You are on page 1of 6

A relação com o saber de crianças e jovens de zona rural: dados preliminares de

pesquisa

Beatriz Penteado Lomonaco

Psicóloga, Doutora em Ciências da Educação (Universidade de Paris VIII), pós-


doutoranda da FE-USP com bolsa da FAPESP

RESUMO

Este trabalho visa a apresentar os dados preliminares de uma pesquisa de pós-doutorado


cujo objetivo é aprofundar os estudos sobre a noção de relação com o saber de alunos
do Ensino Fundamental, residentes em no universo rural.

Palavras-chave: relação com o saber, ensino-aprendizagem, educação rural

ABSTRACT

This article presents post-doctoring research preliminary's data, which main goal is to
deepen studies of how first grade students, residents of rural areas achieve knowledge.

Key words: knowledge, teaching-learning, rural education

Para nós que vivemos nos grandes centros urbanos, a vida no campo é associada a
idéias românticas. Habituados ao conforto da vida moderna, é difícil imaginar como
seria viver longe do aparato eletro-eletrônico que entulha nossas casas, de um sem-
número de informações disponíveis ao alcance da mão, da multiplicidade de bens e
serviços que nos cercam. Pouco sabemos das dificuldades, das crenças e desejos da
população rural.

Embora tenhamos alguma experiência do mundo rural, o mesmo não ocorre em relação
às escolas rurais. Mesmo aqueles que trabalham na área educacional se defrontam com a
escassez de literatura sobre o tema - o que é surpreendente em um país que possui quase
um terço da população vivendo fora dos centros urbanos. Além disso, regra geral, não
há dados consistentes sobre a população escolar rural, nem existem políticas
educacionais específicas nas secretarias estaduais ou municipais de educação.

A realidade dos municípios de pequeno porte contrasta bastante com a dos centros
urbanos: em geral são comunidades que possuem vínculos mais orgânicos entre família
e escola; há poucos recursos profissionais, culturais e econômicos disponíveis; os ritos e
tradições culturais estão ainda presentes no cotidiano. Neste universo, algumas questões
se colocam: qual é o sentido da escola nessas comunidades? Como ele é construído?
Qual o papel da escola para alunos de zonas rurais? Que saberes e aprendizagens são
por eles valorizados?

Essas e outras questões paralelas estão no centro dos estudos sobre o conceito de
relação com o saber que têm norteado pesquisadores em vários países1. Este conceito
tem sido alvo de diversas abordagens (psicologia, psicanálise, etnologia e sociologia)
que tentam dar inteligibilidade às relações do(s) sujeito(s) com o saber, sua produção,
sua apropriação e sua transformação. Dada a convergência significativa entre estudos de
aporte psicanalítico e resultados de pesquisas sobre a relação com o saber, o diálogo
entre psicanálise e a educação parece oferecer contribuições particularmente relevantes
para os desdobramentos desta noção.

Os grupos de pesquisa que investigam este conceito, particularmente o de Bernard


Charlot (em Paris VIII) e de Jacky Beillerot (Paris X), visam, essencialmente,
compreender as múltiplas relações dos indivíduos com o aprender e, de modo mais
específico, com os processos pelos quais o sujeito aprende: "relação com o saber é uma
relação de sentido, portanto de valor, entre um indivíduo (ou um grupo) e os processos
ou produtos do saber" (Charlot, Bautier & Rochex, 1992) ou ainda, "a relação com o
saber é a relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo, de um sujeito
confrontado com a necessidade de aprender" (Charlot, 2000). Procuram ainda desvelar
como opera a conexão entre o sujeito (simultaneamente, sujeito desejante e sujeito
social) e saber, isto é, por quê (móbil/desejo) e para quê (objetivo) o indivíduo se
mobiliza para a aprender; por fim, postulam que o aprender implica exterioridade e
interioridade (a apropriação de um saber que lhe é exterior), bem como sentido e
eficácia (o sujeito se apropria de um saber que exige determinadas atividades para que
seja apropriado) (Charlot, 2001, p.19-22).

No entanto, todos estudos sobre a relação com saber têm como base a realidade dos
centros urbanos, havendo ainda uma grande lacuna no que se refere à população rural.
Ademais, nesta população se apresentam certas articulações entre aprender "na vida"/na
escola, e entre saber/aprender (aspectos bastante problematizados no conceito de relação
com o saber) que a tornam ainda mais interessante como objeto de estudo.

Desta forma, o presente trabalho é uma discussão preliminar de uma pesquisa ainda em
andamento, cujo objetivo central é investigar a relação de crianças e jovens em um
município do interior de São Paulo (Serra da Mantiqueira) com a escola, com o saber e
o aprender, a fim de compreender seu modo de vida e suas aspirações no quadro do
conceito de relação com o saber.

O que, como e com quem trabalhamos

A pesquisa tem como foco os alunos residentes na zona rural das classes de transição do
Ensino Fundamental: 4ª, 5ª e 8ª séries. Como em muitas escolas do Estado, as crianças
que vivem na roça freqüentam as escolas rurais (em classes multi-seriadas) até a 4ª
série. Desta forma, a passagem para 5ª série é um momento importante uma vez que
passam a freqüentar a cidade cotidianamente e a fazer parte de uma instituição cuja
dinâmica e organização são bastante diferentes das pequenas escolas rurais. Ainda que
boa parte dos alunos de 8ª série continue seus estudos, esta série representa o final de
um ciclo importante na vida dos jovens.

A pesquisa mobiliza diversos instrumentos de coleta de dados a fim de dar conta dos
processos culturais e subjetivos em questão. A primeira etapa da coleta baseou-se em
um "balanço de saber", na forma de uma produção de texto, conforme proposto pela
equipe ESCOL (Paris VIII) e utilizado posteriormente em diversos estudos (Charlot,
Bautier & Rochex, 1992; Bautier & Rochex, 1998; Charlot, 1999)2. Em nosso caso, o
enunciado da redação do "balanço" foi: Desde que nasci, tenho aprendido muitas
coisas: em casa, no meu bairro, na escola, em muitos lugares. Quais foram as coisas
mais importantes que aprendi? Onde aprendi? Quem me ensinou?

Após a análise das redações, foram realizadas oficinas com alunos tendo como suporte
atividades gráficas, jogos e discussões, pois alguns estudos (Gauthier, J. e Gauthier, L;
CENPEC & Litteris, 2001) apontam para os limites da utilização de instrumentos
baseados exclusivamente na escrita. Neste momento, foram investigadas as expectativas
de futuro e a relação dos jovens com suas aprendizagens.

Em um terceiro momento, foram realizadas entrevistas com alunos selecionados


focando, sobretudo, as relações entre saber escolar e saber cotidiano.

A última etapa do trabalho consistiu em uma conversa com um grupo de alunos de 8ª


série sobre um tema que não havia sido suficientemente explorado: a vida na roça e na
cidade.

A medida que as questões focalizadas se tornavam mais específicas, fomos reduzindo o


número de sujeitos, procurando garantir que os alunos participantes das oficinas e
entrevistas tivessem feito o "balanço dos saberes". O total de alunos participantes a cada
etapa foi o seguinte:

Quadro 1 - População de estudo

instrumentos 4ª 5ª 8ª total
Balanços de saber 78 83 58 219
Oficinas 25 20 18 63
Entrevistas 15 15 15 45
Conversa coletiva - - 8 8

Foram também realizadas entrevistas com alguns pais e professores a fim de investigar
o lugar que a escola e o saber ocupam no imaginário social da comunidade.

Conclusões preliminares
De forma geral, os resultados obtidos até o momento vão ao encontro de outras
pesquisas afins, em especial no que diz respeito à importância das aprendizagens
afetivas e relacionais e a cisão entre aprendizagens escolares e não-escolares.

Em estudo semelhante com população urbana da capital paulista (CENPEC e Litteris,


2001), já se apontava a valorização de saberes relacionados às questões ético-morais e
do espaço familiar, assim como a opacidade dos saberes escolares. Todavia, existem
diferenças significativas em relação ao nosso trabalho.

Nos textos por nós analisados, não há uma rejeição explícita ou implícita da escola ou
dos professores, como na pesquisa acima citada. Quando a escola aparece, ela é um
bem, um valor inquestionável. Embora seja bastante claro que a escola é, sobretudo, um
"passaporte para o futuro", ela é bastante valorizada (ainda que de modo genérico), e
seus saberes são pouco relacionados ao cotidiano das crianças. Na maior parte dos
textos, aprender na escola tem um caráter instrumental - é através dela que se pode ter
uma "vida melhor". Nesse sentido, as redações convergem para o primeiro trabalho da
equipe ESCOL (Charlot, Bautier, & Rochex, 1992), segundo o qual, para uma parcela
significativa de estudantes franceses, ir à escola faz mais sentido do que o saber nela
adquirido; havendo, assim, uma relação mais forte com a escola do que com o saber.

Dentre os principais aspectos ressaltados nas redações dos alunos, "aprender a ler e a
escrever" parece ser o maior ganho que a escola lhes oferece3. Ainda que estes alunos
estejam em um processo de aprimoramento da leitura e da escrita, esta é apenas uma das
competências/conhecimentos passíveis de serem apropriados nesta instituição. Todavia,
ler e escrever são mais lembrados como habilidade do que como função (os sentidos e
usos no cotidiano ou na vida). Encontrando dados semelhantes na República Tcheca,
Stech (2001) aponta que "ler e escrever" para os jovens significa mais do que se
apropriar de habilidades, mas ingressar em uma cultura escrita, o que parece ser
também nosso caso.

Nossos dados mostram que na escola, as crianças aprendem "as matérias", um conjunto
opaco de conhecimentos pouco articulados, mas que possuem uma importância
intrínseca. Para aprender estes conhecimentos é preciso ir até o fim dos estudos e
descobrir, na vida adulta, qual sua função. Existe, portanto, diferenciação entre os
saberes escolares e os não-escolares (ou anteriores à escola), assim como entre as
atividades de aprendizagem, mas tudo indica que não há continuidade, integração ou
intersignificação (Charlot, 2001) entre os diferentes saberes e suas formas de aprender.

O conjunto de valores que aparece nas redações das crianças, expressa, de forma
incisiva, conformidade, adaptação às regras de convívio social, e respeito à autoridade
ou ao outro. Em relação à escola, os alunos solicitam mais autoridade, mais disciplina e
muitos ressaltam que estas seriam as melhores qualidades de um bom professor. O
caráter moral-religioso impregna fortemente as redações infantis (e é na zona rural onde
mais aparecem), reflexo da sociedade local, bastante influenciada pela Igreja Católica.
Nesse sentido, nossa amostra parece revelar um aspecto pouco observado em outros
trabalhos: a religiosidade como um valor importante para as crianças e as regras
religiosas perpassando as relações familiares e comunitárias.
Parece-nos que face ao enfraquecimento das interdições e valores sociais, os jovens
procuram se balizar por princípios éticos básicos que medeiam as relações sociais e que
lhes permitem dar acabamento à própria identidade.

Um outro aspecto que merece atenção nas redações é um número bastante alto de
menções relativas às aprendizagens básicas e/ou habilidades específicas. De fato, andar,
falar e comer (de longe as mais evocadas), antecedem a maioria das aprendizagens do
ser humano e são pré-requisitos para muitas, mas é interessante que sejam tão evocadas
entre alunos que já deixaram a primeira infância há um certo tempo. Observa-se,
portanto, que estas habilidades físicas, concretas, são recuperadas e valorizadas pelas
crianças, assim como as pessoas que as ensinaram (em geral, o pai e a mãe).

Muitas das aprendizagens cotidianas mencionadas se referem a atividades próprias do


meio rural: plantar, roçar, cuidar de animais, andar a cavalo, dirigir trator, etc. Elas estão
presentes na vida dos alunos e fazem bastante sentido em seu cotidiano. Ainda assim, as
entrevistas e oficinas mostram que as atividades ou profissões relativas ao meio rural
são muito pouco valorizadas pelos alunos, o que não deixa de causar certa preocupação
tanto do ponto de vista subjetivo (notadamente em relação à construção da identidade),
como objetivo (uma vez que suas perspectivas profissionais são bastante restritas).

Sabemos que a aprendizagem não se resume à apropriação de conhecimentos, mas


também de significados, de marcas simbólicas (Lajonquière, 1999). Aprender permite
ao indivíduo inscrever-se na história pois, apropriando-se dos saberes de seu mestre, o
aprendiz passa a ter uma dívida simbólica com a tradição cultural que o assujeita. Nesse
sentido, os aprendizados e saberes evocados pelos alunos parecem indicar pontos de
conflito entre a cultura de origem e as perspectivas de vida, entre o desejado e o
possível, entre a escola e a vida, entre o mundo em que vivem e aquele que apenas
vislumbram pela TV... Todos estes aspectos serão objeto de análise ao longo da
pesquisa.

Bibliografia

BAUTIER E. & ROCHEX, J-Y. (1998), L'expérience scolaire des nouveaux lycéens.
Armand Colin, Paris.

BEILLEROT, J. BLANCHARD-LAVILLE, C.; MOSCONI, N. et al. (1996) Pour une


clinique du rapport au savoir, Paris, Harmattan.

BEILLEROT, J., BLANCHARD-LAVILLE, C., BOUILLET, A. et al. (1989), Savoir et


rapport au savoir - Elaborations théoriques et cliniques. Paris, Ed. Universitaires.

CENPEC & Litteris (2001),"O jovem, a escola e o saber: uma preocupação social no
Brasil" in Charlot, B. (org.). Os Jovens e o saber - perspectivas mundiais. Porto Alegre,
ArtMed.

CENPEC, (1999), Coleção Jovens e Escola Pública, 3 volumes, São Paulo.


CHARLOT, B. BAUTIER E. E ROCHEX J-Y, (1992), École et savoir dans les
banlieues et ailleurs, Armand Colin, Paris.

CHARLOT, B. (1999) Le rapport au savoir en milieu populaire: une recherche dans


les lycées professionnels de banlieue. Anthropos, Paris.

CHARLOT, B. (2000) Da relação com o saber, Porto Alegre, ArtMed.

CHARLOT, B. (org.) (2001),Os Jovens e o saber - perspectivas mundiais. Porto


Alegre, ArtMed.

GAUTHIER, J. & GAUTHIER, L. (2001), "A relação com o saber de alunos, pais e
professores de escolas da periferia de Salvador, Bahia - estudo sociopoético" in Charlot,
B. (org.) Os Jovens e o saber - perspectivas mundiais. Porto Alegre, ArtMed.

LAJONQUIERE, L. (1999), Infância e ilusão (psico)pedagógica. São Paulo, Vozes.

ROCHEX J-Y (1995), Le sens de l'expérience scolaire, Paris, PUF.

STECH, S. "O que significa aprender para os alunos tchecos? Balanços do saber no
início dos anos 90" in CHARLOT, B. (org.) (2001), Os jovens e o saber - perspectivas
mundiais. ArtMed, Porto Alegre, p. 147.

1 O mais recente livro organizado por Bernard Charlot (2001) apresenta resultados de
pesquisa sobre a relação com o saber realizadas na França, na República Tcheca, na
Tunísia, na Grécia e também no Brasil.

2 O enunciado original da produção de texto francesa era: "Tenho____anos. Desde que


nasci, aprendi muitas coisas; em casa, no bairro, na escola, em muitos lugares. O que
me ficou de mais importante? E agora, o que espero?"

3 Ressaltamos que as atividades "ler, escrever e calcular", representam 60,6% das


ocorrências na categoria denominada Atividades Intelectuais e Escolares (AIE).

On-line ISBN 85-86736-12-0

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

You might also like