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A rtigo

Etnoconservação como política


de meio ambiente no Brasil: desafios
políticos de resistência e integração
ao mundo globalizado

Alexandre, Agripa Faria * renováveis) associada particularmente às pro-


postas de destaque das experiências das Re-
servas Extrativistas e a outras políticas de re-
Resumo: O propósito deste artigo consiste sistência e integração ao mundo globalizado.
em discutir a especificidade cultural brasilei- Palavras-chave: etnoconservação; política
ra e seus conflitos relacionados com a política nacional brasileira; unidades de conservação;
nacional de unidades de conservação. Neste globalização.
particular, o texto confere destaque ao que hoje
se discute como etnoconservação (ou, ainda, Introdução
gestão comunitária dos recursos naturais
Num mundo cada vez mais globalizado e
* Professor do Departamento de Ciências Sociais e homogêneo, muitas vezes, cresce a idéia de
Filosofia da Universidade Regional de Blumenau e que a continuidade da diversidade de cultu-
Doutorando do Programa Interdisciplinar em Ciências ras humanas é elemento fundamental para a
Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. constituição de sociedades pluralistas e demo-
Pesquisador e Coordenador Geral do Instituto de cráticas, atrelando-se a isso a imutabilidade
Ecologia Política. Para contato com o autor: telefone: dos padrões culturais em que se deveria man-
(48) 322- 0916 e e-mail: agripa@cfh.ufsc.br. ter as populações tradicionais nas unidades 55
Agroecol. e Desenv. Rur. Sustent., Porto Alegre, v.3, n.3, Jul/Set 2002
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de conservação (Diegues, 2001: 96-97). publicano, defensores da causa da natureza
Entre a valorização das atividades mantidas como patrimônio brasileiro exclusivo.
por essas comunidades, uma margem de flexi- Recentemente ainda se lamenta que exis-
bilidade para a inovação deve ser permitida para ta no Brasil somente um tipo de unidade de
não se correr o mesmo risco das experiências conservação que contempla e favorece a per-
de “naturezas intocadas”, impostas pela legisla- manência de populações tradicionais, ao lado
ção das décadas de 60 e 70 no Brasil e no mun- da única reserva da biosfera da UNESCO do
do, que marginalizaram e expulsaram popula- Brasil (criada em 1992 e que abrange as regi-
ções inteiras de suas áreas comuns, seguindo ões Sul e Sudeste) e que prevê também a pre-
a experiência do modelo americano dos parques sença de populações tradicionais: a reserva
nacionais baseados em concepções preservacio- extrativista, definida como área natural ou
nistas do “mundo selvagem” (wilderness), como pouco alterada, ocupada por grupos sociais que
o de Yellowstone, criado nos EUA em 1872 (Allut; usam como fonte de subsistência a coleta de
Guha; Sarkar; Pompa e Kaus; Castro; Pretty e produtos da flora nativa ou a pesca artesanal
Pimbert; Colchester; Schwartzman e Arruda In: e que as realizam segundo formas tradicionais
Diegues, 2000). A esse respeito, consultar o tam- de atividade econômica sustentável e condi-
bém célebre trabalho O nosso lugar virou parque, cionadas a regulamentação específica
de Antônio Carlos Diegues (1999). (DIEGUES, 2001: 122).

Etnoconservação como política de meio


ambiente: desafios políticos de resistên-
"Recentemente ainda se lamenta
cia e integração ao mundo globalizado
que exista no Brasil somente um Como reação política, existem diversos
tipo de unidade de conservação movimentos de populações tradicionais em
áreas protegidas no Brasil. Como destacam
que contempla e favorece a diversos trabalhos organizados por Diegues
(2000; 2001), pode-se contar duas espécies
permanência de populações
desses movimentos:
tradicionais ..."
a) os movimentos autônomos localizados sem
inserção em movimentos sociais amplos; e
Nesse mesmo sentido, o surgimento das b) os movimentos locais com inserção em
preocupações com as populações tradicionais movimentos sociais amplos: as experiências das
moradoras de parques nacionais vem moti- Reservas Extrativistas.
vando a valorização do ambientalismo
ecoconservacionista. O sentido histórico de Os primeiros desses movimentos divi-
captura dos problemas de desenvolvimento no dem-se em:
Brasil já foi narrado por Caio Prado, Sérgio
Buarque de Holanda, Euclides da Cunha, en- i) movimentos locais espontâneos: são movi-
tre outros, e por José Augusto Pádua, que re- mentos organizados de pequenos produtores
centemente (1987) recuperou os registros extrativistas organizados na defesa de sua
históricos de José Bonifácio, Joaquim Nabuco, área. Destacam-se aqui os movimentos de
André Rebouças e Alberto Torres, entre ou- pequenos produtores pela preservação de re-
tros, abolicionistas monarquistas, liberais e cursos haliêuticos que têm levado ao fecha-
56 desenvolvimentistas do Brasil imperial e re- mento de áreas de pesca para uso exclusivo

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da comunidade, como nos casos registrados no Neste caso, vale registrar o acontecimen-
Rio Cuiabá, próximo de Santo Antônio do to de perseguição política e econômica regis-
Leverger, e na região amazônica, com o fe- trado por Diegues (2001), com o movimento
chamento de lagos pelas populações locais. dos Ex-quilombos Negros de Trombetas. É sa-
ii) movimentos locais tutelados pelo Estado: bido que a região amazônica constitui-se na
mesmo com a interdição da presença de popu- área de maior conflito entre populações tra-
lações em áreas de preservação, autoridades dicionais e unidades de conservação no Bra-
estatais vêm dando acolhida às populações tra- sil, ocorrendo por isso enorme expropriação
dicionais que foram expulsas de suas áreas, com dos espaços, recursos e saberes da parte das
a criação desses parques. É o caso do Parque populações locais pela implantação, desde as
Estadual da Ilha do Cardoso, litoral sul de São décadas de 60 e 70 do regime militar, tanto
Paulo, criado em 1962. Segundo Diegues (2001), de grandes projetos de mineração quanto de
"exemplo desse tipo de situação das popu- áreas naturais protegidas, estas últimas por
lações tradicionais em áreas naturais prote- pressão internacional subseqüente à posição
gidas é a existente no Estado de São Paulo. pró-acolhimento de indústrias poluentes no
Nesse estado, em cerca de 37,5% dos parques país, assumida pelos diplomatas brasileiros
por ocasião da conferência de Estocolmo so-
existe ocupação humana, tradicional ou não.
bre Meio Ambiente Humano, em 1972. Como
Essas populações são heterogêneas quanto a
ressalta Diegues, a fim de conseguir recur-
origem geográfica, laços históricos com a re-
sos internacionais e aprovação nos meios
gião, situação fundiária e tipo de uso de re-
ambientalistas oficiais (setores do Banco
cursos naturais. De um lado, as que invadi-
Mundial, por exemplo), nos chamados pólos
ram o parque na época ou depois de sua cria-
de desenvolvimento se propunha a instala-
ção e que são fruto da estrutura agrária in-
ção de áreas naturais de conservação para
justa no Brasil, e, de outro, populações tradi-
“minimizar” os graves impactos ambientais
cionais que residem há várias gerações na
decorrentes dos grandes projetos.
área transformada em parque e que mantêm
"as populações locais, espalhadas pelas mar-
vínculos históricos importantes com ela, de-
gens dos rios, foram então duplamente desti-
pendem para sobrevivência do uso dos recur-
tuídas. Os estudos de viabilidade e de impacto
sos naturais renováveis, dos quais têm gran-
ambiental, no geral, negavam visibilidade aos
de conhecimento.” (DIEGUES, 2001: 138).
moradores locais que viviam da coleta de cas-
tanha, da pesca, da lavoura de subsistência.
Nessas áreas, há certa sensibilidade de
Para esses estudos os moradores locais, que
técnicos das agências ambientais dispostos viviam espalhados pelo território, simples-
à integração das populações. O mesmo ocor- mente não existiam, e quando se lhes reco-
re com: nhecia a existência, era para cadastrá-los, li-
iii) movimentos locais com alianças com ONG's: mitar-lhes as atividades extrativistas e, final-
são exemplos de incorporação recente de popu- mente, expulsá-los usando de várias formas
lações tradicionais em unidades de conserva- de coerção, incluindo a física e a policial. Esse
ção, como no caso do projeto na Estação Ecoló- processo ocorreu no final da década de 70 com
gica Manirauá, no Estado do Amazonas, que é as populações negras, remanescentes de an-
administrada pela Sociedade Civil Manirauá e tigos quilombos do rio Trombetas, que viviam
apoiada pela World Wildlife Fund (WWF), apesar próximas a Óbitos, no Pará. Em 1979, o IBDF
de ali tratar-se de uma unidade de conserva- (depois IBAMA) criou a Reserva Ecológica de
ção de uso restritivo. Trombetas, numa área secularmente utiliza- 57
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da pelos negros de Trombetas em suas ativi- médio do órgão ambiental federal, o IBAMA, e
dades extrativistas de pesca e castanha. (...) A aos demais órgãos semelhantes estaduais e
implantação da Reserva Ecológica na margem municipais, e assim legitimando a posição
esquerda do Trombetas, e a criação posterior, do governo como responsável por uma mudan-
em 1989, da Floresta Nacional na margem di- ça de atitude para com as populações tradicio-
reita do mesmo rio, tornaram inviável o modo nais; e a outra perspectiva, associada a idéi-
de vida dos negros libertos de Trombetas. (...) as de envolvimento com essas populações
Verifica-se nesse caso uma associação de for- menos pragmáticas, denominadas sob o sig-
ças privadas (mineradoras) e públicas (IBAMA) no, por exemplo, de etnoconservacionismo.
para destruir, física e culturalmente, uma po-
Ecoconservacionismo
pulação que até então tinha vivido em har-
e etnoconservacionismo no Brasil
monia com a floresta e os rios da Amazônia.
Na visão dessas instituições, a ação se legiti-
ma pelo apelo à 'modernidade econômica e eco- Historicamente, o mais conhecido movimen-
lógica' (...)" (DIEGUES, 2001: 144). to de ecoconservacionismo político é o dos Se-
ringueiros. Iniciado na década de 70, o movi-
mento se opunha fortemente à derrubada das
florestas no Acre, através do primeiro sindicato
rural desta causa, em Basiléia. Já em 1985, o
movimento organizado veio a compor o Conse-
"... a visibilidade legal das reser-
lho Nacional dos Seringueiros, estabelecido para
vas deve ser acompanhada de reivindicar a criação das Reservas Extrativistas.
Em oposição efetiva contra os fazendeiros, eles
uma visibilidade econômica ..." defendiam radicalmente a posse da terra e o
modo de vida tradicional, que contou com o apoio
efetivo de grupos ambientalistas nacionais e in-
ternacionais. Em 1986 foi criada a Aliança dos
Esse registro serve para ilustrar também que Povos da Floresta, congregando também a luta
as populações negras do Trombetas não fica- de reivindicações das populações indígenas. Em
ram passivas. Elas se organizaram e criaram Altamira (1989), realizou-se igualmente o En-
a Associação das Comunidades dos Remanes- contro dos Povos das Florestas, para protestar
centes de Quilombo para lutar contra a expro- também contra a construção de hidrelétricas no
priação de suas terras e da sua cultura, vindo rio Xingu, local de várias reservas indígenas.
a protestar com suas reivindicações junto ao A história do extrativismo no Brasil está
Ministério Público Federal, que hoje se desta- associada aos diversos ciclos da extração dos
ca por possuir grande sensibilidade na defesa produtos para exportação, inicialmente com
dos interesses dessas populações tradicionais o pau-brasil. Somente no século XIX a região
e indígenas no Brasil (ALEXANDRE, 2002). Norte desponta como região extrativista de
Quanto aos movimentos locais com inserção importância econômica, desta vez da borra-
em movimentos sociais amplos: as experiências cha, o que mereceu seus tempos prósperos,
das Reservas Extrativistas, um ponto de vista vindo a sofrer declínio na década de 20 deste
do ecoconservacionismo varia entre a pers- século. Junto com a borracha, a castanha e
pectiva que destaca a história do plantas medicinais da Amazônia também se
extrativismo, e daí procura-se incorporá-la ao incluem nas atividades extrativistas. Já em
58 movimento de tutela do governo, por inter- outras regiões, possuem o cacau, o babaçu, o
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sua reprodução não é forçada ou controlada
pelo homem: tais recursos podem ser usados,
geridos, mas não produzidos. Isso inclui as flo-
restas naturais, a fauna selvagem aquática e
terrestre, as águas e o ar. Recursos renováveis
são vivos ou em movimento, onde a presença
da variável temporal implica a adoção de
enfoques centrados na noção de fluxo e de va-
riabilidade. Mesmo configurando um proces-
so de natureza biofísica, a condição de
renovabilidade pode ser analisada também
como um fenômeno social complexo, a partir
do reconhecimento de que ela se torna par-
cialmente construída mediante a interação
social" (VIEIRA; WEBER, 1997: 27)
óleo da carnaúba importância econômica con-
siderável, em especial no Nordeste. As atividades ali desenvolvidas são tam-
A evolução histórica do extrativismo regis- bém de cooperativismo, comercialização dos
tra a viabilidade econômica das Reservas produtos e de pesquisa de sistema de manejo
Extrativistas. Estas compõem: florestal. De acordo com a maioria dos estu-
"uma área já ocupada por populações que dos apontados aqui, a visibilidade legal das
vivem dos recursos da floresta, regularizada reservas deve ser acompanhada de uma vi-
através da concessão de uso, transferida pelo sibilidade econômica, afeita como está hoje
Estado para associações legalmente constitu- a busca de alternativas de comercialização
ídas, explorada economicamente segundo pla- de seus produtos no mercado internacional.
no de manejo específico e orientada para o be- O Conselho Nacional dos Seringueiros dis-
nefício social das populações através de proje- põe também do Centro de Formação e Pes-
tos de saúde e educação" (DIEGUES, 2000: 147). quisa, o qual investe na diversidade da pro-
dução, pesquisa em manejo natural,
agroflorestal e neo-extrativista e de conser-
É importante também incluir aqui o concei-
vação genética (DIEGUES, 2000, p. 148).
to de gestão patrimonial dos recursos naturais
Segundo levantamentos do Centro Nacional
renováveis, ou de gestão comunitária dos recur-
de Desenvolvimento Sustentado das Populações
sos naturais renováveis. Tais conceitos infor-
Tradicionais, ligado ao IBAMA, a viabilidade das
mam a natureza da atividade extrativista, que,
reservas é significativa, tomando-se a renda
além de estar associada aos conhecimentos e
familiar dos extrativistas, que chega a ser su-
ao modo de uso e acesso aos recursos comuns
perior à renda de 60% da população residente
dispostos pelas populações tradicionais, já indi-
urbana da Região Norte, que no último senso
cados aqui, denotam que são recursos com
de 2000 ganhava até um salário mínimo. Essa
especificidades próprias. Como sublinham
superioridade tende também a aumentar com
Vieira e Weber (1997), recursos naturais
o incremento da atividade extrativista, segun-
renováveis referem-se:
do o que esse mesmo estudo apontava.
Esse Centro do IBAMA também é responsável
"ao caso daqueles que o homem explora
pela implementação de estratégias de indução
sem poder influenciar o processo de renova-
ção de maneira positiva. Em outras palavras, para a criação de reservas extrativistas, seguin-
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e recebendo aporte técnico do órgão
ambiental federal: Reserva Extrativista
Tapajós-Arapiuns (PA); Reserva Extrativis-
ta da Mata Grande (MA); Reserva Extrati-
vista do Quilombo do Frexal (MA); Reserva
Extrativista do Médio Juruá (AM); Reserva
Extrativista do Ciriáco (MA); Reserva Extra-
tivista do Extremo Norte do Tocantins (TO);
Reserva Extrativista do Lago do Cuniã (RO);
Reserva Extrativista do Rio Ouro Preto (RO);
Reserva Extrativista do Rio Cajarí (AP); Re-
serva Extrativista Chico Mendes (AC); Re-
serva Extrativista do Alto Juruá (AC); Re-
serva Extrativista Marinha da Baía de
Iguape (BA); Reserva Extrativista Marinha
do o modelo dos seringueiros do Norte e que já de Arraial do Cabo (RJ); e Reserva Extrati-
induzira a criação da primeira reserva extrati- vista Marinha do Pirajubaé (SC).
vista marinha, na Região Sul do Brasil, no Esse contexto tem levado ainda a análise
ecossistema marinho de Pirajubaé, em antropológica sobre as comunidades tradicio-
Florianópolis, Santa Catarina. As propostas do po- nais a rever o sentido de conservacionismo
der público constam do Projeto Resex desse Cen- ambiental ou ecoconservacionismo. Dentro
tro. Além de visar o auxílio legal para a criação dessa nova ótica, a postulação mais recente
das reservas, o projeto oferece auxílio técnico para para entender o comportamento político, so-
fortalecer as organizações a se desenvolverem cial, econômico e cultural dos “comunitários”
estruturalmente. Os maiores benefícios desse tem sido o termo etnoconservacionismo. Na re-
projeto apontados pelo IBAMA referem-se ao au- alidade, Diegues (2000) a coloca como o re-
xílio às atividades produtivas de subsistência e sultado da constatação das ambigüidades e
de comercialização, principalmente no fomento incongruências das teorias preservacionis-
de parcerias de diversas ordens com universida- tas que ele acusa como elaboradas pelos paí-
des e negócios com empresas. ses do Norte e transplantadas para os países
Observando mais de perto os registros de do Sul, com o apoio de grandes organizações
divulgação do IBAMA1, para o caso das Re- preservacionistas internacionais. Ancorado
servas Extrativistas (Resex), chama a aten- num novo ecologismo social dos movimentos
ção o aspecto central que vem a ter o do Terceiro Mundo, surgidos na Índia,
enfoque crítico concernente à apropriação Zimbábue, mas também na América Latina,
privada dos recursos naturais. As Resex são esse etnoconservacionismo enfatiza a neces-
somente explicadas levando-se em consi- sidade de se construir uma aliança entre o
deração o agravamento dos conflitos homem e a natureza, baseada na importân-
cia das comunidades tradicionais indígenas
socioambientais relacionados com a expan-
e não-indígenas nesse tipo de conservação
são do domínio de propriedade privada típi-
das matas e outros ecossistemas presentes
co dos modelos agrícolas e de pecuária bra-
nos territórios em que habitam. Trata-se da
sileiros. Nos registros consultados, são as
valorização do conhecimento e das práticas
seguintes as Reservas Extrativistas criadas
de manejo dessas populações. Isso requer um
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olhar cuidadoso dos cientistas, tão cuidadoso nenhuma mutação. Faz-se daí óbvio que, para
quanto zeloso pelo conhecimento desse as cosmologias ameríndias encontradas por
patrimônio (DIEGUES, 2000, p. 41-42). Descola, a “natureza”, tal qual entende a ci-
Aliás, tal preocupação já não desponta so- ência ocidental, não é um domínio autônomo
mente como retórica do mundo acadêmico. e independente, mas faz parte de um conjun-
Pajés que representam nações indígenas de to de inter-relações (DIEGUES, 2000, p. 30;
várias partes do Brasil já reivindicaram pre- DESCOLA, 2000, p. 149-163).
sença junto à Organização Mundial da Proprie-
dade Intelectual, em Genebra. Preocupados À guisa de conclusão
com a pirataria do conhecimento que detêm,
eles exigem que os organismos internacionais Esse tema para o ecoconservacionismo
criem formas de punir o roubo de recursos na- obriga-nos ao desfazimento da certeza sobre
turais das florestas para a exploração indus- qualquer utilização mais economicista sobre
trial e montem um fundo com recursos para o meio natural ocidental. Se é certo a ativi-
subsidiar pesquisas feitas pelas próprias comu- dade econômica com o sentido empregado para
nidades indígenas. Nos tempos de discussão so- a “conservação”, o sentido do etnoconserva-
bre recursos genéticos, eles também exigem cionismo deveria então ater-se à “conserva-
regras para a divisão dos benefícios sobre os ção” das populações tradicionais, incluindo
conhecimentos por eles trabalhados. Segundo aqui as indígenas apontadas por Descola.
o jornal Folha de S. Paulo2, há registros de pelo Em contraposição também com as cartilhas
menos oito espécies da Amazônia que foram preservacionistas que defendem uma partici-
patenteadas por laboratórios estrangeiros. pação passiva e conformista das comunidades
Colocados de maneira talvez instrumental tradicionais (incluindo as indígenas), em fa-
demais, esses fatos não afastam a hipótese vor da intocabilidade de florestas e espaços
de um novo ecoconservacionismo. Segundo naturais virgens, sem a presença humana,
Diegues (2000), registrou-se na literatura téc- Pimbert e Pretty (2000) defendem uma con-
nica, entre 1990 e 1999, mais de 61% de pu- cepção alternativa para a obtenção de resul-
blicações sobre etnoconhecimento e manejo tados favoráveis a essas minorias:
de ecossistemas por parte de populações tradi-
cionais, com informações detalhadas. Descola "Uma proposta para a participação local re-
(2000) também atém-se ao conhecimento das centemente surgiu do movimento dos mora-
culturas não ocidentais, incluindo indígenas dores de Gujjar sobre o proposto Parque Naci-
e tradicionais, como as comunidades ribeiri- onal em Uttar Pradesh, Índia. Buscando um
nhas e caiçaras. Ele sugere que para comuni- novo acordo, grupos excluídos como os índios
dades da Amazônia, como os indígenas Achuás, kunas e os Gujjars confrontam arranjos so-
a floresta e as roças, longe de se reduzirem a ciais que determinam critérios de acesso aos
um lugar de onde retiram os meios de subsis- recursos. O objetivo dessas iniciativas de
tência, constituem o palco de uma sociabili- raízes locais é: não para conquistar ou sub-
dade sutil. Ali habitam vários seres, e os ani- jugar o Estado, mas forjar alianças seletivas
mais podem parecer humanos e vice-versa. O com partes de estado e sua burocracia, en-
antropólogo enfatiza a idéia assim de quanto se evitam novas repressões
interligação entre as espécies, em clientelistas. Essa bem sucedida ação políti-
contraposição ao descontínuo ocidental em que ca gradualmente conduziria ao que os exclu-
ídos vêem como um estado “melhor”, onde
as identidades dos humanos, vivos ou mortos,
das plantas e dos animais, é irrelacional, sem suas reivindicações e interesses são toma- 61
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variedade sinonímica de expressões tais quais
conservacionismo ambiental, políticas de gestão co-
munitária dos recursos naturais renováveis ou ain-
da etnoconservacionismo, estas duas últimas com
conotações nada utilitaristas. Tal distinção é
importante de ser observada também em decor-
rência de qualquer equívoco que se possa vir a
cometer ao associar idéias utilitaristas do
ecoconservacionismo com os mesmos propósi-
tos, por exemplo, de correntes ecocapitalistas
que também nos falam de redução de desperdí-
cios ou gestão ambiental para a melhor
persecução dos fins econômicos que visa.

dos mais seriamente e onde as autoridades


tiverem intenção de inclinar o jogo do poder
a seu favor (...) em última análise, provavel-
mente não há alternativas para a união de
esforços de um estado reformista e uma so-
ciedade civil revigorada e organizada cujos
excluídos podem fazer ouvir sua voz"
(PIMBERT; PRETTY, 2000, p. 211-212).

Como conclusão, restringe-se com isso qual-


quer abordagem simplista voltada para a ques-
tão do uso racional dos recursos naturais qua-
se unicamente. Portanto, a especificidade do
termo ecoconservacionismo não está associa-
da apenas ao ethos científico do desenvolvimen-
to que denota rigor no método de alocação dos
recursos naturais, eficiência e prevenção de
desperdícios, assim como produtividade asse-
gurada com o máximo de rentabilidade.
Distintivamente de outras correntes do
ambientalismo, o emprego aqui da expressão
62 ecoconservacionismo aduz, no entanto, a uma

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Notas
1 2
Site do IBAMA: http:// www.ibama.gov.br Folha de São Paulo, São Paulo, sexta-feira, 7 de
64 dezembro de 2001.
Agroecol. e Desenv. Rur. Sustent., Porto Alegre, v.3, n.3, Jul/Set 2002

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