimidade, a qual, para os aparelhos estatais
africanos atuais, só poderia se exprimir em um vocabulário modernista. No entanto, é fácil
constatar que o Estado é, com muita freqüência, o responsável pela forma que as revoltas
camponesas ou as greves assumem. Assim, o poder socialista no Mali, após ter eliminado logo
depois da independência um sindicato que reunia um número muito grande de camponeses 38, de
certo modo obrigou a que todas as reivindicações populares assumissem como quadro
38
Cf. D. NARBEBURU, Syndicalisme agricole et coopératisme horticole au Mali, diplôme de l’Ecole des hautes études en
sciences sociales, Paris, 1980.
ideológico as antigas “chefarias” despojadas de seu conteúdo hierárquico. E é assim que, se
podemos identificar uma “longa duração” das representações do poder na África, é porque esta
se inscreve em um quadro que foi delimitado pelos aparelhos de Estado atuais.
O “tribalismo moderno” surge, portanto, como um sistema de elementos significantes
que é manipulado tanto pelos dominantes quanto pelos dominados no interior de um espaço
nacional ou internacional; é igualmente um meio de definição social e um sistema de
classificação que dá a cada um sua posição no interior de uma determinada estrutura política.
Por essa razão, e contrariamente a muitas afirmações que enfatizam a periodização da
historia da África, parece que não existe corte radical entre o “tribalismo moderno” e seu
homólogo antigo.
O movimento de superação das barreiras “étnicas” [Barth, 1969; Lovejoy e Baier, 1975],
de migrações rumo às cidades (a “destribalização39”) e de utilização de redes de nativos como
modo de organização econômica e social (“retribalização 40” ou “supertribalização41”) começou
bem antes da colonização, como é atestado pela existência das cidades pré-coloniais e das redes
comerciais internacionais, julas e hauçás especialmente.
É esse mesmo movimento que continua, hoje, em direção às cidades e às plantações, e
que leva a reunir fora dos coletivos rurais e aldeões um certo número de pessoas originárias de
um mesmo grupo. Assim, mais do que um índice de modernidade, a “etnicidade” poderia,
portanto, surgir antes de tudo como um produto da urbanização, da edificação estatal e do
comércio no sentido mais amplo do termo, e isto qualquer que seja o período considerado.
Se aceitarmos esse ponto de vista, torna-se fácil constatar que nada distingue de fato o
“tribalismo” ou a “etnicidade” africanos do renascimento do “regionalismo” a que assistimos
na Europa. Nos dois casos, esses movimentos de volta às origens, de “autenticidade”, se
enraízam bem na realidade urbana, eles são uma projeção citadina sobre uma realidade rural e
passada meramente imaginária. E é o distanciamento social e geográfico que, tanto na Europa

39
Cf. A. RICHARDS [1939], G. WILSON [1942] e a crítica dessa abordagem por M. GLUCKMAN, in W.WATSON, op.
cit., X-XVI, assim como nossa análise [AMSELLE éd., 1976, 30-32]. Encontramos também essa angústia da
“destribalização” em um contexto completamente diferente, o do “etnocida” (R. JAULIN, La Paix blanche, Paris, Le Seuil,
1970).
40
Sobre a utilização dessa noção, ver A. COHEN, op. cit., 2, e a crítica de P. LOVEJOY [1980b, 45].
41
Cf. J. ROUCH, op. cit.
quanto na África, permite conferir pureza e homogeneidade a um meio heterogêneo e
hierarquizado.

Conclusão: o Estado, a cidade, as trocas

Ao longo deste texto, pudemos evitar uma certa ambigüidade, a da utilização de noções
como “clãs”, “linhagens”, “tribo”, “etnia”, “etnônimos”, “tribalismo”, “etnicidade” etc., que
mesmo usadas com precaução, com aspas, traem aquele que as emprega. É bem verdade que é
necessário, em qualquer trabalho epistemológico, partir de noções empíricas para desconstruí-
las e reconstruir um outro espaço conceitual mais apto a dar conta de uma determinada
“realidade”. No entanto, a antropologia talvez seja mais vulnerável do que outras áreas do
conhecimento, na medida em que, nela, o afastamento entre as realidades observadas e os
conceitos utilizados é mais frágil do que nas demais. Pudemos constatar que nesta disciplina
reencontramos noções ou concepções que eram apenas transpostas das próprias sociedades
estudadas ou da maneira como haviam sido apreendidas pelos colonizadores e pelos
missionários.
A existência desse imaginário antropológico, desse mundo fantasmático de “sujeitos”,
de “substâncias” e de “fetiches” é um freio considerável ao progresso do saber. No limite,
seríamos tentados a não utilizar nenhuma dessas noções, inclusive a de “sociedade”, tão
carregadas elas estão de ideologia e tanto elas impregnam as mais diversas produções, inclusive
as mais cientificistas e as mais positivistas.
Longe de nós a vontade de atirar pedras nos antropólogos quando eles utilizam de
maneira não crítica certas categorias: o ato de designação é necessário, nem que seja apenas
para tornar um pouco mais vivas obras que sua formulação reserva muitas vezes unicamente ao
público iniciado. Feita essa reserva, resta que há um fosso considerável entre a sofisticação
extrema que anima certos domínios antropológicos – o parentesco, por exemplo – e a ausência
quase completa de reflexão sobre o próprio objeto desta disciplina. Ora, vimos, ao longo desta
tentativa de reconstrução das realidades africanas pré-coloniais, que, conforme a luz adotada, a
própria natureza dessas realidades se modificava. Assim, o destaque dado às “cadeias de
sociedades”, à “economia-mundo”, aos “espaços pré-coloniais”, ao “desenvolvimento
desigual”, às “sociedades englobantes” e “sociedades englobadas” desordena totalmente a visão
que se pode ter das sociedades africanas pré-coloniais. Enquanto a análise antropológica e
monográfica nos oferece apenas entidades fechadas, a abordagem histórica, o estudo da
“morfogênese dos símbolos42” nos faz descobrir alguns “operadores”, os Estados, as cidades e
as trocas. Desse ponto de vista, as categorias étnicas surgem apenas como um gênero particular
de categorias, aquelas empregadas por organizações que procuram reunir sob seu estandarte
determinados efetivos humanos. Quanto mais essas sociedades se desenvolverem, mais os
efetivos a incorporar serão vastos e mais a utilização dessas categorias se tornará necessária, de
modo que as sociedades africanas não difiram fundamentalmente das outras: elas produzem
categorias sociais, isto é, categorias que servem para classificar socialmente agentes. É só com
a colonização que essas categorias sociais, essas “classes” sociais serão transformadas em
“fetichismos étnicos”, com o colonizador e os Estados pós-coloniais tendo necessidade de
apagar as hierarquias pré-coloniais para melhor impor novas hierarquias 43.
Nesse sentido, a categoria “etnia”, e por conseguinte uma boa parte da antropologia,
estaria ligada ao colonialismo e ao neocolonialismo, não tanto porque esta disciplina teria se
colocado a “serviço” do imperialismo, mas antes porque ela teria florescido em seu interior e se
desenvolvido alojando-se em formas coloniais de classificação.
No futuro, uma das tarefas da antropologia secundada pela lingüística e a história
poderia ser precisamente a de circunscrever o universo semântico das categorias colhidas em
campo em função da época, do lugar e da situação social observados. Ao invés de partir de
etnônimos dados, de noções vazias que é preciso imediatamente preencher com estruturas
econômicas, políticas e religiosas, seria preferível mostrar como um termo situado no tempo e
no espaço adquire progressivamente uma multiplicidade de sentidos, em suma, estabelecer a
gênese ideal dos símbolos.

42
Não estabeleço diferença entre uma organização e sua representação, nisso seguindo M. AUGÉ, Pouvoirs de vie, pouvoirs
de mort, Paris, Flammarion, 1977, p. 83.
43
Para uma boa análise deste problema, ver C. DEVERRE [1980], que mostra que no México a categoria “índio” nada
significa além de “camponês”, e ALBERGONI e POUILLON [1976], que sublinham que no extremo Sul tunisiano o termo
“berbere” é, na verdade, sinônimo de dependente.
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