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XI Congresso Ciências do Desporto e Educação Física

dos países de língua portuguesa

(Re)Fundar os conceitos de estratégia e táctica nos jogos

Treinamento, Técnica e Tática Esportiva


Mesa Redonda
desportivos colectivos, para promover uma eficácia superior
Júlio GARGANTA
Faculdade de Desporto, Universidade do Porto, Portugal

Nos Jogos Desportivos Colectivos (JDC) as equipas disputam específicos, oferecem a possibilidade de criação de novos cenários.
objectivos comuns, lutando para gerir em proveito próprio, o O jogo emerge da confluência de uma dimensão mais previsível,
tempo e o espaço, através da realização de tarefas de sinal induzida pelas leis e princípios, com outra menos previsível,
contrário (ataque versus defesa). A questão fundamental é materializada a partir da autonomia dos jogadores, que introduzem
enunciada por GRÉHAIGNE e GUILLON (1992): face a situações a diversidade e singularidade dos acontecimentos.
de oposição dos adversários, os jogadores da mesma equipa Cada equipa comporta-se como um sistema dinâmico que
devem coordenar as acções com a finalidade de recuperar, vive da organização, o que quer dizer que a eficácia depende do
conservar e fazer progredir o móbil do jogo (bola), tendo como compromisso entre a sua identidade e a sua integridade. O que
objectivo criar situações de finalização e marcar golo ou ponto. faz o jogo é a transformação da causalidade em casualidade, ou
Neste sentido, os jogadores procuram resolver em situação, várias seja, aproveitar o momento; e quem ensina a aproveitar o
vezes e simultaneamente, cascatas de problemas que encerram momento são a estratégia e a táctica. Nessa medida, é requerida
uma elevada imprevisibilidade (METZLER, 1987). aos jogadores uma permanente disposição estratégico-táctica,
Considerando que a acção de um jogador desemboca cuja qualidade depende do conhecimento que o jogador tem
obrigatoriamente na interacção dos demais elementos em jogo, do jogo (GARGANTA & CUNHA E SILVA, 2000).
cada uma das equipas que se defrontam comporta-se como uma Porque os cenários típicos dos JDC propiciam actividades
unidade cujas relações entre os seus elementos se sobrepõem às férteis em acontecimentos cuja frequência, ordem cronológica
mais-valias individuais (GARGANTA, 2005). e complexidade não podem ser determinadas antecipadamente,
Mais do que centrar a atenção nas acções de jogo, importa então torna-se importante desenvolver competências que transcendam
deslocar o olhar para as interacções dos actores, na sua relação com a execução propriamente dita e valorizem as capacidades
o envolvimento, porque é nas articulações do sistema que se tece a relacionadas com as estratégias cognitivas que guiam a captação
sua identidade e é também nelas, e através delas, que se cria condições de informação e a tomada de decisão.
para a manter ou alterar, em função das circunstâncias. Na medida em que a proficiência dos jogadores é reflectida
Porque se trata de modalidades situacionais, as competências dos pela sua habilidade de perceber as alterações do envolvimento e
jogadores e das equipas nos JDC reportam-se a grandes categorias de a elas se adaptarem rapidamente (POULTON, 1957; WHITING,
de problemas, atravessando diferentes níveis de organização, em 1969; KNAPP, 1972; TAVARES, 1993; LERDA et al., 1996), os JDC
resposta aos sinais do envolvimento (GARGANTA, 2004). Assim, torna- solicitam, de forma importante, as capacidades cognitivas (SISTO
se necessário perceber o jogo na sua relação de forças, i.e., na sua & GRECO, 1995; GRÉHAIGNE & GODBOUT, 1995; SANTESMASES,
complexidade. Ora a compreensão de tal relação passa, 1998), enquanto subestruturas da táctica (KONZAG, 1991,
invariavelmente, pelo reconhecimento de comportamentos que GARGANTA, 1997),
testemunhem a eficiência e a eficácia dos jogadores e das equipas nas Não se estranha, portanto, que vários investigadores tenham feito
diferentes fases do jogo. incidir as suas preocupações no estudo dos tipos de conhecimento
Porque actuam num contexto de oposição e cooperação de alta que suportam as acções dos jogadores na resolução de problemas
variabilidade contextual, as equipas podem ser consideradas sistemas do jogo, nomeadamente no que concerne às estratégias cognitivas
especializados e fortemente dominados pelas competências estratégias que guiam a percepção e a tomada de decisão (ALLARD, 1993;
e heurísticas. Em contextos de elevada labilidade estratégico-táctica, MCPHERSON, 1993; TAVARES, 1994; FRENCH & HOUSNER, 1994;
caracterizados por uma intrincada trama de relações de oposição e WILLIAMS & DAVIS, 1995; WILLIAMS et al., 1999).
de cooperação em torno do móbil do jogo, os elementos duma Neste contexto, assume importância capital o que BARTH
equipa funcionam numa perspectiva teleológica, na medida em que (1994) designa por saber estratégico-táctico, que decorre, não apenas
as actividades que contribuem para o êxito do processo são do conhecimento das regras da competição e das regras de gestão
organizadas em função dum fim, que pode ser alcançado a partir de e organização do jogo, mas também do conhecimento das
diferentes condições de trabalho. condições de regulação situacional.
Deste modo, os JDC implicam quadros de prática desportiva Táctica e estratégia não dependem, portanto, do livre arbítrio.
que, para além de serem tributários de regras e princípios de jogo Sendo a táctica a aplicação da estratégia às condições específicas

Rev. bras. Educ. Fís. Esp., São Paulo, v.20, p.201-03, set. 2006. Suplemento n.5. • 201
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do confronto, no decurso do jogo aquela dimensão exprime-se significativas implicações no condicionamento das respostas do
através de comportamentos observáveis, que derivam de um observador/actor. Nesta perspectiva, o comportamento justifica-se
processo estratégico que pressupõe conhecimento e informação mais pelas competências perceptivas do indivíduo, do que pela sua
(GARGANTA & OLIVEIRA, 1996). capacidade de armazenar soluções padronizadas na memória.
Desde MAHLO (1969) que se sabe que em jogo a actualização Contudo, a informação disponível conduz-nos à ideia de que
dos conhecimentos tácticos se faz, por um lado a partir da análise dificilmente poderemos conceber a existência de efeito de treino, ou
da situação, isto é, da percepção, e, por outro lado, a partir da de transfer, sem representações guardadas na memória dos executantes.
análise dos próprios conhecimentos. Todavia, apesar do esforço Os trabalhos do neurobiologista António Damásio constituem
desenvolvido pela ciência, na busca de entendimento para o um importante contributo para a clarificação das relações entre
compromisso conhecimento-acção em contextos desportivos, conhecimento, memória, percepção e aprendizagem, nomeadamente
as conclusões são ainda pouco consistentes. no que se reporta às denominadas imagens mentais, conceito explanado
No quadro do ensino e treino dos JDC, a literatura sugere em alguns dos seus livros, entre os quais O sentimento de si (2002).
insistentemente que grande destaque deve ser dado à expertise Segundo este autor, a percepção ajuda-nos a construir padrões que
cognitiva, na sua relação estreita com os skills táctico-decisionais. cartografam a interacção do organismo com o meio, os quais são
Esta problemática torna-se ainda mais complexa, mas edificados de acordo com as convenções do cérebro. Neste sentido,
também mais aliciante, quando se procura colocar no mesmo Damásio sustenta que as imagens que se criam nas nossas mentes
plano as duas principais exigências da acção desportiva - “o que não são fac-similes de nenhum objecto ou evento específico, mas antes
fazer” e “como fazer” - na medida em que se sabe que a imagens das interacções de cada um de nós com essas “realidades”.
capacidade para executar uma habilidade técnica influencia a O que existe, de facto, não é nenhuma imagem a ser transferida
tendência para a eleger como opção táctica na situação de jogo do objecto para a retina e da retina para o cérebro, mas um
(ver FRENCH et al., 1996; STARKES & ERICSSON, 2002). conjunto de correspondências entre as características físicas do
No centro desta discussão, destacam-se dois enfoques: 1) o objecto e os modos de resposta do organismo.
cognitivo, conotado com a teoria do esquema, ou dos programas Ao pretender explicar-se o comportamento como produto
motores genéricos (SCHMIDT, 1975); 2) o ecológico, comprometido da relação directa entre percepção e a acção, parece estar a
com a teoria dos sistemas dinâmicos (DAVIS et al., 2001). secundarizar-se o papel das representações e da memória,
Como sugerem WILLIAMS e DAVIDS (1995), o conhecimento descurando-se assim a pertinência do raciocínio por analogia,
específico do jogo repousa em pressupostos cognitivos. Por outro tão importante para agir em ambientes abertos de oposição e
lado, o domínio dos pressupostos cognitivos para realizar as cooperação, como é o caso dos JDC.
acções de jogo, não implica automaticamente o domínio das Na nossa intervenção sustentaremos que a matriz dos JDC
condições motoras para as operacionalizar. Ou seja, saber quando decorre de um quadro de referências que contempla: 1) o modelo
e como executar não significa saber executar as acções em jogo, de jogo idealizado para a equipa; 2) o tipo e relação de forças
porquanto a capacidade de execução não se esgota na dimensão (conflitualidade) entre as equipas que se defrontam; 3) a variabilidade,
cognitiva, mas tem que ser viabilizada por outras dimensões, a imprevisibilidade e a aleatoriedade dos contextos em que as acções
nomeadamente a energética e a coordenativa. de jogo são tecidas; e 4) as características das competências perceptivas,
Todavia, a perspectiva ecológica tem alertado para a necessidade decisonais e motoras para agir nesses contextos específicos.
de se enfatizar o papel das propriedades do envolvimento, pelo facto Salientaremos ainda a importância da refundação dos conceitos
destas constituírem um sistema de constrangimentos e de e das aplicações da estratégia e da táctica nos JDC, à luz das implicações
possibilidades de acção (as affordances de J.J. GIBSON, 1966), com que promovam uma performance de qualidade superior.

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