l i b e r a n d o u m a crisálida m o d e r n a , c o m g e s t o s ágeis, r o u p a s l e v e s d e

c o r t e m i l i t a r , c i g a r r o n o c a n t o d a b o c a e o d e s e j o irrefreável d e s e
f u n d i r n u m a força c o l o s s a l , u m a m a s s a d e v a s t a d o r a q u e e m a v a -
lanche sepulte o velho m u n d o e redesenhe u mn o v o à s u a i m a g e m .
S e e s s a crisálida m u l h e r - h o m e m - m á q u i n a t e m u m a v o n t a d e , e l a a
expressa dançando, se t e m u m s o n h o , e l ao e n c o n t r o u n o c i n e m a ;
s u a c a s a f i c a n o espaço público d a c i d a d e . E l a v i n c u l a , p e l a p r i m e i -
2
r a v e z , o s r i t m o s m a i s p r i m i t i v o s c o m a s m a i s a m p l a s conjugações OS MAQUINISMOS
c o l e t i v a s , e a força d a m a i s s o f i s t i c a d a t e c n o l o g i a q u e j a m a i s h o u -
v e . O f u t u r o l h e p e r t e n c e , m a s não p o r herança, p o i s e l a não c o n h e - D E UMA C E N O G R A F I A MÓVEL
ce s e u s p a i s , e s i m p o r agressão, c o n q u i s t a e determinação c e g a . C o -
m o s e e l a intuísse q u e só o m o v i m e n t o p e r m a n e n t e p u d e s s e m a n t ê -
l a v i v a e inteiriça, c o m p o s t a q u e é d e f r a g m e n t o s d e s c o n e x o s , h e t e -
róclitos e d i v e r g e n t e s , a d e r i d o s a o e m p u x o d o s e u d e s l o c a m e n t o . S u a
única l e i , p o r t a n t o , é o m o v i m e n t o . São Paulo é um palco de bailados russos.
Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os crimes
E também as apoteoses da ilusão...
Mas o Nijinski sou eu!
E vem a Morte, minha Karsavina!
Quá, quá, quá! Vamos dançar o fox-trot da
desesperança
A rir, a rir dos nossos desiguais!
Mário d e A n d r a d e , " P a i s a g e m n ? 2 "

DANÇAS NO ESCURO E A CÉU ABERTO

Q u a s e t o d a f e s t a h o j e é d e dança: v a i p e l a c i d a d e u m a v e r d a d e i r a d a n -
çomania. e a s n o s s a s f i l h a s dançam a t o d a s a s h o r a s , d u r a n t e o d i a
e n o i t e , c o m g r a n d e e s p a n t o n o s s o , q u e o u t r o r a só dançávamos d a s
d e z h o r a s d a n o i t e e m d i a n t e . A i n d a s e e s s a s danças f o s s e m c o m o a s
d o n o s s o t e m p o , sérias e d i s t i n t a s , vá q u e s e t o l e r a s s e m . M a s não! A s
danças m o d e r n a s , d e n o m e s a r r e v e s a d o s , são t u d o q u a n t o há d e m e -
nos distinto e descambam para u m a licenciosidade que é seriamente
a l a r m a n t e . I . . . ] N ã o só a s danças são i n d e c o r o s a s , c o m o o s r a p a z e s
r e q u i n t a m e m torná-las i n d e c e n t e s , a p o n t o d e l e v a n t a r e m p r o t e s t o d a s
v e n e r a n d a s p r o g e n i t o r a s presentes. P r e c i s a m o s reagir c o n t r a isso e c o m
a m a i o r urgência.'

Essa é u m a dentre as m u i t a s cartas nos m e s m o s t e r m o s , assina-

d a p o r " u m p a i d e f a m í l i a " e p u b l i c a d a p e P O Estado n o d i a d o a n i -
versário d a c i d a d e , e m 2 5 d e j a n e i r o d e 1 9 2 0 . E l a s e r e f e r e a u m f e -
n ó m e n o n o v o e , p a r a a m a r g u r a d o signatário, irreversível: a d e m o -
cratização d o a c e s s o à música, a proliferação d o s b a i l e s e a m b i e n t e s

88
89
 d c dança p a g o s c o m o p a r t e p o l p u d a d a e m e r g e n t e indústria d o l a -
z e r c a proliferação epidêmica d o s r i t m o s frenéticos. A s s i m c o m o
p u l u l a v a m o s clubes d e s p o r t i v o s e d e f u t e b o l , a s s i m também d e r a m
d c v i c e j a r o s "music-halls'\s " s a l õ e s d e d a n ç a " , a s " s o c i e d a d e s
dançantes" e a s próprias l o j a s f i n a s d a c i d a d e , p a r a a t r a i r a c l i e n t e -
la f e m i n i n a , t i v e r a m q u e t r a n s f o r m a r o seu t r a d i c i o n a l "chá d a s cin-
c o " e m u m , a p a r t i r d e então s u p e r l o t a d o , "chá dançante" " e m
q u e t o m a r u m a chávena é p r e t e x t o e dançar m a x i x e a razão".^ O
t i p o d e música q u e s e dançava nesses l u g a r e s e r a v a r i a d o n a c l a s s i f i -
cação, m a s u n i f o r m e n o a c e n t o rítmico, c o m o n o s i n f o r m a u m c r o -
n i s t a q u e r e p u d i a v a " a l i c e n c i o s i d a d e e a feiúra a l a r m a n t e s d a s c h a -
m a d a s danças m o d e r n a s , o u a m e r i c a n a s , n o r t e e s u l - a m e r i c a n a s —
o m a x i x e , o t a n g o , ofox-trotter [ s i c ] , o one e two steps e t c . " . ^ E s -
q u e c e u a l g u n s r i t m o s e m n o t á v e l v o g a , c o m o o cake-walk, o rag-
time e o jazz, m a s c a p t o u b e m o e s p í r i t o d a c o i s a . M a i s i n c i s i v o f o i
o d r . Cláudio d e S o u s a , e m p a l e s t r a n a recém-criada U n i v e r s i d a d e
F e m i n i n a , s o b r e o t e m a " M a r i a e a s m u l h e r e s bíblicas", e m q u e l a s -
t i m a v a o r e f l u x o d o e s p í r i t o r e l i g i o s o , d i s s o l v i d o p e l a n o v a fé q u e
r e s s u d a d a s " m o d e r n a s jerusaléns d o t a n g o e d o m a x i x e " . * *
N ã o f o r a m só o s salões, c l u b e s e b a i l e s p a g o s q u e v i e r a m m u -
d a r a c e n a . P o r trás d e l e s e s t a v a a universalização d a indústria f o -
nográfica, c o m o g r a n d e d e s t a q u e d a s d i s t r i b u i d o r a s a m e r i c a n a s . O
a n o d e 1 9 1 9 a s s i n a l o u j u s t a m e n t e a transição tecnológica n o m e r c a d o
d o o b t u s o g r a m o f o n e p a r a a m o d e r n a v i t r o l a : m a i s versátil, m a i s
p o t e n t e e s o b r e t u d o m a i s acessível. " A m a i s i m p o r t a n t e revelação
d a é p o c a ! ! ! " , a n u n c i a c o m três exclamações d e a c e n t o rítmico o c o -
mercial d a Victor T a l k i n g M a c h i n e C o . , e acrescenta: " T o d o s p o -
d e m e d e v e m possuir u m a vitrola [...]. A c e i t a m o s s e u g r a m o f o n e
d e q u a l q u e r m a r c a c o m o p a r t e d o p a g a m e n t o " . ^ A p e s a r d a técni-
ca m o d e r n a e agressiva d e promoção, o f a t o é q u e n e m t o d o s p o -
d i a m adquirir u m a vitrola. M a s a o sgrupos, e m sociedade, e m clu-
bes, o acesso e r a n a t u r a l e a r e n t a b i l i d a d e e s t u p e n d a . P o risso, se
o g r a m o f o n e e s t i v e r a a s s o c i a d o c o m a s audições p r i v a d a s , n o l a r ,
e m família, d e música e r u d i t a o u óperas, a v i t r o l a s e o f e r e c i a p a r a
audições públicas d e j o v e n s e x c i t a d o s c o m o f r e n e s i d e b a n d a s e s t r i -
d e n t e s , q u e é aliás o q u e p a s s a a p r e d o m i n a r n o m e r c a d o d e d i s c o s ,
c o m o informa a propaganda d a Casa M u r a n o . ^ N o u t r o comercial
da m e s m a casa, a m e n s a g e m e r a m a i s apelativa: " D a n c e m u i t o ! !
[...] e d i v i r t a - s e q u e a v i d a é c u r t a " .
Sempre foi muito curta, mas nunca tanto c o m o agora, quando
há t a n t a s c o i s a s e x c i t a n t e s p a r a s e f a z e r . N ã o e r r a v a , n e m n o espíri-
90
to e n e m n o fato, o c r o n i s t a que, n u m a i n v e c t i v a d e a z e d u m e , des-
c r e v i a a s danças m o d e r n a s c o m o " u m a g r o s s e i r a ginástica d e p o s i -
ções g r o t e s c a s e d e c o n t a t o s q u a s e b r u t a i s " , o u , n o u t r a i n v e s t i d a
u m mês d e p o i s , c o m o " u m a s danças m a i s s a p a t e a d a s q u e dança-
d a s " . ^ C o m e f e i t o , e x p e r i ê n c i a física i n t e n s a , a c o r p o r i e d a d e d a r e -
presentação rítmica e r a a s u p r e m a sensação b u s c a d a , c o m t o d a s s u a s
conotações eróticas primárias, a c i m a d e q u a l q u e r consciência c o r e o -
gráfica n o b i l i t a n t e , r e f o r ç a d o r a d a ética c a v a l h e i r e s c a t r a d i c i o n a l .
N e n h u m a s u r p r e s a , p o r t a n t o , q u e a p a r e c e s s e u m a seção s o b r e d a n -
ç a n a n o v a r e v i s t a Sports.'^ N e n h u m a s u r p r e s a , i g u a l m e n t e , q u e e s -
s a s d a n ç a s d e s p e r t a s s e m a fúria d a q u e l e s o b s e r v a d o r e s q u e n e l a s v i a m
a dissolução d a s b a r r e i r a s e t a b u s s o c i a i s , c o n s u m i d a s e m f a v o r d a
comunhão d o s dançarinos e m e s t a d o s d e ânimo e x c i t a d o s , p r o p i -
c i a d o r e s d a s m a i s e l e v a d a s exaltações d o s s e n t i d o s . A t i n g i d o e s s e
p o n t o , a s convenções q u e r e g u l a m e n t a v a m o s c o m p o r t a m e n t o s e o s
c o n t a t o s n a sociedade s i m p l e s m e n t e se d e s v a n e c i a m . P o r p o u c o t e m -
p o , é c e r t o , c o m l i m i t e s c l a r o s d e ação e n u m a m b i e n t e f e c h a d o .
M a s o f a t o relevante é q u e o s bailes se t o r n a v a m rituais d e consa-
gração d e s s a disposição dissolutória e reforçadores d a q u e l e s e s t a -
d o s d e exaltação psíquico-sensual. Daí o s críticos o s c o m p a r a r e m
c o m cerimôrtias " s e l v a g e n s " e o s d e f i n i r e m c o m o m a n i f e s t a ç õ e s c o n -
trárias a o s p a d r õ e s d a civilização h i s t o r i c a m e n t e h e r d a d a . D e s c o n -
t a d o o p r e c o n c e i t o intrínseco e s u a função infamatória, a crítica s e
dá c o n t a d a ameaça concretíssima q u e esses n o v o s f e s t i v a i s r e p r e -
s e n t a m p a r a o s códigos, o s anátemas e a s h i e r a r q u i a s d a s o c i e d a d e
e x i s t e n t e . A c o m p a n h e - s e u m a d e s s a s digressões, d a s m a i s lúcidas:
C o m a evolução d a dança, evoluíram t a m b é m o s b a i l e s . D e aristocrá-
t i c a , f i n a e d e l i c a d a , s e f e z ( e l a ) plebeíssima, s e n s u a l e b r u t a . O q u e
até p o u c o s e v i a n a s o c i e d a d e , só s e vê h o j e às a v e s s a s : a o p a s s o q u e o u -
t r o r a as classes sociais m a i s b a i x a s i m i t a v a m as m a i s a l t a s , m a c a q u e a n -
d o - l h e s p i t o r e s c a m e n t e a s a t i t u d e s , são e s t a s , h o j e , q u e d e s c e m e p r o -
c u r a m o s m a i s reles m o d e l o s . A s s i m , n o m a x i x e e n o t a n g o , eleitos
p e l o b o m g o s t o e p e l o b o m - t o m . Q u e são e l e s ? O p r o d u t o genuíno
d a s e n z a l a . P o r m a i s " e s t i l i z a d o s " e s u t i l i z a d o s q u e s e j a m , s e m p r e se-
r ã o reminiscências d o b á r b a r o s a r a c o t e a r d a multidão e s c r a v a , d e o u -
t r o s t e m p o s , q u e d a escravidão c o m o q u e se l i b e r t a v a n o insólito e i r -
r e v e r e n t e d o g e s t o , q u a n d o , e m h o r a s p a r c a s , s e v i a s e n h o r a d o s pró-
p r i o s c o r p o s , s e n ã o p a r a a v i d a l i v r e , a o m e n o s p a r a a l i v r e folgança.
E m q u e p e s e o s n o s s o s elegantíssimos dançadores d e t a n g o , i s s o q u e
h o j e se c r i s m o u à i n g l e s a , d e p o i s d e b a t i z a d o à a r g e n t i n a , não t e m m a i s
n o b r e s o r i g e n s . S u b i u d a e x t i n t a s e n z a l a d a s f a z e n d a s e estâncias p a -
91
 r a o salão d o s p a l a c e t e s d e t o d o o m u n d o . N a m u d a n ç a , n a t u r a l m e n -
t e , n ã o i r i a só. C a r r e g a r i a c o n s i g o m u i t o d o imponderável q u e f a z a
v i d a s o c i a l , s e j a e l a r u d i m e n t a r o u s e j a cultíssima. N a ascensão d o t a n -
g o , a s c e n d e r a m , também, s e m q u e p o r i s s o ninguém d e s s e , hábitos n u n -
ca p e r m i t i d o s n a sociedade.''^
E s s e m e s m o c r o n i s t a anónimo tão a r g u t o , n u m a o u t r a o p o r t u -
n i d a d e , r e i t e r a r i a esse t e m a n u m p a n o r a m a m a i s a b r a n g e n t e .
[ . . . ] c r e s c e m o s a n o s , c r e s c e a decadência. O p r o g r e s s o , p o r v e n t u r a
o b s e r v a d o , v a i c u s t a n d o c a r o d e m a i s , p o i s , m e n o s não c u s t a q u e e s s e
d e s c a l a b r o . [ . . . ] É a g r a n d e revolução m o d e r n a f e i t a a o s pedaços. [ . . . ]
Essa vida m o d e r n a q u en o sleva a todos a t o d a parte, todos os dias
( e t o d a s a s n o i t e s ! ) , l e v a - n o s t a m b é m a n o v o s hábitos e a n o v o espíri-
to. A sociedade q u e diz c o m ela é a sociedade d e t o d o o m u n d o e a
família — a i d e l a — n ã o é a d e t o d a a g e n t e ? [ . . . ] A t u a l m e n t e só o
"tea-tango" de u mlado e a mesa redonda, d o outro, a o retinir das
fichas."
É curioso comparar como o cronista P., n u m outro artigo, con-
c o r d a c o m o t e o r desse comentário, m a s o f u n d a m e n t a e m d o i s o u -
t r o s e l e m e n t o s não m e n c i o n a d o s nesse t e x t o . E s c r e v e P . n a s u a
coluna:
U m d o s capítulos m a i s i n t e r e s s a n t e s d a v i d a d a c i d a d e é, s e m dúvida
a l g u m a , o cinematógrafo. V a l e r i a a p e n a e s t u d a r a s u a influência n o s
n o s s o s c o s t u m e s e n a s n o s s a s i d e i a s . I . . . 1 S e f o s s e possível i n d i c a r , p e -
l o s traços d e u m d i a g r a m a , t u d o q u a n t o v e i o i n f l u i n d o s o b r e o s r a p a -
z e s e a s moças d e h o j e — o f u t e b o l e o cinematógrafo é q u e t e r i a m
provavelmente os pontos mais culminantes d a curva.
A indústria cinematográfica, e m p r o s p e r i d a d e g a l o p a n t e , s o -
b r e t u d o o s estúdios n o r t e - a m e r i c a n o s , beneficiários e x c l u s i v o s d o s
t r a n s t o r n o s q u ea G u e r r a i m p u s e r a a o s concorrentes europeus, s u -
pera os teatros e adquire u mpapel proeminente c o m o f o r m a popu-
lar de lazer n a sgrandes cidades.'^ O s norte-americanos, c o m suas
técnicas propagandísticas e a m p l o s s i s t e m a s d e distribuição, c o n s e -
g u i a m c o l o c a r , e m 1 9 2 0 . m a i s d e 7 0 milhões d e m e t r o s d e f i l m e n o
m e r c a d o s u l - a m e r i c a n o , u m terço d o t o t a l d e s u a produção.'** O s
f i l m e s n a t u r a l m e n t e e r a m só u m a p a r t e d a indústria, d e e x p r e s s i v a
m o n t a igualmente, constando d e u mm a n a n c i a l caudaloso de revis-
t a s , informações, m e x e r i c o s , f o t o g r a f i a s , pósteres, s u v e n i r e s , d i s -
c o s , fã-clubes e turnês artísticas.'^ E s s e p r e d o m í n i o d o c i n e m a a m e -
r i c a n o , m a i s r i g o r o s a m e n t e c o d i f i c a d o e s u b m e t i d o a convenções a r -
tísticas e n a r r a t i v a s t r a d i c i o n a i s , e m d e t r i m e n t o d o c i n e m a e u r o p e u ,
92
dado a experimentalismos formais e ousadias deentrecho, certamente
a m o r t e c e u o i m p a c t o revolucionário d a n o v a l i n g u a g e m artística d e n -
t r e o público p a u l i s t a . ' ^ M a s e m compensação, c r i o u i n s t a n t a n e a -
m e n t e u m a legião d e e n t u s i a s t a s a r d o r o s o s , q u e e n c o n t r a v a m n o d i -
n a m i s m o técnico e temático d a f o r m a cinematográfica a a r t e c o m -
patível p o r excelência c o m o s estímulos voláteis d a c i d a d e . E s e t o r -
n a v a m s u a clientela v o l u n t a r i a m e n t e cativa e feliz.
T a l é a obsessão cinematográfica. N ã o f a l t a p o r cá q u e m v i v a p a r a
o cinema, banalizado e materializado, assim, c o m o o arroz-doce e a
m a r m e l a d a . N ã o e s c a s s e i a m t a m b é m o s q u e , não c o n t e n t e s c o m i s s o ,
v i v e m p a r a além d a s t e l a s e d a s f i t a s . . . C ú m u l o d a abstração, a r m a m -
se e m l i n d a s c a b e c i n h a s cinematógrafos i d e a i s e m q u e s e p r o j e t a m —
projeções d e projeções — reminiscências d e f i l m e s e v i d a s i n t e i r a s d e
a t o r e s e a t r i z e s , medíocres e n u l o s n a g e n e r a l i d a d e . E n e s s e s c i n e m a s
d e c i n e m a s , o n d e há s e m p r e a m e i a - l u z d a s c i s m a s e a l â m p a d a m i s t e -
r i o s a d e u m a i d e i a c e n t r a l , r o m p e m d r a m a s e paixões r e b e n t a m , c o m o
n o o u t r o c i n e m a . Há q u e m , p r o s s e g u i n d o nesse a r d o r , t r a g a a o p e i t o
medalhões c o m heróicas efígies n o r t e - a m e r i c a n a s . . . E — ó m o r e d a s
s a n t a s b i s a v o z i n h a s q u e s e f o r a m , m o r r e n d o n o s e u q u a r t o , a o pé d o
^ sagrado n i c h o de N o s s a S e n h o r a das D o r e s ! — existe m a i s q u e m h o j e
^ t r a g a à c a b e c e i r a , e m l u g a r d o a n t i g o S a n t o Antônio, o d e s c a b e l a d o
retí-ato dó-George W a l s h . . . ' ' '
O cronista n o straz u m a vez mais a recorrente i m a g e m d are-
tração d a s emoções r e l i g i o s a s t r a d i c i o n a i s , substituídas p o r u m n o -
v o c u l t o q u e d e m a n d a i g u a l m e n t e u m a devoção i n t e g r a l . É m e s m o
n o t á v e l c o m o o j o r n a l i s t a e q u a c i o n a e s s e s e l e m e n t o s : fé, a r d o r e
transcendência, c e l e b r a d o s n u m t e m p l o u m b r o s o , e n t r e i m a g e n s , ído-
l o s e r a i o s d e l u z t r e m u l a n t e s . U m a v e z m a i s , a m a i s revolucionária
t e c n o l o g i a se c r u z a e se a j u s t a c i r c u n s t a n c i a d a m e n t e c o m o s lega-
d o s s i m b ó l i c o s m a i s a r c a i c o s — o q u e p o d e s e r visível p a r a u m o b -
servador q u esurpreenda as duas correntes paradoxais n o limiar d a
s u a intersecção, c o m o p a r a e s s e n o s s o c r o n i s t a , m a s n ã o o será m a i s
p a r a a s gerações q u e o s r e c e b e m já f u n d i d o s e o s a s s i m i l a m c o m o
u m dado constitutivo, permanente e banal d a realidade cotidiana,
tal c o m o o a r r o z - d o c e o u a m a r m e l a d a . Não é que a t e c n o l o g i a e v o -
casse conteúdos a r c a i c o s o u q u e esses conteúdos s u b m e t e s s e m o n o -
v o a p a r a t o t e c n o l ó g i c o . O q u e s e p a s s a v a e r a q u e a s c o n d i ç õ e s iné-
d i t a s d a metropolização p r o v o c a v a m a combinação d e condições d e
vida concretas e materiais culturais contingentes, de m o d o a adap-
t a r seres d e s l o c a d o s e r e a l i d a d e c o n v u l s a e m p a t a m a r e s d e s i n t o n i a
e e s t a b i l i d a d e , a i n d a q u e provisórios, n o s q u a i s m u l h e r e s e h o m e n s
93
licassem livres d o dilema novecentisla de aprovar o u de reprovar
o m u n d o d a m á q u i n a , s e a j u s t a n d o física e p s i c o l o g i c a m e n t e a e l a ,
a o invés d e g u a r d a r a distância d a desconfiança. N e s s e s e n t i d o é o
legado cultural d o racionalismo individualista, mais d o q u e o das
c u l t u r a s r u r a i s o ut r a d i c i o n a i s , a b a r r e i r a s o b r e t u d o t e n a z c o n t r a esse
a j u s t a m e n t o . Q u a l q u e r a l t e r n a t i v a a ele, q u e e r a afinal d e contas
o p a d r ã o c u l t u r a l d o m i n a n t e , d e s d e q u e c o m p o r t a s s e o s desígnios
d a entrega, d o instintivo e d o coletivo, e r a b e m - v i n d a , fosse arcaica
o u m o d e r n a : m a s o b t e r i a u m óbvio reforço e a d u p l a c h a n c e d o s u -
cesso, se conjugasse o s dois. Esse processo c o m p l e x o r a r a m e n t e c o m -
portava iniciativas deliberadas.
E , m u i t o p o r a c a s o , s e e r a m notáveis a s convergências d a t e c -
n o l o g i a d o c i n e m a c o m estratos culturais i m e m o r i a i s , n e m p o r isso
era m e n o s evidente o g r a u dissolvente d a s u am o d e r n i d a d e . O f i l m e
d o c i n e a s t a p a u l i s t a A l b e r t o C a v a l c a n t i , Rien que les heures, r o d a -
d o e m P a r i s , é u m extraordinário e x e m p l o desse p o d e r d e d i s s o l u -
ção, n o q u e s e r e f e r e à h n g u a g e m cinematográfica.'^ M a s até e m
t e r m o s d e t e m a s e d e a l c a n c e d e público, esse e f e i t o c o r r o s i v o é p a -
t e n t e . L e i a - s e p o r e x e m p l o esse t r e c h o d a c a r t a d e o u t r o p a id e f a -
mília, o s r . F . J . , s o b r e o i n f e r n o e m q u e o c i n e m a t r a n s f o r m o u s u a
vida.
V e n h o s o l i c i t a r d e n o v o a v o s s a benevolência [ a c a r t a a n t e r i o r f o r a c o n -
t r a '*as danças m o d e r n a s , próprias d e c e r t o s a n t r o s o n d e a m o r a l n u n -
ca t e m g u a r i d a , o u d e certas t r i b o s a f r i c a n a s " ] a f i m de, p o r m e i o des-
s a s v a l o r o s a s c o l u n a s , p e d i r atenção p a r a o a u d a c i o s o a b u s o d a s e m -
p r e s a s cinematográficas q u e , n u m a d e s e n v o l t u r a d e f a z e r e s t r e m e c e r
o s próprios " f r a d e s d e p e d r a " , i m p o r t a m d e preferência, a s f i t a s a s
m a i s o b s c e n a s d a s fábricas e u r o p e i a s , p a r e c e n d o q u e a s e n c o m e n d a m
d e propósito, c o m o f i t o a l t a m e n t e p e r v e r s o d e contribuírem p a r a a
m a i s rápida corrupção d o s n o s s o s c o s t u m e s , até b e m p o u c o t ã o s i n g e -
l o s e invejáveis... Será admissível, s r . r e d a t o r , q u e n o s t r a n s f o r m e m
a s s i m e m depósito d o l o d o a c u m u l a d o n a s g r a n d e s c a p i t a i s e u r o p e i a s ,
o n d e a corrupção t o c a o a u g e , s e g u n d o s e vê d a s reclamações c o n s t a n -
tes d a i m p r e n s a l i m p a d a q u e l a s m e s m a s c a p i t a i s ? [...] V a i u m c h e f e
d e família a o c i n e m a c o m s u a s f i l h a s , atraído p e l a f a m a d e u m " c a p o
l a v o r o " o u d e u m a " r e n o m a d a " produção, a c r e d i t a n d o p r o p o r c i o n a r -
I h e s u m a diversão i n o c e n t e e i n s t r u t i v a — e l o g o , c o r r i d o s o s p r i m e i -
r o s m e t r o s d a película, vê-se c o n s t r a n g i d o a s a i r c o r r e n d o c o m s u a s
f i l h a s , n u m m i s t o d e indignação e v e x a m e , t a l a i m o r a l i d a d e d o e n r e -
d o e das cenas exibidas...'^
O c u r i o s o é q u e o s r . F . J . q u e r i r a o c i n e m a , só n ã o a c e i t a q u e
e l e s e j a o q u e é. O s r . F . J . a c r e d i t a v e r i n t e n ç õ e s p e r v e r s a s , onde
94
o q u e há é u m a indústria q u e c o n t e m p l a d e m a n d a s u r g e n t e s d e m a s -
sas u r b a n i z a d a s . E l e c e r t a m e n t e p r e f e r i r i a a s f a c i l i d a d e s , o d e s l u m -
b r a m e n t o e o s preços d o c i n e m a , c o m o s conteúdos d o t e a t r o t r a d i -
c i o n a l . M a s , c o m o nos l e m b r o u o cronista, essa "é a g r a n d e r e v o l u -
ç ã o m o d e r n a f e i t a a o s p e d a ç o s " . O m e s m o c r o n i s t a aliás q u e , v i t u -
p e r a n d o a cidade c o m o u m a" c a t a p u l t a d e interesses i m e d i a t o s " ,
l a s t i m a v a a " e t e r n a convivência d e e s t r a n h o s q u e r e s u m e a s o c i e d a -
d e p a u l i s t a n a " . O c i n e m a , a s s i m c o m o o s b o n d e s e o s estádios,
a l i n h a multidões d e e s t r a n h o s e n f i l e i r a d o s o m b r o a o m b r o n u m a r -
r a n j o tão f o r t u i t o e n o r m a t i v o c o m o a l i n h a d e m o n t a g e m . O s b o n -
d e s , c o n t u d o , l h e s d ã o m o b i l i d a d e , o s estádios estímulos, o s c i n e -
m a s f a n t a s i a s e a s l i n h a s d e m o n t a g e m subsistência. A s s i m , o s e r
a n ó n i m o só s e p r e e n c h e d e s e n t i d o s q u a n d o s e a r t i c u l a c o m o s s e u s
equivalentes. Essa, c o m o observou o nosso cronista, "é a sociedade
d e t o d o m u n d o e a família — a i d e l a — n ã o é a d e t o d a a g e n t e ? " .
O u t r o a r t i c u H s t a , O . F . , e x t r a i u d e s s a s tendências g e r a i s a s e g u i n t e
conclusão: " T u d o q u a n t o é g r a n d e n o m u n d o t e n d e a d e s a p a r e c e r
n a t u r a l m e n t e o u p e l a violência; o p e q u e n o q u e r u m l u g a r " . ^ ' Só
não d e s d o b r o u a conclusão p a r a s a l i e n t a r q u e a f o r m a d e o s p e q u e -
n o s s e i m p o r e m s e r i a p e l a coligação, coordenação e concentração
d e e n e r g i a s , çm íntima orquestração c o m a s n o v a s t e c n o l o g i a s , d e
f o r m a que qualquer que fosse a resuhante, seria a i n d a m a i o r e m p r o -
porção d o q u e q u e r q u e h o u v e r a a n t e s .
O u t r a s áreas, a p a r e n t e m e n t e m e n o s a d s t r i t a s a o s fenómenos
m a s s i v o s d e s e n c a d e a d o s p e l a metropolização, se r e v e l a m não o b s -
t a n t e t a m b é m sensíveis a e l e s . A i n d ú s t r i a e d i t o r i a l p a u l i s t a , p o r
e x e m p l o , a s s i s t e a u m boom i n e s p e r a d o a p a r t i r d o i n í c i o d o s a n o s
2 0 . E m p a r t e d e s e n c a d e a d o p e l a crise d e importações e a c a l a m i t o s a
c a r e s t i a d o pós-guerra,^^ o f a t o é q u e e s s e s u r t o a d q u i r e u m a dinâ-
m i c a própria e se t o r n a n u m c r e s c e n d o a u t o - s u s t e n t a d o . E l e e n v o l -
v e n ã o só l i v r o s , m a s t a m b é m r e v i s t a s e f o l h e t o s d e t o d o t i p o , s e n -
d o q u e o p r ó p r i o O Estado s e b e n e f i c i a d e l e , c o n s o l i d a n d o s u a p o -
sição d e j o r n a l d e m a i o r t i r a g e m d o país, c o m p o n d o u m c o r p o d e
articulistas e redatores q u ee n v o l v e intelectuais d o sm a i s brilhantes
d o país, além, d a d o e x c e p c i o n a l , d e a l g u m a s d a s m a i o r e s c e l e b r i d a -
des d a i m p r e n s a europeia, c o m o colaboradores permanentes.
Q u a n t o a o s h v r o s , c o m u m a t i r a g e m a n u a l e m t o r n o d e 1 milhão
d e v o l u m e s , u m a multiplicação e n t r e d u a s e três v e z e s d o n ú m e r o
d e c a s a s e d i t o r a s e l i v r a r i a s e m 1 9 2 1 , c o m relação a o n ú m e r o e x i s -
t e n t e até o f i m d a G u e r r a , São P a u l o p a s s a a a t r a i r e s c r i t o r e s d o s
q u a t r o c a n t o s d o país, q u e r e n d o t e r s u a s o b r a s p u b l i c a d a s c o m a
95
r a p i d e z e q u a l i d a d e q u e a indústria e d i t o r i a l p a u l i s t a o f e r e c i a . A pró-
p r i a i m p r e n s a c a r i o c a , t ã o c i o s a d a s s u a s p r e r r o g a t i v a s d e s e d e polí-
t i c a e c u l t u r a l d o país, p a s s a a s e r e f e r i r a São P a u l o c o m o " a c a p i -
tal d olivro n o Brasil, c o m o Leipzig é n aA l e m a n h a " e a denominar
a n o v a geração d e j o v e n s i n t e l e c t u a i s , q u e começa a v i c e j a r n a c i d a -
d e a b a s t e c e n d o o m e r c a d o e d i t o r i a l , d e " o fenómeno p a u H s t a " . ^
N o c a m p o d a s a r t e s plásticas, o fenómeno n ã o é m e n o s s u r -
p r e e n d e n t e . N o v o s espaços d e exposição s u r g e m , o u t r o s são i m p r o -
v i s a d o s e m hotéis, l i v r a r i a s , c a s a s c o m e r c i a i s e até c i n e m a s j u n t o à
área d o Triângulo c e n t r a l d a c i d a d e . O s a r t i s t a s vêm d e turnês i n -
t e r n a c i o n a i s , d o R i o d e J a n e i r o , d e e s t a d o s d o n o r t e e d o s u l , além
d e , é c l a r o , s u s c i t a d a p e l a s n o v a s p o s s i b i l i d a d e s , u m a geração e m e r -
gente d e pintores e escultores locais. A atmosfera dentre os aprecia-
dores e r ade pleno entusiasmo:
A r e s p e i t o d e m u i t a s coisas p o d e m o s d u v i d a r se o n o s s o p r o g r e s s o t e m
s i d o r e a l o u a p e n a s a p a r e n t e . [...] M a s , v e r d a d e seja d i t a ! , s o b o u t r o s
aspectos, o nosso progresso é evidente. P o r e x e m p l o , o gosto pelas ar-
t e s . N ã o há m u i t o s a n o s , a s exposições só d e l o n g e e m l o n g e s e r e a l i -
z a v a m e, m u i t o a m e d o , c e r c a d a s d e m i l c a u t e l a s . [...] D e m a i s d e u m a
g u a r d a m o s a d o l o r o s a visão: u m a s a l a v a z i a e s i l e n c i o s a , c o m m u i t o s
q u a d r o s p e l a s p a r e d e s , e , a u m c a n t o , m a r t i r i z a d o p o r invisíveis a l g o -
z e s , pálido, n e r v o s o , o l h a n d o p a r a o a l t o c o m o São Sebastião c o n v e r -
tido e m paliteiro de flechas, o artista... H o j e , t u d o m u d a d o . A s expo-
sições s u c e d e m - s e , q u a s e s e m interrupção e m l a r g o s períodos d o a n o ,
e t o d a s têm público, e t o d a s têm u m público f i n o , i n t e l i g e n t e , d i s t i n -
t o , c o m p o s t o d e a m a d o r e s q u e v o l t a m m u i t a s vezes, e n a m o r a m as
b o a s c o i s a s , e d i s c u t e m e d e n o t a m preferências e r e p u l s a s , e — o q u e
é m a i s sério — c o m p r a m . ^ ^
E m o u t r a oportunidade, e r ao cronista P . q u e m exultava: " A
c i d a d e a n d a r e p l e t a d e exposições d e p i n t u r a [ . . . ] s e m p r e r e p l e t a s
de visitantes e, o q u e m a i s espanta — d e c o m p r a d o r e s tam-
b é m . . . ".^^ O e s p a n t o e m g r a n d e p a r t e i a p o r c o n t a d e a d e m a n d a ,
a e s s a a l t u r a , s e r e v e l a r m u i t o a c i m a d a o f e r t a e o s preços d a s t e l a s
alcançarem u m v a l o r e s p e c u l a t i v o q u e , s e g u n d o P . , d e s t o a v a e m a l -
g u n s c a s o s d o s s e u s autênticos méritos artísticos. E s s e s i n t o m a d e
excesso d a p r o c u r a , entretanto, e r a p o r demais significativo e indi-
c a v a a emergência d e u m n o v o público u r b a n o , a b o n a d o d e d i n h e i -
r o n o v o e q u e b u s c a v a a p r e s s a d a m e n t e s i n a i s d e distinção q u e o s
destacassem tanto d o v u l g o c o m o daqueles que, tendo os recursos,
t i n h a m e s c a s s o i n t e r e s s e e p o u c a i n f o r m a ç ã o artística. E r a e s s a n o -
v a c l i e n t e l a a t e n t a q u e d a v a a i m p r e s s ã o a o crítico d e a r t e s d ' 0
96
Estado, j á e m 1 9 1 9 , q u e **São P a u l o e d u c a o s e u g o s t o artístico,
a p r e n d e n d o a ' v e r ' ''P E s s a g e n t e n o v a s a b i a o q u equeria ver, m a s
n ã o t i n h a a m e n o r ideia d e c o m o q u e o o b j e t o d o seudesejo pare-
c e r i a . O s a r t i s t a s e críticos são p o s t o s e m x e q u e para darem forma
a e s s a a n s i e d a d e visível, m a s s e m c o n t o r n o .
O s críticos r e a g e m c o m u m a c a m p a n h a r u i d o s a p a r a forçar a s
autoridades a d o t a r e m a cidade de u m a infra-estrutura de arte ca-
paz d e permitir u m a rotatividade mais intensa e a m p l a de artistas,
o b r a s e tendências, além d e g a r a n t i r a referência básica d e s u b s t a n -
ciosos acervos p e r m a n e n t e s . O c l a m o r p o r u m m u s e u d e artes,
u m a g a l e r i a d e a r t e s d o município, p o r e s c o l a s públicas d e a r t e s a d -
q u i r e u m a i n t e n s i d a d e q u e se a s s e m e l h a à d a s c a m p a n h a s p o r u m
estádio m o n u m e n t a l p o l i e s p o r t i v o . A "educação artística" p a s s a a
ser v i s t a c o m o u m i m p e r a t i v o e q u i v a l e n t e à "educação física".
U m d o s a s p e c t o s m a i s h i l a r i a n t e s d e s s a c a m p a n h a irascível e r a o e m -
p e n h o c r u e l c o m q u e o s críticos d e a r t e f u s t i g a v a m a única coleção
pública d e a r t e e x i s t e n t e até então e m São P a u l o , dádiva c a s u a l e
d e s a b o n a d a d e u m a elite d i r i g e n t e tão i n d i f e r e n t e a o s d e s t i n o s d a
a r t e q u a n t o a o s d a p r ó p r i a p o p u l a ç ã o . N e s s e m o m e n t o sensível, o
látego b a t i a c o m o e m c a r n e v i v a e a a r t e a d q u i r i a u m a i r r a d i a n t e
coloração política.
T a l v e z o próprio g o v e r n o n ã o t e n h a u m a i d e i a e x a t a d o deplorável e s -
t a d o d e a b a n d o n o e m q u e r e c e b e u d a s administrações a n t e r i o r e s o n o s s o
a p a r e l h a m e n t o d e c u l t u r a e t a l v e z a s u a atenção f r e q u e n t e m e n t e s o l i c i -
t a d a p o r m u i t o s a s s u n t o s d e relevância a o m e s m o t e m p o — n ã o s e t e -
n h a a i n d a d i r i g i d o p a r a vários p o n t o s q u e v a m o s f e r i r . I . . . ] P r o v a - o
a P i n a c o t e c a d o E s t a d o . C o n f e s s e m o s d e s d e l o g o q u e esse a r r e m e d o
d e m u s e u d e a r t e — único q u e possuímos — n o s d e v e f a z e r c o r a r d e
v e r g o n h a até a r a i z d o s c a b e l o s . B e m f e z o g o v e r n o e m o e s c o n d e r n u m
último a n d a r d e u m prédio p a r t i c u l a r e m o b r a s . E l e c o n s t i t u i p o r s i só
u m a a l a r m a n t e manifestação d e i n c u l t u r a . Está i n s t a l a d o e m q u a t r o
a c a n h a d a s s a l i n h a s d e t r i s t e a s p e c t o , o n d e t u d o se e n c o n t r a e d e t u d o
a p e n a s u m p o u c o : q u a d r o s , f o t o g r a f i a s , cópias a g e s s o e até a m a q u e t e
d e u m edifício púbUco, a r e c l a m a r v e l i n h a s a c e s a s p o r d e n t r o e p a p e l
d e s e d a n a s j a n e l a s . . . [ . . . ] A u m c a n t o d o c o r r e d o r c h a m a a atenção
u m a cópia e m t a m a n h o n a t u r a l d o David d e M i g u e l Ângelo. E s s a está-
t u a m e r e c e b e m u m a s U n h a s . H á t e m p o s a polícia d e c o s t u m e s
escandalizou-se c o m a a t r e v i d a n u d e z desse gesso e — p a s m e m t o d o s !
— t e v e a s u b l i m e inspiração d e c o i o c a r - l h e à c i n t u r a u m a t a n g a v e r d e -
amarela... U m a tanga verde-amarela, n e m mais n e m menos. P a s m e m
e r i a m à v o n t a d e , m a s a t e n t e m q u e n ã o é pilhéria. T r a t a - s e d e u m f a t o
r i g o r o s a m e n t e autêntico e d e v i d a m e n t e t e s t e m u n h a d o p o r m u i t a g e n -
t e . N ã o s a b e m o s s e o I n s t i t u t o Histórico r e g i s t r o u n o s s e u s a r q u i v o s . . .^^
97
 F o s s e p e l o p a v o r d o ridículo o u p o r convicção, o f a t o é q u e ,
e l e d e n o v o , W a s h i n g t o n Luís, o p r e s i d e n t e - e s p o r t i s t a , se r e v e l o u
t a m b é m u m c a m p e ã o d a s a r t e s , n ã o só c o m p a r e c e n d o e a r r a s t a n d o
t o d o s e u s e c r e t a r i a d o às exposições d e a r t e m a i s i m p o r t a n t e s , c o m o
a i n d a a d q u i r i n d o o b r a s t a n t o e m caráter p r i v a d o , c o m o p a r a f o r -
m a r u m a c e r v o d o município, além d e p a t r o c i n a r a r t i s t a s e o f e r e c e r
prémios d e v i a g e n s e e s t u d o s . ^ ' P o r ocasião d a s celebrações d o c e n -
tenário d a Independência d o B r a s i l , e l e e n c o m e n d a r i a u m a i n f i n i -
dade de esculturas e m o n u m e n t o s a artistas nacionais e estrangei-
r o s , c o m p o n d o a m a i s sistemática c a m p a n h a d e e m b e l e z a m e n t o u r -
b a n o d e s d e o período d e atuação d o p r e f e i t o Antônio P r a d o . A s
o b r a s são a p r o v a d a s s e g u n d o r e g r a s d e c o n c u r s o piíblico e críticos
d e comissões j u l g a d o r a s e s p e c i a l i z a d a s , f i c a n d o o s m o d e l o s d o s c a n -
d i d a t o s e x p o s t o s à visitação pública p o r u m a m p l o período a n t e s
d a s decisões. O q u e , n a s condições d e u m c o n c u r s o , e s t i m u l a v a v a s -
t a visitação e i n t e r e s s e g e r a l , o s j o r n a i s o r g a n i z a n d o e n q u e t e s , o pú-
blico se d i v i d i n d o e m partidos rivais; faziam-se apostas, visitantes
a c o r r i a m d o i n t e r i o r , o m o v i m e n t o e r a frenético. N o c a s o d a e x p o -
sição d a s m a q u e t e s d o M o n u m e n t o à Independência, o g o v e r n o t e -
v e q u e e n c e r r a r a exposição d e v i d o a o s r i s c o s ameaçadores d a s u -
perlotação d o Palácio d a s Indústrias. São P a u l o e n c o n t r a v a s u a v o -
cação d e pólo c u l t u r a l .
São P a u l o v a i r a t i f i c a n d o m a i s o u m e n o s b e m , o título q u e l h e c o n f e -
r i u S a r a h B e r n h a r d t , d e " c a p i t a l artística". N a v e r d a d e , já f a z t e m p o
q u e a n o s s a p o p u l a ç ã o , n o m e i o d a t u r b a m u l t a d e s u a s comunicações,
d i s p e n s a s e m p r e a l g u m a s h o r a s p a r a o p r a z e r estético, v i s i t a n d o a s e x -
posições q u e s e m u l t i p l i c a m . N u n c a , c o m o a g o r a , h o u v e t a n t a s e x p o -
sições a b e r t a s e tão f r e q i i e n t a d a s . N a s r u a s , n o s salões, n o s cafés, o u v e -
se a c a d a p a s s o ; " J á f o i à exposição d e p i n t u r a d e F . ? U m t a l e n t o !
C o l o r i d o , s e n t i m e n t o , n a t u r a l i d a d e , v i d a . . . Vá vê-la". [ . . . ] E a s s i m ,
a t o d a h o r a , a t o d o m i n u t o , há u m a p e s s o a a d i z e r a s u a a d m i r a ç ã o
p e l a " n o s s a " c u l t u r a artística, m a r a v i l h o s a , e s t e r e o t i p a d a e m o b r a s
d e v a l o r . [ . . . ] Exposições d e m a q u e t e s n a P i n a c o t e c a e n o Palácio d a s
Indústrias, d e p i n t u r a e e s c u l t u r a , c o n c e r t o s , conferências, l i v r o s —
t u d o d e m o n s t r a q u e São P a u l o a m a a a r t e , q u e São P a u l o é. d e f a t o ,
u m a c a p i t a l artística...
E m m e i o a e s s a a t m o s f e r a eufórica, várias e n t i d a d e s o u s e g m e n -
t o s d a população c o n c o r r e m e n t r e s i p a r a d e i x a r e m a s u a m a r c a o u
o s e u símbolo c o l e t i v o d e distinção, f i x a n d o a s u a própria p e r s p e c -
t i v a c o m o u m m a r c o d e referência q u e v i e s s e a s e t o r n a r u m traço
indelével d e q u a l q u e r possível i d e n t i d a d e d a c i d a d e . A s s i m , n u m m e s -
98
m o m o m e n t o , a colónia p o r t u g u e s a e r g u e o s e u M o n u m e n t o à R a -
ça, e m h o m e n a g e m a o s a v i a d o r e s p o r t u g u e s e s q u e f i z e r a m a p r i m e i r a
t r a v e s s i a aérea p e l o Atlântico, n o vôo L i s b o a — R i o d e J a n e i r o . A
colónia i t a l i a n a o f e r e c e à c i d a d e a s u a h o m e n a g e m , n a f o r m a d o
M o n u m e n t o a Verdi. O governo paulista, n a pessoa de W a s h i n g t o n
Luís, p a t r o c i n a a edificação d o impávido M o n u m e n t o à I n d e p e n -
dência. O s e s t u d a n t e s d a F a c u l d a d e d e D i r e i t o , c o m a colaboração
d a L i g a N a c i o n a l i s t a e d o j o r n a l O Estado de S. Paulo, e r g u e m o
M o n u m e n t o a O l a v o Bilac. O escultor modernista Victor Brecheret
p r o j e t a e s s a peça arquitetônico-escultórica c h a v e , q u e é u m autênti-
c o m a n i f e s t o u r b a n o d o ideário m o d e r n i s t a , o M o n u m e n t o às B a n -
d e i r a s . E p o r aí a f o r a . S u r p r e s o c o m e s s a s ú b i t a m u l t i p l i c a ç ã o d e
t e m p l o s c í v i c o s a c é u a b e r t o , u m e d i t o r i a l i s t a d ' 0 Estado s e s a i r i a
c o m u m a observação a t i l a d a : " T e m g r a s s a d o u l t i m a m e n t e , c o m i n -
t e n s i d a d e c u r i o s a , a f e b r e estatuária".
E s s e s d i s c u r s o s v i s u a i s o s t e n s i v o s , f i x a d o s n a magnificência s u n -
.tuosa d o mármore, g r a n i t o , b r o n z e o u c o n c r e t o , e r a m porém ape-
nas parte d a n o v a visibilidade c o m q u ea cidade solicitava seus h a -
b i t a n t e s . E l e s f u n c i o n a v a m c o m o u m cenário simbólico-político a
e s t i m u l a r , s a l i e n t a r e c o n f i r m a r disposições e m o c i o n a i s , r e g u l a r i z a -
d a s n a interação d o sh a b i t a n t e s c o m o espaço público. A o u t r a p a r -
t e , a c e n a p r o p r i a m e n t e , p e l a q u a l ações contínuas s e c o m p u n h a m
n u m a n a r r a t i v a , q u e t a n t o e r a a história d a c i d a d e q u a n t o a c i d a d e
n a história, e r a d e s e n c a d e a d a p e l o s f e s t i v a i s m o d e r n o s , n o s q u a i s
a população c o m o u m t o d o e r a , a o m e s m o t e m p o , u m d o s p e r s o n a -
g e n s e o público. T a i s r i t u a i s m o d e r n o s g u a r d a v a m relação c o m s e u s
a n t e c e s s o r e s a r c a i c o s , n a m e d i d a e m q u e s e u propósito e r a d e s p e r -
tar o e n t u s i a s m o , gerar a e u f o r i a e a comunhão d o transe, p e l o q u a l
t o d o s se t r a n s p o r t a v a m e i d e n t i f i c a v a m c o m u m a realidade, ideia
o u símbolo t r a n s c e n d e n t e . M a s d i f e r i a m d e l e s , n o s e n t i d o d e q u e
essa t r a n s c e n d ê n c i a n ã o s e d i r i g i a p a r a u m a d i m e n s ã o a t e m p o r a l o u
p a r a o m o m e n t o f u n d a d o r d a s o r i g e n s . S u a orientação e r a a n t e s a
d e t r a d u z i r o p r e s e n t e c o m o s i n a l profético d o f u t u r o . E m s u m a :
produzir o transe d o futuro permanente. M a i s u m a vez temos aqui
a conjugação d o m o m e n t o tecnológico p r e s e n t e c o m m e c a n i s m o s
a r c a i c o s d e simbolização.
Aliás, não é c a s u a l q u e n e s s a c o n j u n t u r a s e t e n h a m d e s e n v o l v i -
d o t é c n i c a s s o f i s t i c a d a s d e g e s t ã o d o s níveis i n c o n s c i e n t e s d a s c o -
munidades h u m a n a s , c o m o a psicologia industrial e a psicologia so-
cial.^'* D e s l i g a d o s o s h o m e n s d o s seus n i c h o s comunitários e c u l t u -
r a i s , n a a g l o m e r a ç ã o d a s fábricas o u d a s metrópoles e s o b a a c e l e -
99
ração tecnológica, s e r i a p e l o s s e u s r e f l e x o s , m a i s d o q u e p o r s u a s
convenções g r u p a i s d e s v a n e c i d a s , q u e eles s e r i a m s o l i c i t a d o s a s e i n -
t e g r a r e m n a n o v a r e a l i d a d e . Q u e i m p o r t a v a o n o m e e a região d e
o r i g e m d e u m a p e s s o a i n s e r i d a n o d i a g r a m a d e u m a operação e m
e c o n o m i a d e e s c a l a , o u d e u m p l a n o d e f l u x o viário u r b a n o ? M a s
c o n h e c e r s u a s reações s o b condições c o l e t i v a s i m p e s s o a i s d e p r o d u -
ção o u d e t r a n s p o r t e e r a d e c i s i v o p a r a o e q u a c i o n a m e n t o d e s o l u -
ções tecnológicas. C o m o s e p o d e s u p o r , e s s e esforço d e gestão d e l i -
b e r a d a d a s reações i n c o n s c i e n t e s d e g r a n d e s c o l e t i v i d a d e s i r i a e n -
c o n t r a r s u a t r a d u ç ã o política n a exacerbação e m o c i o n a l d o s r i t u a i s
urbanos modernos. Esse encontro d o presente c o m o r e m o t o trans-
p a r e c e nítido n a s intenções d o d i s c u r s o d o p r e s i d e n t e d o C e n t r o A c a -
démico d a F a c u l d a d e d e D i r e i t o , p o r ocasião d o lançamento d a p e -
d r a f u n d a m e n t a l d o M o n u m e n t o a O l a v o B i l a c . N o t e - s e a alusão,
atuahssima, a Gustave L eB o n , u mdosfundadores da "psicologia
d a s m a s s a s " e herói e m g r a n d e evidência n a e s c o l a o n d e s e f o r m a v a
a elite dirigente paulista.
T o d o s o s f a t o s históricos c o m o p o r e x e m p l o a criação d o c r i s t i a n i s -
m o , d o b u d i s m o , d o i s l a m i s m o , a R e f o r m a , a Revolução e , e m n o s s o s
d i a s , a ameaçadora invasão d o s o c i a l i s m o i n t r a n s i g e n t e , t o d o s e s s e s
f a t o s são f r u t o s d i r e t o s d e f o r t e s impressões p r o d u z i d a s n o espírito
d a s multidões. P o r e s s a s e s t r a n h a s razões d a p s i c o l o g i a d o s p o v o s é
q u e t o d o s o s g r a n d e s h o m e n s d e E s t a d o , n ã o e x c l u i n d o o s déspotas
a b s o l u t o s , c o n s i d e r a m a imaginação p o p u l a r a b a s e d o p o d e r g o v e r -
n a m e n t a l . 1...] M a s c o m o i m p r e s s i o n a r o espírito d o s p o v o s ? N ã o f o i
c o m t r a b a l h a d a retórica q u e Antônio c o n s e g u i u a m o t i n a r o p o v o c o n t r a
o s a s s a s s i n o s d e César, m a s l e n d o - l h e o t e s t a m e n t o d e s t e e m o s t r a n d o -
I h e o cadáver d o v a l o r o s o r o m a n o . T u d o q u e a b a l a a imaginação d a s
multidões a p r e s e n t a - s e s o b a f o r m a d e u m a i m a g e m e m p o l g a n t e e b e m
nítida, l i v r e d e q u a l q u e r interpretação errónea o u acessória, o u a p e -
nas a c o m p a n h a d o de alguns fatos m a r a v i l h o s o s o u misteriosos, tais
c o m o u m a g r a n d e vitória, u m g r a n d e m i l a g r e , u m g r a n d e c r i m e , u m a
g r a n d e esperança. C e m p e q u e n o s c r i m e s o u c e m p e q u e n o s d e s a s t r e s
n ã o impressionarão n a d a a imaginação d a s m u h i d õ e s , e n q u a n t o q u e
u m g r a n d e c r i m e o u d e s a s t r e impressioná-la-ão p r o f u n d a m e n t e , a i n -
d a q u e o s s e u s r e s u l t a d o s s e j a m m e n o s sensíveis e d o l o r o s o s q u e o s
dos c e m pequenos desastres reunidos. É o que observa G u s t a v e L e B o n .
N ã o são o s f a t o s e m s i q u e f e r e m a imaginação c o l e t i v a , m a s s i m o
m o d o p e l o q u a l se lhes a p r e s e n t a m . O s m o n u m e n t o s e as c o m e m o r a -
ções são, s e m dúvida, o s m e i o s m a i s p r o v e i t o s o s , práticos e s e g u r o s ,
p a r a g r a v a r n o espírito d o p o v o a s p r o e z a s d e u m herói, a g r a n d e z a
d e u m n o m e o u a importância e o s i g n i f i c a d o d e u m a c o n t e c i m e n t o . ^ ^
100
A renúncia d a p a l a v r a , a s s i n a l a d a n e s s e t e x t o , t r a n s f e r e a ên-
f a s e p a r a a ação e c o l o c a o conteúdo e m o c i o n a l d a s dimensões i n -
c o n s c i e n t e s d a s c o l e t i v i d a d e s n o c e n t r o d a prática política, c o n s i d e -
rando a cidade c o m o o palco onde o s e ud r a m a é representado p o r
e l a s e p a r a e l a s . W a s h i n g t o n Luís, p o r e x e m p l o , já p a r e c i a a t u a r c o m
p l e n o c o n h e c i m e n t o d e s s a s n o v a s condições q u a n d o , p o r ocasião d o s
p r e p a r a t i v o s p a r a o s f e s t i v a i s d e celebração d o centenário d a I n d e -
pendência d o B r a s i l , d e c l a r o u s o b r e s e u s p l a n o s : " C o m a t e r m i n a -
ção d e a l g u m a s o b r a s d e e m b e l e z a m e n t o já i n i c i a d a s , e c o m o s r e t o -
q u e s necessários [...] São P a u l o — q u e j á é i n c o n t e s t a v e l m e n t e u m a
b o n i t a c i d a d e — estará e m condições d e o f e r e c e r u m b e l o cenário
a o q u e s e f i z e r a q u i " . ^ ^ Aliás, c o m o já v i m o s , e l e m e s m o e r a u m
m e s t r e e m c a u s a r impressões n a imaginação d o s h a b i t a n t e s d a c i d a -
de, fosse n o s seus deslocamentos solenes, e m l a n d a u , cercado p o r
colunas d e lanceiros e m cavalos engalanados, fosse n a s u a espeta-
c u l a r cerimónia d e p o s s e , o c u p a n d o p r a t i c a m e n t e t o d o o espaço u r -
b a n o c o m desfiles, bandas, fanfarras, cavalaria, escolares e despor-
t i s t a s , além d e m a n t e r o céu e m p e r m a n e n t e t u m u l t o , c o m a s m a n o -
bras.aéreas d e u m a e s q u a d r i l h a m i l i t a r . I n c i d e n t a l m e n t e , s u a p o s s e
f o i m a r c a d a p a r a o d i a 1 ? d e m a i o d e 1 9 2 0 e c o n s e g u i u até o e f e i t o
inacreditável d e e s v a z i a r a s manifestações operárias.
A cidade apresentava a n t e o n t e m encantador aspecto. O feriado I...1
f o i t o d o t o m a d o p e l o espetáculo d a p o s s e p r e s i d e n c i a l . N e m a s m a n i -
festações operárias, q u e n ã o s e r e a l i z a r a m , l h e d i s p u t a v a m a s a t e n -
ções. A s r u a s c e n t r a i s , c o n s t a n t e m e n t e c h e i a s , p a l p i t a v a m e m t o r n o
às cerimónias o f i c i a i s d a i n v e s t i d u r a d o n o v o g o v e r n o . O p e r p a s s a r
d a s c a r r u a g e n s , o d e s f i l a r d a t r o p a , a s evoluções d o s batalhões i n f a n -
t i s constituíam a t r a t i v o b a s t a n t e p a r a a c u r i o s i d a d e pública. O p o v o ,
d e ordinário i n d i f e r e n t e , a b a l o u - s e d e c a s a p a r a a r u a , d a r u a p a r a a s
praças, m o v e n d o - s e p r ' a q u i , p r ' a H , m o v i m e n t a n d o - s e . . . ^ ^
O u t r o s f e s t i v a i s , m e n o s c e r i m o n i o s o s e o f i c i a i s , se r e a l i z a v a m
c o n t i n u a m e n t e , m a n t e n d o a população, o u d i f e r e n t e s s e g m e n t o s d e -
la, e m constante m o v i m e n t o . O r a e r a m o s festivais poliesportivos
n o P a r q u e Antártica, o r a o s d e s f i l e s m i l i t a r e s n a A v e n i d a T i r a d e n -
tes o u n a A v e n i d a P a u l i s t a , o r a inaugurações d e m o n u m e n t o s , o r a
concentrações maciças p a r a a c o m p a n h a r j o g o s d a seleção p a u l i s t a
o u b r a s i l e i r a p e l o s p l a c a r e s d ' 0 Estado e m ponto de "verdadeira
l o u c u r a " . Às v e z e s e r a m e v e n t o s m a i s l o n g o s , c o m o a Exposição
I n d u s t r i a l , p a t r o c i n a d a p o r W a s h i n g t o n Luís, c o n s t a n d o a i n d a d e
u m p a r q u e d e diversões, u m c i n e m a g r a t u i t o a o a r l i v r e e — o m a i o r
101
mimio iiiiiii KiJitiilr iok*(;i. " s o r t e a n d o o b j e t o s d e a p r e c i á v e l v a -
t i H I I| i i ( \ o s r c l a l i v a r n c i u e i n s i g n i f i c a n t e s " . ^ ^ C l a r o q u ea oposição
p i t l l i u i i ii;)o p t u l c i i a f i c a r i n d i f e r e n t e a e s s e s avanços d o g o v e r n o s o -
I n c o ^ o l o úbcrc d o imaginário p r o f u n d o d a população d a c i d a d e ,
d e s c e n d o a i n d a m a i s f u n d o n e s s a s regiões insondáveis, p o r c o n t a
d a s u a c o n d i ç ã o m a i s a g r e s s i v a e l e v a n d o o s a p e l o s e m o c i o n a i s às
s u a s m a i s drásticas consequências. F o i o q u e f i c o u d e m o n s t r a d o ,
p o r e x e m p l o , p e l a celebração e x t r a - o f i c i a l d a b a n d e i r a , c r i a d a p e l a
L i g a N a c i o n a l i s t a e c o n s t a n d o d e u m a m a r c h a r i t u a l rioturna à l u z
d e t o c h a s , atrás d e u m a g i g a n t e s c a b a n d e i r a b r a s i l e i r a c o n d u z i d a p o r
jovens estudantes, c u l m i n a n d o n o M o n u m e n t o a O l a v o Bilac, n u -
m a grande queima de fogos.
O u t r o t i p o d e f e s t i v a l p e r m a n e n t e e r a o d a recepção a o s heróis.
N u m i n s t a n t e , a c i d a d e se p a r a h s a v a , a população t o m a v a a s r u a s ,
o herói o u heróis e r a m r e t i r a d o s d a Estação d a L u z o u , s e f o s s e o
caso, d e d e n t r o d o c a r r o e m q u et i n h a m e n t r a d o , e carregados n o s
braços d a muUidão e m t r i u n f o até s u a c a s a o u h o t e l , s o b f l o r e s , p a -
p e l p i c a d o , v i v a s , b u r r a s , g r i t o s , a s s o b i o s , r i s o s , soluços e lágrimas.
R u i B a r b o s a , o s campeões s u l - a m e r i c a n o s d e f u t e b o l , E d u C h a v e s ,
o s a v i a d o r e s p o r t u g u e s e s d a t r a v e s s i a d o A t l â n t i c o , o s p i l o t o s d o raid
N e w Y o r k — R i o , o c o n d e d ' E u e o príncipe d . P e d r o e q u a n t o s e
q u a n t o s m a i s r e e d i t a v a m a cerimónia, s e m p r e e m a t m o s f e r a e m o -
c i o n a l e s c a l d a n t e . A f e s t a p r o m o v i d a p e l a oposição p a r a a recepção
d e R u i B a r b o s a , a u t o p r o c l a m a d o c a n d i d a t o antioligárquíco à p r e -
sidência d o país, e m a b r i l d e 1 9 1 9 , p a r e c e t e r f i x a d o o p a d r ã o p a r a
esse t i p o d e i d o l a t r i a e m o t i v a . P . , c o m s e u e s t i l o r e l a m p e j a n t e , n o s
dá o r e t r a t o v i v o d a apoteose passional:
C h e g o d a Estação d a L u z o n d e f u i a s s i s t i r à c h e g a d a d e R u i B a r b o s a .
N u n c a v i manifestação i g u a l . N u n c a e m São P a u l o , q u e m e c o n s t e ,
a f l u i u à estação t a m a n h a multidão p a r a r e c e b e r u m político. E j a m a i s
atingiu aquele calor e teve aquela sinceridade o entusiasmo d o p o v o
p a u l i s t a , d e ordinário g l a c i a l e i n d i f e r e n t e . A s v a s t a s dependências d a
Inglesa e a avenida fronteira — t u d o cheio de p o v o . Senhoras e cava-
l h e i r o s , crianças e v e l h o s [ . . . ] t o d o s s e a p i n h a v a m n l s imediações, d e
pé n o s automóveis, e n c a r a p i t a d o s n o s t o l d o s , a g a r r a d o s às g r a d e s d o
j a r d i m e , p o r t o d a a a v e n i d a f r o n t e i r a à estação, s e e s p r a i a n d o até l o n -
g e . . . [ . . . ] ... e q u a n d o , p o u c o d e p o i s . R u i a s s o m o u à p o r t a — n ã o f a -
r e i n u n c a i d e i a b a s t a n t e d o q u e f o i então o e n t u s i a s m o p o p u l a r . [ . . . ]
F o i r e a l m e n t e u m delírio p o p u l a r . S u b i a m chapéus a o a r . N ã o h a v i a
u m a só p e s s o a q u e n ã o c l a m a s s e c o m o s e u chapéu n a m ã o . E t o d o s
o s v i v a s e t o d a s a s p a l m a s a s s i m c o n f u n d i d a s f a z i a m u m só c l a m o r .
102
l a r g o e v a s t o , q u e n ã o c e s s a v a , n e m diminuía, a n t e s c r e s c i a a c a d a i n s -
t a n t e , m a i s v i b r a n t e , m a i s entusiástico... V e m a m i m u m c a v a l h e i r o
respeitável, t o d o a f o g u e a d o e o f e g a n t e e m e d i z : " U f f ! C o m o há p o -
v o lá d e n t r o d a estação! E q u e e n t u s i a s m o ! C h o r a v a m , m e u c a r o , até
c h o r a v a m a s p e s s o a s q u e lançavam f l o r e s s o b r e R u i B a r b o s a . . . " [ . . . ]
E m v e r d a d e n u n c a m e esquecerá e s t a m a n h ã esplêndida, e m q u e t o d a
cidade — brasileiros e estrangeiros — assim glorificou R u i
Barbosa...40
Manifestações d e s s e n o v o t i p o r e q u e r i a m p o r s i só u m a r e o r g a -
nização p e c u H a r d o espaço u r b a n o , d e t a l f o r m a q u e o s e l e m e n t o s
c o n j u g a d o s d e r i t u a l , espetáculo, cenário, multidões, d e s e m p e n h o ,
p l a t e i a e história s e r e p r e s e n t a s s e m c o m o dimensões f u n d a m e n t a i s
e n ã o c o n t i n g e n t e s d a c i d a d e , i n s c r e v e n d o a s s i m u m a g e o g r a f i a cí-
vica deliberada e proeminente sobre a f i s i o n o m i aurbana. U m a vez
m a i s essa d e m a n d a , e m b o r a m u i t o recente, é sentida c o m t a m a n h a
intensidade, q u e ,a e x e m p l o d o q u e o c o r r e r a e m p a r a l e l o c o m o s
a p e l o s p o r u m estádio m o n u m e n t a l e u m m u s e u d e a r t e , o s p u b l i c i s -
t a s t a m b é m s e p õ e m a v o c i f e r a r e a u r g i r p e l a c r i a ç ã o d a p r a ç a cívi-
c a d a c i d a d e . C o m o , n o m o m e n t o , a m a i o r área l i v r e d o núcleo c e n -
t r a l e s t a v a j u s t a m e n t e s e n d o r e f o r m a d a p a r a a construção d a c a t e -
d r a l d e São P a u l o — p l a n e j a d a p a r a s e r a m a i o r d a América L a t i n a
e quiçá d e t o d o o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o —, a determinação é unâni-
m e : t r a n s f o r m a r o L a r g o d a Sé n a p r a ç a cívica d a c i d a d e , f a z e n d o
c o n v e r g i r a s s i m o s s í m b o l o s d a fé, d a p u j a n ç a e d a a l m a c o l e t i v a . ' "
O r u m o q u e a s c o i s a s i a m t o m a n d o s u s c i t a v a esforços n o s e n t i -
d o d e o r g a n i z a r o s e s t a d o s d e exacerbação e m o c i o n a l c a t a l i s a d o s p e l o
s u r t o d e metropolização, c o m o i n t u i t o d e a o m e s m o t e m p o l h e s d a r
a máxima expressão e u m a orientação peremptória. É s i g n i f i c a t i v a ,
p o r e x e m p l o , a e s c o l h a d e metáforas c o m q u e a m a i s p r e s t i g i o s a a u -
t o r i d a d e científica d a c i d a d e , o d r . P e r e i r a B a r r e t o , d e s c r e v e u a r e a -
ç ã o d o s h a b i t a n t e s q u a n d o O Estado e x p ô s o p a i n e l c o n f i r m a n d o
o s u c e s s o d o raid d e E d u C h a v e s : " A e m o ç ã o d o p o v o r o m p e u t o -
d o s o s d i q u e s e , n u m e x t r a v a s a m e n t o incoercível d e m a r é v i o l e n t a ,
c o m o f r a g o r e o ímpeto d e u m a t r o m b a marítima q u e e s t o u r a v a ,
precipitou-se sobre a cidade r u m o r o s a e vibrante, n u m a vasta inun-
d a ç ã o d e alegria...".^^2 A exaltação e m o c i o n a l c o l e t i v a é d e s c r i t a aí
p e l o c i e n t i s t a c o m o u m a f o n t e n a t u r a l d e e n e r g i a inexorável. N o u -
t r a p a s s a g e m e l es i n t e t i z a r i a o t e m a n e s s a equação l a p i d a r : * * A b e -
leza d o s a t o s , c o m o a d o s v e r s o s , m e d e - s e p e l a s o m a d a emoção q u e
p r o v o c a m " . A p a r t i r d e u m a estética t r a d i c i o n a l , a poética, e l e d e -
r i v a u m a estética n o v a , a d a a ç ã o , d e consequências políticas, e m -
103
 d e diversões cortesãs, p o d i a s e r entusiástico, p o d i a c o m p o r t a r e x -
IMMII i K i i i i l i u r n i i - . i s s c i H i u l a s o b r e a s e m o ç õ e s . ^ ^ N o c o n t e x t o dessa
plosões d e a l e g r i a e p a r o x i s m o s d e exaltação — m a s t r a z i a c o n s i g o
iiK-.riiii cclcbiaçao. um e s t u d a n t e d a F a c u l d a d e d e D i r e i t o enuncia,
u m c l a r o l i m i t e d e f o r m a , p a r a além d o q u a l t o d o e x c e s s o s e t o r n a -
(• u-io a o c l í m a x d c d e l í r i o n a p r a ç a p ú b l i c a , q u e o p a í s q u e a t é
v a a p a r e n t e e c o m p r o m e t e d o r . E r a u m C a r n a v a l c o m receituário
ttiiao lora i n s p i r a d o p e l o génio d a p a l a v r a . R u i B a r b o s a , o Águia
p r e s c r i t o , posições m a r c a d a s e c o r e o g r a f i a d e g e s t o s e m o v i m e n t o s
d c H a i a , d a l i p o r d i a n t e s e r i a g u i a d o t a m b é m p e l a f i g u r a d o herói
p r e f i g u r a d o s . E r a u m a herança d e convenções à e s p e r a d e s e r e m r e -
d o s n e r v o s e músculos d e aço, E d u C h a v e s , o Águia d o s A r e s . ' * ^
vividas c o m m a i o r o um e n o r intensidade, m a s não u mdesafio para
Q u a n d o s e c e l e b r a r a m a s exéquias d e R u i B a r b o s a , e m 1 9 2 3 , p o u c o
u l t r a p a s s a r t o d a s a s convenções e s e p r e c i p i t a r n a v e r t i g e m d a
m a i s d e u m a n o d e p o i s , n u m a c e r i m o n i a d e e n o r m e tensão e m o c i o -
extravagância.
n a l , f i c o u c l a r o q u e a p a r t i r d e então h a v e r i a u m ^ única águia t r i -
l h a n d o o s céus/^ O r a , o C a r n a v a l d oBrás, f o s s e o d e r u a o u o d o p o p u l a r T e a -
t r o C o l o m b o , n o L a r g o d a Concórdia, coração d o b a i r r o , e r a d o -
O u t r o sinal r e v e l a d o r dos n o v o s t e m p o s q u e sem a n i f e s t o u nes-
m i n a d o pelo estilo festivo d o s imigrantes itahanos mais humildes,
s e início d e 1 9 2 1 , a o l a d o d a c o n s a g r a ç ã o d e E d u C h a v e s , f o i a b r u s c a
e x i b i n d o u m a a n i m a ç ã o típica d e f e s t a s c a m p e s t r e s pagãs o u p r o t o -
e surpreendente m e t a m o r f o s e d oC a r n a v a l paulista. A festa, q u e se
cristãs. O t r a n s e eufórico n a e m b r i a g u e z d o v i n h o , d a música e d a
t o r n a r a a m a i s i m p o r t a n t e d e n t r e a s d e d a t a f i x a n o calendário d a
dança e r a o o b j e t i v o precípuo d a celebração, o p o s t o a q u a i s q u e r d e s -
cidade, p a s s o u nesse a n o p o r u m a mudança p r o f u n d a e m s u a n a t u -
v e l o s e m c o n f i r m a r posições, r e s p e i t a r precedências e o s t e n t a r o d o -
r e z a , i d e n t i d a d e e propósito, q u e s e t o r n a r i a d e f i n i t i v a daí p o r d i a n t e ,
mínio d e c o m p l e x o s códigos d e distinção. N ã o q u e esse C a r n a v a l
p e l o r e s t a n t e d a década. N o s a n o s a n t e r i o r e s e p a r t i c u l a r m e n t e após
p o p u l a r n ã o m a n t i v e s s e u m a convivência d e a j u s t e s e conveniências
a g r a n d e intensificação q u e o c a r a c t e r i z a r i a a p a r t i r d e 1 9 1 9 , o C a r -
p a r a c o m a s c a m a d a s d e i m i g r a n t e s prósperos d ob a i r r o , p a r a c o m
n a v a l s e c o m p u n h a d e d o i s f o c o s básicos: o Triângulo c e n t r a l e a
o s v i s i t a n t e s , o p u l e n t o s o u n ã o , q u e a c o r r i a m a o Brás n e s s a época,
A v e n i d a P a u l i s t a . H a v i a o u t r o s núcleos secundários, c o m o o d o Brás
o u p a r a c o m a s rígidas n o r m a s d e c o n d u t a e d i s c i p h n a i m p o s t a s p e -
e o d oC a m b u c i , e d eu m a f o r m a mais difusa eleseespraiava p o r
l a s a u t o r i d a d e s p o l i c i a i s . N e m q u e essa r a i z pagã já não estivesse
todos o sbairros mais populosos e urbanizados. Esse segundo gru-
n e u t r a l i z a d a e m s e u s e x c e s s o s p o r múltiplos séculos d e d o m í n i o c a -
p o e r a m a i s p o p u l a r , c o m m e n o s l u s t r o n a s f a n t a s i a s , iluminação
tólico e o r d e m c i v i l . M a s n e l a p a l p i t a v a c l a r a e c i n t i l a n t e a c h a m a
e decorações d a s r u a s e — f a t o r d e c i s i v o — m e n o s c a r r o s , s e n d o
d a estranheza, o a p e l o candente d a s regras q u e sei m a g i n a não exis-
os q u e c i r c u l a v a m s o b r e t u d o d ea l u g u e l e e m m e n o r número q u e a s
t i r e m p o r q u e n ã o s e l h e s s a b i a r e c o n h e c e r , a sedução d o q u e e r a i m a -
c a r r o ç a s , o s veículos t o d o s s o b r e p u j a d o s p e l a g r a n d e m u l t i d ã o a p é .
g i n a d o c o m o a l i b e r d a d e s e m peias d o p r i m i t i v o , p o rq u e m a n s i a v a
N o Triângulo o s d e s f i l e s d o s c l u b e s c a r n a v a l e s c o s e m c a r r o s alegó-
descobrir a espontaneidade d oc o r p o e d a m e n t e , q u ea cidade soli-
r i c o s e r a m o c e n t r o d a pândega, e n q u a n t o n a a v e n i d a o p o v o e r a
citava e o legado cultural coibia. Eis c o m o o incidente f o i registra-
m a n t i d o n a s calçadas p a r a a s s i s t i r , c o m o p l a t e i a , às b a t a l h a s d e s e r -
d o n o n o t i c i á r i o d * 0 Estado:
p e n t i n a , c o n f e t e e lança-perfume, n o c o r s o d e c a r r o s r e f i n a d o s q u e
r o l a v a m p e l o a s f a l t o e m f i l a quádrupla."^^
A n t e s d o s três d i a s c o n s a g r a d o s a o c u l t o d e M o m o , m u i t o a n t e s , j á
O q u e ocorreu c o m o C a r n a v a l d e 1921 f o i que, aquilo q u ef o - a q u e l a p a r t e d a c i d a d e [ o Brás] v i b r a v a d e e n t u s i a s m o p e l o s f o l g u e d o s
r a até então u m a tendência s u b j a c e n t e , e m b o r a e m contínua a s c e n - a q u e , t o d o s o s d o m i n g o s , se e n t r e g a v a m n a A v e n i d a R a n g e l P e s t a n a .
são, t o r n o u - s e s u b i t a m e n t e p r e d o m i n a n t e . O e s t i l o d e f e s t e j a r o C a r - D e p o i s , à m e d i d a q u e o tríduo f o i c h e g a n d o , e s s e i n t e r e s s e s e t o r n o u
n a v a l n o Triângulo o u n a a v e n i d a , p o r m a i s q u e p u d e s s e s e t o r n a r m a i s i n t e n s o , até q u e , n e s s e s últimos d i a s — e terça-feira c o m e s p e c i a -
a n i m a d o , d e n o t a v a u m a moderação q u e e r aa i m p o s t a p o r u m a i n - l i d a d e — n ã o s e p o d e d i z e r o q u e s e p a s s a v a p o r lá. A s b a t a l h a s d e
d u m e n t á r i a s o l e n e , e m b o r a típica, p o r g e s t o s r e g r a d o s , e m b o r a e x - c o n f e t e , d e s e r p e n t i n a s , d e lança-perfumes, o s c o r s o s , a iluminação,
p a n s i v o s , p e l a c o m p o s t u r a a p a r a t o s a d o décor a r q u i t e t ô n i c o e d o o m o v i m e n t o d a g r a n d e artéria d o b a i r r o , o d a s c o n f e i t a r i a s — t u d o
l u x o d o s c a r r o s . E n f i m , o C a r n a v a l r e c e b i d o p e l a tradição b u r g u e - e r a delírio, u m a l o u c u r a , t a n t o m a i s d i g n o d e n o t a , t a n t o é c e r t o q u e
fazia frisante contraste c o m a frieza q u e se n o t a v a n o restante d a cida-
s a , q u e m i s t u r a v a p e r s o n a g e n s e s t e r e o t i p a d o s d a commedia deli'ar-
d e . O r e s u l t a d o d i s s o f o i q u e , u l t i m a m e n t e o Brás atraía a concorrên-
te c o m m e s u r a s , r a p a p é s e s a l a m a l e q u e s d e u m p r e t e n s o r e p e r t ó r i o

105
104
 c i a d o Triângulo, d a A v e n i d a [ P a u l i s t a l e d e o u t r o s p o n t o s o n d e n o s
anos anteriores era grande o m o v i m e n t o , tornando-se o centro de to-
d o s o s f e s t e j o s . O s c o r s o s d e c a r r u a g e n s , e m q u e a princípio a p a r e -
c i a m a p e n a s u n s o u o u t r o s veículos l u x u o s o s d o s b a i r r o s aristocráti-
c o s , p a s s a r a m a s e r então e x t r a o r d i n a r i a m e n t e a n i m a d o s , c o n s t i t u i n -
d o u m a das coisas m a i s interessantes d o C a r n a v a l . A o l a d o d e simples
c a r r o s d e praça e até d e carroças e n f e i t a d a s c o m a r c o s d e b a m b u s e
i l u m i n a d a s b i z a r r a m e n t e c o m l a n t e r n a s v e n e z i a n a s , t a l c o m o se esti-
v e s s e m e m p l e n a f e s t a p o p u l a r d e P i e d i g r o t t a , c o n d u z i n d o famílias d a s
mais distintas d a sociedade paulista, deslizavam suavemente custosos
automóveis d e l u x o . " * ^
O Brás a d q u i r i a a s s i m u m a v i s i b i l i d a d e e m o c i o n a l r e p e n t i n a ,
que transformou a periferia e mcentro e o centro e m periferia. A s
famílias d i s t i n t a s , d e i x a n d o s u a s m a n s õ e s e automóveis p a r a s e m e -
t e r e m n a carroça rústica e b u s c a r e m a a l e g r i a n o m e i o d o s c a m p o -
n e s e s , o p e r á r i o s , a r t e s ã o s e a m b u l a n t e s i m i g r a d o s , e r a b e m u m ín-
d i c e d e u m n o v o t e m p o e d e u m r e a r r a n j o d a s o r d e n s d e símbolos.
Não q u e o f a t o t e n h a m u d a d o e m q u a l q u e r mínimo s e n t i d o a s o r t e
d o Brás o u d o s s e u s h a b i t a n t e s . E l e o c o r r e u c o m e f e i t o n o c o n t e x t o
d e u m a s é r i e d e r e p o r t a g e n s e m t o m i n d i g n a d o e a g r e s s i v o d ' 0 £5-
tado s o b r e o B r á s , d e n o m i n a d a " U m b a i r r o d e s p r e z a d o " , d e n u n -
ciando o descaso escabroso dasautoridades para c o m o s bairros po-
p u l a r e s . Q u a i s q u e r q u e f o s s e m , p o i s , o s esforços o u condições p r o -
pícias p a r a convergências d e representações e a l i n h a m e n t o s d e a t i -
t u d e s , eles e m n a d a a t e n u a v a m a s v i c i s s i t u d e s d a s discriminações e s -
paciais e sociais n o interior d a cidade. Essas fontes permanentes d e
r e s s e n t i m e n t o e d e aflição, e n t r e t a n t o , p a r a d o x a l m e n t e , t e n d i a m a
a l i m e n t a r a q u e l a s convergências. E r a d a s fermentações d e s s e m a l -
e s t a r s o c i a l q u e a s t e c n o l o g i a s m e t r o p o l i t a n a s e o s n o v o s padrões
d e c o n d u t a e simbolização i r i a m r e t i r a r a s e n e r g i a s e x t r a s q u e i n t e n -
s i f i c a v a m o d e s e m p e n h o d e u m a s e a l i c i a v a m acólitos p a r a o s o u -
t r o s . A c i d a d e d e s t i l a v a p o r compressão a t o x i n a a m a r g a q u e e s t i -
m u l a v a a s u a própria aceleração p r e c i p i t a d a .
EXPOSIÇÃO UNIVERSAL BIZARRA
São P a u l o se compôs d e u m m o d o inverossímil, a p a r t i r d a s o -
m a d e circunstâncias imponderáveis q u e f o r a m c o n f l u i n d o n u m a se-
quência contínua d e i m p o s s i b i l i d a d e s . A g r a n d e s u r p r e s a f o i q u e São
P a u l o viesse a e x i s t i r , não q u eela fosse v i r t u a l m e n t e inviável. A a l -
106
d e i a jesuítica o r i g i n a l , d a q u a l e l a d e r i v a r i a , f o i c r i t e r i o s a m e n t e c a l -
c u l a d a p a r a o c u p a r u m n i c h o d e f e n s i v o inexpugnável, p e l o s e u i s o -
l a m e n t o , s u a posição inóspita e a c e s s o precário. P l a n t a d a n o a l t o
d a S e r r a d o M a r , d e f r o n t e a o ú n i c o a c e s s o f l u v i a l às f l o r e s t a s v i r -
g e n s d o s sertões i n t e r i o r e s d a s p o s s e s o c i d e n t a i s d o s r e i s cristianíssi-
m o s d e P o r t u g a l , d o m i n a d a s p o r indígenas b r a v i o s , o p e q u e n o a l -
d e a m e n t o jesuíta g u a r d a v a u m a posição d a m a i s dramática i m p o r -
tância n a estratégia d a c o n q u i s t a e a l i m e n t a v a a vocação d e u m a m i s -
são s o b r e - h u m a n a . A localização d a a l d e i a só p o d e s e r c o m p r e e n d i -
d a e m conjunção c o m esse d e h r i o místico. E l a f i c a v a n a c a b e c e i r a
d e u m a c o h n a íngreme, f e n d i d a a o e s t e p e l a g a r g a n t a e s t r e i t a e e s -
c a r p a d a d o r i a c h o Anhangabaú, a leste p e l o pântano l o d o s o d o r i o
T a m a n d u a t e í e t i n h a à s u a f r e n t e , l o n g e , p a r a o n o r t e , a visão m a -
jestática d a s várzeas alagadiças d a s c a u d a i s d o Tietê, f l u i n d o e m s e r -
p e n t e i o c i n t i l a n t e p a r a o coração p r o f u n d o d a s s e l v a s . E m s u m a :
segurança e a c e s s o , a o c u s t o d e l a m a , s u o r e moléstias, u m preço
p e q u e n o p a r a a fé inflexível, d i a n t e d o c o l o s s o d a v i s ã o .
M a s o q u e e r a b o m p a r a u m a b a s e catequética avançada, p r o -
v a r i a s e r o próprio i n f e r n o p a r a u m a s s e n t a m e n t o u r b a n o . A s f e -
b r e s e a s p e s t i l ê n c i a s , o s desníveis a c i d e n t a d o s , a s c h u v a s , a s e n c h e n -
t e s , o s c h a r c o s , a s d i f i c u l d a d e s d e o b t e r m a t e r i a i s duráveis d e e d i f i -
cação e s o b r e t u d o a e s c a s s e z drástica d e r e c u r s o s d e sobrevivência
l e v a r i a m o s p a r c o s c o l o n o s e a v e n t u r e i r o s , s u a s miríades d e d e s c e n -
d e n t e s mestiços e o s índios c o n v e r t i d o s , q u e h a v i a m s e a c e r c a d o d a
missão jesuítica, a u m a v i d a i n c e r t a e precária, e n t r e u m a p e q u e n a
l a v o u r a predatória i t i n e r a n t e , a g a r i m p a g e m e r r a d i a o u o s i m p l e s
tráfico d a violência, a t a c a n d o reduções e a c a m p a m e n t o s n o s sertões,
e s c r a v i z a n d o indígenas p a r a comércio o u a c e i t a n d o c o n t r a t o s p a r a
destruir q u i l o m b o s d e escravos negros evadidos. Q u a l q u e r dessas a t i -
v i d a d e s m a n t i n h a p e l o m e n o s o s h o m e n s e m p e r m a n e n t e itinerân-
c i a , f i c a n d o a povoação s e m i d e s e r t a e m períodos q u e não f o s s e m
d e f e s t a s , a s s i n a l a d a p o r u m a p r e d o m i n a n t e presença f e m i n i n a . A
d e s c o b e r t a d o o u r o n a s G e r a i s e d e p o i s a fixação d a C o r t e p o r t u -
g u e s a n o R i o d e J a n e i r o , se a c r e s c e n t a r a m u m a dimensão d e e n t r e -
posto à cidade, d a n d o o r i g e m a algumas d a s suas primeiras fortu-
n a s , não a l t e r a r a m d e f a t o s e u s traços básicos. O q u e v i r i a m u d a r
radicalmente os destinos d a comunidade seriam o advento e a ex-
pansão d a l a v o u r a cafeeira.'*^
M a i s u m a v e z u m a circunstância aleatória — n e s s e c a s o , a r e -
p e n t i n a valorização d e u m a t o x i n a e s t i m u l a n t e n o c u r s o d a a c e l e r a -
ção i n d u s t r i a l . Q u a n d o a c u l t u r a d o café, i n i c i a d a e m b a s e s e x p o r -
107
 n o R i o d e J a n e i r o n o s princípios d o século X I X , e n c o n t r a s -
U K I O I U S
se s u a b a s e ecológica i d e a l n a s t e r r a s p a u l i s t a s , p r i m e i r o n o V a l e d o
Paraíba e d e p o i s , p o r v o l t a d e 1 8 7 0 , d e c i s i v a m e n t e n o s v a s t o s ser-
tões d o o e s t e , a s condições d o m e r c a d o i n t e r n a c i o n a l r e f o r m u l a r i a m
o p a p e l estratégico d e São P a u l o e m n o v o s t e r m o s . O s e n g e n h e i r o s ,
financistas e negociantes estrangeiros, basicamente ingleses, q u ed e
c o m u m acordo c o m o s fazendeiros paulistas p r o j e t a r a m a infra-
e s t r u t u r a ferroviária indispensável p a r a a exportação maciça d a n o -
va mercadoria, compreenderam logo as vantagens operacionais de
f a z e r t o d a a p r o d u ç ã o c o n v e r g i r p a r a u m c e n t r o a r t i c u l a d o r — téc-
n i c o , f i n a n c e i r o e m e r c a n t i l —, a c i d a d e d e São P a u l o , e u m único
p o r t o e x p o r t a d o r . S a n t o s . D e s s e m o d o , c e r c a d e 70*í^o d o v o l u m e
d o m e r c a d o m u n d i a l d e café s e r i a manipulável d e u m a única p o s i -
ção, p o s s i b i l i t a n d o m a n o b r a s e s p e c u l a t i v a s f a b u l o s a s . O u t r a s c i d a -
des c o m m a i o r p o t e n c i a l u r b a n o nesse período, c o m o I t u o u C a m -
p i n a s , além d e regiões prósperas q u e t e n t a r a m e s t a b e l e c e r u m c i r -
c u i t o próprio d e produção e exportação p o r m e i o d e conexões f e r -
roviárias c o m s e u s p o r t o s n a t u r a i s , c o m o São Sebastião e U b a t u b a ,
p a r a o V a l e d o Paraíba, e L a g u n a , p a r a o s u d o e s t e d a província,
f o r a m p o l i t i c a m e n t e s a b o t a d a s e relegadas.'*^ S e o s jesuítas h a v i a m
v i s l u m b r a d o São P a u l o c o m o u m a ponta-de-lança q u e avançava
a d e n t r o e abria p a r a a c o n q u i s t a as selvas continentais, o feixe d e
interesses c o l i g a d o s n a c a f e i c u l t u r a p r o j e t o u a c i d a d e c o m o u m nó
c o n s t r i c t o r , v i n c u l a n d o o s v a s t o s sertões i n t e r i o r e s às c o o r d e n a d a s
d i s t a n t e s d o m e r c a d o i n t e r n a c i o n a l . N ã o f o i só o v e t o r d o s f l u x o s
d e itinerância q u e m u d o u d e direção, m a s s o b r e t u d o a m a g n i t u d e
d a visão q u e m u d o u d e p e r s p e c t i v a .
T a m a n h a concentração d e p o d e r decisório e d e r i q u e z a , f i x a d a
n u m único p o n t o , n ã o só t o t a l m e n t e d e s p r e p a r a d o , m a s e m m u i t o s
s e n t i d o s d e f a t o impróprio p a r a u m v a s t o a s s e n t a m e n t o h u m a n o ,
tornaria a cidade q u eassim emergia n o epicentro de u m a entropia
s e m p r e c r e s c e n t e . D e s d e q u e a n o v a sistemática d a e c o n o m i a c a f e e i r a
e n t r o u e m ação. São P a u l o p a s s o u a c r e s c e r n u m a e s c a l a e s p e t a c u -
l a r e , d e núcleo periférico c o m p o p u l a ç ã o f l u t u a n t e , p a s s o u a pólo
e c o n ó m i c o m a i s d i n â m i c o d o país e a c e n t r o político o n d e e r a m d e -
c i d i d o s o s d e s t i n o s d a República.^*' D e a c o r d o c o m o p r i m e i r o c e n -
so, r e a l i z a d o e m 1 8 7 2 , q u a n d o a c i d a d e já e s t a v a s o b o e f e i t o d o
g r a n d e s u r t o c a f e e i r o e mt e r r a s p a u l i s t a s , s u a população e r a d e 19 3 4 7
pessoas. Número q u e se e l e v o u a 6 49 3 4 h a b i t a n t e s n o censo seguin-
t e , d e 1 8 9 0 . N o início d o século X X , a c i d a d e j á c o n t a v a c o m 2 7 0
m i l m o r a d o r e s , s e g u n d o o l e v a n t a m e n t o d e 1908. C i f r a essa q u e d o -
108
b r o u e m 1920, a t i n g i n d o 5 7 8m i l pessoas e p r a t i c a m e n t e t o r n o u a
d o b r a r e m 1 9 3 4 , p a r a alcançar o p i c o d e 1 milhão e 1 2 0 m i l h a b i -
t a n t e s . ^ ' O q u e e q u i v a l e a d i z e r q u e n o período d e 6 2 a n o s , d e 1 8 7 2
a 1 9 3 4 , São P a u l o c o n f i g u r o u u m a p r o d i g i o s a t a x a d e c r e s c i m e n t o
p o p u l a c i o n a l d a o r d e m d e 5 6 8 9 ^ o , o u , p o s t o d e o u t r a f o r m a , cres-
c e u n u m a e s c a l a d e 6Jl°/o a o a n o . E s s e s n ú m e r o s p a r e c i a m j u s t i f i -
c a r p l e n a m e n t e o refrão u f a n i s t a d e q u e " S ã o P a u l o é a c i d a d e q u e
m a i s c r e s c e n o m u n d o " . Atraídos p o ressa f a b u l o s a acumulação d e
r e c u r s o s , d e o p o r t u n i d a d e s n a indústria e n o comércio o u v i s l u m -
b r a n d o a p o s s i b i l i d a d e d e e n r i q u e c i m e n t o , multidões d e famílias e
indivíduos a c o r r e r a m a São P a u l o , v i n d o s d e t o d a s a s p a r t e s d o B r a -
s i l , d o s países p l a t i n o s e d o s q u a t r o c a n t o s d o m u n d o . V i e r a m c o -
m o p u d e r a m , c o m o u s e m haveres, c o m o u s e m conhecimentos es-
p e c i a l i z a d o s , atraídos p e l o e l d o r a d o d o café, a c i d a d e d o " o u r o v e r -
m e l h o " . A o chegar não e n c o n t r a r i a m sequer u m a cidade; t e r i a m
q u e i m p r o v i s a r s u a s habitações e s u a s v i d a s , e n f r e n t a n d o u m v o l u -
m e inexorável d e c o n t r a r i e d a d e s .
E x c e t o a área c e n t r a l e o s b a i r r o s m a i s d i s t i n t o s p r o j e t a d o s e m
direção às c o l i n a s , o r e s t a n t e d a u r b e , n o s d i z e r e s d e u m p o p u l a r ,
apresentava " o aspecto de aldeia de garimpeiros d o faroeste ameri-
c a n o " . ^ ^ Nãoera c e r t a m e n t e casual q u eessa i m a g e m d o m a i s c o m -
p l e t o i m p r o v i s o e a s s e n t a m e n t o tumultuário v i e s s e através d e e v o -
cações d o c i n e m a c o n t e m p o r â n e o , r e f e r i d a s à " c o r r i d a d o o u r o "
d a Cahfórnia. H a v i a , porém, a g r a v a n t e s l o c a i s , q u en e m o c i n e m a
e n e m a c e n a a m e r i c a n a p o d e r i a m i l u s t r a r . A área t o t a l d a c i d a d e
e r a s u b m e t i d a a u m a t a l prática e s p e c u l a t i v a , s e m q u a l q u e r r e g u l a -
mentação, q u e , além d e t o l h e r a ação a d m i n i s t r a t i v a d a a u t o r i d a d e
pública — v i a d e r e g r a , ahás, c o n i v e n t e c o m e l a —, t o r n a v a d e s c o -
n e x o s e n t r e s i o s vários b a i r r o s e s e t o r e s d o município, a o m e s m o
t e m p o q u e c e n t r a l i z a v a o comércio e o s serviços, c r i a n d o d i f i c u l d a -
des e x t r e m a s d e t r a n s p o r t e s e saturação d o s f l u x o s , já p o r s i a g r a -
vados pela t o p o g r a f i a acidentada, pelos rios, alagados e trilhos fer-
roviários. O s serviços públicos f u n d a m e n t a i s d e t r a n s p o r t e , e n e r g i a
e t e l e f o n e s e r a m m o n o p o l i z a d o s p o r u m a única c o m p a n h i a , q u e d i s -
p u n h a d e s s a s concessões c o m o u m a p o d e r o s a a r m a e s p e c u l a t i v a a
m a i s , a p o n t a d a c o n t r a a população. E s s a m e s m a população não p o s -
suía representação política n e m n a C â m a r a M u n i c i p a l , n e m n o C o n -
g r e s s o E s t a d u a l e n e m n o C o n g r e s s o F e d e r a l , já q u e p o u c o s e r a m
e l e i t o r e s e a s eleições, d e q u a l q u e r m o d o , e r a m u m a m e r a f o r m a l i -
d a d e , e x e r c i d a n ã o o b s t a n t e s o b a pressão d a s a r m a s e d a violência
d i r e t a , p a r a c o n f i r m a r c a n d i d a t o s e s c o l h i d o s d e antemão p e l a es-
109

i i c i l a m á q u i n a política d o p a r t i d o ú n i c o , o P a r t i d o R e p u b l i c a n o P a u -
l i s t a . A f o r a isso t u d o , a população e s t a v a s u b m e t i d a s e m r e c u r -
s o s a u m a força p o l i c i a l e x t r e m a m e n t e b r u t a l , discricionária, a r b i -
trária, a c i m a d a s l e i s e i m p u n e , constituída b a s i c a m e n t e d e " s e c r e -
t a s " , r o n d a n d o e mtrajes civis, a r m a d o s e c o m poderes ilimitados.
M a s , s u r p r e e n d e n t e m e n t e , d e s c o n t a d o esse f u n d o d a n t e s c o , a
cidade t i n h a seus encantos. A i n d a n o sanos 2 0 , v i v e n d o o p r i m e i r o
g r a n d e p i c o d a s u a metropolização, a p a i s a g e m u r b a n a m a n t i n h a
a l g u m a s relações básicas c o m o q u a d r o n a t u r a l , d a n d o a o c o n j u n t o
u m a a t m o s f e r a d e f u g a z a l u m b r a m e n t o . O s p r ó p r i o s desníveis a c e n -
t u a d o s d o r e l e v o , o c e r c o d a s águas, a s variações súbitas e e x c r u -
c i a n t e s d o c l i m a contribuíam p a r a p r o p o r c i o n a r p e r s p e c t i v a s p a n o -
râmicas e c e n a s d e u m espetáculo r a r o . O d a fusão e n t r e a s i l h u e t a
arquitetônica d a c i d a d e , a s m a t a s n a s planícies d i s t a n t e s , o s r e c o r -
tes a n g u l o s o s d a S e r r a d a M a n t i q u e i r a n o h o r i z o n t e e s f u m a d o , o
a n e l p r a t e a d o d a s águas d o s r i o s e d a s várzeas, o a r e n e v o a d o p e l a
g a r o a e evaporação c o n s t a n t e s c o r t a d o d e arco-íris, a c o m b i n a ç ã o
e x t r a v a g a n t e d e árvores e f l o r e s t r o p i c a i s e d e c l i m a t e m p e r a d o , o
c h e i r o d a t e r r a m o l h a d a , o s e s p a r s o s r a i o s d e s o l p e n e t r a n d o o s vãos
d a névoa e p o n d o e m f o c o , p o ri n s t a n t e s , r e c a n t o s i n e s p e r a d o s d a s
c o l i n a s o u d o f u n d o d o s vales. O q u a n t o esse e n c a n t o p i t o r e s c o d e
S ã o P a u l o e r a irresistível f i c a v a p a t e n t e p e l a i n s i s t ê n c i a c o m q u e o s
c r o n i s t a s s u s p e n d i a m a s ponderações d o s s e u s a r t i g o s p a r a d e s c r e -
v e r , l o n g a m e n t e , s e n s u a l m e n t e , a s delícias d a p a i s a g e m u r b a n a . E i s
n o s s o c r o n i s t a P . , n u m d e s s e s m o m e n t o s d e êxtase v i s u a l , f i x a d o
q u a n d o e l e , n u m f i n a l d e t a r d e , o b s e r v a v a d o espigão d a A v e n i d a
P a u l i s t a o v a s t o p a n o r a m a d a s c o l i n a s c e n t r a i s e d o v a l e d o Tietê
até o h o r i z o n t e d i s t a n t e :
Q u e l i n d a t a r d e ! V e j a q u e b e l e z a i s t o . R e p a r e n o céu e s m a e c i d o , q u a -
se o p a l a , n u m a c o r d e s o n h o , indefinível e intraduzível. A s c o r c o v a s
d a s s e r r a s , m a i s a l t a s lá à e s q u e r d a , vão c a i n d o , vão d i m i n u i n d o , e
a g e n t e n ã o vê a o n d e a c a b a m . E q u e p o e i r a l u m i n o s a e a z u l a d a s o b r e
t u d o , sobre o a m o n t o a d o d e casas d a cidade, sobre o s casebres d e a l -
guns bairros distantes... C o m o é belo!^^
A p o p u l a ç ã o e m g e r a l , a s famílias e o s j o v e n s n u b e n t e s m a n i -
f e s t a v a m a m e s m a fascinação p e l o q u a d r o n a t u r a l e m q u e s e a m o l -
d a v a a c i d a d e e, n o s f i n s d e s e m a n a , e r a i n t e n s a a p r o c u r a d e r e -
creação, r e p o u s o e r o m a n c e n o s p a r q u e s n a t u r a i s d a C a n t a r e i r a , d o
B o s q u e d a Saúde, n o s c a m p o s d e S a n t o A m a r o , n o s j a r d i n s d o M u -
s e u d o I p i r a n g a , n o c e n t r o d e l a z e r d o P a r q u e Antártica o u e m e x -
110
cursões m a i s d i s t a n t e s , p a r a G u a r u l h o s o u M o j i d a s C r u z e s . O s m a i s
ricos, c o m seus carros, p r o c u r a v a m as praias d o litoral. S a n t o s e
Guarujá, o u então a s estâncias t e r m a i s c o m s e u s c a s s i n o s , c o m o C a -
x a m b u e Poços d e C a l d a s . D e n t r e o s c l u b e s , o s m a i s a g i t a d o s
e r a m o s q u e f i c a v a m n a F l o r e s t a , às m a r g e n s d o Tietê, p r ó x i m o à
P o n t e G r a n d e . A l i multidões d e j o v e n s , d e s d e a s p r i m e i r a s h o r a s
d a manhã, se e x e r c i t a v a m n a natação, n o s s a l t o s o r n a m e n t a i s e n o s
b a r c o s a r e m o s , c o m o s q u a i s , c o r t a n d o a cerração d e n s a , c r u z a -
v a m a z o n a p o p u l o s a d o s b a i r r o s d o leste o n d e se e x i b i a m , e m ple-
n a P o n t e G r a n d e , m e r g u l h a n d o e n a d a n d o e m t r a j e s sumários, p a -
r a o escândalo e a fúria d a s famílias q u e a l i p a s s e a v a m e , t a l v e z ,
a atenção d a s moças.
O s j a r d i n s d a Estação d a L u z e d a Praça d a República e x i b i a m
u m a t a l v a r i e d a d e d e p l a n t a s , f l o r e s e árvores, d o s q u a t r o c o n t i -
n e n t e s , d e e c o l o g i a t r o p i c a l e t e m p e r a d a , tão i n t i m a m e n t e e n t r e -
meadas e harmoniosamente combinadas, queo prof. dr.A . Uste-
r i , c o m o p a t r o c í n i o i l u s t r e d o p r e f e i t o W a s h i n g t o n L u í s e d a Re-
vista do Brasil, t e v e a g e n i a l i d e i a e l a n ç o u c o m e n o r m e s u c e s s o o
Guia botânico do Jardim da Luz e da Praça da República, c o m pre-
fácio d e — n i n g u é m m e n o s — M o n t e i r o L o b a t o , q u e a p r e s e n t a v a
a o b r a c o f n o d e s t i n a d a a " t o r n a r e s s e s p a r q u e s suscetíveis d e s e -
r e m l i d o s " . A propósito, e s s a paixão p e l a s p l a n t a s , árvores e f l o -
r e s e r a g e n e r a l i z a d a e notória e m São P a u l o , m a r c a n d o a c e n a u r -
bana de f o r m a peculiar.
A i n d a há d i a s v i a m - s e [ . . . ] — c o m e n t a P . n a p r i m a v e r a d e 1 9 2 1 —
festões d e glicínias. [ . . . ] A g o r a são a s r o s e i r a s q u e d e s a b r o c h a m e
e m q u a n t i d a d e t a l q u e a g e n t e s e e s p a n t a d e t a n t a s r o s e i r a s q u e há
p e l a c i d a d e . I . . . ] H á e v i d e n t e m e n t e e m m u i t a s famílias, m e s m o n a s
c l a s s e s m a i s m o d e s t a s , g r a n d e a m o r às f l o r e s e não são p o u c o s o s
. jardins q u e revelam b o m gosto e principalmente apuro de cultura.
[...] A n o s s a c i d a d e já é a p o n t a d a c o m o a c a p i t a l b r a s i l e i r a d e m a i s
belos j a r d i n s . ^
A própria p r e f e i t u r a m a n t i n h a u m a política sistemática d e p l a n -
t i o d e árvores d a s m a i s v a r i a d a s espécies, a p o n t o d e u m v i s i t a n t e
comentar: "Não creio q u e haja duas avenidas vizinhas plantadas
c o m a s m e s m a s árvores. Plátanos d o Canadá, c a r v a l h o s d a E u r o -
p a , lilás d o J a p ã o , s u c e d e m - s e à s p l a n t a s m a i s n o t á v e i s d o p a í s " . ^ '
O c r o n i s t a P . r e v e r e n c i a r i a o f a t o a o i n d i c a r q u e " h á n a c i d a d e não
poucos exemplos d o respeito quase religioso q u ea prefeitura vota
às á r v o r e s [...]".^2
111
 U m o u t r o t i p o d e p a i s a g e m , não o b s t a n t e , v i n h a d e s a f i a n d o ,
n u m a d e c i d i d a germinação s u b j a c e n t e , essa e m p a t i a d a c i d a d e e d o s
seus h a b i t a n t e s c o m o m e i o n a t u r a l . M a i s d o q u e u m a penetração
i n s i d i o s a , e s s a p a i s a g e m i n o v a t i v a e perfunctória s e i a i m p o n d o c o m
arrogância, q u a s e c o m a m e s m a intolerância a f o i t a c o m q u e o s a u -
tomóveis a r r e b a t a v a m o espaço público. F e i t a n o s e u íntimo d e i m -
pressões fragmentárias, d e sensações f o r t e s m a s v a g a s , d e símbolos
i r r e s o l u t o s , i n c o n s o n a n t e s c o m aspirações d e anuência comunitária,
d i s p e r s i v o s n a orientação, vários n o a l c a n c e , e s s a p a i s a g e m amal-
g a m a r i a s e u s e l e m e n t o s n u m a presença inconsútil através d o s n o -
v o s padrões arquitetônicos, d a figuração urbanística e d a s h i e r a r -
q u i a s d o s c i r c u i t o s d e exibição q u e i a m s e n d o i m p r i m i d o s à c i d a d e
e m d i f e r e n t e s direções e p o r d i f e r e n t e s a g e n t e s . E s s a p a i s a g e m apa-
r e c e e m p l e n a v i t a l i d a d e e c o m t o d a s u a heróica fluência a r t i f i c i a l ,
nesse q u a d r o d e u mf i m d e tarde d e d o m i n g o n oT e a t r o M u n i c i p a l
e a r r e d o r e s , p e r s p i c u a m e n t e r e t r a t a d o p e l o c r í t i c o d e a r t e s d * 0 Es-
tado.
O c o n c e r t o sinfónico [ p e l a O r q u e s t r a Sinfónica I t a l i a n a , s o b regência
d o m a e s t r o G i n o M a r i n u z z i ] f o i s e g u r a m e n t e o m a i s notável q u e j á
s e r e a l i z o u e m São P a u l o , n ã o só p e l o s e u p r o g r a m a , c o m o p e l a s u a
execução. [ . . . ] A execução d a s i n f o n i a Heróica, d e B e e t h o v e n , d i r i g i -
da pelo ilustre musicista f o i verdadeiramente maravilhosa de firmeza
e d e equilíbrio. [ . . . ] O m e s m o h o n e s t o c u i d a d o , a m e s m a f i n a s e n s i b i -
l i d a d e , a m e s m a proficiência r e v e l a d a n o s mínimos d e t a l h e s , a c u s o u
a execução d o s d o i s b i z a r r o s n o t u r n o s d e D e b u s s y , d o g r a n d i o s o " A d a -
g i o " d e N a r d i n i , d a p i t o r e s c a , i n t e r e s s a n t e e t ã o característica Fonta-
na di Roma, d e R e s p i g h i , e d a q u e l a s páginas i m o r t a i s d o " P r e l ú d i o "
e " M o r t e d e I s o l d a " , d e W a g n e r . [...] D e p o i s dessas h o r a s d e i n t e n s a
sensação estética, o s b a i l a d o s d i r i g i d o s p o r u m a r t i s t a s u p e r i o r c o m o
a s r a . A n a P a v l o v a . [ . . . ] E d e p o i s a saída d o M u n i c i p a l . U m a m u l t i -
d ã o q u e d e s c e a i m p o n e n t e e s c a d a r i a j á i l u m i n a d a p e l a s lâmpadas q u e
começam a a c e n d e r - s e n a indecisão d o crepúsculo e s e e s p a l h a p e l a
praça, a n i m a n d o o V i a d u t o d o C h á e a e n t r a d a d o Triângulo, o s a u -
tomóveis q u e c r u z a m c o m d i f i c u l d a d e a s imediações d o t e a t r o p o n d o
n o s v u l t o s f e m i n i n o s reflexos irisados e opalescentes dos seus refleto-
res, u m r u m o r a b a f a d o d e conversas e risos discretos, silhuetas q u e
a c e n t u a m , c o m o n u m cinematógrafo, a n o b r e distinção d a s s u a s l i -
n h a s , t o d o u m q u a d r o m o v i m e n t a d o e i m p r e s s i o n a n t e q u e só a s g r a n -
des c i d a d e s c i v i l i z a d a s p o d e m o f e r e c e r .
A p a s m o s a c o n c e n t r a ç ã o artística c o m q u e s e i n i c i a o t e x t o —
a S i n f ó n i c a I t a l i a n a , a Heróica de Beethoven, osnoturnos de De-
i/i
b u s s y , o " P r e l ú d i o " d o Tristão e Isolda d e W a g n e r e o s Bales R u s -
s o s d e A n a P a v l o v a , d a n ç a n d o n a d a m e n o s q u e O pássaro de fogo
d e I g o r S t r a v i n s k i : d e c i d i d a m e n t e o m e l h o r q u e o s c a b e d a i s d o café
p o d e r i a m a t r a i r p a r a esse rincão d i s t a n t e d a América d o S u l — c r i a
u m f u n d o estético e m o r a l c o m q u e s e l e g i t i m a o l a m p e j o d e u m a
c e n a u r b a n a n a p a r t e c o n c l u s i v a . É notável n a descrição a n a t u r a l i -
d a d e c o m q u e a ação d o p a l c o se e s t e n d e p a r a o espaço público,
o m e s m o u s o cenográfico d a e l e t r i c i d a d e , c r i a n d o c a m p o s d e d e s t a -
q u e v i s u a l , posições o f u s c a d a s e s o m b r a s m i s t e r i o s a s ; o s faróis d o s
c a r r o s p r o v i d e n c i a n d o f o c o s l u m i n o s o s móveis, r e s s a l t a n d o p e r s o -
n a g e n s e m evidências instantâneas, a c e l e r a n d o a m o b i l i d a d e d o s d e s -
l o c a m e n t o s v i s u a i s , c o m o n u m f i l m e ; o s t r a j e s p e n s a d o s e m função
d o s e f e i t o s d e m o v i m e n t o e l u z ; a ação a g i t a d a e n e r v o s a d e u m a
c o r e o g r a f i a m u l t i c e n t r a d a , c o m p l e x a e enérgica; t u d o c o m p o s t o s e -
g u n d o u ma m p l o roteiro q u eabarca t o d o o c o n j u n t o . Esse roteiro
expõe a s t r a m a s p r o l i x a s q u e são e n c e t a d a s p e l o t e m a m o d e r n o d a s
" g r a n d e s c i d a d e s c i v i l i z a d a s " . E s s a e r a s e m dúvida u m a i d e n t i d a d e
temática d e empréstimo, n a m e d i d a e m q u e e l a i m p l i c a v a e m c o n -
c e r t a r u m a i m a g e m p a s t e u r i z a d a d o q u efosse o padrão s u p e r i o r d a
v i d a u r b a n a , a s e r j u d i c i o s a m e n t e i m i t a d o e r e i t e r a d o ad nauseam.
Essa identidade i m p o s t a d a , s e mu msubstrato concreto o u t r o q u e
a s cintilações longínquas d o O c i d e n t e exótico, o p e r a v a c o n t u d o c o -
m o u m s i g n o d e distinção i n d i f e r e n t e a o s s e u s s u p o s t o s v a l o r e s u t i -
litários, e x a t a m e n t e c o m o o c o r r e r a c o m a a d o ç ã o d o a u t o m ó v e l c o -
m o índice conspícuo d a discriminação s o c i a l .
A a r t i f i c i a l i d a d e r e p e n t i n a e s e m raízes d a r i q u e z a c a f e e i r a , g e -
r a n d o u m a metrópole c o m p l e x a d a n o i t e p a r a o d i a , lançou a s i m a -
ginações n u m v a z i o , e m c u j o â m a g o a s p e c t o s f r a g m e n t a d o s d a s o r -
ganizações m e t r o p o l i t a n a s e u r o p e i a s e a m e r i c a n a s a t u a v a m c o m o
c a t a l i s a d o r e s d e u m a v o n t a d e d e s e r , d i a n t e d a q u a l a s condições
l o c a i s s e r i a m s e n t i d a s a n t e s c o m o embaraços d o q u e c o m o a b a s e
e o f i m d e u me m p r e e n d i m e n t o coletivo.
O limiar entre o aprendizado que sepoderia assimilar d a s solu-
ções urbanísticas a d o t a d a s n o s países e u r o p e u s e n o s E s t a d o s U n i -
dos, c o m vistas tanto a oembelezamento d a cidade q u a n t o à m e l h o -
r i a d a s condições d e v i d a d a população, e a s i m p l e s adoção d e m o -
d e l o s s a c r a l i z a d o s p e l o prestígio d i s c r i m i n a n t e d a s o r i g e n s , e r a t ã o
e s t r e i t o q u a n t o o q u e s e p a r a a visão d a observação, a sensação d a
s e n s i b i l i d a d e ; s e n d o p o r o u t r o l a d o tão a m p l o c o m o a distância q u e
mantém p a r a s e m p r e à p a r t e o n u m i n o s o e o c o n t i n g e n t e . C o m o as
condições climáticas e p o p u l a c i o n a i s d e São P a u l o e r a m p e c u l i a r e s
113
e i n d e f i n i d a s , q u a n t o ténue e r a o s e u p a s s a d o , a aplicação s o b r e e l a
d e q u a i s q u e r padrões s u f i c i e n t e m e n t e a b s t r a t o s e d i s c r e p a n t e s , p o r
m a i s i n c o n s i s t e n t e s q u e f o s s e m n a composição d a s s u a s p a r t e s , g a -
r a n t i r i a o d u p l o e f e i t o d e s e j a d o d a singularização d i s t i n t i v a n o âm-
b i t o d a s percepções i n t e r n a s à c i d a d e e d a afiliação c o m d i f e r e n t e s
moldes internacionais ilustres. N ocurso d e desdobramentos esqui-
zogenéticos d e s s e t i p o , q u e p o n t e a v a m p e l a área u r b a n a , f o i q u e P .
s u r p r e e n d e u e expôs o fenómeno n u m d e s e u s m o m e n t o s d e clímax,
p e r m e a n d o s u adenúncia c o m u mm i s t o d e p e r p l e x i d a d e e d e s a l e n t o .
H á c o i s a d e u m mês, d e n u n c i e i d e s s a s c o l u n a s a o s r . p r e f e i t o u m a t e n -
t a d o q u e s e e s t a v a p r a t i c a n d o c o n t r a a c i d a d e : o c o r t e d a s árvores e
a r b u s t o s n a A v e n i d a P a u l i s t a . [ . . . ] O r a , d o m i n g o último, e s t a n d o n a
avenida, l e m b r o u - m e t o r n a r a ver a tal clareira. Entrei n oparque m a s
não c o n s e g u i o q u e p r e t e n d i a : f e c h a n d o a p o n t e d e m a d e i r a q u e Uga
a m a t a d a A v e n i d a Paulista à d a A l a m e d a Santos, havia u m a s traves
c r u z a d a s q u e b a r r a v a m o c a m i n h o . E r a , p o i s , p r o i b i d o p a s s a r - s e além...
V o l t e i , i n t r i g a d o c o m a c o i s a : " E s t a a g o r a ! Q u e d i a b o s e estará f a -
z e n d o d o o u t r o l a d o , q u e a g e n t e não p o s s a v e r ? " M a s s a i n d o d o p a r -
que e t o m a n d o u m a das ruas q u eo ladeiam, tive, logo abaixo, u m a
d e s o l a d o r a s u r p r e s a : o q u e se f i z e r a n o c e n t r o d o p a r q u e , também a l i
s e e s t a v a f a z e n d o e e m m u i t o m a i o r e s c a l a , p o r q u e só f i c a v a m d e pé
m e i a dúzia d e árvores i s o l a d a s . E e r a tão g r a n d e a extensão d a n i f i c a -
da pelo m a c h a d o e pela foice dos malfeitores d a Prefeitura, que voltei
i n d i g n a d o , c o m o i n d i g n a d o t a m b é m voltará q u e m s e d e r a o t r a b a l h o
d e lá i r . . . P o i s então e r a lá possível u m a c o i s a a s s i m ? P a r a q u e s e c o r -
t a r a m árvores e a r b u s t o s n o lindíssimo b o s q u e , único v e r d a d e i r a m e n -
t e rústico d a c i d a d e ? Será p a r a alindá-lo t r a n s f o r m a n d o - o n u m j a r -
d i m inglês? M a s a P r e f e i t u r a e s q u e c e q u e é e s t r a g a r o p a r q u e t u d o q u a n -
t o s e f i z e r p a r a aformoseá-Io d e s s a f o r m a . [ . . . ] D e q u e m terá s i d o e s s a
i d e i a e x t r a v a g a n t e d e se f a z e r u m a " l i m p a " n a m a t a , d e i x a n d o o chão
a r e a d i n h o e a s árvores d e s p i d a s d e cipós e p a r a s i t a s ? P o r m i m s o u a i n d a
l e v a d o a c r e r q u e o s r . p r e f e i t o não t e m p l e n o c o n h e c i m e n t o d o a t e n -
t a d o d e l e s a - n a t u r e z a q u e s e está p e r p e t r a n d o n o B o s q u e d a A v e n i d a .
Dê-se a o t r a b a l h o d e lá i r , h o j e o u a m a n h ã , e e s t o u c e r t o q u e S u a E x -
celência ficará t r i s t e e i n d i g n a d o . O u então S u a Excelência não t e m
a l m a sensível à b e l e z a d e u m a m a t a b r a s i l e i r a — e q u e m a t a ! , o m a i s
l i n d o e encantador trecho de floresta q u e j a m a i s u m a grande cidade
teve a f o r t u n a d e possuir e conservar.^
L á s e i a a ú h i m a reminiscência d a f l o r e s t a t r o p i c a l q u e f a s c i n a -
r a e t r a n s t o r n a r a o s jesuítas. E r a b e m e m b l e m á t i c a , aliás, e s s a últi-
m a porção r e m a n e s c e n t e d a M a t a Atlântica, a s s e n t a d a n o t o p o d a
c o l i n a m a i s a l t a e m a i s visível d a c i d a d e , c o m o u m a g u i r l a n d a s e l v a -
114
g e m q u e l h e c o r o a s s e a f i s i o n o m i a b i z a r r a , e v o c a n d o s u a única h e -
rança t r a d i c i o n a l , o s e u d e s t i n o c o n j u g a d o c o m o d a n a t u r e z a e x u -
b e r a n t e e s p r a i a d a a o s s e u s pés. E r a , p o i s , sintomático e r e v e l a d o r
q u e a c i d a d e p e r d e s s e a s u a auréola n o u m b r a l d a s u a e n t r a d a p a r a
a m o d e r n i d a d e . P . não d i s s e t u d o o q u e s a b i a n e s s a crônica-denúncia,
m a s s u a s insinuações e r a m u m a l e r t a tão s e g u r o q u a n t o o s o p r o d e
u m a p i t o , s o b r e o q u a n t o o s próprios l e i t o r e s já e s t a v a m i n f o r m a -
d o s a r e s p e i t o d o q u e se p a s s a v a a l i , c o m o e p o r quê. A o s p o u c o s ,
c o m o u m a a g u l h a mecânica impassível, e l e i r i a f o r n e c e n d o m a i s i n -
formações d e c i s i v a s e m a r t i g o s p o s t e r i o r e s . ^ ^ O p r o j e t o d e d e s b a s -
t a r o b o s q u e t r o p i c a l d a A v e n i d a P a u l i s t a , p a r a transformá-lo n u m
j a r d i m g r a m a d o e b e m - c o m p o r t a d o , e r a d o a r q u i t e t o inglês B a r r y
P a r k e r , e m p r e g a d o d o g i g a n t e s c o holding i n t e r n a c i o n a l C i t y o f S ã o
P a u l o I m p r o v e m e n t s a n d F r e e h o l d L a n d C o . , responsável p e l o e m -
p r e e n d i m e n t o imobiliário d a s c i d a d e s - j a r d i n s , adulteração c o m e r -
c i a l d o m o d e l o urbanístico o r i g i n a l e revolucionário d e Ebenézer H o -
w a r d n a I n g l a t e r r a . ^ T a n t o p o r q u e a f l o r e s t a t r o p i c a l não h a r m o -
n i z a v a c o m o u r b a n i s m o britânico, q u a n t o p o r q u e a m a t a v i r g e m
i m p e d i a a visão p a n o r â m i c a p a r a a p r o m o ç ã o d a s v e n d a s e i n c r e -
m e n t o d o v a l o r especulativo d o q u ea C o m p a n h i a a n u n c i a v a c o m o
o p r i m e i r o b a i r r o m o d e r n o d e São P a u l o — i n i c i a d o c o m o l o t e a -
m e n t o dá e n c b s t a d o e s p i g ã o d a P a u l i s t a q u e d a v a p a r a o v a l e d o
rio Pinheiros — o Parque d a A v e n i d a foi entregue a Parker para
redecoração, c o m f i n a n c i a m e n t o v u l t o s o d o s c o f r e s m u n i c i p a i s , t e n -
d o s o b s e uc o m a n d o e m p r e g a d o s e e q u i p a m e n t o s d a própria p r e f e i -
t u r a , p a r a d e s m a t a r e c i v i l i z a r a q u e l e l o g r a d o u r o público.
E n q u a n t o o inglês B a r r y P a r k e r m e t a m o r f o s e a v a o P a r q u e d a
A v e n i d a , o s franceses B o u v a r d e Cochet redesenhavam a orla d a co-
l i n a c e n t r a l d a c i d a d e , a p a g a n d o o s úUimos traços o r i g i n a i s a o r e -
d o r d o santuário o n d e o s jesuítas h a v i a m c e l e b r a d o a s u a f u n d a -
ção,-transformando a s ' v e r t e n t e s d o Anhangabaú e o s pântanos d o
Tietê n u m p a n o r a m a cenográfico d o s m a i s e l e g a n t e s , c o m t o q u e s
f i n o s d e décor e u r o p e u p o n t e a d o s d e p a l m e i r a s e v a s t o s t a p e t e s g r a -
m a d o s recortados d e trilhas, passeios e canteiros. O lance final des-
sa r e f o r m a d a p a i s a g e m f o iestabelecido pelo a r q u i t e t o f r a n c o -
argentino Victor Dubugras, ligado a o grupo de urbanistas encabe-
çados p e l a s u m i d a d e i n t e r n a c i o n a l , o a r q u i t e t o B o u v a r d . E l e f o i
encarregado d e desmatar, desarborizar, ajardinar e redecorar o L a r g o
d a Memória e s e u t r a d i c i o n a l o b e l i s c o , n a e m b o c a d u r a d o V a l e d o
Anhangabaú. P . m a i s u m a vez r e a g i u q u a s e q u e à b e i r a d e u m c o -
l a p s o n e r v o s o n a s u a c o l u n a diária.
115
 H á m a i s d e u m século q u e s e e r g u e u o O b e l i s c o d a Memória. É, c o m o se a d e m a i s a imposição l e g a l d e q u e q u a l q u e r construção n a q u e l e
se vê, u m m o n u m e m o venerável, o m a i s a n t i g o d a c i d a d e , e q u e só p e r í m e t r o d e v e s s e n e c e s s a r i a m e n t e c o m p o r t a r d e três p a v i m e n t o s p a -
p o r i s s o já m e r e c i a u m a consideração d o s p o d e r e s m u n i c i p a i s . São P a u - r a c i m a . O q u e a g r a v a r i a d e s a s t r o s a m e n t e o j á drástico p r o b l e m a
l o n ã o t e m o u t r o m o n u m e n t o centenário. [ . . . ] o s s e u s 1 0 4 a n o s j á s e - d a c e n t r a l i z a ç ã o d o s serviços e e s t r a n g u l a m e n t o d o t r á f e g o . I n c i d e n t e
r i a m b a s t a n t e a resguardá-lo d a s violências e a t e n t a d o s . E r a a o m e n o s f u n e s t o q u e l e v o u o então v e r e a d o r Alcântara M a c h a d o , u md o s res-
i s s o q u e t o d a g e n t e s u p u n h a e d e s e j a v a : q u e ninguém t o c a s s e n o m o - ponsáveis p e l a l e i d a verticalização, a l a s t i m a r t a r d i a m e n t e s u a d e -
n u m e n t o , n e m n o b e l o c o n j u n t o d e árvores anciãs q u e c r e s c e r a m e f r o n - cisão: " Q u e i m p o r t a q u e São P a u l o n ã o r e p r o d u z a , n e s s e p o n t o ,
d e j a r a m e m t o r n o d e l e . . . S a n t a s i m p l i c i d a d e d e t o d o s nós! H o u v t q u e m a fisionomia d o scentros europeus?"."^' E m b o r a reconhecesse o s e u
e n t e n d e s s e u m d i a remoçar o v e l h o j a r d i m d o m o n u m e n t o , e , d e c e r t o ,
equívoco e m u r b a n i s m o , o v e r e a d o r t o r n o u a e r r a r , d e s t a v e z e m
a conselho de a l g u m especialista e u r o p e u e mparques, m a n d o u abater
geografia, confundindo, significativamente, o continente de origem
várias árvores, d e s b a s t a n d o e d e s n u d a n d o l a m e n t a v e l m e n t e u m a b o a
d o s v e n e r a d o s arranha-céus.
p a r t e d o p e q u e n o e velhíssimo p a r q u e . A s a n h a r e f o r m a d o r a n e m r e s -
p e i t o u m e s m o u m a admirável f i g u e i r a - m a t a - p a u , q u e o s m a i s o p u l e n - Equívocos à p a r t e , o e f e i t o cenográfico d o c o n j u n t o a t i n g i u u m a
tos parques d o m u n d o decerto n o s invejariam...^^ notável eficácia e s p a c i a l e plástica. O t e s t e m u n h o d o s e s t r a n g e i r o s
q u e v i e r a m p o r essa época v i s i t a r a c i d a d e f e n o m e n a l r e v e l a v a u m
A s s i m , c o m a Várzea d o C a r m o , t r a n s f o r m a d a n o P a r q u e D .
m i s t o d e estupefação e f a m i l i a r i d a d e . Já p o u c o a n t e s d a G u e r r a , o
P e d r o I I , ligando-se a o V a l e d o Anhangabaú, t o r n a d o P a r q u e d o
e x - p r e s i d e n t e d o C o n s e l h o francês, G e o r g e s C l e m e n c e a u , r e g i s t r a -
Anhangabaú, o q u a l p o r s u a v e zse a r t i c u l a v a c o m o V a l e d o P i -
r i a e m s u a crónica d e v i a g e m : " A c i d a d e d e São P a u l o é tão c u r i o -
ques, r e f o r m a d o n oP a r q u e d oO b e l i s c o , a c o l i n a c e n t r a l f i c a v a cir-
samente francesa e mcertos aspectos que, a o l o n g o d etoda u m a se-
c u n d a d a d e u m a o r n a m e n t a ç ã o paisagística e u r o p e i a , a t r a v e s s a d a
m a n a , e u n ã o m e r e c o r d o d e t e r t i d o a sensação d e q u e e u e s t a v a
p e l a s i m p r e s s i o n a n t e s e s t r u t u r a s metálicas d o s v i a d u t o s d o C h á e
n o e x t e r i o r " . P o u c o mais tarde, n a ssuas notas, o escritor P a u l
d e S a n t a Efigênia i m p o r t a d a s d i r e t o d a A l e m a n h a , e c i n g i d a p e l a
A d a m f i x a r i a u m a impressão d i f e r e n t e . O b s e r v a n d o a s fímbrias d a
a r q u i t e t u r a neo-renascença d o T e a t r o M u n i c i p a l , e m u l o fáustico d o
c i d a d e , " ò s ácliveff-do B e x i g a e s c a v a d o s p e l o s c u r s o s d o P i q u e s e d o
Ópera d e P a r i s , a a s s i n a l a r u m a súbita reformulação d o p a n o r a m a
S a r a c u r a o u a s a m p l a s planícies d o T a m a n d u a t e í , e l e a n o t o u : " E x i s t e
r e f l e t i n d o mudança r a d i c a l n ai d e n t i d a d e d ac a p i t a l . N o s l i m i t e s desse
e m São P a u l o , n o s a l t o s e b a i x o s d a s s u a s c o l i n a s , u m a c i d a d e l u m i -
c o m p l e x o paisagístico f i g u r a v a m , a o n o r t e , a Estação d a L u z , t o -
nosa, c o m telhados v e r m e l h o s sobrepostos, n a sencostas a m o n t o a -
t a l m e n t e i m p o r t a d a d a I n g l a t e r r a até o s últimos t i j o l o s e o s m e n o -
d a s a o f u n d o . P e l a s c o r e s d o m e s m o s o l e p e l o traçado d a s r u a s ,
res p a r a f u s o s , s e g u n d o o s m o d e l o s d a Estação d e P a d d i n g t o n e d a
n o s vêm lembranças d e V e r o n a e d e o u t r a s c i d a d e s i t a l i a n a s " . Já
t o r r e d o B i g B e n . A o s u l i a s e d e f i n i n d o o d e s e n h o gótico d a c a t e -
n o Triângulo, s u a percepção f o i o u t r a . " O c e n t r o d a c i d a d e e s u a s
d r a l d a Sé, t a l h a d a s o b o f i g u r i n o d a m a t r i z m e d i e v a l d e Colónia.
r u a s e s t r e i t a s , q u e o s b o n d e s e automóveis a t r a v a n c a m , e s u a s p e -
A o e s t e , d o m i n a n d o a Praça d a República, s e d e s t a c a v a a i m p o n e n -
q u e n a s casas, a s l o j a s a b e r t a s , o s c l a r o s armazéns, s u g e r e m c e r t o s
t e E s c o l a N o r m a l , d e f e i t i o eclético, r e c a i n d o s o b r e o neoclássico
a s p e c t o s d e L o n d r e s . " " ^ ^ Anotação q u e c o i n c i d i r i a c o m a evocação
d o S e g u n d o Império francês. A l e s t e , m a i s p a r a o f i n a l d a década,
poética d e Mário d e A n d r a d e e m 1 9 2 1 , " M i n h a L o n d r e s d a s n e b l i -
se e r g u e r i a n o t o p o d a c o l i n a histórica o c o l o s s a l prédio d o a r q u i t e -
n a s f r i a s " . P a r a Lévi-Strauss, q u e v i s i t a r a a c i d a d e e m m e a d o s d a
t o i t a l i a n o G i u s e p p e M a r t i n e l l i , u m b l o c o maciço d e c o n c r e t o a r -
década d e 3 0 , São P a u l o " e r a u m a c i d a d e s e l v a g e m , c o m o são t o -
m a d o , q u ec o m seus v i n t e a n d a r e s se a r r o j a v a c o m o " o m a i s a l t o
d a s a s c i d a d e s a m e r i c a n a s . [...] São P a u l o e r a , então, indómita".''^
d a América d o Sul".™
A síntese d e s s a s sensações d i s c r e p a n t e s s e f a r i a n o s v e r s o s m e m o r á -
Esse quadro, a o m e s m o t e m p o deslumbrante e desorientador, veis c o m q u eBlaise C e n d r a r s saudaria s u ac h e g a d a e p r i m e i r o c o n -
f o i c o m p l e t a d o pelo e n t u s i a s m o " y a n k e e " d a Câmara M u n i c i p a l , tato c o m a cidade e m 1924,
fazendo votar, contra qualquer b o m senso, o p r o j e t o q u e i m p u n h a
a r t i f i c i a l m e n t e a f a n t a s i a m o d e r n a d a verticalização a o c e n t r o d a Me imagino na estação de Nice
cidade. F o i assim obstada a abertura d e novas ruas, introduzindo- Ou desembarcando em Charing-Cross em LondresJ^

116 117
 E s s a p o l i f o n i a arquitetônica e urbanística, q u e f a z i a d e São P a u -
l o u m a c i d a d e mirífica, m e i o exótica m e i o íntima, híbrida d o c o n -
vencional c o m o inusitado, d o impostado c o m o imprevisto, fora
a n t e s o p r o d u t o d e múltiplas i n i c i a t i v a s i n c o n g r u e n t e s q u e d e a l g u -
m a ação orgânica o u s e q u e r m e d i a d o r a . D e s d e a abolição d a e s c r a -
v a t u r a e m 1 8 8 8 , s i m u l t a n e a m e n t e a r r u i n a n d o inúmeras f a z e n d a s e m
regiões d e a g r i c u l t u r a m a i s a n t i g a e h b e r a n d o v u l t o s o s c a p i t a i s a s -
s o c i a d o s a o tráfico, c r i o u - s e u m f l u x o c o n s i s t e n t e d e proprietários
e t r a b a l h a d o r e s p r o c u r a n d o f i x a r residência n a c a p i t a l p a u l i s t a . ' ^ ' ^ A s
g r a v e s convulsões e c o n ó m i c a s q u e m a r c a r a m o ihício d o r e g i m e r e -
p u b l i c a n o , d e p a r c o m a c r i s e a g u d a d e preços e x t e r n o s e i n t e r n o s
d o café d e 1 8 9 7 a 1 9 1 1 , f o r ç a r a m n o s e n t i d o d a paralisação d o p l a n t i o
e diversificação d o s i n v e s t i m e n t o s . ^ ^ O índice demográfico d a c i d a -
d e e m 1 9 0 8 a t i n g e u m a t a x a d e 4X5,8^0 d e c r e s c i m e n t o e m r e l a ç ã o
a 1 8 9 0 , o u s e j a , e q u i v a l e n t e a 22^0 a o a n o , c o n t r a a m é d i a d e 1 1 %
n o s d e z o i t o a n o s a n t e r i o r e s . ' ' ^ D e s e n c a d e i a m - s e a s s i m a s séries d e
" d e r r u b a d a s " , c e l e b r i z a d a s p e l a s c r ó n i c a s , t a n t o d o s a n t i g o s edifí-
c i o s públicos, q u a n t o d a s v e l h a s edificações r e l i g i o s a s c o l o n i a i s , f e i t a s
d e m a t e r i a i s p o u c o duráveis e j á e m lastimáveis condições, q u a n t o
a i n d a d o s a n t i g o s casarões e t a p e r a s r ú s t i c a s . O s ú l t i m o s vestígios
d a a r q u i t e t u r a p a u l i s t a d o s períodos c o l o n i a l e monárquico e r a m d e -
m o l i d o s às p r e s s a s , p a r a d a r l u g a r a u m a c i d a d e d e p e r f i l n i t i d a m e n t e
d i v e r s o . O s r e s u l t a d o s d o n o v o i m p u l s o edificatório p o d e r i a m s e r
p r e v i s t o s p e l a característica d o s h o m e n s q u e o i m p l e m e n t a v a m . A
predominância d o s i t a l i a n o s e r a maciça, c o m p o n d o "três q u a r t a s
partes d o s pedreiros e quase a totalidade d o s mestres-de-obra e m
a t i v i d a d e n a c i d a d e " . ^ ' O s r e s t a n t e s s e r i a m alemães, espanhóis e
portugueses.
U m v i a j a n t e português, v i s i t a n d o a c i d a d e e m f i n s d a p r i m e i r a
década d e s t e século, d e s c r e v e r i a d o s e g u i n t e m o d o o s e u a s p e c t o a r -
quitetônico g e r a l :
H a v i a desde a pureza de u m a f r o n t a r i a fria à n o r m a n d a , dos arabes-
c o s s i n u o s o s e ilógicos d a a r t e - n o v a , até a o r i s o n h o cottage inglês, d o
p o n t i a g u d o d o s chalés d a n e v e a o s a l p e n d r a d o s espanhóis, às cúpulas
e m i n a r e t e s o r i e n t a i s , às v a r a n d a s c o b e r t a s d o n o r t e , às v i l a s g r a c i o s a s
d a Itália, às g a l e r i a s d o R e n a s c i m e n t o , a o e x a g e r o d o B a r r o c o o u d o
p l a t e r e s c o , a o rústico suíço, até à horrível s i m e t r i a e s b u r a c a d a d o e s t i -
lo pombalino, pesado e bruto.^^
F e r n a n d o A z e v e d o f a l a r i a e m "época d a cópia s e r v i l d e e s t i l o s
exóticos e m o d e l o s históricos". M o n t e i r o L o b a t o s a t i r i z a v a o " C a r -
n a v a l arquitetônico".^3 Alcântara M a c h a d o s e d i v e r t i a a v a l e r :
118
São P a u l o [ . . . ] é u m a b a t i d a arquitetônica. T e m t o d o s o s e s t i l o s p o s -
síveis e impossíveis. E t o d o s e l e s b r i g a n d o c o m o a m b i e n t e . Q u e r o s
edifícios públicos q u e r a s c a s a s p a r t i c u l a r e s a b e r r a m d o s o l o e m q u e
se l e v a n t a m .
E o escritor a p o n t a q u a l lhe parece sero m o t i v o p r i n c i p a l dessa aber-
ração.
A preocupação d e g o v e r n a n t e s e g o v e r n a d o s é d e r r u b a r p a r a f a z e r
m a i o r e m a i s b o n i t o . O q u e é m u i t o louvável s e m dúvida. A questão
porém é q u e e s s e b o n i t o é s e m p r e i m p o r t a d o . Daí o d e s a s t r e estético-
u r b a n o . L e m b r a m - s e d e c o n s t r u i r u m a c a t e d r a l . Está c e r t o . M a s a q u e m
e n c o m e n d a m o p r o j e t o ? A u m a l e m ã o . E o alemão j á s a b e s u r g e c o m
u m a c o i s a e m e s t i l o gótico. E e s s a c o i s a é a c e i t a e está s e n d o f e i t a .
P a r a Alcântara M a c h a d o esse fenómeno u r b a n o é a p e n a s a p o n -
t a visível d e u m a m a t r i z c u l t u r a l m a i s p r o f u n d a . " O m a l é m u i t o
m a i s e x t e n s o d o q u e se p o d e i m a g i n a r [...] e t e m o r i g e m n a o b s e s -
são r a c i a l d o q u e é e s t r a n g e i r o . " E a r r e m a t a o raciocínio c o m u m a
i m a g e m c o r u s c a n t e : " A c i d a d e t e m a s s i m u m a r z i n h o d e exposição
internacional".^'^
• A c a s o o u não, o f a t o é q u ea e m p r e s a d e u r b a n i s m o comanda-
d a p e l o a r q u i t e t o B o u v a r d , responsável p e l o r e p l a n e j a m e n t o urba-
nístico d ò c e n l r o d e São P a u l o , e r a e s p e c i a l i z a d a n a prestação d e s e r -
viços d e a r q u i t e t u r a e u r b a n i z a ç ã o p a r a a s g r a n d e s exposições i n t e r -
n a c i o n a i s q u e c a t i v a v a m a imaginação d a s populações e u r o p e i a s n o
período d a v i r a d a d o século. B o u v a r d a t u a r a n a s m o n u m e n t a i s f e i -
ras d e P a r i s d e 1 8 7 8 e 1 8 8 9 — esta c e l e b r i z a d a p e l a construção d a
T o r r e E i f f e l —, b e m c o m o n a a l a r d e a n t e Exposição I n t e r n a c i o n a l
d e 1 9 0 0 . F o r a d e P a r i s , e l e v e n d e u s e u s serviços p a r a a s exposições
e feiras internacionais de Viena, e m 1873, Londres, e m 1874, B r u x e -
l a s , e m 1 8 7 6 , e Amsterdã, e m 1 8 8 1 , além d e p a r t i c i p a r d a s f e i r a s d e
Lièèe e Milão. E m 1 8 7 9 , e l e t r a b a l h o u c o m o a d m i n i s t r a d o r d o S e r -
viço d e A r q u i t e t u r a , P a s s e i o s e J a r d i n s d e P a r i s , u s a n d o d e s s e p r e s -
tígio e experiência p a r a , m a i s t a r d e , j á n o n o v o século, o f e r e c e r s e u s
préstimos p a r a r e s o l v e r a c r i s e d e metropolização a c e l e r a d a d e c i d a -
des c o m o B u e n o s A i r e s , o n d e c r i o u o p l a n o d a s avenidas radiais, e
São P a u l o . S e uf o r t e , c o n t u d o , e r a o p l a n e j a m e n t o d o s e f e i t o s c e -
nográficos s o b r e multidões heteróclitas e m agitação permanente.
E m São P a u l o , e l e a j u s t a r i a s e u s p r o j e t o s urbanísticos à pressão d o s
especuladores imobiliários, n o m e s m o s e n t i d o e m q u e B a r r y P a r k e r
e n q u a d r o u s u a técnica e n t r e a s d i r e t r i z e s d a a u t o r i d a d e pública e a s
injunções d o m e r c a d o . S u a ação p r o e m i n e n t e se c o m p l e t a v a com
119
a d a q u e l e s múltiplos " a r q u i t e t o s alemães e i t a l i a n o s , d e n t r e o s q u a i s
se e n c o n t r a m sábios d i g n o s d e l o u v o r e s " , s e g u n d o u m i l u s t r e v i s i -
t a n t e e s t r a n g e i r o , " a p e s a r d e l h e s f a l t a r t o t a l m e n t e a inspiração l o -
c a l e e m b o r a [ . . . ] n ã o s e a p r o v e i t e n e n h u m e l e m e n t o d e c o r a t i v o útil,
d o magnífico a m b i e n t e n a t u r a l e e s p e c i a l m e n t e d a magnífica v e g e -
tação".^^
Foi Blaise Cendrars, u m a vez mais, q u e m articulou e m imagens,
q u e são c o m o projéteis d e u m c o t i d i a n o r e v o U o , o a m á l g a m a d i s p a -
r a t a d o d e m o d e l o s , referências, f a n t a s i a s , i n t e r e ^ e s , a n s i e d a d e s e
imponderabilidades q u etranspareciam malcosidos e aberrantes n o
aspecto dessemelhante d a cidade.
[...] Nenhuma tradição aqui
Só contam esse apetite furioso [...]
essa especulação que faz construir dez casas por hora
de todos os estilos ridículos grotescos belos grandes
pequenos norte sul egípcio yankee cubista [...].^^
E s s e c a o s d e c u p i d e z e angústia, a c e n t u a d o p e l o s v e r s o s d e s i -
g u a i s , d e s p r o p o r c i o n a i s , s e m pontuação n e m r i m a , reforça, contí-
n u a e cumulativamente pela falta de estabilidade e arejo d a sua n a -
t u r e z a d e s e q u i l i b r a d a , a s próprias vibrações e m o c i o n a i s d e q u e e l e
é c o m p o s t o . U m a d a s p r i m e i r a s e poucas figuras q u et e n t o u desar-
m a r e s s e m o t o - c o n t í n u o d e p r o b l e m a s e aflições q u e s e m u l t i p h c a m
f o i a p e s s o a i l u s t r e d o c o n s e l h e i r o António P r a d o , n o seu l o n g o p e -
ríodo c o m o p r e f e h o d e São P a u l o , d e 1 8 9 9 a 1 9 1 0 . E x - m o n a r q u i s t a ,
s e m paixões r e p u b l i c a n a s , q u a n d o n ã o d e s a f e t o m e s m o d e f i g u r a s
d o m i n a n t e s d a política p a u l i s t a , s u a administração t e n t o u e n g e n d r a r
p e l a p r i m e i r a v e z a concepção d a c i d a d e c o m o u m t o d o orgânico,
devendo produzir u m efeito geral de i n c r e m e n t o d a q u a h d a d e dev i -
d a e s e já n ã o d e d e s e n v o l v i m e n t o d e u m a consciência d e c i d a d a n i a ,
p e l o m e n o s esse s e u r e q u i s i t o básico, a consciência d e c i v i l i d a d e e
urbanidade. D o t a d o de u m a f o r t u n a prodigiosa, procedente de suas
f a z e n d a s d e café, d e hábitos e imaginação c o s m o p o l i t a s , o c o n s e -
l h e i r o p r o c u r o u d a r à s u a administração o a l c a n c e demiúrgico d a
o b r a d e u m herói c i v i l i z a d o r .
Foi eleq u e m introduziu aquele "respeito quase religioso q u e
a P r e f e i t u r a v o t a às á r v o r e s " , d e q u e f a l a v a P . e m u m a d e s u a s cró-
n i c a s , a o r e f o r m a r c o m p l e t a m e n t e a arborização e o a j a r d i n a m e n t o
d a s praças d a República e d a L u z e d e s e n c a d e a r a arborização e m
m a s s a d a s r u a s e d e m a i s p r a ç a s d a c i d a d e , c o m espécies a s m a i s v a -
120
riadas, t a n t o nacionais q u a n t o estrangeiras.^^ Parte d a s suas inten-
ções f i c a v a c l a r a p e l o s e u e m p e n h o p a r a l e l o e m m o d e r n i z a r e o r g a -
n i z a r a I n s p e t o r i a Sanitária e o s serviços básicos d e h i g i e n e , d i v i d i n -
d o p a r a i s s o a área u r b a n a e m t r i n t a d i s t r i t o s . E l e t a m b é m d e s a f o -
g o u o Triângulo, a m p l i a n d o o L a r g o d o Rosário, r e c r i s m a d o d e P r a -
ça Antônio P r a d o , q u e se t o r n o u o p o n t o d e confluência e r e d i s t r i -
buição d e t o d o o tráfego d e veículos e p e d e s t r e s d o c e n t r o . E m s u a
gestão f o i c o n c e b i d a a ligação d o Triângulo c o m o Pátio d o Colé-
g i o , p o r m e i o d e u m v i a d u t o a s e r c r i a d o c o m o extensão d a R u a
B o a V i s t a , e f o i i n i c i a d a a r e f o r m a e a l a r g a m e n t o d a P r a ç a d a Sé,
d a n d o e n s e j o a q u e m a i s t a r d e f o s s e a d o t a d a a solução p e r i m e t r a l
d o trânsito d o c e n t r o ( B o a V i s t a , Antônio P r a d o , L i b e r o Badaró,
São F r a n c i s c o , B e n j a m i n C o n s t a n t , P r a ç a d a Sé, Pátio d o Colégio,
B o a V i s t a ) . E l e c o n c e b e u u m p r o j e t o d e e x t r e m a elegância p a r a a
criação d o c o m p l e x o paisagístico P a r q u e d o C a r m o — P a r q u e
Anhangabaú, c e r c a n d o t o d o o c e n t r o d e j a r d i n s , p l a n o q u e seria d e -
pois adaptado e restringido, segundo as demandas d o s especulado-
r e s imobiliários, p e l o p r o j e t o B o u v a r d . E l e c r i a r i a a i n d a a Praça d o
P a t r i a r c a , n a conexão e n t r e a s r u a s São B e n t o e D i r e i t a , n a e m b o -
c a d u r a d o V i a d u t o d o C h á , e r g u e r i a o V i a d u t o S a n t a Efigênia, c o m
s e u s 2 5 0 m s u s t e n t a d o s s o b r e três a r c o s , a t r a v e s s a n d o o e x t r e m o
o p o s t o d o V a l e d o A n h a n g a b a ú , f a c i l i t a n d o o a c e s s o d o Brás a o c e n -
t r o , e e n c o m e n d a r i a o panorâmico j a r d i m l e n o t r i a n o d o palácio d o
M u s e u d o Ipiranga, logo t o r n a d o u md o s passeios preferidos pela
população d e São P a u l o . ^
S u a atuação c o m o r e f o r m a d o r u r b a n o , c o n t u d o , não p o d e r i a
s e r d i s s o c i a d a d e s u a a t i t u d e p e d a g ó g i c a d e s e e x p o r , a sós o u c o m
m e m b r o s d a s u a família, n o s m a i s v a r i a d o s espaços públicos, a s s i -
n a l a n d o c o m o se f o s s e m m o d e l o s v i v o s , a m a n e i r a a d e q u a d a d e se
f r u i r c o m elegância e c i v i l i d a d e a m b i e n t e s , l o g r a d o u r o s e serviços
d e u m a g r a n d e c i d a d e . T a i s apresentações o u d e s f i l e s constituíam
s e m p r e u m r i t u a l d e e f e i t o mesmérico s o b r e a população, c o n f o r m e
n o s r e l a t a u m c r o n i s t a , tão notáveis e r a m o prestígio, o p o d e r p e s -
s o a l e a força simbólica c o n c e n t r a d o s n a f i g u r a d o C o n s e l h e i r o . ^ '
S u a r e s p e i t a b i l i d a d e e r a t a l q u e , d e n t r o d o país, só p o d e r i a s e r c o m -
p a r a d a à d e d o i s o u t r o s e x - m o n a r q u i s t a s , o barão d o R i o B r a n c o
e R u i B a r b o s a , s e r v i n d o a retidão d a s u a p e s s o a s e m p r e c o m o u m
látego p a r a q u e m q u i s e s s e f u s t i g a r o o p o r t u n i s m o , q u a n d o já n ã o
a v e n a l i d a d e d o s líderes r e p u b h c a n o s . T a n t o q u e , q u a n d o i r r o m p e u
e m São P a u l o a Revolução d e 1 9 2 4 , n a iminência d e s e f o r m a r u m
g o v e r n o provisório, não o c o r r e u , f o s s e a o s m i l i t a r e s i n s u r g e n t e s , f o s -
121
se à liderança c i v i l o u à população a m o t i n a d a , o u t r o n o m e para
V e r e a d o r e s r e v e r t e u a situação, d a n d o p a r e c e r favorável e r e c o n f i r -
a s s u m i - l o q u enão o d o C o n s e l h e i r o . ^ ^
m a n d o o monopólio. A r e s p o s t a f o i u m m o t i m p o p u l a r d e g r a n d e s
E l e d i s p u n h a d e s s e s e u prestígio t a n t o p a r a i n t r o d u z i r n o v o s e s -
proporções, c o m a ocupação d o Triângulo, Praça Antônio P r a d o
p o r t e s n a c i d a d e , p o r e x e m p l o m e d i a n t e a criação d o p r i m e i r o veló-
e b o a p a r t e d a A v e n i d a São João p e l o s e s t u d a n t e s e p o p u l a r e s , f o r -
d r o m o e mt e r r e n o d e s u a propriedade, c o m o p a r a ilustrar o gosto
ç a n d o a o c u p a ç ã o m i l i t a r d o s escritórios d a L i g h t e d o j o r n a l a e l a
e a a t i t u d e a p r o p r i a d o s p a r a a fruição d a música e x e c u t a d a p o r b a n -
f i l i a d o , A Gazeta. N a s e q u ê n c i a d o s e v e n t o s , a p o p u l a ç ã o e n f r e n -
d a s e p e q u e n a s o r q u e s t r a s n o s c o r e t o s d a s praças q u e e l e r e f o r m a -
t o u o s soldados a pedras, paus, frutas, legumes e b o m b a s artesa-
r a , o u p a r a i n s t r u i r s o b r e a s d e l í c i a s d a s promenades pelos parques,
n a i s , s o f r e n d o c a r g a s v i o l e n t a s , e s p a n c a m e n t o b r u t a l e prisões i n -
a o r e d o r d o s l a g o s , p o re n t r e a vegetação d e n s a , j a r d i n s e s o m b r a s
d i s c r i m i n a d a s . N o c a l o r d a r e f r e g a , o refrão d o s a m o t i n a d o s e r a
r e f r e s c a n t e s . ^ ^ A f i n a l , i n v e s t i r n a criação d e u m a u r b e m o d e r n a d e
" A b a i x o a L i g h t ! A b a i x o o monopólio! V i v a Antônio P r a d o ! " .
padrão e u r o p e u i m p l i c a r i a também, c o m o c o n t r a p a r t i d a , i n s t i g a r a
O p r e f e i t o s e t o r n a r a u m símbolo c o n t r a a barbárie e s p e c u l a t i v a q u e
população a ocupá-la c o n v e n i e n t e m e n t e e a p r e n d e r a d e s f r u t a r d e
renegava a o m e s m o t e m p o a cidade e a cidadania.
s u a s a m e n i d a d e s , f a z e n d o c a d a u m d a c i d a d e u m a extensão s i g n i f i -
M a s a vitória f i n a l f o i d a L i g h t e d a especulação. S e a c r i s e d e
c a t i v a d e s u a v i d a . C o m o decorrência d e s s a s u aa t i t u d e , o C o n s e -
1 8 8 8 - 1 9 1 1 já h a v i a i n d u z i d o à prática d o d e s v i o d e c a p i t a i s d a e c o -
l h e i r o f o i o responsável, a d e m a i s , p e l o p r i m e i r o g r a n d e escândalo
n o m i a c a f e e i r a p a r a a especulação c o m t e r r e n o s u r b a n o s , c o m o f o r -
público c o n t r a a f e b r e e s p e c u l a t i v a q u e t o m a r a São P a u l o d e a s s a l -
m a d e c o m p e n s a r a s oscilações d o preço d o café, a i r r u p ç ã o d a G r a n -
t o , desde p e l o m e n o s o s e ug r a n d e s u r t o d e c r e s c i m e n t o a p a r t i r d a
de G u e r r a levaria essa praxe a n o v o s patamares. D e s d e a crise d a A b o -
última década d o século x i x .
lição e o a d v e n t o d a República, s e t o r n a r a u m a prática c o r r e n t e o s
O mais danoso agente especulador, q u e c o m p r o m e t e u definiti-
d o n o s d e t e r r e n o s e chácaras n a área u r b a n a l o t e a r e m , a r r u a r e m o u
v a m e n t e o f u t u r o d a c i d a d e , forçando s e u d e s e n v o l v i m e n t o e m b o l -
v e n d e r e m p a r a esse f i m s u a s p r o p r i e d a d e s . A s s i m f o r a m se a d e n s a n -
sões d e s c o n e x o s , espaços d i s c r i m i n a d o s , f l u x o s s a t u r a d o s e u m p a -
d o b a i r r o s já.existentes, s e f o r m a n d o o u t r o s n o v o s e a p a r e c e n d o n ú -
v o r o s o cemitério e s p a r r a m a d o d e p o s t e s e f e i x e s d e f i o s p e n d u r a d o s
c l e o s c o l o n i a i s m a i s d i s t a n t e s — S a n t a n a , Glória, São B e r n a r d o e
c o m o v a r a i s p o r t o d a a área u r b a n a , f o i o monopólio d o f o r n e c i -
São C a e t a n o . P e l a s várzeas, a c o m p a n h a n d o a s l i n h a s d e t r e n s , s e i n s -
m e n t o d e gás, e l e t r i c i d a d e , t r a n s p o r t e s u r b a n o s , t e l e f o n e s e m a i s t a r -
t a l a v a m a s indústrias e s e f o r m a v a m o s b a i r r o s operários ~ Brás,
d e d e água, o b t i d o p e l a L i g h t a n d P o w e r , u m a e m p r e s a d e c a p i t a l
P a r i , Moóca, I p i r a n g a , B o m R e t i r o , B a r r a F u n d a , Água B r a n c a . Pelas
misto canadense-anglo-americano.^'* E s s e monopólio simultâneo
c o l i n a s a d j a c e n t e s a o c e n t r o se e x p a n d i a m o s b a i r r o s d e classe mé-
d o s serviços m a i s e s s e n c i a i s d o t a r a a e m p r e s a d o p o d e r d e m a n i p u -
d i a , e n t r e m e a d o s d e bolsÕes m a i s a n t i g o s d e c a s e b r e s e g e n t e h u m i l -
l a r o m e r c a d o d e valorização d o s o l o u r b a n o , d e forçar associações
d e , e n q u a n t o , e m t o r n o d o e i x o A v e n i d a São João, A v e n i d a Angéli-
c o m particulares e mm a n o b r a s especulativas e eventualmente d e cor-
ca e A v e n i d a P a u l i s t a , se l o c a l i z a v a m o s l o t e a m e n t o s m a i s abasta-
r o m p e r a u t o r i d a d e s e i n s t i t u i ç õ e s , c o m o é fácil d e s e i m a g i n a r e e m
d o s , f o r m a n d o b a i r r o ^ p o n t e a d o s d e g r a n d e s s o b r a d o s e mansões,
n e n h u m i n s t a n t e e s c a p o u à percepção d a população o ud a i m p r e n -
c o m o C a m p o s Elísios, H i g i e n ó p o h s e C e r q u e i r a César.
s a d e l i n h a m a i s crítica. O f a t o é q u e , q u a n d o d a r e n o v a ç ã o d o c o n -
A L i g h t , n a t u r a l m e n t e , e r a a peça d e c i s i v a n o m o d o d e e x p a n -
t r a t o m o n o p o l i s t a d a L i g h t e m 1909, o c o n s e l h e i r o Antônio P r a d o
são d a c i d a d e . L o c a l i z a n d o a s p a r a d a s f i n a i s d e s u a s l i n h a s e m p o n -
d e u p a r e c e r contrário e , m e s m o i n c i t a d o p o r g e n e r o s o s u b o r n o , " o
t o s e x t r e m o s e d e população r a r e f e i t a — P e n h a , L a p a , S a n t a n a , I p i -
prefeito despachou a estranha proposta declarando q u en e m a to-
r a n g a , V i l a M a r i a n a , P i n h e i r o s —, e l a g e r o u f l u x o s i r r a d i a d o s d e
m a v a e m consideração".^^
valorização imobiliária q u e , s e g u i n d o a s direções d e s e u s t r i l h o s , s u s -
E s s a decisão f o i f e s t e j a d a c o m o u m a vitória p e l a p o p u l ação ,
c i t a v a m a criação d e l o t e a m e n t o s e m áreas r e m o t a s . E s s a s áreas, a o
o p r i m i d a p e l a especulação d e t e r r e n o s e preços d e aluguéis p r o v o -
o b t e r e m o s serviços básicos d e t r a n s p o r t e , eletrificação e gás, f o r -
c a d a p e l a s m o n o b r a s d a L i g h t , além d a s t a r i f a s e x t o r s i v a s e péssi-
n e c i d o s p e l a própria L i g h t , g e r a v a m z o n a s intermediárias e n t r e e s -
m o s serviços d a s c o m p a n h i a s d e e l e t r i c i d a d e , g á s , b o n d e s e t e l e f o -
ses l o c a i s j á d o t a d o s d e i n f r a - e s t r u t u r a e o c e n t r o d a c i d a d e , t o r n a -
nes.^^ M a s , u m mês d e p o i s , a Comissão d e Justiça d a C â m a r a d o s
d a s a u t o m a t i c a m e n t e s u p e r v a l o r i z a d a s , o q u e e l e v a v a o s preços d o s

122
123
t e r r e n o s e a l u g u é i s e m níveis e x p o n e n c i a i s . O r e s u l t a d o d e s s a p r á t i -
c a sistemática e r a o s u r g i m e n t o d e b a i r r o s i n t e i r o s c o m p l e t a m e n t e
desconectados entre si, u m a heterogeneidade d e arruamentos desen-
c o n t r a d o s , além d a e s c a s s e z drástica d e praças, espaços públicos e
amenidades. Essa anarquia especulativa era o oposto m e s m o de qual-
q u e r ideia d e p l a n e j a m e n t o o u p r i n c í p i o d e u r b a n i s m o . U m c r o n i s -
t a a t e n t o d e s c r e v e r i a essa f a l t a d e o r g a n i c i d a d e d e São P a u l o p o r
m e i o d e u m a metáfora s i n i s t r a m a s p r e c l a r a .
1e
S e q u i s e r a v a l i a r a c i d a d e , verá n o m a p a u m i m e n s a a r a n h a c u j a s p e r -
n a s p e l u d a s são a s l i n h a s d e b o n d e d a L i g h t ( " o p o l v o c a n a d e n s e " )
r o d e a d a s d e casas l . . . ] . D e p e r m e i o entre as pernas d o " C a n a d i a n oc-
t o p u s " , z o n a s v e r d e s e v a z i a s . S ã o P a u l o t i n h a e m 1922 a extensão
d e P a r i s , c o m três milhões d e h a b i t a n t e s n e s s e t e m p o , p a r a u m a p o -
pulação d e 6 0 0 m i l h a b i t a n t e s e m S ã o P a u l o . ^ ^
N o contexto d a Grande Guerra, e m virtude d o colapso das li-
n h a s d o comércio i n t e r n a c i o n a l , São P a u l o a s s i s t i u a u m g r a n d e s u r t o
d e c r e s c i m e n t o i n d u s t r i a l , c o m v i s t a s às n e c e s s i d a d e s d e s u b s t i t u i -
ção d e i m p o r t a ç õ e s . ' ^ A s decorrências i m e d i a t a s d e s s a i n d u s t r i a U -
zação e m l a r g a e s c a l a s e f i z e r a m s e n t i r n o c r e s c i m e n t o demográfi-
c o , n a d e m a n d a p o r t e r r e n o s e habitações e n u m a c a r e s t i a g e r a l , q u e
m u l t i p l i c a v a d e s c o n t r o l a d a m e n t e o s preços d o s géneros alimentícios,
vestuário e aluguéis, e m p l e n a d i s p a r a d a inflacionária.'*" O g o v e r -
n o t e n t a v a r e a g i r i m p o n d o o t a b e l a m e n t o d o s preços e c r i a n d o a s
feiras livres, q u e , c o n t u d o , fracassaram fragorosamente diante d a
c o r r u p ç ã o e d a ineficácia d a fiscalização, d e s m o r a l i z a n d o a s a u t o -
r i d a d e s e l e v a n d o a população a o d e s e s p e r o . E s s a reversão drástica
d a v i d a económica d a c i d a d e p r o p i c i a r i a o s u r g i m e n t o d e t o d a u m a
n o v a c l a s s e d e argentários, beneficiários d i r e t o s d a s o p o r t u n i d a d e s
especulativas excepcionais criadas p o ressa i n e s p e r a d a crise d a G u e r -
r a . O f e n ó m e n o , aliás, n ã o e r a só típico d e S ã o P a u l o , m a s t i n h a
u m a dimensão i n t e r n a c i o n a l e d e s e n v o l v e r i a u m a a m p l a H n g u a g e m
c o m u m q u e a p o n t a v a p o r t o d a p a r t e o v i c e j a m e n t o d o s "milioná-
rios d a G u e r r a " , referidos aqui e n oexterior c o m o a "gente n o v a " ,
o s " n o v o s r i c o s " , c o m o n e s t a notícia:
A p r o f u n d a perturbação económica está s e t r a d u z i n d o n u m a g r a v e c r i s e
"social". A Guerra determinou enormes aumentos das fortunas pri-
v a d a s , n a s c e n d o a s s i m u m a classe d e n o v o s ricos q u e a m o n t o a f o r t u -
nas excessivas, a o c u s t o d o s o f r i m e n t o d a s o u t r a s classes sociais. É o
" a p r o v e i t a d o r " c u j a f i g u r a v a i se d e l i n e a n d o n a e c o n o m i a n a c i o n a l
d e c a d a E s t a d o . O profiteer n a I n g l a t e r r a , o profiteur n a França, o
124
profittista d a Itália. [ . . . ] T o d a s a s a n t i g a s b a s e s d a v i d a económica n a -
cional e i n t e r n a c i o n a l se desconjuntaram.'*'^
N e s t e q u a d r o d e e s c a s s e z , especulação, inflação, d e r r o c a d a d a
a u t o r i d a d e e aflição, a c i r r a m - s e t o d o s o s t i p o s d e tensão e c o n f l i t o s
q u e l a t e j a v a m n o s desvãos d a c i d a d e : s o c i a i s , étnicos, c u l t u r a i s , p o -
líticos e e c o n ó m i c o s . M e r c a d o r i a s , p r o p r i e d a d e s e c a p i t a i s c o m e ç a m
a t r o c a r d e m ã o s r a p i d a m e n t e . A intensificação d a s exigências d e
produção, e m p a r a l e l o c o m a degradação d o p o d e r a q u i s i t i v o e d a s
condições d e v i d a , a r r a s t a a s tensões à b e i r a d a g u e r r a c i v i l , m a i s
f o r t e m e n t e i n s t i g a d a a p a r t i r d e 1917, p e l o c o l a p s o d o s I m p é r i o s
c e n t r o - e u r o p e u s e a s n o t í c i a s d a s e f e r v e s c ê n c i a s revolucionárias.'**^
A estagnação e o c o l a p s o d a E u r o p a i m p e r i a l , a r r u i n a d a n u m c a t a -
c l i s m o d e a u t o c o n s u m a ç ã o irremissível, d i s s i p a r a r e p e n t i n a m e n t e
a q u e l e q u e f o r a o símbolo m á x i m o d a a u t o r i d a d e e d a civilização
p o r q u a t r o c e n t o s a n o s . O s próprios i n v e s t i d o r e s e u r o p e u s , e m p a r -
te e q u a n d o p o d e m , f o g e m c o m seus capitais para os m e r c a d o s d o s
E s t a d o s U n i d o s , Canadá e até América L a t i n a , o u p a r a o n d e q u e r
q u e estivesse " op i o r o u r o , o m a i s a v a r e n t o q u e j a m a i s h o u v e , o
dólar, e s s e o u r o q u e está e s p e z i n h a n d o [ . . . ] o m u n d o " . ' * ' ^
E s s e s m e s m o s dólares m u d a v a m d e mãos m u i t o d e p r e s s a e d e -
sencadeàriaííí, n a f e b r e d a s u a caça, u m a internacionalização m u i t o
m a i s e s t r e i t a d o s f l u x o s económicos após a G u e r r a . F o i n e s s a s c o n -
dições q u e o s responsáveis p e l o p r o j e t o utópico d a s c i d a d e s - j a r d i n s
na Inglaterra, R a y m o n d U n w i n e Barry Parker, defrontados c o m
a p e r s p e c t i v a d a falência e c o n ó m i c a , d e c i d i r a m t r a n s f o r m a r s u a e x -
periência n u m a e m p r e s a d e p r e s t a ç ã o d e serviços p a r a p r o j e t o s i n -
t e r n a c i o n a i s d e e s p e c u l a ç ã o imobiHária.'**^ S ã o c o n t a t a d o s , e n t ã o ,
p o r u m e s p e c i a l i s t a b e l g a e m manipulação d e matérias-primas t r o -
p i c a i s , q u e d e s d e o c o m e ç o d o século c o n c e n t r a r a s u a s a t i v i d a d e s
n a s m a d e i r a s n o b r e s d o s u l d o B r a s i l . J á p o r v o U a d e 1911, E d o u a r d
F o n t a i n e L a v e l a y e v i s l u m b r a r a o p o t e n c i a l extraordinário d a e s p e -
culação c o m t e r r e n o s n e s t a c i d a d e e m p r o c e s s o d e c r e s c i m e n t o v e r -
t i g i n o s o . S e g u n d o r e l a t o d e u m técnico d a p r e f e i t u r a , c o n s u k a d o
por Lavelaye, "capitalista e banqueiro", "permanecendo algumas
s e m a n a s n e s t a c a p i t a l , a q u e l e e n g e n h e i r o francês ( c o m o e l e t e r i a s e
a p r e s e n t a d o ) t e v e ocasião d e e x a m i n a r d e t i d a m e n t e a s condições d e
vida d acidade, convencendo-se d eq u e seu desenvolvimento seria
e x t r a o r d i n á r i o " . ' * * ^ A t i r a c o l o , p a r a q u e s e t e n h a u m a ideia d a a m -
p l i t u d e d e s u a s intenções, L a v e l a y e t r a r i a c o m o a s s i s t e n t e e c o n s u l -
t o r ninguém m e n o s q u e o a r q u i t e t o B o u v a r d , o q u a l , a t o contínuo.
125
e n t r o u p a r a o serviço d a p r e f e i t u r a , e s t u d a n d o , a v a l i a n d o e i n t e r c e -
d e n d o n o s planos d e r e f o r m a u r b a n a d a cidade.'"^
D e v o l t a à E u r o p a , L a v e l a y e c o n t a t o u o s irmãos B o u l t o n n a
I n g l a t e r r a e , r e u n i n d o a o s e u r e d o r u m a série d e o u t r o s i n v e s t i d o r e s
f r a n c e s e s , b e l g a s , i n g l e s e s e r u s s o s , t o d o s c o m a l g u m a espécie d e e x -
periência e m negócios c o l o n i a i s , c o n s t i t u i u a C i t y o f São P a u l o I m -
p r o v e m e n t s , c o m s e d e e m L o n d r e s e escritórios e m P a r i s e São P a u -
lo. M e d i a n t e contatos c o m agentes paulistas, a C i a . City a d q u i r i u
12 3 8 0 0 9 8 m ^d e terrenos n a cidade, e m i t i n d o deb^ntures n o v a l o r
d e 2 milhões d e l i b r a s , g a r a n t i d a s p e l a h i p o t e c a d o s próprios t e r r e -
nos j u n t o à I m p e r i a l a n dForeign C o r p o r a t i o n , fundada pela mes-
m a C i t y p a r a e s s e específico f i m . N a direção d a C i t y e m São P a u l o
n o t a b i l i z a v a m - s e p e r s o n a g e n s d o s m a i s e m i n e n t e s d a política p a u -
l i s t a , além d e m e m b r o s d o a l t o escalão d a L i g h t a n d P o w e r . A m -
pliando suas compras d e terrenos, p o r v o U a d e 1912 a Cia. City con-
t r o l a v a c e r c a d e 3 7 % d e t o d a a área u r b a n a d e São P a u l o . Graças
a o s s e u s laços c o m a L i g h t e c o m f i g u r a s - c h a v e d a política l o c a l ,
a C i t y pôde u s u f r u i r d o a c e s s o , e m condições p r i v i l e g i a d a s , a s e r v i -
ços básicos d e i n f r a - e s t r u t u r a e valorização estética d o s s e u s l o t e a -
m e n t o s , p o d e n d o c o n t a r c o m serviços s u b s i d i a d o s , f i n a n c i a d o s e
p r i o r i z a d o s d a p r e f e i t u r a , além d e isenções d e i m p o s t o s p o r perío-
d o s p r o l o n g a d o s , às e x p e n s a s d o s c o f r e s públicos e d e áreas m a i s
populosas e carentes d a cidade, urgentemente necessitadas de servi-
ç o s básicos.'**^ C o m o r e s u l t a d o , e l a p ô d e o f e r e c e r l o t e a m e n t o s d e
a h o g a b a r i t o urbanístico e arquitetônico e m condições e x c e p c i o n a i s
de v e n d a f a c i l i t a d a , t i r a n d o o máximo p r o v e i t o d o s u r t o d e e n r i -
q u e c i m e n t o d o pós-guerra.
C o m o q u e r q u e s e j a , e s s a s e r a m a s condições d a época, o f a t o
é q u e B a r r y P a r k e r r e a l i z o u u mt r a b a l h o e x c e p c i o n a l , m a n t e n d o a l -
g u n s d o s princípios básicos d a concepção técnica d a s c i d a d e s - j a r d i n s ,
m u i t o e m b o r a a b r i n d o mão, i r o n i c a m e n t e , d a filosofia essencial d o
m o v i m e n t o — d e r i v a d o d a orientação e s s e n c i a l m e n t e s o c i a l i s t a d o
Arts a n dCrafts Movement, de Ruskin e William Morris — e que
era a d e oferecer u m a alternativa de alta qualidade de vida para a
população t r a b a l h a d o r a , a o l h e p e r m i t i r e s c a p a r d a s constrições d a
e s p e c u l a ç ã o imobiliária.'**^ S e u t r a ç a d o p a r a o J a r d i m A m é r i c a , " o
p r i m e i r o b a i r r o m o d e r n o d e São P a u l o " , " o b a i r r o m o d e l o " , a p r e -
s e n t a u m a m o v i m e n t a ç ã o versátil e e n v o l v e n t e n o p l a n o d e c o n j u n -
t o , g r a c i o s a n a disposição d a s praças e a m e n i d a d e s , c o m p o n d o u m
desenho i n t r i n c a d o e surpreendente n o sa r r u a m e n t o s , q u e fugia d a
r o t i n a q u a d r i c u l a d a r e s t r i t i v a p r e d o m i n a n t e até então n a c i d a d e , i n s -
126
t a u r a n d o u m n o v o p a d r ã o d e equilíbrio e n t r e f u n c i o n a l i d a d e , b e m -
e s t a r , e s p a c i a l i d a d e e fluência. A p e s a r d e l h e " f a l t a r t o t a l m e n t e a i n s -
piração l o c a l " , n a expressão d o c r o n i s t a - v i a j a n t e E r n e s t o B e r t a r e l l i ,
d a d a a s u a condição d e m o d e l o i m p o r t a d o e a d a p t a d o , o b a i r r o d o
J a r d i m América, c o ms u a dinâmica i n o v a d o r a e ótima resolução u r -
banística, t r a n s f o r m o u e d e u c o n o t a ç õ e s técnicas i n u s i t a d a s às n o -
ções q u e s e t i n h a d e d e s e n v o l v i m e n t o u r b a n o . ' Já a a r q u i t e t u r a i n -
t r o d u z i d a p e l a C i a . C i t y e m a l g u n s l o t e s a título d e m o d e l o s d e r e s i -
dências e r a b e m m e n o s e x p r e s s i v a , n a s u a v a g a inspiração n o s b a n -
galôs típicos d o s a d m i n i s t r a d o r e s i n g l e s e s e m t e r r a s c o l o n i a i s . S e n ã o
e r a , porém, g r a n d e a r q u i t e t u r a , e r a p e l o m e n o s b a s t a n t e s u g e s t i v a
d o q u e se p a s s a v a pela m e n t e d o s p l a n e j a d o r e s d o " b a i r r o m o d e r n o " .
ALERTA GERAL NO "FRONTINTERNO"
O p a n o r a m a u r b a n o d e São P a u l o e r a m u i t o m a i s c o m p o s t o d e
p r o b l e m a s q u ese m u l t i p l i c a v a md e s c o n t r o l a d a m e n t e d o q u ed e s o -
luções o r i g i n a i s . A ação pública, tíbia p o r s i só d a d o s o s s e u s l i m i t e s
o r ç a m e n t á r i o s e a ineficácia d a s u a e s t r u t u r a a d m i n i s t r a t i v a , s e p a r a -
l i s a v a o u m e s m o c e d i a d i a n t e d a intransigência d e g r a n d e s p o t e n t a -
d o s o n d e m a n o b r a s e s p e c u l a t i v a s o r g a n i z a d a s . E r a aliás d e s e e s p e -
r a r q u e u m e s t a d o c o n t r o l a d o p o l i t i c a m e n t e p o r u m núcleo d i m i n u t o
de cerca d e trezentos fazendeiros, q u e p o r s u a v e zc o n t r o l a v a m t o d o
o c o n j u n t o d a v i d a r e p u b l i c a n a d o país, v i v e n d o u m a p e r m a n e n t e c r i s e
d e f a l t a d e mão-de-obra n a s suas f a z e n d a s , visse c o m m a u s o l h o s o
c r e s c i m e n t o e o e n o r m e p o d e r d e atração p o p u l a c i o n a l d a c i d a d e d e
São P a u l o . " ' A v i t r i n e u r b a n a e m o d e r n a , p a r a e f e i t o d a i m a g e m d o
B r a s i l n o e x t e r i o r , f o r a c r i a d a c o m a remodelação u r b a n a d o R i o d e
J a n e i r o , p o r v o h a d e 1 9 0 4 , s o ba direção d o e n g e n h e i r o P e r e i r a P a s -
s o s e a s o r d e n s d o p r e s i d e n t e d a República, o p a u l i s t a R o d r i g u e s A l -
v e s . " ^ À p a r t e i n i c i a t i v a s i s o l a d a s e insólitas, c o m o a s d o c o n s e l h e i -
r o Antônio P r a d o , a c i d a d e d e São P a u l o e s u apopulação p a r e c i a m
ser e n c a r a d a s m a i s c o m o u me m a r a n h a d o d e p r o b l e m a s reais e p o -
t e n c i a i s , c o m o u m a g r a n d e á r e a a l t e r n a t i v a p a r a démarches especu-
lativas o u c o m o u mp a l c o a p a r a t a d o p a r a o lazer i n c i d e n t a l n o c o n -
c e r t o d e s s e prelúdio r e p u b l i c a n o . E r a c o m o se h o u v e s s e a l g o d e l i b e -
r a d o n a desídia p e l a q u a l a c i d a d e , s e m u m a i d e n t i d a d e d e f i n i d a , e r a
e n t r e g u e às v i c i s s i t u d e s d o s e u c r e s c i m e n t o c o n v u l s i v o , s e m s i g n i f i -
c a t i v a s considerações q u a n t o à s u a condição f u t u r a .
A a m a r g u r a d e s t i l a d a d e s s a impressão d e d e s c a s o é q u e f a z i a
d e g e n t e c o m o o c r o n i s t a P . u m crítico a c e r b o e o b s t i n a d o d a a u t o -
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