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COSTA JUNIOR, C. L. J.
GRESSANA, L.
por volta do ano mil, depois no tempo mente da Espanha (1492) e de outras regiões
das cruzadas, perpetrados, sobretudo da Europa aumentaram o fluxo de imigrantes
pelas massas em busca de bodes expia- judeus para as cidades e reinos da Itália. Esses
tórios das calamidades (guerras, fome, reinos e cidades-Estados estabeleceram, a
epidemia) e vítimas de seu fanatismo princípio, políticas de segregação, obrigando
religioso. O antijudaísmo da Igreja se os judeus a usar sinais distintivos e confinan-
endureceu e, na sociedade cristã, do do-os em guetos. (BRAUDEL, 1948).
povo aos príncipes, o anti-semitismo [...]
apareceu no século XII e, sobretudo no A cidade portuária de Veneza, próspe-
século XIII. (LE GOFF, 1989, p. 36). ra república mercantil no litoral do Mar
Adriático, foi um dos principais centros do
O desenvolvimento das cidades e a reto- comércio Mediterrâneo no século XVI, cuja
mada do comércio e das atividades financei- importância pode ser revelada nas palavras
ras nos séculos XIII, XIV e XV produziram do sociólogo francês Jacques Attali:
novas dinâmicas sociais, que transformaram
Veneza é então a cidade mais importante
a sociedade feudal em suas bases. Os judeus da economia mundial. É lá que se fixam
progressivamente expulsos de todos os ofí- os preços das principais mercadorias e
cios e da posse da terra, abandonaram o cam- se constroem as melhores embarcações,
po e dirigiram-se para as cidades. (LE GOFF, as galere da mercato. É de lá que mer-
1998). Os judeus, com poucas alternativas, cadores cristãos e judeus remetem para
buscaram sua sobrevivência nas atividades o Oriente a lã de Flandres5, o veludo de
financeiras. Para Fernand Braudel: Gênova, a lã feltrada de Milão e de Flo-
O Judeu, originalmente camponês tal rença, o coral de Barcelona. É também
como o Armênio4, desligou-se há séculos por Veneza que chegam os escravos
e séculos do trabalho da terra. Por todo de Tana6, a seda de Constantinopla, os
o lado é financeiro, assentista, mercador, metais da Anatólia7, as sedas da Pérsia,
usurário, prestamista, médico, artesão, a pimenta de Malabar8. (ATTALI, 2008,
alfaiate, tecelão, até mesmo ferreiro... p. 241).
Muito pobre por vezes; medíocre presta-
O governo da cidade, no século XVI,
mista se se apresentar ocasião para isso.
havia ordenado o confinamento de sua popu-
(BRAUDEL, 1984, p.176).
lação judaica em um gueto, sendo os portões
Dentre as atividades as quais os judeus se de entrada vigiados por cristãos. O número
dedicaram, uma é de particular importância de judeus, porém, era reduzido: Em 1586,
para a compreensão da obra O Mercador de aproximadamente na mesma época em que
Veneza: o empréstimo de dinheiro a juros. Shakespeare escrevia O Mercador de Veneza,
Os judeus eram os únicos que dispunham de havia um número em torno de 1.424 judeus
grandes somas em moedas para emprestar às vivendo na cidade (BRAUDEL, 1984). O
empresas e mercadores. Sob cada emprésti- gueto de Veneza seria desmantelado apenas
mo cobravam juros, tomando como garantia no final do século XVIII, por inspiração dos
objetos da vida cotidiana como louças e ideais da Revolução Francesa.
vestimentas. (LE GOFF, 1998).
Os judeus também se destacaram no
comércio internacional, onde criaram uma O Mercador de Veneza
das primeiras redes mercantis do mundo
(BRAUDEL, 1984). As crescentes expulsões William Shakespeare escreveu a peça O
de judeus dos países ibéricos, mais notada- Mercador de Veneza entre os anos de 1596 e
1597, tornando-se ela um símbolo contradi- incitado pela peça shakespeariana ao dos Os
tório do renascimento inglês e caracterizada Protocolos dos Sábios de Sião11 e o Evange-
como uma das comédias do autor (VIÉGAS, lho de João. (BLOOM, 2000).
prefácio, in: SHAKESPEARE, 2008.). A As motivações e o comportamento de
narrativa ocorre em Veneza em fins do sé- Shylock merecem uma atenção especial,
culo XVI, opondo Antônio, o mercador que tendo em vista que o judeu de Shakespeare
nomeia a peça; e Shylock, o judeu usurário. é considerado um personagem de grande
Antônio, cristão devoto que tem por cos- eloquência, ao contrário de Barrabás, o judeu
tume cuspir em judeus, procura ajudar finan- avarento criado pelo dramaturgo Cristopher
ceiramente seu amigo Bassânio que deseja Marlowe alguns anos antes de Shakespeare
cortejar a bela Pórcia, rica dama da fictícia escrever O mercador de Veneza 12. Tomando
cidade de Belmonte, ávida para encontrar um como base o personagem caricato de seu
marido. Para isso, Antônio, não possuindo ca- contemporâneo, Shakespeare irá criar um
pital disponível no momento tendo em vista personagem semelhante, porém muito mais
seus navios carregados de mercadorias em profundo em significado e personalidade.
viagem, se compromete em um empréstimo Para Bloom: [...] “Shakespeare esforça-se
de três mil ducados financiado pelo judeu para expurgar de Shylock todo o elemento
Shylock. Conhecido “usurário”, membro de marlowiano, o que, inevitavelmente, implica
uma comunidade judaica e que se dedica ao um mergulho no interior do personagem”.
empréstimo de dinheiro a juros. Em troca do (BLOOM, 2000, p. 234).
empréstimo, Antônio compromete uma libra9 A agressividade para com Shylock é uma
de sua própria carne, caso não cumprido o constante em toda a obra, sendo que os per-
acordo. sonagens cristãos lhe ofendem e insultam por
Ao final da peça, os empreendimentos ser um judeu e, também, um usurário. Shylo-
mercantis de Antônio fracassam, seus navios ck, em resposta, faz a seguinte exclamação:
naufragam, e impossibilitado de cumprir o Shylock – Signor Antônio, muitas e
acordo, Shylock busca, através do tribunal de muitas vezes no Rialto13 o senhor me
Veneza, presidido pelo próprio Doge10, a libra taxou disso e daquilo por causa dos meus
de carne do mercador. Shylock, porém, cai dinheiros e as minhas taxas de juros. [...]
em uma armadilha jurídica quando é acusado O senhor me chama de infiel, de cão
de ameaçar a vida de um cidadão veneziano raivoso, e cospe na minha gabardina de
e tem seus bens confiscados, além de ser judeu. E tudo porque faço uso daquilo
obrigado a se converter ao cristianismo. Este que é meu. Pois bem, agora parece que
fim imposto ao judeu pode ser resumido nas você está precisando de minha ajuda.
palavras de Pórcia - disfarçada de juiz - à (SHAKESPEARE, 2008, p.40)
Shylock: “Terás mais justiça do que querias”. A resposta de Antônio a Shylock é carre-
(SHAKESPEARE, 2008 p. 109). gada de novos insultos e ameaças:
Harold Bloom, um dos mais conceituados
Antônio – Estou a ponto de te chamar as-
estudiosos de Shakespeare, não hesitou em sim de novo, de cuspir em ti de novo, de
afirmar que [...] “teria sido melhor para o te enxotar a pontapés também. Se queres
povo judeu, ao longo dos últimos quatro sé- emprestar esse dinheiro, empresta não
culos, se Shakespeare jamais tivesse escrito como se fosse para amigos, pois quando
essa peça.” (BLOOM, 2000, p. 224). Bloom é que um amigo toma de outro amigo a
vai mais além, equiparando o antissemitismo ninhada de seu estéril metal? Pelo con-
trário: empresta o teu dinheiro ao teu Antônio. Harold Bloom assim sintetiza a peça
inimigo, àquele que, se for à bancarrota, shakespeariana: “A comédia cristã triunfa, a
tu podes com um sorriso no rosto cobrar maldade judia é coibida, e tudo acaba bem
dele a multa devida. (SHAKESPEARE, [...].” (BLOOM, 2000, p. 228).
2008, p. 40-41).
Já para Jacques Attali, as características
Além de Antônio, outros personagens se- socioeconômicas de O Mercador de Veneza
cundários demonstram claramente sua aver- seriam uma metáfora da própria Londres
são a Shylock, como Lancelote, o palhaço, elisabetana, representando um porto que se
empregado na casa de Shylock, pautado por desenvolvia e fervilhava de atividades comer-
um tipo de humor grosseiro: ciais. (ATTALI, 2008). É reconhecido que a
peça representa um desafio ao público atual,
Lancelote – Lógico, a minha consciên-
tendo em vista que sua encenação não pode
cia vai me ajudar a fugir desse judeu, o
ser mais realizada como era originalmente,
meu amo. O demônio está aqui no meu
cotovelo, me tentando, me dizendo: [...]
sem críticas, sendo por isso muito difícil res-
“Meu bom Lancelote Gobbo, pernas pra gatar a arte de Shakespeare, como reconhece
que te quero, dê a partida, trate de fugir”. Harold Bloom. (BLOOM, 2000).
Minha consciência diz: [...] “honesto Este comportamento vingativo é, nas
Lancelote Gobbo: nada de fugir, des- palavras de Jacques Attali, completamente
preza essa fuga, pega ela e chuta com os incompatível com a moralidade judaica: “Na
teus calcanhares” [...] Se me deixo guiar verdade, nada é menos judeu do que o com-
por minha consciência, devo ficar com portamento de Shylock: [...] a moral judaica
o judeu, meu amo, que... Deus que nos proíbe as represálias e rejeita a lei de talião,
livre!... é uma espécie de demônio. [...] e também condena qualquer corte de carne
Certo, o judeu é a encarnação do diabo
num animal vivo.” (ATTALI, 2008, p. 311).
[...] O demônio me dá o conselho mais
O comportamento vingativo de Shylock, por-
afável: vou fugir [...]. (SHAKESPEARE,
tanto, não pode ser considerado verdadeiro.
2008, p. 45-46).
quanto o tempo – não produz riqueza por Na verdade, a estes proibiam-se pouco
si mesmo, é estéril; por isso, fazer co- a pouco atividades produtivas que hoje
mércio de dinheiro é um pecado mortal. chamaríamos “primárias” ou “secundá-
Essa obsessão da esterilidade do dinheiro rias”. Não lhes restava outra coisa, ao
também remete ao ódio à sexualidade, lado de algumas profissões “liberais”
proibida fora do casamento. Para a [...] como a medicina [...] senão precisamente
Igreja, nada deve ser fértil fora daquilo fazer com que o dinheiro, ao qual o cris-
que é criado por Deus. Fazer o dinheiro tianismo recusava qualquer fecundidade,
trabalhar corresponde a fornicar. (AT- produzisse. (LE GOFF, 1989, p. 35).
TALI, 2008, p.109).
O empréstimo de dinheiro a juros tornou-
Para os judeus, por outro lado: se um dos poucos ofícios disponíveis para os
judeus do renascimento. Dessa forma, não
[...] o dinheiro está vivo e deve trabalhar;
havendo alternativas para sobrevivência,
ele é fecundo, como eram os rebanhos
de Jacó, e a riqueza é sã. O dinheiro não
firma-se o preconceito contra Shylock e os
é um bem diferente dos outros; está tão usurários judeus de Veneza.
vivo quanto os outros. (ATTALI, 2008,
p. 147)
Considerações Finais
[...]
Conclui-se, portanto, que o papel econô-
O dinheiro, assim como o gado, é uma ri- mico desempenhado pelos judeus é funda-
queza fértil, e o tempo é como um espaço mental para Veneza e outras cidades mercan-
a ser valorizado. (ATTALI, 2008, p. 109). tis, entretanto, sua posição social contrasta
Esta situação também revela um profundo com sua importância econômica. Shylock,
assim como outros judeus de sua comuni-
embate entre uma mentalidade medieval,
dade, são considerados indesejáveis, sendo
fechada ao comércio e totalmente voltada a
necessário mantê-los longe da população
Deus, e uma mentalidade renascentista, dinâ-
cristã. O gueto adotado por Veneza e outras
mica, berço do capitalismo moderno e tendo
cidades italianas é a síntese desta problemá-
em vista atender as necessidades do homem.
tica em que os judeus, úteis no mundo das
A usura não era praticada somente pelos finanças, não são expulsos – como ocorreu
judeus. Ao final da Idade Média e durante o na Espanha - mas segregados e mantidos sob
Renascimento, um grande número de cristãos vigilância. O pragmatismo econômico destas
também se dedicou a este ofício. A concor- cidades manteve os judeus economicamente
rência entre cristãos e judeus também se próximos, mas socialmente afastados.
acentuou: “O grande impulso econômico do As relações entre judeus e cristãos ao
século XII multiplicou os usurários cristãos. longo da Alta Idade Média haviam sido rela-
A hostilidade deles contra os judeus era mais tivamente pacíficas, mas a partir do advento
alimentada à medida que estes se tornavam das cruzadas, esta realidade se transformou.
temíveis concorrentes.” (LE GOFF, 1989, p. Porém mesmo durante o Renascimento, o
37). Ao referir-se aos judeus, Jacques Le Goff papado e seus domínios na Itália significaram
desfaz alguns mitos: um porto relativamente seguro quando com-
É preciso antes de tudo desfazer um parados a ação zelosa da Inquisição na Espa-
equívoco. A história ligou estreitamente nha, cuja política dos reis Isabel e Fernando
a imagem do usurário à do judeu. [...] de impor uma limpeza de sangue (limpieza
de sangre) não encontrou semelhante em toda judeu histórico, cuja atividade de usurário
a Europa (LE GOFF, 2007). A isso se soma enquadra-se dentro das condições a eles
a concorrência de mercadores e financistas reservadas por uma sociedade que os estig-
cristãos, que certamente insuflaram ainda matizou, cujo comportamento pode sim ser
mais ódio contra seus concorrentes judeus. definido como sendo a origem do moderno
A análise de O Mercador de Veneza fenômeno que chamamos de antissemitismo.
também revela o importante papel do teatro Nesta perspectiva, Jacques Le Goff aponta
com muita precisão que é esta sociedade
na difusão de ideias antijudaicas. Para Jean
cristã do final da Idade Média que começou
Delumeau, antes mesmo de O Mercador de
a construir o antissemitismo europeu (LE
Veneza ser escrita, no final século XVI, o
GOFF, 2007).
teatro sacro (o chamado Mistério) já havia
desempenhado importante meio de cate- Shylock é um personagem que antecipa os
grandes massacres e perseguições a judeus no
quese antijudaica, provocando hostilidades
século XX, e as ideias antissemitas presentes
contra os judeus, principalmente nas cidades
em O Mercador de Veneza ainda estarão
onde eram representadas. Do teatro sacro, o
presentes em obras relativamente recentes
antijudaísmo passou para o teatro profano, como Os Protocolos dos Sábios de Sião. O
tornando Shylock um personagem verossímil judeu de Shakespeare, mesmo possuindo
aos expectadores (DELUMEAU, 2009). um caráter caricato e deformado, tornou-se
Despido o personagem de Shakespeare uma presença constante no imaginário do
de seus elementos caricatos, sobra apenas o ocidente.
NOTAS
1
O presente artigo foi concebido originalmente como Trabalho de Conclusão de Curso realizado no ano
de 2009 pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus de Erechim
– RS, como requisito para obtenção do título de Licenciado em História.
2
A designação “judeu” surge na Antiguidade, com a desintegração do reino de Israel e a formação do
reino de Judá. Dessa forma, seus habitantes então passaram a ser chamados de judeus.
3
Perseguições e massacres de judeus, muito comum na cristandade latina ao longo da Idade Média. Os
grandes pogroms iniciaram-se na Idade Média a partir da Primeira Cruzada, sendo os mais conhecidos
os do conde Emich II von Leiningen contra os judeus da Renânia, em 1096.
4
Os armênios possuem uma trajetória histórica semelhante a dos judeus, tendo eles sido dominados ou
expulsos por impérios vizinhos ao longo dos últimos séculos. Os massacres perpetrados pelos turcos
contra civis armênios durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) contribuíram ainda mais para
sua dispersão.
5
Região que atualmente corresponde à Bélgica.
6
Região próxima ao Lago Tana, na Etiópia.
7
Área que atualmente corresponde ao território da moderna Turquia.
8
Região correspondente à costa ocidental da Índia.
9
Libra é uma unidade de peso utilizada nos países anglo-saxônicos e que corresponderia nos dias de
hoje a aproximadamente 0, 453 gramas.
10
O Doge era a autoridade máxima na hierarquia política da República de Veneza.
11
Os Protocolos dos Sábios de Sião é uma obra marcadamente antissemita que acusa os judeus de
objetivarem o domínio do mundo, através de uma articulação financeira. Sua origem é incerta, mas é
provável que tenha sido forjado pela polícia secreta russa, a Okhrana, no início do século XX tratando-
se, portanto, de uma farsa.
12
Dramaturgo inglês contemporâneo de Shakespeare, sendo autor de, além de O Judeu de Malta, Ta-
merlão, Doutor Fausto e Dido, a Rainha de Cartago, entre outras.
13
A ponte do Rialto era o centro financeiro de Veneza.
14
Teólogo e filósofo medieval expoente da Escolástica, método que procurava conciliar a fé com a
filosofia.
AUTORES
César Luiz Jerce da Costa Junior - Licenciado em História pela Universidade Regional Integrada
- URI Campus de Erechim. E-mail: cesarcostajunior@yahoo.com.br
Luciane Gressana - Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul. E-mail: lugressana@uri.com.br
REFERÊNCIAS