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Título Original: Parsecs and Parables

© 1970 by Robert Silverberg


© Doubleday, 1970

Editora: Circulo do Livro


O Homem que Jamais Esquecia

Ele a viu na fila de um grande cinema de Los Angeles, na manhã de uma terça-fei-
ra ligeiramente nevoenta. Era delgada e pálida, de finos e compridos cabelos de tri-
go, mal teria quinze anos, e estava só. Lembrava-se dela, naturalmente.
Podia ser engano, mas, atravessando a rua, caminhou ao longo da fila até o lugar
onde ela se encontrava.
- Alô! - disse.
Ela voltou-se, encarou-o impassível, passou rapidamente nos lábios a pontinha da
língua...
- Creio que... creio que não...
- Sou Tom Niles - disse ele. - Pasadena, ano-novo de 1955. Sentou-se junto de
mim no Estado de Ohio 20 versus Califórnia do Sul. Não se lembra?
- Num jogo de futebol? Mas eu raramente... isto é... sinto muito... eu...
Alguém na fila avançou para ele com aspecto ameaçador. Niles sabia quando esta-
va vencido. Sorriu desculpando-se e disse:
- Sinto muito, senhorita. Acho que me enganei. Confundi-a com alguém que co-
nhecia, uma certa Miss Bete Torrance. Desculpe!
E afastou-se rapidamente. Não andou mais de dez pés, quando ouviu um pequeno
ofego e as palavras “Mas eu sou Bete Torrance!”... Ele, porém, continuou andando.
“Eu devia ter mais juízo aos vinte e oito anos”, pensou amargamente. “É que me
esqueço do fato básico: de que, embora eu me lembre das pessoas, estas necessa-
riamente não se lembram de mim...”
Abatido, caminhou até a esquina, virou à direita, pôs-se a descer uma nova rua –
rua cujas lojas lhe eram completamente estranhas, e que, por isso mesmo, nunca
antes visitara. Sua mente, como boa máquina que era, estimulada pelo incidente da
fila de cinema, vomitou, até alcançar o diapasão normal de atividade, um exército de
lembranças tangenciais.

1º de janeiro de 1955, no Rose Bowl de Pasadena, Califórnia, número do assento,


G126; dia quente, muito úmido, cheguei ao estádio às doze e três, horário padrão do
Pacífico. Fui sozinho. A moça ao lado trazia um vestido azul de algodão e tênis bran-
co, carregava uma fâmula do Califórnia do Sul. Falei com ela. Nome, Bete Torrance,
aluna adiantada do Califórnia do Sul, curso especializado. Tinha companheiro para o
jogo, mas o rapaz adoecera com sintomas de gripe no dia anterior e insistiu para que
ela fosse assistir à disputa futebolística mesmo sozinha. O assento ao lado dela, va-
zio. Comprei-lhe um cachorro-quente, vinte cents (sem mostarda...).”
Havia mais, muito mais. Porém Niles recalcou as lembranças. Havia entretanto o
relatório virtualmente estenográfico da sua conversação durante todo aquele dia:
(“...Espero que ganhemos. Assisti ao último Rose Bowl que ganhamos, faz dois
anos...)
(“...Sim, foi em 1953. Califórnia do Sul 7, Wisconsin 0... e duas vitórias completas
sobre Washington e Tennessee...)
(“...Puxa, conhece futebol a fundo! Costuma decorar o livro de scores? “)
E as antigas lembranças... O berro escarnecedor de Joe Merrit, o Sardento, naque-
le caloroso dia de abril de 1937: “Quem você pensa que é, Einstein?” E Buddy Call di-
zendo acerbamente a 8 de novembro de 1939: “Aí vem Tommy Niles, a máquina hu-
mana de somar. Agarrem-no!” Depois, a dor aguda de uma bola de neve acertando
logo abaixo da sua clavícula esquerda - dor que ele podia evocar com a mesma facili-
dade com que evocava quaisquer outras lembranças de dor que trazia consigo. Pis-
cou e fechou repentinamente os olhos, como que golpeado pela gélida pelota, ali,
numa rua de Los Angeles, numa manhã nevoenta de terça-feira...
Já não mais o chamavam de “máquina humana de somar”, mas de “gravador hu-
mano”: os termos irônicos tinham de emparelhar-se com as décadas que passavam.
Só o próprio Niles permaneceu inalterado. O Menino de Cérebro de Esponja virou
Homem de Cérebro de Esponja, sempre condenado ao mesmo dom terrível.

Sua mente coalhada de dados lhe doía. Viu um minúsculo carro esporte estacionar
no outro lado da rua, e pelo feitio, modelo, cor e número da licença, reconheceu-o
como pertencente a Leslie F. Marshall, de vinte e seis anos, cabelos louros, olhos
azuis, ator de televisão com as seguintes habilitações...
Estremecendo, Niles desligou o circuito e apagou os dados que se avolumavam.
Estivera uma vez com Marshall, fazia seis meses, numa festa oferecida por um amigo
comum - um amigo de outrora; Niles achava difícil continuar amigo de alguém por
muito tempo. Conversara talvez dez minutos com o ator e acrescentara mais isso à
sua bagagem mental.
Era tempo de seguir adiante, pensou Niles. Residira dez meses em Los Angeles. O
fardo de lembranças acumuladas se lhe tornara excessivamente pesado; cumprimen-
tava um número demasiado de pessoas que já o haviam esquecido. “Ao diabo com o
meu cociente, John. Tamanho normal, cinco pés e nove polegadas, cento e sessenta
e três libras; cabelos castanhos, olhos castanhos, nenhum traço fisionômico indevida-
mente saliente, nenhuma cicatriz visível, exceto as de dentro”, pensou. Tencionava
voltar para San Francisco, mas desistiu. Fazia apenas um ano que lá estivera; em Pa-
sadena, fazia dois. Percebeu que chegara o dia de uma outra excursão para o leste...
“Para a frente e para trás na superfície da América, lá vai Thomas Richard Niles, o
Holandês Voador, o Judeu Errante, o Espírito do Natal Passado, o Gravador
Humano...” Sorriu para um jornaleiro que lhe vendera um exemplar do Examiner do
último dia 13, recebeu de volta o costumeiro olhar inexpressivo, e dirigiu-se para o
terminal de ônibus mais próximo.

Para Niles, a longa viagem começara a 11 de outubro de 1929, na pequena cidade


de Lowry Bridge, Ohio. Era o terceiro de três filhos, nascido de pais aparentemente
normais, Henry Niles (nascido em 1896), Mary Niles (nascida em 1899). Seus irmãos
mais velhos não tinham revelado qualquer manifestação extraordinária; ao contrário
de Tom, que revelara...
Tudo começou quando ele principiou a soletrar; uma vizinha, espiando do alpendre
para dentro da casa dele, viu-o brincando e observou a Mary Niles:
- Veja como ele está crescendo!
Nessa ocasião, Tom contava menos de um ano, e respondera, virtualmente, no
mesmo tom de voz: “Veja como ele está crescendo!”
Foi uma sensação, embora se tratasse de pura mímica, não de discurso.
Passou seus primeiros doze anos em Lowry Bridge, Ohio. Tempos depois cismava
frequentemente em como fora capaz de ali permanecer tanto tempo.
Entrou para a escola aos quatro anos, pois não havia como retê-lo; seus colegas
de classe tinham cinco ou seis anos, eram vastamente superiores a ele em coordena-
ção física, vastamente inferiores em tudo o mais. De certo modo, Tom sabia ler, po-
dia até mesmo escrever, embora seus músculos infantis logo se cansassem de segu-
rar a caneta. E podia... lembrar.
Lembrava-se de tudo. Lembrava-se das rixas de seus pais e repetia exatamente
suas palavras a quem quisesse ouvir, até que seu pai lhe deu uma surra e ameaçou
matá-lo se ele viesse a repeti-las. Também se lembrava disso. Lembrava-se das men-
tiras contadas por seu irmão e sua irmã, e se esforçava em repeti-las com exatidão.
Finalmente, aprendeu a não fazer mais isso. Lembrava-se das coisas ditas por pes-
soas, e até mesmo as corrigia quando mais tarde elas contrariavam as suas primeiras
declarações.
Lembrava tudo.
Certa vez leu um manual, e absorveu-o todo. Quando o professor fazia uma per-
gunta baseada na lição do dia, o braço magricela de Tommy Niles era o primeiro a se
levantar, antes mesmo que os outros a tivessem ao menos assimilado. Passado al-
gum tempo, o professor lhe explicou que ele não podia responder a todas as pergun-
tas, tivesse ou não resposta para elas; havia na escola mais vinte alunos, os quais
lhe ensinaram isso fartamente... depois da aula.
Ganhou na Escola Dominical o Concurso de Memorização de Versículos Bíblicos.
Barry Harman estudara muitas semanas esperando ganhar a luva de boxe que seu
pai lhe prometera se tirasse o primeiro lugar; mas quando chegou a vez de Tommy
Niles, assim começou ele: “No princípio Deus criou o céu e a terra”, continuando com
“Estas são as origens do céu e da terra, quando foram criados: no dia em que o Se-
nhor Deus fez a terra e o céu”, descambando para “Ora, a serpente era a mais astuta
de todas as alimárias do campo que o Senhor Deus tinha feito”; era de presumir que
tivesse recitado todo o Gênese, o Êxodo e o Livro de Josué, não tivesse o aturdido
professor mandado que ele se calasse, declarando-o vencedor.
Barry Harman não ganhou a luva; em vez disso, Tommy Niles ganhou um olho pre-
to.
Começava a perceber que era diferente dos outros. Levou tempo para descobrir
que os outros estavam sempre a esquecer coisas, e que, em vez de admirá-lo por
lembrá-las, ao contrário, odiavam-no. Era difícil para um menino de oito anos, embo-
ra este fosse Tommy Niles, compreender por que o detestavam; mas ele o descobriu
finalmente, de modo que começou a aprender como ocultar seu talento.
No decorrer do nono e décimo anos, exercitou-se na normalidade, e foi quase bem
sucedido; as surras de após as aulas cessaram, e ele conseguiu obter alguns “B” nos
boletins, ao invés de renques de “A”. Crescia; aprendia a fingir Os vizinhos soltavam
suspiros de alívio, agora que o terrível diabrete dos Niles já não mais fazia aquelas
coisas malucas...
Mas por dentro ele era o mesmo de sempre, e percebia que em breve teria de sair
de Lowry Bridge.
Conhecia demais a todos e a cada um. Dez vezes por semana apanhava-os men-
tindo; até mesmo Mr. Lawrence, o ministro, que certa vez rejeitou um convite dos Ni-
les para uma função social, dizendo: “Na verdade tenho de aprontar meu sermão de
domingo”, quando, havia apenas três dias, Tommy o ouvira dizer a Miss Emery, se-
cretária da igreja, que ele experimentara um repentino estro de inspiração e escreve-
ra três sermões de uma assentada, de modo que agora teria tempo livre para o resto
do mês...
Como veem, até Mr. Lawrence mentia... E era o melhor dos homens. Quanto aos
outros...
Tommy esperou até completar doze anos. Era grande demais para a idade e pen-
sou poder agir por si mesmo. Tomou vinte dólares de empréstimo da pseudo-secreta
caixinha do fundo da prateleira da cozinha (fazia cinco anos que sua mãe mencionara
sua existência e ele ouvira), e saiu às escondidas de casa, às três da madrugada. To-
mou o trem de carga para Chillicothe e pôs-se a caminho.

Havia umas trinta pessoas no ônibus que deixou Los Angeles. Niles sentou-se sozi-
nho na parte traseira, junto ao banco situado logo em cima da roda de trás. Conhe-
cia de nome três pessoas que viajavam no ônibus - mas confiava em que elas já o
houvessem esquecido e não se mexeu.
Negócio incômodo. Se dissesse “alô” a alguém que o esquecera, pensariam que
ele era um criador de casos ou um achacador. E se passasse por alguém, pensando
que ele o esquecera, quando, ao contrário, isso não acontecia, então, que tipinho
mais esnobe que ele era! Niles balançava-se entre esses dois polos cinco vezes por
dia. Via alguém, por exemplo a moça Bete Torrance, e recebia de volta um olhar ge-
lado, impassível; ou passava por outra pessoa, acreditando que esta não se lembrava
dele mas andando depressa para escapar a um possível reconhecimento, e ouvia um
irado “Bem! Que diacho você pensa que é?” acompanhando-lhe a retirada.
Agora estava só, sacolejando para cima e para baixo a cada revolução da roda,
com a sua única maleta contendo seus pertences a pular constantemente no com-
partimento de bagagens sobre a sua cabeça. Uma vantagem do seu talento: poder
viajar sem bagagem. Não precisava conservar os livros depois que os lia, e não era
proveitoso entesourar pertences de qualquer espécie; estes se tornavam demasiado
conhecidos, para não dizer cacetes.
Niles olhava as tabuletas da estrada. Já estavam bem entrados em Nevada. A anti-
ga e cansativa retirada prosseguia.
Não podia permanecer demais numa só cidade. Era-lhe preciso dirigir-se a um
novo território, a algum lugar desconhecido, do qual não tivesse lembranças, onde
ninguém o conhecesse, onde não conhecesse ninguém. Nos dezesseis anos que se
passaram desde que saíra de casa, cobrira muito terreno.
Lembrava-se dos empregos que tivera.
Fora revisor de uma casa editora de Chicago. Fazia o trabalho de dois homens. Se-
gundo o costume, um homem lia o manuscrito enquanto o outro conferia as provas.
Niles tinha um método mais simples: lendo o manuscrito, decorava-o, depois apenas
conferia as provas em busca de discrepâncias. Ganhou por algum tempo cinquenta
dólares semanais, antes que chegasse a hora de seguir adiante.
Certa vez fora trabalhar como atração num parque de diversões ambulante que fa-
zia o circuito regular de Alabama-Mississípi-Geórgia. Nessa época estava realmente a
nenhum. Lembrava-se de como arranjara esse emprego: agarrando o dono do par-
que pela lapela e pedindo-lhe um teste:
- Leia-me qualquer coisa... qualquer coisa... e eu me lembrarei!
O sujeito estava meio cético e não via nenhuma utilidade num ato desses, mas fi-
nalmente cedeu quando Niles praticamente desmaiou de fome no escritório dele. O
homem leu para ele o editorial de um semanário do interior do Mississípi, e, quando
acabou, Niles recitou-o inteirinho, palavra por palavra. Obteve o emprego de quinze
dólares por semana mais as refeições, e ficava sentado numa tenda sob a tabuleta
que dizia: “O Gravador Humano”. As pessoas liam-lhe ou diziam-lhe coisas e ele as
repetia. Era um trabalho monótono. Às vezes lhe diziam coisas sórdidas, e na maior
parte dos casos, daí a minutos nem ao menos se lembravam do que haviam dito. Fi-
cou no parque quatro semanas, e quando se despediu ninguém lhe achou falta.
O ônibus rodava na noite que o nevoeiro bloqueava.
Mas ainda houve outros empregos: bons empregos, maus empregos... Nenhum
durou muito tempo. Também houve algumas garotas, porém nenhuma delas durara
muito. Todas elas descobriram-lhe o talento especial - mesmo aquelas das quais ten-
tara escondê-lo - e o abandonaram. Não era possível ficar junto de um homem que
jamais esquecia, um homem que sempre podia catar fraquezas de ontem no reserva-
tório que era a sua mente e lançá-las inopinadamente em público. Um homem de
memória perfeita jamais poderia viver muito tempo entre seres humanos imperfeitos.
“Perdoar é esquecer”, pensava ele. A lembrança de velhos insultos e discussões se
dissipa, e as relações se refazem. Mas para ele não podia existir esquecimento, e, em
consequência, só poderia haver pouco perdão.
Niles fechou os olhos após algum tempo e encostou-se na dura almofada de couro
da poltrona. A cadência ritmada do ônibus deu-lhe sono. Durante o sono, sua mente
descansava; ele podia enfim repousar a memória. Nunca sonhava.

Em Salt Lake City pagou a passagem, desceu do ônibus com a mala na mão e par-
tiu na primeira direção à sua frente. Não queria se afastar muito a leste naquele ôni-
bus. Sua reserva monetária era agora de sessenta e três dólares, e tinha de fazê-la
durar.
Descobriu um emprego de lava-pratos num restaurante do centro da cidade, con-
servou-o o bastante para acumular uma centena de dólares e tornou a partir, desta
vez viajando de carona para Cheyenne. Ficou um mês ali, depois tomou um ônibus
noturno para Denver, e quando deixou Denver foi para dirigir-se a Wichita.
De Wichita para Des Moines, de Des Moines para Minneapolis, de Minneapolis para
Milwaukee, depois através de Illinois, cuidadosamente evitando Chicago, e daí para
Indianápolis. Essa viagem era para ele história antiga. Celebrou melancolicamente o
seu vigésimo nono aniversário sozinho, numa casa de cômodos de Indianápolis, num
dia garoento de outubro, e com o propósito de alegrar a ocasião evocou as velhas
lembranças da festa do seu quarto aniversário, em 1933 - uma das poucas datas
perfeitamente felizes de sua vida.
Todos estavam lá - seus amigos e seus pais, e seu irmão Hank com um ar muito
importante para os seus oito anos, e sua irmã Marian, e havia velas e lembranças
festivas, ponche, bolos. Mrs. Heinsohn, vizinha do lado, entrara dizendo: “Ele parece
um homenzinho!”, e seu pais ficaram radiantes, todos cantaram e divertiram-se. De-
pois, jogado o último jogo, aberto o derradeiro presente, quando os meninos e as
meninas acenaram um boa-noite e desapareceram rua acima, os adultos sentaram-
se em roda e falaram do novo presidente e das muitas coisas estranhas que aconte-
ciam no país, e o pequeno Tom sentou-se no meio do assoalho, ouvindo e gravando
tudo e cordialmente satisfeito, pois durante toda a tarde ninguém lhe fizera ou disse-
ra algo cruel. Dia feliz, aquele, e, ao deitar-se, ele ainda se sentia cheio de felicidade.
Niles relembrou a festa duas vezes, como um velho filme ao qual amasse; a ima-
gem nunca aparecia defeituosa e o som continuava tão claro e distinto como nunca.
Niles podia provar o doce travo do ponche, podia reviver o calor daquele dia no qual,
mercê de algum acidente, os outros lhe haviam permitido um pouco de felicidade.
Finalmente deixou se dissipar o brilho da festa, e novamente achou-se em Indianá-
polis, numa tarde cinzenta e sombria, sozinho num quarto mobiliado, de oito dólares
por semana.
“Desejo-me feliz aniversário”, pensou amargamente. “Feliz aniversário.”
Fitou a parede verde cheia de manchas com uma gravura barata de Corot depen-
durada um pouco de viés. “Bem que eu podia ser algo especial”, cismava ele, “uma
dessas maravilhas do mundo. Em vez disso, não passo de um sorrateiro excêntrico
que mora nos fundos de um terceiro andar, e não me atrevo a deixar que o mundo
saiba o que sei fazer.”
Fez um esforço e conseguiu se lembrar da execução, por Toscanini, da Nona sinfo-
nia de Beethoven, que ouvira no Carnegie Hall certa vez em que estivera em Nova
Iorque Estava infinitamente melhor do que a última execução que o mesmo Toscanini
aprovara para gravação, todavia nenhum microfone a registrou; exceto na mente de
um homem, a fulgurante execução era tão impossível de captar como uma chama
soprada há cinco minutos. Mas Niles captara-a: a majestosa entrada dos tímpanos, o
ressoante contrabaixo produzindo a grande melodia do finale, até mesmo o balanço
do oboé que devia enfurecer o maestro, a tosse exasperadora dos ouvintes no mo-
mento mais suave do adágio, o dolorido apertão dos sapatos de Niles, que se inclina-
va para a frente na poltrona...
Ele gravara tudo, com a mais alta fidelidade.

Três meses depois, numa noite sem lua chegou a uma cidadezinha. Era uma noite
de janeiro, fria e cortante, quando o vento de inverno soprava do norte, penetrando-
lhe os ossos através da roupa fina e tornando quase insuportável o peso da mala
para suas mãos dormentes e sem luvas. Não tivera a intenção de ir para lá, mas em
Kentucky ficara sem dinheiro e não tivera escolha. Estava a caminho de Nova Iorque,
onde poderia viver anonimamente durante meses sem amolação e onde sabia não
ser notada a sua grosseria caso lhe acontecesse esbarrar em alguém ou cumprimen-
tar alguma pessoa que o houvesse esquecido.
Mas Nova Iorque ainda se encontrava a centenas de milhas de distância - bem po-
deriam ser milhões naquela noite de janeiro. Viu um letreiro: “BAR”. Avançou para a
luz pisca-pisca de neon. Ordinariamente não bebia, mas agora precisava do calor do
álcool, e talvez o dono do bar precisasse de alguém para ajudar, ou talvez pudesse
lhe alugar um quarto em troca do pouco dinheiro que tinha nos bolsos.
Havia cinco homens lá dentro. Pareciam choferes de caminhão. Niles deixou cair a
mala à esquerda da porta, esfregou as mãos endurecidas, exalou uma nuvem branca
pela boca... O dono do bar arreganhou-lhe um sorriso.
- Frio que baste lá fora, hein?
Niles conseguiu sorrir.
- Não estava suando muito... Dê-me algo quente. Uma dose dupla de uísque, tal-
vez.
Isso custava noventa cents: ele tinha apenas sete dólares e trinta e quatro cents.
Niles acalentou a bebida quando ela veio, bebericou devagar, deixou-a escorrer
pela garganta... Lembrava-se do verão em que fora parar em Washington, uma se-
mana inteira de noventa e sete graus de temperatura e noventa e sete por cento de
umidade, e a vívida memória concorreu para lhe acalmar alguns dos efeitos psicoló-
gicos do frio.
Logo distendia os nervos, cobrava calor... Atrás dele, o rumor penetrante de uma
discussão.
-...digo-lhe que Joe Louis fez de Schmeling uma massa na segunda vez! Nocaute-
ou-o no primeiro round!
- Está maluco! Louis simplesmente o derrubou numa luta de quinze rounds: por
pontos, no segundo...
- Parece que...
- Aposto dinheiro. Dez dólares numa decisão por pontos em quinze rounds, Mac.
Risadas confiantes se fizeram ouvir.
- Não quero ganhar tão fácil seu dinheiro, companheiro. Todos sabem que foi no-
caute.
- Ofereci dez dólares.
Niles voltou-se para ver o que estava acontecendo. Dois dos choferes de cami-
nhão, homens atarracados, de jaqueta cor de ervilha, encostavam um no outro os
respectivos narizes. A ideia lhe veio automaticamente: “Louis pôs Schmeling nocaute
no primeiro round, no Yankee Stadium, Nova Iorque, 22 de junho de 1938”. Niles
nunca fora grande esportista, e especialmente aborrecia-lhe o boxe, mas certa vez
dera uma vista d’olhos na página de um almanaque que catalogava as lutas pelo títu-
lo, e os dados, naturalmente, lhe ficaram gravados no cérebro.
Olhava indiferente enquanto o maior dos choferes batia na mesa uma nota de dez
dólares; o outro imitou-o. Então o primeiro, olhando para o dono do bar, disse o se-
guinte:
- Certo, mano. Você é um sujeito esperto. Quem acertou nessa segunda luta de
Louis e Schmeling?
O dono do bar era um homem de rosto inexpressivo, de meia-idade, já meio care-
ca, com olhos mansos e vazios. Mordeu o lábio um instante, encolheu os ombros,
hesitou, finalmente disse:
- Difícil lembrar. Foi há vinte e cinco anos essa luta.
“Vinte”, pensou Niles.
- Vejamos - prosseguiu o dono do bar. - Parece que me lembro... sim, é isso mes-
mo. Foram quinze rounds e os juizes deram a vitória a Louis. Houve um grande pro-
testo; os jornais disseram que Joe devia tê-lo matado muito antes disso.
Um sorriso triunfante se esboçou na cara do motorista maior, que destramente
empolgou ambas as notas.
O outro homem fez uma careta e soltou um berro:
- Ei! Vocês dois combinaram a coisa de antemão. Sei perfeitamente que Louis no-
cauteou o alemão em um!
- Ouviu o que o homem disse: o dinheiro é meu.
- Não - disse Niles repentinamente numa voz tranquila, que se diria ecoar até a
metade do bar. “Fique calado”, disse freneticamente com seus botões. “Isso não lhe
diz respeito. Fique de fora.”
Mas era demasiadamente tarde.
- O que está dizendo? - perguntou o tal que pusera os dez dólares na mesa.
- Digo que está sendo logrado. Louis venceu a luta em um round, conforme você
diz, a 22 de junho de 1938, no Yankee Stadium. O dono do bar está pensando na
luta de Arturo Godoy. Essa foi de quinze rounds, completos, a 9 de fevereiro de
1940.
- Está vendo? Eu bem disse! Devolva-me o dinheiro!
Mas o outro chofer não fez caso do grito e voltou-se para encarar Niles. Era um
homem de expressão fria, atarracado, e seus punhos começavam a se crispar...
- Espertinho, hein? Especialista em boxe?
- Eu só não queria ver alguém logrado - disse Niles obstinadamente. Mas já previa
o que vinha em seguida. O chofer, embriagado, ia trocando as pernas em sua dire-
ção; o dono do bar berrava, os outros campeões recuavam...
O primeiro soco acertou Niles nas costelas; ele gemeu, recuou cambaleando para
ser agarrado pela garganta e esbofeteado três vezes. Ouviu vagamente uma voz que
dizia:
- Olhe aí, solte o rapaz! Ele não queria nada! E você quer matá-lo?
Uma rajada de golpes fizeram-no curvar-se; um soco inchou-lhe a pálpebra direita,
outro golpeou-lhe o ombro esquerdo, adormecendo-o. Niles rodou a esmo, sabendo
que sua mente se recordaria permanentemente de cada momento dessa agonia.
De olhos semicerrados viu os outros arrancando o chofer enfurecido de cima dele;
o homem contorcia-se nas garras de três outros, mas desferiu um último pontapé
desesperado no estômago de Niles, atingindo uma costela, e finalmente foi subjuga-
do.
Niles ficou sozinho no meio da sala, esforçando-se para ficar de pé, tentando su-
portar as súbitas pontadas que o incomodavam numa dúzia de lugares.
- Você está bem? - perguntou uma voz solícita. - Diacho! Esses caras jogam duro.
Não devia se meter com eles.
- Estou bem - disse Niles numa voz cavernosa. - Mas espere um pouco... deixe-me
recuperar o fôlego.
- Isso. Sente-se. Tome um trago. Isso lhe dará ânimo.
- Não - disse Niles. - Não posso ficar aqui. Tenho de ir andando. Logo estarei bom
- murmurou sem convencer ninguém. Apanhou a mala, enrolou-se no sobretudo e
saiu do bar, passo a passo...
Andou quinze pés antes que a dor se lhe fizesse insuportável. De repente amonto-
ou-se no chão e caiu de bruços no escuro, sentindo de encontro às faces a terra en-
regelada e dura como aço. Em vão tentou levantar-se. E ali ficou, lembrando-se das
muitas dores que sofrera na vida, as surras, a crueldade... Mas quando o peso da
memória se lhe tornou demasiado, perdeu os sentidos.

A cama era tépida, os lençóis limpos, frescos e macios. Niles despertou lentamen-
te, sentindo uma momentânea sensação de tontura, mas a sua infalível memória su-
priu os dados do seu desmaio na neve e ele percebeu que se encontrava num hospi-
tal.
Tentou abrir os olhos; um se fechara, de tão inchado que estava, mas conseguiu
descerrar as pálpebras do outro. Achava-se no quarto de um pequeno hospital -
nada de um lustroso pavilhão metropolitano, mas de uma pequena clínica de conda-
do com vistosos objetos moldados nas paredes e cortinas de renda caseira, através
das quais penetrava o sol da tarde.
Fora encontrado e conduzido ao hospital. Isso era bom. Podia facilmente ter morri-
do lá fora, na neve; mas alguém tropeçara nele e o recolhera. Era uma novidade al-
guém ter-se incomodado em socorrê-lo; o tratamento que recebera na véspera na-
quele bar - fora mesmo na véspera? - era mais condizente com o que até então o
mundo lhe havia dado. Em dezenove anos, ele de algum modo fracassara em apren-
der a se esconder e se disfarçar adequadamente, por via do que sofria, diariamente,
terríveis consequências. Era-lhe tão difícil lembrar (ele, que de tudo se lembrava) que
as outras pessoas não eram como ele, e que além disso o odiavam por ele ser o que
era.
Apalpou cautelosamente o flanco. Parecia não haver nenhuma costela quebrada -
apenas machucaduras. Um dia ou dois de repouso e decerto lhe dariam alta, deixan-
do-o continuar a viagem.
Nisto, uma voz animada lhe falou:
- Oh, já acordou, Mr. Niles? Está melhor? Vou trazer-lhe um pouco de chá.
Ele ergueu a vista e sentiu uma súbita pontada muito aguda. Era uma enfermeira -
vinte e dois, vinte e três anos, talvez nova no emprego, com uma ondulante massa
de louros cachos e grandes olhos azuis, límpidos e redondos... Sorria, e pareceu a
Niles que o sorriso não era meramente profissional.
- Sou Miss Carroll, enfermeira diurna. Tudo vai bem?
- Otimamente - disse Niles com certa hesitação. - Onde estou?
- No Hospital Central Geral do Condado. Trouxeram-no ontem à noite - pelo visto
tinha sido espancado e largado na Rodovia 32. Foi uma sorte Mr. Mark McKenzie es-
tar passeando com seu cão, Mr. Niles. - E fitou-o gravemente. - Lembra-se de ontem
à noite, não se lembra? Quero dizer... o choque... a amnésia...
Niles riu para si mesmo.
- Essa é a última indisposição no mundo que hei de recear - disse. - Sou Thomas
Richard Niles, e me lembro muito bem do que sucedeu. Até que ponto me avaria-
ram?
- Ferimentos superficiais, um pequeno choque, um leve caso de queimadura pelo
frio - resumiu ela. - Vai viver. Daqui a pouco o Dr. Hammond lhe fará um exame ge-
ral; depois que o senhor comer. Vou buscar-lhe um pouco de chá.
Niles observou a esbelta figura que desaparecia no corredor.
Era certamente uma moça muito bonita, pensou: olhos límpidos... alerta... viva.
“O clichê é antigo: o paciente se apaixonando pela enfermeira. Porém ela não é
para mim. Receio que não.”
A porta abriu-se abruptamente e a enfermeira tornou a entrar, carregando uma
bandejinha esmaltada com o serviço de chá.
- Não adivinha? Tenho uma surpresa para o senhor, Mr. Niles. Uma visita. Sua mãe.
- Minha mãe...
- Ela leu a notícia no jornal do condado. Está esperando lá fora; disse-me que não
o vê há uns dezessete anos. Quer que eu a mande entrar?
- Acho que sim - disse Niles com voz seca e frágil. A enfermeira saiu pela segunda
vez.
“Meu Deus”, pensou Niles. “Se eu soubesse que estava tão perto de casa, teria fi-
cado fora de Ohio de uma vez!”
A última pessoa que desejaria ver no mundo era sua mãe. Pôs-se a tremer debaixo
das cobertas. As mais antigas e as mais terríveis lembranças irrompiam do escuro
compartimento de sua mente, onde as julgava para sempre aprisionadas. A súbita
emergência do calor para o frio, da treva para a luz, a vibrante pancada contra o seu
traseiro, a dor cruciante ao saber que se acabara a sua segurança, e que, de agora
em diante, viveria, e que, por isso, seria infeliz...
A lembrança do grito agônico do seu nascimento ressoou-lhe na mente. Nunca se
esqueceria de que nascera. E entre todas, sua mãe era a única pessoa que ele ja-
mais perdoaria, uma vez que ela o pusera no mundo que ele odiava. Tinha horror às
mulheres, mas...
- Olá, Tom. Faz tanto tempo...
Dezessete anos haviam-na murchado, marcado de rugas o seu rosto e tornado
suas faces mais balofas, os cerúleos olhos menos brilhantes, os cabelos castanhos de
um cinzento de camundongo. Ela sorria. E para seu próprio espanto, Niles conseguiu
retribuir-lhe o sorriso.
- Mãe.
- Li a notícia no jornal. Dizia que um homem de aproximadamente trinta anos fora
encontrado nas cercanias da cidade com papéis que traziam o nome de Thomas R.
Niles, e fora conduzido ao Hospital Central Geral do Condado. Por isso vim, apenas
para me certificar de que era você mesmo!
Uma mentira aforou à superfície de sua mente, uma mentira piedosa... e ele a dis-
se:
- Eu voltava para visitá-la, mãe. Vim de carona. Mas sofri um pequeno acidente na
estrada.
- Folgo em saber que você resolveu voltar, Tom. Fiquei tão só depois da morte de
seu pai, e, naturalmente, Hank se casou, Marian também... é bom tornar a vê-lo.
Pensei que nunca mais o veria.
Ele continuou deitado, perplexo, pensando por que não lhe vinha a costumeira
maré de ódio. Só sentia ternura por ela; estava contente em revê-la.
- E como foram todos esses anos, Tom? Não foram fáceis, não? Estou vendo. Per-
cebo em sua cara...
- Sim, não foram fáceis - respondeu. - Sabe por que fugi?
Ela fez com a cabeça um aceno afirmativo:
- Por causa do jeito que você tem. Aquela história de jamais esquecer seja lá o que
for... Eu sabia. Sabe que seu avô tinha o mesmo dom...
- Meu avô... mas...
- Você puxou a ele. Eu nunca lhe contei. Ele não se dava bem com nenhum de
nós. Abandonou minha mãe quando eu era menina e nunca se soube para onde foi.
Por isso sempre pensei que você se fora do mesmo modo que ele. Mas você voltou.
Está casado?
Ele sacudiu a cabeça.
- Então já é tempo de decidir, Tom. Tem quase trinta anos!
A porta do quarto abriu-se e entrou um médico de aspecto eficiente.
- Receio que a sua hora já se tenha esgotado, senhora. Mais tarde poderá voltar a
vê-lo. Vou examiná-lo, agora que está acordado.
- Naturalmente, doutor. - E sorriu para ele, depois para Niles. - Voltarei mais tarde,
Tom.
- Decerto, mãe.
Niles recostou-se, fazendo carrancas à medida que o médico o cutucava aqui e
acolá. “Eu não a odiava.” Um crescente maravilhamento o invadia, e ele pensava que
havia muito já devia ter voltado. Mudara interiormente, mesmo sem perceber.
Fugir foi sua primeira fase de crescimento - fase necessária. Porém querer voltar
aconteceu mais tarde e era sinal de maturidade. Voltara. E repentinamente viu que
fora terrivelmente idiota durante toda a sua amarga vida de adulto.
Possuía um dom, um grande dom, um dom terrífico. Até agora lhe fora demasiado
pesado. Condoendo-se de si próprio, atormentando-se, até então se recusara a per-
doar as faltas das pessoas que esqueciam, e pagara o preço do ódio delas. Mas não
podia andar fugindo a vida inteira. Tempo viria em que teria de crescer o suficiente
para dominar o dom, para aprender a viver com ele ao invés de gemer na dramática
angústia que a si próprio se infligia.
E esse tempo era agora. Já de há muito devia ter chegado.
Seu avô possuíra o dom - nunca lhe haviam dito isso. De modo que a coisa era ge-
neticamente transmissível. Podia casar, ter filhos... e também estes jamais se esque-
ceriam.
Era seu dever não consentir que o dom morresse com ele. Outros de sua espécie,
menos sensíveis, de pele menos fina, viriam após ele, e também estes saberiam
como evocar uma sinfonia de Beethoven ou um fiapo de conversa, depois de uma
década. Pela primeira vez desde aquele quarto aniversário, Tom sentiu um hesitante
lampejo de felicidade. Os dias de correria tinham findado; estava de novo em casa.
“Se eu aprender a viver com os outros, decerto também eles aprenderão a viver co-
migo.”
Viu então as coisas de que precisava: uma mulher, um lar, filhos...
-... Alguns dias de repouso, muita bebida quente, e ficará bom como novo, Mr. Ni-
les - disse o médico. - Gostaria que agora eu lhe trouxesse alguma coisa?
- Sim - disse Niles. - Mande-me a enfermeira, sim? Quero dizer, Miss Carroll.
O médico esboçou um sorrisinho e saiu. Niles aguardou cheio de expectativa, exul-
tando no seu novo eu. Ligou a mente para o terceiro ato dos Mestres cantores - jubi-
losa música de fundo - e deixou que a ternura o invadisse. Quando ela entrou no
quarto ele sorria, pensando em como diria o que tinha para lhe dizer.
Ismael apaixonado

Meu nome é Ismael. Sabem-no todos que me conhecem. Minha própria espécie
não emprega a designação de unidade estrutural (“nome”) para distinguir os indiví-
duos, mas foi esse o nome que os humanos me deram, e ele me basta. Fui assim
“nomeado” por Miss Lisbeth Calkins, por quem sinto uma emoção protetora, cava-
lheiresca e sexual (“amor”). Através da minha narrativa, entenda-se que a designa-
ção “Ismael” se refere apenas a mim.
Faço parte da inteligente espécie mamífero-aquática não-primata e não-humana,
Tursiops truncatus, ou golfinho roaz. Tenho onze anos, o que quer dizer que sou ple-
namente maduro em todos os sentidos. Peso cento e setenta e cinco quilos e meço
dois metros e nove centímetros em todo o comprimento. Trabalho na Estação Ge-
rard-Worzel de Recuperação da Água do Mar, St. Croix, ilhas Virgens, na qualidade de
mantenedor, tendo começado a trabalhar ali na data, segundo vocês, de 14 de agos-
to de 1944. Para a minha própria espécie sou sexualmente desejável; sou igualmente
muito considerado devido ao meu desenvolvimento mental. Possuo um grande voca-
bulário. Comunico-me facilmente com elementos Homo sapiens. Tenho considerável
habilidade mecânica, segundo podem ver pelo meu sucesso em ligar o dispositivo
acústico-eletrônico através do qual estou ditando estas memórias.
Sou um organismo mamífero solitário que tem cometido atos de heroísmo em prol
da sua espécie e que só deseja como recompensa relações mais íntimas (“amor”)
com Miss Lisbeth Calkins. Imploro aos membros compassivos da espécie Homo sapi-
ens que falem favoravelmente com ela a meu respeito. Sou leal, digno de confiança,
dedicado, fidedigno e extremamente inteligente. Esforçar-me-ei em retribuir-lhe a
companhia estimulante e a realização emotiva (“felicidade”) em tudo quanto me for
possível.
Permitam-me explicar as circunstâncias aqui pertinentes.

Categoria 1:
Meu emprego

A Estação Gerard-Worzel de Recuperação da Água do Mar ocupa uma posição des-


tacada na praia norte da ilha de St. Croix, nas Índias ocidentais. Opera segundo o
princípio de condensação atmosférica. Soube tudo isso por intermédio de Miss
Calkins, que me descreveu detalhadamente as operações. O propósito de nossas ins-
talações é recuperar um pouco de água doce, calculada em duzentos milhões de ga-
lões por dia, transportada na forma de vapor nos cem metros inferiores de ar arreba-
tados em cada quilômetro do litoral, a barlavento da ilha.
Uma tubulação de nove metros de diâmetro apanha água fria salgada nas profun-
dezas acima de novecentos metros e a conduz por cerca de dois quilômetros para a
nossa estação. A tubulação vasa uns trinta milhões de galões de água por dia, a uma
temperatura de cinco graus centígrados. Essa água é bombeada para o nosso con-
densador, que intercepta aproximadamente um bilhão de metros cúbicos de ar quen-
te tropical por dia. O ar tem uma temperatura de vinte e cinco graus centigrados, e
uma umidade relativa de setenta a oitenta por cento. Exposto à água fria do mar no
condensador, o ar se resfria a dez graus centigrados e chega a uma umidade de cem
por cento, permitindo-nos extrair aproximadamente quinze galões de água por metro
cúbico de ar. Essa água dessalgada (“água doce”) é conduzida ao principal sistema
de abastecimento de água da ilha, pois St. Croix é deficiente no suprimento natural
de água apropriada ao consumo de seres humanos. Os funcionários do governo, que
em várias cerimônias oficiais visitam as nossas instalações, afirmam que, sem o nos-
so sistema, o grande desenvolvimento industrial de St. Croix teria sido inteiramente
impossível.
Em virtude de razões econômicas, operamos em conjunção com uma empresa de
aquicultura (“a granja de peixes”), a qual utiliza nossos resíduos. Uma vez bombeada
através do condensador, a água do mar tem de ser descartada; entretanto, devido à
sua origem nas grandes profundidades oceânicas, seu conteúdo em fósforo e nitrato
dissolvidos é mil e quinhentos por cento maior que o da água de superfície. Essa
água, rica em nutrientes, é então bombeada do nosso condensador para uma lagoa
circular vizinha de origem natural (“a mangueira de coral”), onde os peixes ficam ar-
mazenados. Nesse ambiente de tal forma suprido, os peixes são altamente produti-
vos e a produção de alimentos é suficientemente grande para compensar os custos
de operação de nossas bombas.
(Seres humanos equivocados às vezes discutem sobre a moralidade de usar golfi-
nhos na manutenção de tais granjas de peixe. Julgam degradante compelir-nos a
produzir criaturas aquáticas, nossas companheiras, para serem comidas pelos ho-
mens. Posso entretanto simplesmente indicar que, em primeiro lugar, nenhum de nós
trabalha obrigado e, segundo, que a minha espécie nada vê de imoral em se alimen-
tar de criaturas aquáticas Nós mesmos comemos peixe.)
Meu papel no funcionamento da Estação Gerard-Worzel de Recuperação da Água
do Mar é deveras importante. Eu (“Ismael”) trabalho como capataz do Esquadrão
Mantenedor da Tomada das Águas. Dirijo nove membros da minha espécie. Nossa
atribuição é manobrar as válvulas da principal tomada da tubulação condutora da
água do mar; essas válvulas frequentemente se entopem com organismos inferiores,
tais como estrelas-do-mar ou algas, obstruindo a instalação. Nossa tarefa é descer
em intervalos periódicos e remover a obstrução. Normalmente, isso pode ser conse-
guido sem necessidade de órgãos manipuladores (“dedos”), com os quais, infeliz-
mente, não somos equipados.
(Certos indivíduos objetaram ser impróprio usar os golfinhos na força de trabalho,
quando tantos membros dos Homo sapiens estão desempregados. A resposta a isso
é que, primeiro: fomos destinados, pela evolução, a funcionar soberbamente debaixo
da água, e, segundo: que tão-somente um humano altamente qualificado poderia
desempenhar nossa função; mas um tal tipo de humano se acha em grande falta na
força de trabalho.)
Ocupo o meu posto há dois anos e quatro meses. Nesse espaço de tempo não
houve nenhuma interrupção significava na capacidade de tomada das válvulas que
mantenho.
Como compensação (“salário”) do meu trabalho, recebo um farto suprimento de
comida. Mediante um salário desses, poder-se-ia alugar um mero tubarão, natural-
mente; mas, além dos meus baldes de peixe, também desfruto de algumas vanta-
gens, tais como a companhia de seres humanos e a oportunidade de desenvolver mi-
nha inteligência latente mediante o acesso a bobinas de referência, que acrescem os
vocabulários, e vários outros dispositivos de ensino. Como veem, tiro o maior provei-
to das minhas oportunidades.

Categoria 2:
Miss Lisbeth Calkins

Seu dossiê está arquivado aqui. Tive acesso a ele através do leitor de bobina mon-
tado na extremidade do tanque de exercício dos golfinhos. Por instruções faladas,
posso tirar tudo o que quiser dos arquivos da estação, conquanto duvide de que fos-
se previsto o fato de um golfinho querer ler algum dossiê pessoal.
Ela tem vinte e sete anos. Pertence, portanto, à mesma geração dos meus prede-
cessores genéticos (“pais”). No entanto, não partilho do tabu cultural prevalecente
entre muitos Homo sapiens contra relações emocionais com mulheres mais velhas.
Além disso, comparando as diferenças entre as espécies, ver-se-á que Miss Lisbeth e
eu somos da mesma idade. Ela atingiu a maturidade sexual na metade da vida. Eu
também.
(Devo confessar que se considera estar Lisbeth além da idade ótima na qual as fê-
meas humanas arranjam companheiro permanente. Suponho que ela não se entre-
gue à prática de acasalamento temporário, pois o seu dossiê não revela que já tives-
se tido filhos. É possível que os humanos necessariamente não tenham prole a cada
acasalamento, ou que os acasalamentos se realizem a esmo, em épocas imprevisí-
veis, não relacionadas com o processo reprodutivo. Isso me parece estranho e um
tanto perverso, todavia infiro de alguns dados que o caso bem pode ser esse. Há
poucas informações sobre os hábitos humanos de acasalamento no material que me
é acessível. Preciso estudar mais.)
Lisbeth, conforme me permito chamá-la em particular, tem um metro e oitenta
centímetros de altura (não se medem os humanos pelo comprimento) e pesa cin-
quenta e dois quilos. Seus cabelos são loiros e compridos. Sua pele, embora amore-
nada pela exposição ao sol, é bem clara. As íris de seus olhos são azuis. Segundo as
conversações que mantive com humanos, fiquei sabendo que é considerada bonita.
Pelas palavras que ouvi enquanto estava na superfície, percebi que a maioria dos
machos da Estação sentem por ela intensos desejos sexuais. Eu também a considero
bonita, dentro da minha capacidade de responder à beleza humana (pois tenho essa
capacidade). Não estou certo de sentir verdadeiro desejo sexual por Lisbeth; prova-
velmente, o que me perturba é um desejo generalizado de sua presença e proximi-
dade, que traduzo em termos sexuais simplesmente como um meio de tornar a coisa
compreensível a mim mesmo.
Além de qualquer dúvida, ela não possui os traços que normalmente procuro num
par (bico saliente, macias barbatanas). Qualquer tentativa de fazermos amor no sen-
tido anatômico certamente redundaria em dor e lesão para ela. Não é esse meu de-
sejo. Os traços físicos que a fazem tão desejável para os machos de sua espécie
(glândulas de leite altamente desenvolvidas, cabelos lustrosos, feições delicadas e
compridos membros ou “pernas”, etc.) não têm particular importância para mim, e,
em alguns exemplos, têm realmente um valor negativo Como no caso das duas glân-
dulas de leite da região peitoral, que apontam de seu corpo de um modo que decer-
to a atrapalha quando ela nada. O modelo é pobre e sou incapaz de descobrir beleza
num modelo pobre. Evidentemente, a própria Lisbeth lamenta o tamanho e a locali-
zação de tais glândulas, uma vez que toma cuidado em escondê-las todo o tempo
numa estreita faixa. Os outros da Estação, que são todos machos e, portanto, ape-
nas têm glândulas de leite rudimentares, que de modo algum lhes destrói a linha on-
dulada dos corpos, trazem-nas à mostra.
Qual é, portanto, a razão da minha atração por Lisbeth?
Provém, com certeza, da necessidade que tenho de sua companhia. Creio que ela
me compreende como não o faz nenhum membro de minha espécie. Daí eu ficar
mais feliz em sua companhia do que longe dela. Essa impressão data do nosso pri-
meiro encontro. Lisbeth, que é especialista em relações humano-cetáceas, chegou
quatro meses atrás a St. Croix, e fui solicitado a levar meu grupo de manutenção
para a superfície para lhe ser apresentado. Saltei bem alto para vê-la bem, e instan-
taneamente percebi que ela era de melhor qualidade que os humanos que já conhe-
cia; seu corpo era mais delicado, a um tempo frágil e vigoroso, e a sua graciosidade
era uma bem-vinda mudança na grosseira deselegância dos machos humanos que eu
conhecia. Não estava recoberta com os ásperos pelos corporais que minha espécie
considera tão desagradáveis. (Eu não sabia que a diferença entre Lisbeth e os outros
da Estação residia no fato de ela ser fêmea. Nunca antes vira uma fêmea humana,
porém logo aprendi a diferença.)
Fui para a frente, estabeleci contato com o transmissor acústico e disse:
- Sou o capataz mantenedor da tomada das águas. Minha designação de unidade
estrutural é TT-66.
- Não tem nome? - perguntou ela.
- Que quer dizer “nome”?
- A sua designação de unidade estrutural... mas não apenas TT-66. Só isso não
adianta. Por exemplo, meu nome é Lisbeth Calkins. E eu... - Sacudiu a cabeça e
olhou para o superintendente da empresa. - Esses trabalhadores não têm nome?
O superintendente não via por que os golfinhos deviam ter um nome. Lisbeth ha-
via muito se preocupava com isso e, como agora estava encarregada da ligação co-
nosco, imediatamente nos foi dando nomes. Assim, eu fui chamado de Ismael. Era o
nome, contou-me ela, de um homem que saíra para o mar, tivera muitas experiên-
cias maravilhosas e a todas anotou numa bobina de histórias, tocada por toda pes-
soa culta. Desde então tive acesso à história de Ismael - o outro Ismael - e concordo
em que a mesma é extraordinária. Para um ser humano, ele possuía uma penetração
incomum nos costumes das baleias, que entretanto são criaturas estúpidas, pelas
quais nutro pouco respeito. Mas orgulho-me de carregar comigo o nome de Ismael.
Depois que ela deu nome a cada um de nós, saltou no mar e pôs-se a nadar co-
nosco. Devo dizer que os golfinhos, quase todos eles, sentem uma espécie de des-
prezo para com vocês, humanos, pobres nadadores que são. Talvez seja devido à mi-
nha inteligência acima do normal ou a uma compaixão maior o fato de eu não me
sentir assim. Admiro-os pelo zelo e energia que emprestam à natação, e vocês na-
dam muito bem, considerando todas as suas desvantagens. E segundo lembro à mi-
nha espécie, vocês conseguem nadar com muito maior desembaraço do que nós
conseguiríamos andar em terra. Seja como for, Lisbeth nadava bem, segundo pa-
drões humanos, e nós tolerantemente ajustávamos o nosso ritmo ao dela. Brincamos
na água algum tempo. Depois ela agarrou minha barbatana dorsal e disse:
- Leve-me a um passeio, Ismael!
Agora tremo quando me lembro do contato de seu corpo com o meu. Ela caval-
gou-me, suas pernas me apertando estreitamente, e lá fui eu com toda a velocidade,
voando alto sobre a superfície. Suas risadas revelavam o prazer que sentia enquanto
eu me lançava uma e muitas vezes pelo ar. Era uma exibição puramente física, na
qual eu não fazia uso da minha extraordinária capacidade mental. Estava apenas
mostrando minha qualidade de golfinho. A reação de Lisbeth era nada menos que
extática. Mesmo quando eu mergulhava, levando-a para uma profundeza tão grande
que ela poderia ter receado algum dano por causa da pressão da água, ela continua-
va agarrada a mim sem qualquer sinal de alarma. Quando voltávamos à superfície,
dava gritos de alegria.
Meu primeiro impacto sobre ela foi de pura animalidade. Conhecia suficientemente
os seres humanos para interpretar sua expressão ruborizada e exultante quando a
trazia de volta à praia. Agora meu desafio consistia em expô-la às minhas superiores
qualidades; mostrar-lhe que, mesmo entre golfinhos, eu era incomumente rápido de
compreensão, incomumente capaz de entender o universo.
Então já a amava...
Nas semanas que se seguiram mantivemos muitas conversações. Não estarei me
gabando se disser que ela logo percebeu como sou extraordinário. Meu vocabulário,
já bastante grande quando ela chegou à Estação, aumentou rapidamente com o estí-
mulo de sua presença. Aprendia com ela, que me franqueava o acesso a bobinas que
golfinho algum teria sonhado em ouvir; desenvolvi percepções no meu ambiente que
espantavam a mim próprio. Em pouco tempo atingi o píncaro dos meu dotes. Penso
que vocês concordam em que posso me exprimir com mais eloquência do que a
maioria dos seres humanos. Confio em que o computador que imprime estas memó-
rias não me traia, aqui inserindo uma pontuação inadequada ou errando a grafia cer-
ta das palavras cujos sons enuncio.
Meu amor por Lisbeth se aprofundou, ficou mais rico. Aprendi pela primeira vez o
que era ciúme quando a vi de braço dado passeando na praia com o Dr. Madison, o
homem da usina elétrica. Conheci a ira ao ouvir as libidinosas e vulgares observações
dos machos humanos à passagem de Lisbeth. Seu fascínio me levou a explorar mui-
tos setores de experiência da sua espécie; não me atrevia a falar com ela a esse res-
peito, mas, por intermédio do pessoal da base, que às vezes falava comigo, fiquei co-
nhecendo alguns aspectos do fenômeno que os humanos chamam de “amor”. Igual-
mente obtive informações das palavras vulgares ditas às suas costas por alguns ma-
chos; a maioria delas dizia respeito ao seu desejo de se acasalarem com Lisbeth
(aparentemente numa base temporária), mas também ouvi descrições altamente fa-
voráveis de suas glândulas de leite (por que são os humanos tão agressivamente
mamíferos?), até mesmo da região arredondada na parte de trás, logo acima do lu-
gar onde seu corpo se divide em dois membros traseiros. Confesso que essa região
também me fascina. Parece tão estranho o corpo de alguém dividir-se ao meio desse
modo!
Nunca declarei explicitamente os meus sentimentos para com Lisbeth. Experimen-
tei conduzi-la devagar para a compreensão de que eu a amava. Uma vez desperta
para essa consciência, poderíamos começar a planejar alguma espécie de futuro para
a nossa vida em comum.
Como eu era tolo!

Categoria 3:
A conspiração

Disse uma voz de homem:


- Como diacho você vai subornar um golfinho?
Uma voz diferente, mais profunda, mais culta, respondeu:
- Deixe comigo.
- O que lhe dará? Uma lata de sardinhas?
- Este golfinho é especial, até mesmo peculiar. É um erudito. Podemos conquistá-
lo.
Não sabiam que eu podia ouvi-los. Eu nadava junto à superfície no meu tanque de
descanso, entre dois turnos. Nosso ouvido é aguçado, e eu me encontrava num raio
audível. Imediatamente percebi que faltava alguma coisa, porém mantive a minha
posição, fingindo nada saber.
- Ismael! - chamou um dos homens. - É você, Ismael?
Subi à superfície e cheguei à beira do tanque. Três homens se encontravam ali.
Um deles era um técnico da Estação; os outros dois eu nunca os vira antes, e tinham
o corpo coberto dos pés à garganta, o que os denunciava como estranhos ao lugar.
Eu desprezava o técnico, pois ele fora um dos que haviam feito observações vulgares
sobre as glândulas de leite de Lisbeth.
O homem disse:
- Olhem-no, senhores. Gasto no vigor dos anos! É uma vítima da exploração hu-
mana! - E virando-se para mim: - Ismael, esses cavalheiros pertencem à Liga de Pre-
venção da Crueldade para com as Espécies Inteligentes. Sabe alguma coisa a respei-
to?
- Não - respondi.
- Estão tentando pôr um fim à exploração dos golfinhos. Pôr um fim ao uso crimi-
noso, em trabalho escravo, da única espécie verdadeiramente inteligente do planeta.
Querem ajudá-lo.
- Não sou escravo. Recebo compensação pelo meu trabalho.
- Sim: um punhado de peixes malcheirosos! - disse o homem enroupado, à esquer-
da do técnico. - Exploram-no, Ismael! confiam-lhe um trabalho perigoso e sujo, e
não lhe pagam o que vale.
O seu companheiro disse:
- Isso tem de acabar. Queremos participar ao mundo que a era dos golfinhos es-
cravizados está no fim. Ajude-nos, Ismael! Ajude-nos a ajudá-lo!
Não preciso dizer que eu era hostil a tais propósitos. Um golfinho de mente mais li-
teral do que a minha ter-lhes-ia dito isso de saída e estragado a trama. Eu, porém,
respondi astutamente:
- Que querem que eu faça?
- Obstrua as válvulas! - disse o técnico, rapidamente.
A despeito de mim mesmo, bufei de raiva e de surpresa.
- Trair uma confiança sagrada? Como posso?
- É para seu próprio bem, Ismael. Você e sua equipe taparão as válvulas e as ins-
talações de água deixarão de funcionar. Toda a ilha entrará em estado de pânico. As
equipes humanas de manutenção irão verificar o que há; mas, assim que elas limpa-
rem as válvulas, vocês tornarão a obstruí-las. Nessa emergência, serão necessários
novos suprimentos de água para a ilha de St. Croix. Isso chamará a atenção do pú-
blico para o fato de que esta ilha depende do trabalho dos golfinhos... um trabalho
pesado de golfinhos pagos com salários de fome! Durante a crise apareceremos para
contar sua história ao mundo. Faremos todos os seres humanos gritarem desespera-
dos contra o modo como vocês são tratados.
Eu não lhes disse que estava desesperado, mas respondi inteligentemente:
- Posso correr perigos nessa empreitada.
- Bobagem!
- Irão me perguntar por que não limpei as válvulas. A responsabilidade é minha.
Haverá perturbações.
Discutimos o caso por algum tempo. Depois o técnico disse:
- Escute, Ismael, sabemos que há riscos. Mas estamos prontos a oferecer paga-
mento extra se você se encarregar do assunto.
- Que pagamento?
- Bobinas. Tudo quanto você gostaria de ouvir, lhe arranjaremos. Sabemos dos
seus interesses literários. Dramas, poesia, novelas, coisas dessa espécie. Fornecer-
lhe-emos literatura aos litros se nos ajudar.
Tive de admirar a sua habilidade. Eles sabiam a melhor maneira de me estimular.
- Combinado - disse eu.
- Agora diga do que gosta.
- Gosto de tudo sobre o amor.
- Amor?
- Amor. Homem e mulher. Tragam-me poemas de amor. Tragam-me histórias de
amantes famosos. Tragam-me descrições do amplexo sexual. Quero entender dessas
coisas.
- Ele quer o Kama Sutra - disse o da esquerda.
- Pois lhe traremos o Kama Sutra - disse o da direita.

Categoria 4:
Minha resposta aos criminosos

Na verdade não me trouxeram o Kama Sutra, mas me trouxeram muitas coisas


boas, inclusive uma bobina feita, toda ela, com citações do Kama Sutra. Por muitas
semanas me apliquei intensivamente ao estudo da literatura humana de amor. Havia
no texto hiatos enlouquecedores, e eu ainda careço de uma verdadeira compreensão
no tocante a muita coisa que se passa entre homem e mulher. A conjunção de um
corpo a outro corpo não me intriga; mas sinto-me desorientado com a dialética da
caçada, na qual o homem tem de ser predatório, e a mulher tem de fingir que não
está no cio; fico mistificado diante da moralidade do acasalamento temporário em
contraposição ao acasalamento permanente (“casamento”); não consigo entender o
intrincado sistema de tabus e proibições que os humanos inventaram. Foi essa a mi-
nha única falha intelectual; no fim de meus estudos sabia apenas um pouco mais de
como me portar com Lisbeth; um pouco mais do que sabia antes de os conspiradores
começarem a me passar bobinas em segredo.
Agora me chamavam para que eu executasse a minha parte.
Naturalmente, eu não podia trair a Estação. Sabia que esses homens não eram os
inimigos esclarecidos da exploração dos golfinhos, segundo protestavam; por alguma
razão particular, queriam que a Estação se fechasse, eis tudo, e tinham utilizado suas
pseudo-simpatias para com a minha espécie para lograr a minha cooperação. Mas eu
não me sentia explorado.
Teria sido impróprio eu aceitar suas bobinas se não tinha intenção de ajudá-los?
Duvido. Queriam usar-me; mas, ao contrário, fui eu que os usei. Às vezes uma espé-
cie tem de usar a inferior para obter conhecimento.
Aproximaram-se de mim e me pediram para obstruir as válvulas naquela noite.
- Não sei ao certo - respondi - o que vocês querem que eu faça. Querem dar-me
instruções?
Eu ligara astutamente um dispositivo de gravação usado por Lisbeth em suas aulas
para os golfinhos da Estação. Os humanos tornaram a falar-me que a obstrução das
válvulas mergulharia a ilha em estado de pânico, assim lançando um raio de luz na
exploração dos golfinhos. Fiz-lhes repetidas perguntas, para obter detalhes, dando a
cada homem a oportunidade de gravar sua própria voz. Quando obtive uma incrimi-
nação adequada, disse a eles:
- Muito bem. Quando chegar o meu turno, farei o que dizem.
- E o resto de seu esquadrão de manutenção?
- Dir-lhes-ei que deixem as válvulas sem assistência no interesse de nossa espécie.
Eles saíram da Estação parecendo muito satisfeitos consigo mesmos. Depois que
se foram, toquei o botão que chamava Lisbeth. Ela veio rapidamente da sua residên-
cia e eu lhe exibi a bobina do gravador.
- Toque-a - disse eu com imponência. - Depois avise a polícia da ilha!

Categoria 5:
A recompensa pelo heroísmo

Fizeram-se prisões. Os três homens não se preocupavam absolutamente com a ex-


ploração dos golfinhos. Eram membros de um grupo subversivo (“revolucionário”)
que tentavam iludir um golfinho ingênuo, levando-o a ajudá-los a criar um caos na
ilha. Mas pela minha lealdade, coragem e inteligência eu os havia frustrado.
Mais tarde Lisbeth se aproximou do meu tanque de repouso e disse:
- Você foi maravilhoso, Ismael. Enganá-los todo o tempo, levá-los a gravar sua
própria confissão - maravilhoso! Você é a maravilha dos golfinhos, Ismael!
Fiquei transportado de alegria.
Chegara o momento, e eu deixei escapar:
- Lisbeth, amo-a.
Minhas palavras, irrompendo dos alto-falantes, reboaram pelas paredes do tanque.
Os ecos ampliaram-nas e as modularam em grotescos latidos, mais dignos da debili-
dade mental de uma foca. “Amo-a... amo-a... amo-a... “
- Ora, Ismael!
- Não sei dizer quanto a senhora significa para mim. Venha morar comigo, seja mi-
nha amada. Lisbeth, Lisbeth, Lisbeth!
Torrentes de poesia irromperam de mim. Furacões de apaixonada retórica saíram-
me do bico. Supliquei-lhe descesse ao tanque e me deixasse abraçá-la. Ela respon-
deu que não estava vestida para nadar. Era verdade: acabava de chegar da cidade
depois de presenciar as prisões. Implorei. Roguei. Ela cedeu. Ficamos sós. Ela se
despiu e entrou no tanque; por um instante contemplei sua beleza nua. Fiquei abala-
do - aquelas feias e balouçantes glândulas de leite, normalmente escondidas com
tanta prudência, as tiras da branca pele doentia que o sol não lograra alcançar, aque-
le inesperado triângulo de cabelos adicionais... - mas, uma vez na água, esqueci as
imperfeições de minha amada e atirei-me a ela. “Amor!”, gritei. “Meu bendito amor!”
Pensando no amplexo humano, envolvi-a em minhas barbatanas. “Lisbeth! Lisbeth!”
Deslizamos para baixo da superfície.
Pela primeira vez na vida soube o que era verdadeira paixão, aquela que os poetas
cantam e que subjuga até a mente mais fria. Esmaguei-a contra mim. Senti as pon-
tas dos seus membros superiores (“punhos”) batendo contra a minha região peitoral,
e primeiro o interpretei como um sinal de paixão correspondida; só depois percebi
que talvez lhe faltasse ar. Subi rápido para a superfície Minha querida Lisbeth, engas-
gada e ofegante, aspirava o ar com força tentando libertar-se de mim. Chocado, lar-
guei-a. Ela saiu do tanque e se deixou cair à sua beira, exausta, o pálido corpo todo
trêmulo.
- Perdoe-me - estrondejei. - Amo-a, Lisbeth! Por seu amor salvei a Estação Gerard-
Worzel.
Ela conseguiu mexer os lábios em sinal de que não estava zangada comigo (um
“sorriso”), e disse com voz fraca:
- Você quase me afogou, Ismael!
- Deixei-me levar pela emoção. Volte para o tanque. Serei mais dócil, prometo!
Sentir você perto de mim...
- Ó Ismael, que está dizendo?
- Amo-a! Amo-a!
Ouvi passos. O homem da usina, Dr. Madison, se aproximava. Lisbeth depressa pôs
as mãos em concha sobre as glândulas de leite e puxou sobre a parte inferior do cor-
po as roupas que despira. Isso me magoou, pois esconder dele aquelas coisas, aque-
las partes feias do seu corpo, não era isso um sinal de que o amava?
- Você está bem, Lisbeth? - perguntou ele. - Ouvi gritar...
- Não é nada, Jef. Foi apenas Ismael. Pôs-se a me abraçar dentro do tanque. Está
apaixonado por mim, Jef; você pode imaginar? Apaixonado por mim!
E ambos riram ante a loucura do golfinho que o amor ferira...

Antes de a madrugada nascer saí para o mar. Nadei onde nadam os golfinhos, lon-
ge do homem e suas coisas. A risada sarcástica de Lisbeth vibrava em mim. Não pre-
tendia ser cruel. Ela, que me conhece melhor que ninguém, não pudera deixar de rir
diante do meu disparate.
Tratando de minhas feridas, fiquei muitos dias no mar, negligenciando meus deve-
res na Estação. Lentamente, à medida que a dor cedia lugar a um sofrimento surdo,
regressei à ilha. De passagem encontrei uma fêmea de minha própria espécie. Entra-
ra em cio e se me ofereceu, mas eu lhe disse que me acompanhasse, o que ela fez.
Muitas vezes tive de afastar outros machos que desejavam usá-la. Levei-a para a Es-
tação - para a lagoa que os golfinhos usam para esportes. Um membro da equipe ali
veio investigar - chamava-se Mordred - e eu lhe pedi que chamasse Lisbeth para lhe
dizer que eu regressara.
Lisbeth apareceu na praia. Abanou a mão para mim, sorriu, chamou meu nome.
Diante dos olhos dela brinquei com o golfinho fêmea. Dançamos a dança do acasa-
lamento; rompemos a superfície e chicoteamo-la com nossas barbatanas; saltamos,
elevamo-nos no ar, rugimos...
Lisbeth nos olhava. E eu rezava: que ela fique com ciúmes.
Agarrei minha companheira, arrastei-a para as profundezas e a possuí violenta-
mente; depois deixei-a livre para ir ter meu filho em qualquer outro lugar.

Tornei a encontrar Mordred:


- Diga a Lisbeth - instruí-o - que encontrei outro amor, mas que algum dia poderei
perdoá-la.
Mordred lançou-me um olhar vidrado e nadou para a praia.
Minha tática falhou. Lisbeth mandou recado dizendo que seria bom eu voltar para
o trabalho, e que ela sentia muito se me ofendera; mas no seu recado não havia o
menor sinal de ciúme. A alma dentro de mim se tornara alga podre... Voltei a limpar
as válvulas das tomadas de água! “Lisbeth! Pode você sentir a minha dor?”

Esta noite, no escuro, contei minha história. Vocês que a escutam, sejam quem fo-
rem, ajudem um organismo solitário, mamífero e aquático, que deseja um contato
mais íntimo com uma fêmea de espécie diferente. Digam-lhe bem de mim. Gabem a
minha inteligência, a minha lealdade, a minha dedicação. Digam-lhe que lhe dou
mais uma oportunidade. Ofereço-lhe uma experiência única e excitante. Espero-a,
amanhã à noite, à beira do recife. Que ela nade até mim. Que ela abrace este pobre
Ismael solitário. Que me diga palavras de amor...
“Das profundezas de minh’alma... das profundezas... Lisbeth, este animal infeliz
lhe dá boa-noite, em roncos do mais profundo amor.”
Viagem de Ida sem Volta

Entre as reconfortantes paredes da matriz da Importação Terra, em Kollidor, o Co-


mandante Leon Warshow mexia nervosamente nos relatórios psíquicos de sua escri-
vaninha brilhante como espelho. O Comandante Warshow pensava no astronauta
Mat Falk e em si próprio. O Comandante Warshow estava a pique de reagir de modo
bastante previsível.
Uma hora antes, o lugar-tenente do pessoal, de nome Krisch, lhe contara a história
de Falk, e agora Warshow fazia a única coisa que dele se esperava: aguardava o ra-
paz, que mandara chamar, após uma rápida conferência com Cullinan, o melancólico
oficial psíquico do Magyar.
Um ordenança tocou e disse:
- O astronauta Falk deseja vê-lo, senhor.
- Faça-o esperar alguns minutos - disse Warshow, falando demasiado depressa. -
Eu o chamarei.
Era uma demora tática Espantado por estar, ele, um oficial, tão tenso antes da en-
trevista com um recruta, Warshow folheou o feixe de relatórios referentes a Mat Falk.
“Órfão, 2543... Academia... dois anos em serviço comercial, contrato militar... feri-
do a caminho de Kollidor.
Havia, apensos, circunstanciados relatórios médicos sobre o ferimento de Falk,
acrescentados ao OK do Dr. Sigstrom. Havia, igualmente, um mapa disciplinar, muito
favorável, e uma linha quebrada de indicação psíquica, boa.
Warshow apertou a campainha.
- Mande Falk entrar - disse.
O raio fotostático estalou e a porta se abriu. Mat Falk entrou e encarou petrificado
seu comandante; Warshow olhou-o atentamente, examinando o jovem como se nun-
ca antes o tivesse visto. Falk tinha vinte e seis anos, era muito alto e muito louro,
com ombros largos e musculosos, e percucientes olhos azuis. A cicatriz que atraves-
sava a sua face esquerda era quase invisível, porém nem mesmo uma incubação qui-
mioterápica pudera restaurar a lisura uniforme de sua mandíbula. O rosto de Falk pa-
recia singularmente assimétrico; a mandíbula direita subia lindamente até o côndilo,
enquanto a esquerda ainda mostrava vestígios invisíveis porém definitivos do terrível
acidente náutico que lhe sucedera.
- Quer falar comigo, comandante?
- Amanhã partiremos de Kollidor, Mat - disse Warshow tranquilamente. - O Lugar-
Tenente Krisch me contou que você não voltou para empacotar suas coisas; por quê?
A mandíbula avariada e reconstruída estremeceu ligeiramente.
- O senhor sabe, comandante: não vou voltar à Terra. Vou ficar aqui... com Theto-
na.
Fez-se um gelado silêncio. Depois, com uma crueldade calculada, Warshow disse:
- Está realmente obsedado por aquela cara chata, hein?
- Talvez - murmurou Falk. - Aquela cara chata; aquela cara pateta... E daí?
Sua voz tranquila era um amargo desafio.
Warshow ficou tenso. Tentava fazer a coisa com delicadeza, sem infligir uma ofen-
sa psico-pessoal ao jovem Falk. Deixar para trás um tripulante psicótico num mundo
estranho era impossível - mas tirar Falk à força da teia envolvente de associações
que o ligavam a Kollidor seria deixar cicatrizes, não apenas no tripulante, mas tam-
bém no capitão.
Transpirando, Warshow disse:
- Você é um terráqueo, Mat. Não quer...
- Se quero voltar para casa? Não.
O comandante esboçou um débil sorriso.
- Parece decidido, filho.
- Estou - disse Falk com voz abafada. - O senhor sabe por que desejo ficar. Pois
vou ficar. Agora posso ir?
Warshow tamborilou com os dedos no tampo da escrivaninha, hesitou um instante,
sacudiu a cabeça...
- Permissão concedida, Mr. Falk.
Não havia vantagem em prolongar aquilo que, agora via, fora uma entrevista ba-
nal, predeterminada.
Esperou alguns minutos depois que Falk saiu. A seguir ligou o comunicador:
- Mande-me o Major Cullinan, por favor.
O assessor psíquico de olho de vidro apareceu quase instantaneamente.
- Pois não?
- O rapaz fica - disse Warshow. - Fixação mental completa. Vá adiante... destrua-a.
Cullinan encolheu os ombros.
- Pode ser que tenhamos de deixá-lo aqui, eis tudo. Conhece a moça?
- Kollidoriana. Estrangeira. Feia como o pecado. Vi o retrato, que ele conservava no
seu beliche até que se mudou. Mas não podemos deixá-lo aqui, major.
Ironicamente, Cullinan levantou uma cerrada sobrancelha.
- Podemos tentar a volta de Falk, se você insiste... mas não adianta. Não adianta,
sem que o mutilemos.
Warshow assobiou aereamente, evitando o severo olhar do assessor psíquico.
- Insisto - disse afinal. - Não há alternativa E agarrou o comunicador.
- Lugar-Tenente Krisch, por favor. - Uma breve pausa, e depois: - Krisch, Warshow.
Diga aos homens que a partida foi adiada por quatro dias. Que Molhaus redefina as
órbitas. Sim: quatro dias. Quatro.
Warshow pendurou o comunicador, fitou o dossiê de Falk empilhado na escrivani-
nha e riu-se ironicamente.
Cullinan, o oficial psíquico, abanou a cabeça tristemente, esfregando a crescente
calvície.
- É uma solução drástica, Leon.
- Bem sei. Mas não vou deixar Falk para trás. Warshow levantou-se, olhou cons-
trangido para Cullinan e acrescentou:
- Quer ir comigo? Vou para a cidade de Kollidor.
- Fazer o quê?
- Quero falar com a moça - disse Warshow.

Mais tarde, na teia loucamente contorcida de ruas ao acaso que era a cidade es-
trangeira, Warshow começou a desejar ter obrigado Cullinan a acompanhá-lo. Ao
abrir caminho por entre enxames de kollidorianos plácidos, feios, largos de cara, la-
mentou estar sozinho.
Que faria, pensava, quando finalmente chegasse ao apartamento onde a moça kol-
lidoriana e Falk moravam? Warshow não estava habituado a lidar com relações inter-
pessoais dessa espécie. Não sabia o que dizer à moça. Mas pensava poder tratar
com Falk.
“A relação de um comandante com seu tripulante é uma relação de pai para filho”,
dizia o livro. Warshow arreganhou conscientemente uma risada. Justamente agora
não se sentia muito paternal; era, de preferência, um severo mentor.
Continuou andando. A cidade de Kollidor se espraiava à sua frente como um ema-
ranhado novelo de lã se desenrolando em cinco direções ao mesmo tempo; parecia
que suas ruas haviam sido assentadas quase a esmo. Mas Warshow conhecia bem a
cidade. Esse era o terceiro giro de inspeção no setor de Kollidor: por três vezes trou-
xera para ali um carregamento da Terra, por três vezes ali aguardara que sua nave
fosse carregada de mercadorias kollidorianas para exportação.
Lá em cima, o distante sol branco-azulado ardia brilhantemente. Kollidor era o dé-
cimo terceiro planeta de seu sistema; e Kollidor girava num enorme arco, aproxima-
damente a quatro bilhões de milhas do seu centro.
Warshow fungou; isso o fez lembrar-se de que chegara a hora de tomar sua regu-
lar injeção anti-pólen Já se protegera perfeitamente, bem como toda a tripulação,
contra a maior parte das formas de doenças estrangeiras que provavelmente pode-
riam afetá-lo na viagem.
“Mas como proteger alguém como Falk?”, perguntou Warshow sombriamente a si
mesmo. Não havia respostas fáceis para isso. Ordinariamente, não pareciam neces-
sárias vacinas contra uma paixão despertada por bovinas mulheres estrangeiras,
mas...
- Boa tarde, Comandante Warshow - disse de repente uma voz seca.
Warshow olhou à volta, surpreso e aborrecido. O homem que se encontrava atrás
dele era alto, magro, tinha molares nodosos avançando grotescamente sob a pele
apergaminhada, de um branco-giz. Warshow reconheceu o padrão genético, e o ho-
mem. Tratava-se de Domnik Kross, negociante da antiga colônia terráquea de Rigel
IX.
- Olá, Kross - disse Warshow, taciturno, fazendo alto para que o outro se aproxi-
masse dele.
- O que o traz à cidade, comandante? Pensei que estivesse fazendo as malas para
regressar.
- Adiamos a volta quatro dias - disse Warshow.
- Oh, tem aí alguma mercadoria que valha a pena? Não que eu queira...
- Esqueça isso, Kross. - E a voz de Warshow se mostrava cansada. - Não faremos
mais negócios nesta temporada. O campo está livre. Agora deixe-me sozinho, sim?
E apressou o passo; mas o rigeliano, sorrindo sombriamente, acompanhou-o.
- Parece perturbado, comandante.
Warshow fitou o outro impacientemente, desejoso de desabafar na companhia do
rigeliano.
- Estou numa missão da mais alta segurança, Kross. Vai insistir em me acompa-
nhar?
Os lábios se abriram manhosamente num frio arreganho.
- De modo algum, Comandante Warshow. Simplesmente quis ser delicado e acom-
panhá-lo uma parte do caminho para barganhar notícias. Ao fim e ao cabo, se vai
partir nestes quatro dias, já não seremos mais rivais, e...
- Exatamente - disse Warshow.
- Que história é essa de um de seus tripulantes ter ido morar com uma mulher na-
tiva? - perguntou Kross subitamente.
Warshow rodopiou nos calcanhares e encarou-o atentamente.
- Não é nada. - E Warshow rangeu os dentes. - Está ouvindo? Não é nada!
Kross riu para dentro, e Warshow viu que decididamente havia perdido um tento
na rivalidade mortalmente fria entre os terráqueos e os rigelianos, entre o homem e
o filho do homem. Uma derivação genética era responsável pelos Domnik Kross - um
bocadinho de cromossomos derivando para um planeta colonizado, uma débil tintura
de miscigenação em dez gerações e uma nova subespécie aparecendo: estranha su-
bespécie que tinha pouco amor por seus progenitores.
Alcançara um complicado cruzamento de rua, e o comandante impulsivamente vi-
rou à esquerda. Muito satisfeito, percebeu que Kross não o seguia.
- Até o ano que vem! - disse o rigeliano.
Warshow respondeu com um ronco cauteloso e continuou descendo a rua imunda,
feliz por haver se livrado tão depressa de Kross. Os rigelianos, pensava, eram maus
fregueses. Viviam com ciúme do planeta-mãe e seus povos, sempre ansiosos em
vencer um terráqueo num negócio lucrativo numa terra como Kollidor.
“Devido a Kross é que estou indo para o lugar aonde vou”, refletia Warshow. A
pressão por parte dos rigelianos forçava os terráqueos a manterem as aparências em
toda a galáxia. O fardo do homem terráqueo era esse, dizia-se comumente. Deixar
para trás um desertor em Kollidor poria em perigo o prestigio da Terra aos olhos de
todo o universo - e os astutos rigelianos tudo fariam para que o universo inteiro o
soubesse.
Warshow sentia-se encurralado. Enquanto se aproximava do apartamento de Falk,
fios de um suor pegajoso lhe escorriam pelas costas abaixo...

- Sim, por favor?


Warshow estava à porta, um pouco amedrontado pela vista e pelo cheiro. Uma
mulher kollidoriana o encarava francamente.
“Deus meu”, pensou, ele, “certamente não é nenhuma beleza.”
- Sou... o Comandante Warshow - disse. - Do Magyar, nave de Mat. Posso entrar?
A boca de esfincter se enrugou no que Warshow supôs que devia ser um gracioso
sorriso.
- Naturalmente, esperava que viesse. Mat fala muito em você.
Ela recuou para dentro e Warshow entrou. O ranço malcheiroso da kollidoriana in-
vadiu-lhe as narinas. Era um apartamento de duas salas; além da sala em que esta-
vam, Warshow viu outra, um pouco maior e mais em desordem, com apetrechos de
cozinha. Para sua surpresa, viu uma cama desfeita na outra sala... e outra na da
frente. Camas de solteiro. Ele franziu o sobrolho e voltou-se para a moça.
Ela era quase tão alta quanto ele, e muito mais encorpada. Sua pele morena era
suja e grossa, mais parecia couro do que pele. Seu rosto era largo e feio, com dois
olhos estagnados à for da pele, o nariz uma bolha grotesca, e uma boca composta,
rodeada de muitas rugas. Trazia um camisolão preto que lhe descia até os calcanha-
res. Por tudo quanto Warshow sabia, ela podia ser expoente da beleza kollidoriana -
mas não era provável que seus encantos lograssem despertar muito desejo num ter-
ráqueo normal.
- Você é Thetona. Certo?
- Sim, Comandante Warshow. - A voz era monótona, sem inflexões.
- Posso sentar-me? - perguntou ele.
Ele esgrimia cautelosamente, contornando a situação sem enfrentá-la. Sentou-se
com certa imponência e cruzou as pernas impertinentemente. A moça olhava-o com
um olhar vacum, mas permaneceu de pé.
Seguiu-se um silêncio difícil: depois a moça disse:
- Quer que Mat volte para casa com você, não é?
Warshow enrubesceu e apertou raivosamente os maxilares.
- Sim. Nossa nave partirá dentro de quatro dias. Vim buscá-lo.
- Ele não está aqui - disse ela.
- Já sei: está na base. Mas logo voltará.
- Fez-lhe algum mal? - perguntou ela, subitamente apreensiva.
Ele abanou a cabeça.
- Mat está bem.
Após um instante, Warshow olhou-a atentamente e disse:
- Ele a ama, não é?
- Sim. - Mas a resposta pareceu hesitante.
- E você também o ama?
- Oh, sim - disse Thetona fervorosamente. - Certamente que sim.
Warshow umedeceu os lábios. A coisa ia ser difícil.
- Diga-me como foi que se apaixonou. Estou curioso.
Ela sorriu. Pelo menos, ele supôs que aquilo fosse um sorriso.
- Conheci-o dois dias depois que vocês, os terráqueos, chegaram de visita. Eu an-
dava na rua, e o vi. Estava sentado à margem da rua, chorando.
- O quê?
Seus olhos à flor do rosto pareceram marejar-se.
- Estava soluçando e sozinho. Era a primeira vez que eu via um terráqueo como
aquele, isto é, um homem chorando. Tive muita pena. Aproximei-me para lhe falar.
Ele parecia um menininho perdido.
Warshow ergueu os olhos, atônito, e contemplou o plácido rosto da estrangeira
com total ceticismo. Nos dez anos em que lidava com kollidorianos jamais se aproxi-
mara muito deles; deixara os contatos pessoais principalmente para outros. Mas...
“Com a breca, a moça é quase humana. Quase... “
- Ele estava doente? - perguntou Warshow com voz ríspida. - Por que chorava?
- Sentia-se solitário - disse Thetona serenamente. - Tinha medo. Tinha medo de
mim, de você, de todo mundo. Depois ele pediu que eu o levasse para minha casa.
Moro sozinha. Ele me acompanhou. Depois disso, faz três dias que se encontra aqui.
- E pretende ficar permanentemente? - perguntou Warshow.
A cabeça grande acenou afirmativamente
- Queremo-nos muito. Ele está sozinho. Precisa de alguém que...
- Isso basta - disse repentinamente a voz de Falk.
Warshow deu meia-volta: Falk estava de pé na soleira, o rosto desolado e carran-
cudo. A cicatriz da face se diria inflamada, conquanto Warshow soubesse que isso
era impossível.
- Que faz aqui? - perguntou Falk.
- Vim visitar Thetona - respondeu Warshow docemente. - Não pensei que você vol-
tasse tão depressa.
- Sei que não. Saí quando Cullinan começou a bisbilhotar. Agora saia!
- Está falando com um oficial superior - lembrou-lhe Warshow. - Se eu...
- Há dez minutos me demiti - lançou Falk. - Você já não é meu superior. Saia!
Warshow endureceu-se. Olhou suplicante para a moça estranha, que pôs a sua
grosseira mão de cinco dedos no ombro de Falk e deu-lhe uma pancadinha no braço.
Falk se esquivou.
- E então? Sai ou não? Thetona e eu queremos ficar sós.
- Por favor, vá-se embora, Comandante Warshow - disse a moça suavemente. -
Não o deixe nervoso.
- Nervoso? Quem está nervoso? - rugiu Falk. - Eu...
Warshow permaneceu impassível, calculando e analisando, ignorando no momento
o que acontecia.
Falk tinha de ser levado de volta à nave para tratamento. Não havia outra alterna-
tiva Essas estranhas relações com a kollidoriana tinham de ser rompidas.
Levantou-se e pediu silêncio com a mão.
- Mr. Falk, deixe-me falar.
- Comece. Fale depressa, pois em dois minutos tirá-lo-ei daqui à força.
- Não preciso de dois minutos - disse Warshow. - Quero simplesmente informar-lhe
que está preso e que lhe ordeno voltar à base imediatamente, sob minha custódia.
Se se recusar, será necessário...
Não terminou a sentença. Os olhos de Falk lampejaram raivosamente, e ele cruzou
a sala em três rápidos saltos. Avultando sobre Warshow, que era muito menor, agar-
rou o comandante pelos ombros e sacudiu-o violentamente.
- Saia! - berrou.
Warshow sorriu como quem pede desculpas, recuou um passo e tirou da túnica o
seu cassetete. Deu em Falk uma pancada breve e pesada, e o homenzarrão caiu no
chão. Warshow o ergueu e o pôs numa cadeira.
Thetona chorava. Grandes gotas de um líquido ambarino lhe escorriam dos olhos e
deslizavam comovedoramente por suas faces grosseiras.
- Desculpe - disse Warshow. - Era preciso fazer isso.
Era preciso.
Era preciso.
Era preciso.

Warshow andava pela cabina, os olhos dardejando nervosamente da brilhante filei-


ra de rebites do teto às tranquilas paredes cor de cinza, à forma adormecida de Mat
Falk, e, finalmente, ao rosto expectante e carrancudo de Cullinan, o oficial psíquico.
- Quer acordá-lo? - perguntou Cullinan.
- Não. Ainda não. - Warshow continuava a rondar sem descanso, tentando ajustar
seus atos a ele próprio. Passaram-se alguns minutos. Finalmente Cullinan afastou-se
do catre onde Falk jazia e segurou o braço de Warshow.
- Leon, diga-me o que o preocupa.
- Não deixe que meu crânio se encolha - lançou Warshow. Depois, humilde, sacu-
diu a cabeça. - Não quis dizer isso. Sabe que não.
- Faz duas horas que você o trouxe para bordo - disse Cullinan.
- Não acha que devemos fazer alguma coisa?
- Fazer o quê? - perguntou. - Entregá-lo de novo à estrangeira? Matá-lo? Talvez
seja essa a melhor solução. Enfiemo-lo nos conversores, destruamo-lo.
Falk mexeu-se.
- Aplique-lhe o raio novamente - disse Warshow com voz cavernosa. - O efeito está
passando.
Cullinan tornou a usar o raio e Falk derreou-se.
- Não podemos deixá-lo dormir para sempre - disse o assessor psíquico.
- Com efeito, não podemos.
Warshow sabia que o tempo passava; em três dias a partida adiada deveria ocor-
rer, e ele não queria arriscar novo adiamento. Mas se deixassem Falk para trás, e se
se espalhasse a notícia de que um terráqueo se encontrava perdido em Kollidor, ou
de que todos os terráqueos haviam ficado malucos...
Para isso não havia resposta.
- Terapia - disse Cullinan tranquilamente.
- Não há tempo para análise - respondeu Warshow imediatamente. - Três dias...
eis tudo.
- Não me refiro a uma análise completa. Mas se o imobilizarmos com uma droga
inibidora amital-derivativa, filtrarmos a sua hostilidade para conosco e o induzirmos a
recordar suas lembranças, talvez possamos descobrir algo que nos ajude.
Warshow estremeceu.
- Dragar-lhe o cérebro, hein?
- Chame como quiser - disse o assessor psíquico. - Mas draguemos o que quer que
tenha desequilibrado sua cabeça, ou nos destruiremos todos: você, eu... e aquela
moça.
- Acha que podemos descobrir?
- Podemos tentar. Nenhum terráqueo em seu juízo perfeito estabeleceria uma rela-
ção como aquela... ou qualquer espécie de ligação emocional com uma criatura es-
trangeira. Se toparmos com a coisa que o empurrou para ela, talvez possamos rom-
per essa fixação, obviamente neurótica, e fazer com que ele regresse voluntariamen-
te. A menos que você queira deixá-lo para trás. Proíbo-o absolutamente de levá-lo
como está.
- Claro que não faremos isso - concordou Warshow, enxugando o suor da testa, e
olhou para Falk, que ainda sonhava, presa dos efeitos do raio anestesiante. - Vale a
pena uma tentativa. Se acha que dará resultado, continue. Entrego-o em suas mãos.
O assessor psíquico sorriu com surpreendente calor.
- É o único modo. Desencavemos as coisas que lhe aconteceram e mostremo-las a
ele. Isso romperá a casca.
- Espero que sim - disse Warshow. - Está em suas mãos. Desperte-o e faça-o falar.
Você sabe o que fazer.

Uma nuvem espessa e pesada de droga pairava na cabina quando Cullinan con-
cluiu os preliminares. Falk mexeu-se e pôs-se a tatear no rumo da consciência. Culli-
nan estendeu a Warshow uma seringa ultrassônica de injeção, cheia de um líquido
claro e cintilante
Assim que Falk pareceu pronto a abrir os olhos, Cullinan inclinou-se sobre ele e co-
meçou a falar - tranquilamente, carinhosamente. A carranca de Falk desapareceu e
ele se entregou.
- Dê-lhe a droga - murmurou Cullinan.
Warshow tocou hesitantemente com a seringa o braço amorenado de Falk. A serin-
ga ultra-sônica zumbiu brevemente, e o líquido se espalhou como um borrão. War-
show administrou três centímetros cúbicos e retirou a agulha.
Falk soltou um suave gemido.
- Levará alguns minutos - disse Cullinan.
O relógio da parede circulava lentamente. Após algum tempo, as pálpebras pesa-
das de sono de Falk se agitaram. Ele abriu os olhos e ergueu o olhar, sem aparente-
mente reconhecer o ambiente onde estava.
- Alô, Mat. Viemos falar com você - disse Cullinan. - Ou antes: queremos que você
fale conosco.
- Sim - respondeu Falk.
- Comecemos por sua mãe, sim? Conte-nos o que lembra a seu respeito. Volte ao
passado.
- Minha... mãe? - A pergunta pareceu intrigar Falk, que permaneceu calado alguns
minutos. Em seguida umedeceu os lábios. - O que desejam saber a seu respeito?
- Conte-nos tudo - insistiu Cullinan.
Fez-se uma pausa. Warshow continha a respiração. Finalmente, Falk começou a fa-
lar.
“Quente. Aconchegado. Abrace-me. Mamãe.
Estou só. É noite e estou chorando. Há alfinetes de fralda na perna sobre a qual
me deitei, e a noite cheira a frio. Tenho três anos e estou só.
Abrace-me, mamãe!
Ouço mamãe subir a escada. Moramos numa velha casa com escadas, perto do
porto espacial onde passam as grandes naves: vupt! Sinto o cheiro suave de mamãe
que me abraça. Mamãe é grande, cor-de-rosa e macia. Papai é cor-de-rosa também,
mas não cheira a calor. O tio é a mesma coisa.
‘Ah, ah, filhinho’, diz ela. Agora está no quarto e me abraça apertado. Isso é bom.
Estou ficando com sono. Em um ou dois minutos adormecerei. Gosto muito de ma-
mãe.”
- É essa a mais antiga recordação que tem de sua-mãe? - perguntou Cullinan.
- Não. Acho que há outra, mais antiga.
“Está escuro, aqui. Escuro e muito quente. Úmido e muito bom. Não estou me me-
xendo. Estou sozinho aqui, e não sei onde estou. É como flutuar num oceano. Um
grande oceano. O mundo inteiro é um oceano.
Aqui é bom, bom de verdade. Não estou chorando.
Agora há fagulhas azuis na negrura que me cerca. Cores... de toda espécie. Ver-
melho, verde e amarelo-limão, e... estou me mexendo! Sinto dor e empuxões, e...
Deus meu! Está esfriando! Sufoco! Acho-me suspenso, vou me afogar no ar lá fora!
Estou...”
- Isso basta - disse Cullinan depressa. E explicou a Warshow: - É o trauma do nas-
cimento. Desagradável. Não era preciso fazê-lo passar por isso novamente.
Warshow estremeceu e enxugou a testa.
- Devo continuar? - perguntou Falk.
- Sim, continue.
“Tenho quatro anos e chove, tic-tac, lá fora. Parece que o mundo inteiro ficou cin-
zento. Mamãe e papai estão fora, e me encontro novamente sozinho. O tio está lá
embaixo. Na verdade não conheço o tio, mas acho que ele se acha todo o tempo
aqui. Mamãe e papai saem muito. Ficar sozinho é como chuva fria. E aqui chove mui-
to.
Estou deitado na minha cama, pensando em mamãe. Quero mamãe. Mamãe to-
mou o avião a jato e foi para algum lugar. Quando eu crescer, também quero ir de
avião a jato para algum lugar quente e claro, onde não chova.
Lá embaixo o telefone toca, tlin-tlin. Dentro de minha cabeça posso ver a tela se
iluminando cheia de cores, e tento figurar o rosto de mamãe no meio da tela. Mas
não posso. Ouço a voz do tio falando baixo e resmungando. Decidi que não gosto do
tio e começo a chorar.
O tio está aqui, diz que sou grande demais para chorar. Que não devo mais chorar.
Digo-lhe que quero mamãe. O tio faz uma boca feia e eu choro mais alto.
- Silêncio - diz ele. - Silêncio, Mat. Vamos, vamos, Maty.
Ele endireita minhas cobertas, mas eu esperneio e as desarranjo outra vez, pois sei
que ele fica agastado com isso. Gosto de agastá-lo porque ele não é mamãe nem pa-
pai. Mas desta vez ele parece não se importar. Apenas torna a endireitar as cobertas,
e dá-me pancadinhas na testa. Há suor em suas mãos e ele me aborrece.
- Quero mamãe - torno a dizer.
Ele me olha por muito tempo. Depois diz: - Mamãe não voltará.
- Nunca mais? - pergunto.
- Nunca mais - responde ele.
Não acredito, mas não recomeço a chorar, pois não quero que ele saiba que pode
me assustar.
- E papai? - pergunto. - Traga-o aqui!
- Papai também não voltará - diz ele.
- Não acredito. Não gosto de você, tio! Detesto-o!
Ele sacode a cabeça e tosse. - Melhor você aprender a gostar de mim - diz. - Não
tem mais ninguém no mundo.
Não compreendo o que ele diz, mas não gosto do que ouço. Jogo as cobertas para
fora da cama e ele as recolhe. Torno a jogá-las, e ele me bate.
Depois se inclina depressa e me beija, mas não cheira como deve e eu recomeço a
chorar. A chuva recomeça. Berro que quero mamãe, mas mamãe não vem. Nunca
mais virá.”
Falk calou-se um momento e cerrou os olhos.
- Ela morreu? - disse Cullinan.
- Morreu - disse Falk. - Ela e papai morreram num acidente de aviação, no regres-
so de uns feriados em Bangkok. Eu tinha então quatro anos. Meu tio me criou. Não
nos dávamos muito bem, e quando completei catorze anos ele me pôs na academia.
Aí fiquei quatro anos, fiz dois anos de técnica graduada, depois liguei-me à Importa-
ção Terra. Mais dois anos em Denufar, sendo em seguida transferido para a nave Ma-
gyar, do Comandante Warshow, onde... onde...
Aí parou abruptamente. Cullinan olhou para Warshow e disse:
- Agora está esquentando. Estamos prontos - procurou uma metáfora - para des-
cobrir terreno aurífero. - E dirigindo-se a Falk: - Conte como foi que conheceu Theto-
na.
“Estou sozinho, vagueando em Kollidor. É um espraiado de casas cônicas muito en-
graçadas e ruas malucas, mas por baixo de tudo posso ver que é justamente igual à
Terra. As pessoas são pessoas. São bastante bizarras, mas têm uma cabeça, dois
braços e duas pernas, o que as torna mais parecidas com gente do que outros es-
trangeiros que vi.
Warshow nos deu uma tarde de folga. Não sei por que saí da nave, mas aqui estou
na cidade - sozinho. Sozinho! Com a breca: sozinho!
As ruas são calçadas, os passeios, não. De repente me senti muito cansado e ton-
to. Sentei-me à beira do passeio, pus a cabeça nas mãos. Os estrangeiros só fazem
andar em redor de mim, como fariam as pessoas de qualquer cidade grande.
‘Mamãe’, penso.
E de repente uma grande solidão sobe do meu interior e se derrama sobre mim - e
eu começo a chorar. Não mais chorei... desde que... desde que... fazia muito que não
chorava. Mas agora choro - roucos ofegos de catraca e lágrimas rolando pelas faces
abaixo, formando fios nos cantos da boca. As lágrimas sabem a sal. Parecem-se um
pouco com gotas de chuva.
Meu flanco começa a incomodar-me no lugar machucado pelo acidente. Começa
perto do ouvido e corre como uma chama azul até a coxa: dói como o diabo. Os mé-
dicos disseram que não mais doeria. Mentira.
Eu sentia a minha solidão como uma roupa fechada me isolando do resto do mun-
do. ‘Mamãe’, tornei a pensar. Uma parte do meu eu dizia: ‘Aja como adulto’, mas essa
parte está cada vez mais calada. Continuo a chorar, e desejo, desesperadamente, ter
minha mãe perto de mim. Agora percebo que nunca realmente conheci direito minha
mãe, exceto há muito tempo atrás.
Depois sobrevém um cheiro nauseante e desagradável, e sei que um estrangeiro
se aproximou de mim. Vão agarrar-me pela nuca e jogar-me na rua como a qualquer
pinguço de olho lacrimoso... Warshow vai me fazer passar um mau quarto de hora.
- Está chorando, terráqueo - disse uma voz cálida.
A língua kollidoriana é algo quente, líquida, fácil de aprender; essa, porém, soava
particularmente cordial. Voltei-me, e lá estava essa grande mulher nativa
- Sim, estou chorando - respondi, e virei-lhe o rosto. Suas grandes mãos me agar-
raram e eu tremi um pouco. É uma sensação engraçada a gente ser agarrado por
uma estrangeira.
Ela sentou-se a meu lado.
- Parece muito triste - disse.
- Estou mesmo - respondi.
- Por quê?
- Você jamais compreenderia - respondi. Viro a cabeça e sinto as lágrimas volta-
rem a correr de meus olhos; aí ela me agarra impulsivamente. Quase chego a vomi-
tar com o cheiro dela, mas num par de minutos percebo estranhamente algo doce e
gostoso em sua pessoa.
Seu traje lembra um saco de batatas, e cheira forte. Mas ela encosta minha cabeça
em seus enormes seios cálidos e assim ficamos.
- Como é seu nome, infeliz terráqueo?
Respondo: - Falk. Mathew Falk.
- O meu é Thetona - diz ela. - Vivo sozinha. E você?
- Não sei - respondo. - Palavra que não sei.
- Mas como pode não saber que é só? - pergunta ela.
Desencosta minha cabeça de seus seios e olhamo-nos nos olhos. Verdadeiramente
romântico. Seus olhos são como moedas de cinquenta centavos embaçadas. Fitamo-
nos e ela enxuga as lágrimas de meus olhos.
Sorri. Acho que é um sorriso. Ela tem cerca de trinta sulcos em círculo debaixo do
nariz, e isso é sua boca. Todos os sulcos se contraem. Atrás deles vejo uns brilhantes
dentes agudos.
Depois de sua boca torno a fitar-lhe os olhos, e desta vez não me parecem muito
embaçados. São brilhantes como os dentes, ternos e profundos.
Quente. Seu cheiro é quente. Tudo nela é quente.
Recomeço a chorar - convulsivamente, sem saber por quê, sem saber que diacho
está me acontecendo. Ela parece palpitar, e eu penso ver uma mulher terráquea ali
perto, me embalando. Pisco. Nada há ali, exceto uma feia estrangeira.
Mas ela já não é tão feia. É cálida e agradável, de um certo modo estranho, e a
minha parte que discorda é muito pequenina e soa fracamente. Ouço-a gritar: ‘Não’;
depois para e desaparece.
Algo estranho explode dentro de mim. Deixo explodir. Estoura como uma flor -
uma rosa, uma violeta, e é o perfume dessas flores o que sinto, não o cheiro dela.
Enlaço-a nos braços.
- Quer acompanhar-me à minha casa? - pergunta ela.
- Sim, sim - respondo. - Sim.”

Abruptamente, Falk parou após a vibrante afirmação, e seus olhos vidrados se fe-
charam. Cullinan disparou imediatamente o raio, e o corpo retesado do rapaz desa-
bou.
- Então? - perguntou Warshow. Sua voz era seca e ríspida. - Considero-me imundo
depois de ouvir isso.
- Não devia - disse o oficial psíquico. - É uma das coisas mais nojentas que já des-
cobri. E você não a entende; não é?
O comandante abanou lentamente a cabeça.
- Por que ele fez isso? Apaixonou-se por ela... mas, por quê?
Cullinan riu para dentro.
- Logo verá. Mas quero um par de outras pessoas aqui quando eu o descobrir. Pri-
meiro de tudo, a moça: depois, Sigstrom.
- O médico? Por quê, diacho?
- Porque... se não me engano... ele terá grande interesse em ouvir o resultado. - E
Cullinan arreganhou um sorriso enigmático - Deixemos Falk descansar, sim? Precisa
de um descanso depois de tudo isso.
- Eu também preciso - disse Warshow.

Quatro pessoas observavam caladas enquanto Falk entrava pela segunda vez num
transe provocado pela droga. Warshow estudava o rosto da estrangeira, Thetona, à
espera de algum sinal do calor ao qual Falk aludira. E, com efeito, Warshow o viu:
estava ali. Atrás dela sentava-se Sigstrom, médico-chefe do Magyar. A direita, Culli-
nan. E, deitado no catre, no canto da cabina, olhos abertos porém sem ver, jazia Mat
Falk.
- Mat, você me ouve? - perguntou Cullinan. - Quero que retroceda um pouco...
Agora está a bordo. A época é mais ou menos um mês atrás. Está trabalhando na
Seção de Conversores - você e Dave Murff, ambos lidando com material quente. Está
entendendo?
- Sim - disse Falk. - Sei o que quer dizer.
“Estou na Seção de Conversores AA, tirando tório do vinho branco para alimentar
os reatores atômicos; a nave precisa continuar andando. Dave Murff está comigo.
Formamos uma boa parelha nas pás. Apanhamos os pedaços de matéria quente e os
empilhamos à beira do reator. Não é fácil manipular as mãos mecânicas de controle
remoto, mas não tenho medo. Esse é meu oficio e sei como exercê-lo.
Estou pensando naquele bastardo do Warshow. Nada tenho de particular contra
ele, mas o sujeito me aborrece. Engraçado o jeito que ele tem de ficar tenso cada
vez que manda alguém fazer alguma coisa. Faz-me lembrar meu tio. Sim, meu tio. É
com meu tio que eu queria compará-lo.
Não gosto muito de Warshow. Se agora ele chegasse aqui, talvez eu lhe desse
uma pancada com a pá - uma pancada não muito forte, apenas suficiente para fritar-
lhe um pouco o couro, para fazê-lo passar um mau quarto de hora.
- Ei - grita Murff. - Volte a pôr em linha a pá número 2.
- Não se aflija - digo eu. - Não é a primeira vez que lido com estes nenês, seu
palerma.
Estou bem protegido, mas o ar tem um cheiro engraçado, como se o tório estives-
se a ionizá-lo. Penso se haverá algo errado.
Balanço a pá número 2 e deixo cair o tório no reator. Acende-se a luz verde, signi-
ficando que o golpe deu certo; a matéria quente desaba para dentro do reator, es-
murrando os neutrônios como louca.
Então Murff dá o sinal e eu mergulho a pá nas pilhas e daí tiro mais matéria quen-
te com a pá número 1.
- Ei - torna ele a gritar, e em seguida a pá número 2 se me escapa, a pá vazia...
O enorme braço balança no ar, e vejo os dedinhos, de delicadas juntas ósseas de
metal que a alguns segundos ainda estavam prendendo um pedaço de material Th
233, vermelho em brasa. Pareciam querer me agarrar.
Solto um grito. Meu Deus! Murff também grita e eu perco o controle, enquanto ele
tenta se pôr atrás do painel de controle e agarrar o cabo da pá. Mas estou no cami-
nho, tão enregelado que ele não pode fazer nada. Ele se esquiva e se achata no
chão, enquanto o enorme braço mecânico se espatifa contra a blindagem.
Não posso me mover.
Ali fico. Os dedinhos me arranham o lado esquerdo do maxilar e eu grito. Estou em
fogo. A mão de metal raspa-me o flanco, mal me tocando, e é como uma navalha em
brasa talhando minha carne em fatias.
É tanta dor que mal a sinto. Meus nervos ficam anulados. Não mais conduzirão
mensagens a meu cérebro.
E a dor afinal me invade...
Socorro! Estou ardendo! Socorro!”

- Pare aí - disse Cullinan rispidamente, e os medonhos gritos de Falk cessaram. -


Deixe a dor de lado e continue. Que aconteceu quando acordou?
“Vozes. Ouço-as acima de mim enquanto começo a sair da dor que me amortalha-
va.
- A radiação queima - diz uma profunda voz dissonante. É o Dr. Sigstrom. Ele diz: -
Está horrivelmente queimado, Leon. Acho que não viverá.
- Com a breca - diz outra voz. É o Comandante Warshow. - Ele precisa viver - diz
Warshow. - Ainda não perdi sequer um homem. Vinte anos sem perder ninguém.
- Ele foi assado por aquele braço de controle remoto - diz uma terceira voz. A do
oficial psíquico Cullinan. - Ele perdeu o controle - continua Cullinan. - É muito estra-
nho.
Sim, penso eu. Muito estranho. Distraí-me apenas um segundo, e aquela pá se di-
ria estar viva.
Sinto a dor indo para baixo e para cima. Parece faltar-me a metade da cabeça;
queimam-me os braços. ‘Onde está o enxofre desse inferno?’, me pergunto.
Então fala o Dr. Sigstrom:
- Vamos experimentar um banho nutriente.
- Que é isso? - pergunta Warshow.
- É uma nova técnica - diz o médico. - Incubação quimioterápica. Imersão em solu-
ções de hormônio. Está em uso na Terra, em casos graves de queimaduras por radia-
ção. Acho que nunca foi experimentada no espaço, mas deve ser. Ele estará em que-
da livre; a gravidade não distingue as coisas.
- Se é para salvá-lo - diz Warshow -, concordo.
Então as coisas desapareceram. O tempo passa... uma eternidade no inferno, a
dor ardente me queimando o flanco. Ouço as pessoas falarem de vez em quando, e
sinto que me levam de um lugar para outro. Inserem-me tubos para me alimentar.
Com metade do corpo frito, com o que parecerei?
De repente, um calor frio. Sim, é engraçado. Mas é quente e alimenta, também é
frio, banha-me todo e tira as ferroadas de meu corpo.
Não tento abrir os olhos, mas sei que estou rodeado de trevas. Estou totalmente
imóvel no meio da escuridão, todavia sei que, fora de mim, a nave corre para Kolli-
dor, encerrando-me, segurando-me...
Estou no interior da nave, balançando-me suavemente e em segurança. Estou no
interior de alguma coisa dentro da nave. Rodas dentro de rodas; portas dentro de
portas. Uma charada chinesa comigo dentro.
Um líquido macio vem me lamber, insinuando-se nos lugares onde o tecido se rom-
peu e ardeu e a carne formou bolhas. Acariciando cada célula individual, banhando-
me o corpo órgão a órgão. Estou sendo consertado.
Flutuo sobre um oceano e dentro de um oceano. Meu corpo sara rapidamente. A
dor cessa.
Não tenho absolutamente consciência da passagem do tempo. Minutos se juntam
a minutos sem deixar suturas, e o tempo flui unido... Estou sendo embalado numa
suavíssima existência sem fim. Felicidade, penso. Segurança. Paz.
Gosto daqui.
A meu redor, um glu-glu de fluido. Em torno dele, uma teia estriada de metal. De-
pois, uma nave espacial esferoide, e, à volta dela, o universo. E depois? Não sei nada
e não me importa. Aqui estou são e salvo, sem dor nem medo.
Escuridão. Escuridão total e perfeita. A escuridão equivale à segurança, à maciez,
ao silêncio... Mas então.
Que estão fazendo?
Que está acontecendo?
Dardos de luz azul varam a escuridão, e vem em seguida um turbilhão de cores.
Verde, vermelho, amarelo. A luz irrompe e me ofusca. Cheiros, sensações, rumores.
A nave balança. Estou andando.
Não; estão me puxando. Vamos!
Está esfriando, não posso respirar. Afogo-me! Tento resistir, mas eles não consen-
tem. continuam a puxar-me, a puxar-me na direção de um mundo de fogo e dor!
Luto. Não quero ir. Mas não adianta. Afinal estou fora...
Olho em torno. Dois vultos confusos acima de mim. Esfrego os olhos e a vista se
aclara. Warshow e Sigstrom - são eles!
Sigstrom sorri e fala, radiante:
- Bem: foi uma cura maravilhosa!
- Um milagre - diz Warshow. - Um milagre.
Cambaleio, quero cair... mas já estou deitado. Eles continuam falando e eu me po-
nho a chorar de raiva.
Mas não há retorno. Tudo acabou. Tudo, tudo acabou. E eu me encontro terrivel-
mente só.”

A voz de Falk morreu subitamente. Warshow lutou contra violentos impulsos de


enjoar. Sentia o rosto gelado e pegajoso, e voltou-se para olhar os pálidos rostos de
Sigstrom e Cullinan. Atrás deles, sem qualquer expressão, achava-se Thetona.
Cullinan rompeu o longo silêncio.
- Leon, você ouviu a primeira parte. Reconheceu o que ele nos contava?
- O trauma do nascimento - disse Warshow inexpressivamente.
- É óbvio - comentou o médico, correndo os dedos firmes na densa gaforinha de
cabelos brancos. - A quimioterapia... foi para ele um ventre. Encerramo-lo no ventre.
- Depois arrancamo-lo de lá - disse Warshow. - Libertamo-lo, e ele continuou a
procurar a mãe.
Cullinan acenou com a cabeça para Thetona:
- E achou uma.
Warshow umedeceu os lábios.
- Bem, agora temos a resposta. Que faremos?
- Repitamos para ele toda a história em fitas gravadas. Seu intelecto consciente
verá o que é a sua relação com Thetona: o desejo neurótico de um adulto forçado a
um ventre artificial e procurando uma mãe. Mas uma vez tirando isso do seu porão e
levando para o sótão, por assim dizer, acredito que ele volte ao normal.
- Mas a nave era sua mãe - disse Warshow. - Era ali que se achava o tanque de in-
cubação... o ventre.
- A nave lançou-o fora. Você era a imagem do tio, não uma mãe substituta. Ele
próprio o disse. Pôs-se a procurar e descobriu Thetona. Demos-lhe as fitas gravadas.

Mais tarde Mat Falk viu os quatro reunidos na cabina. Ouvira a própria voz reme-
morando sua vida. Agora sabia.
Fez-se um longo silêncio depois da última fita, e Falk falou:
- Tudo, tudo acabado. E estou terrivelmente só.
As palavras se diriam suspensas no aposento. Afinal Falk disse:
- Obrigado. - Sua voz era fria, dura, difícil, inerte.
- Obrigado? - repetiu Warshow sem entusiasmo.
- Obrigado, sim, porque me abriram os olhos; por terem consentido que eu desse
uma espiadela por detrás de minhas pálpebras. É isso mesmo: obrigado.
O rosto do rapaz se mostrava taciturno e amargo.
- Naturalmente você compreende que foi necessário - disse Cullinan. - Porque
nós...
- Sim, sei por quê - respondeu Falk. - E agora posso voltar à Terra com vocês, e
suas consciências estão limpas.
Olhou para Thetona, que o fitava com uma curiosidade inquieta estampada em
todo o seu largo rosto. Falk estremeceu ligeiramente quando seus olhos se encontra-
ram com os da estrangeira. Warshow captou a reação e sacudiu a cabeça: a terapêu-
tica fora um sucesso.
- Eu era feliz - disse Falk tranquilamente - até que vocês resolveram levar-me de
volta à Terra em sua companhia. Por isso me fizeram passar por uma tortura, tiraram
de mim todas as psicoses. E... e...
Thetona deu dois pesados passos em sua direção e pousou os braços em seus om-
bros.
- Não - murmurou ele, libertando-se. - Não vê que está tudo acabado?
- Mat - disse Warshow.
- Não me chame de Mat, capitão! Agora estou fora do ventre, e faço parte da tri-
pulação. - E volvendo uns olhos tristonhos para Warshow: - Thetona e eu tínhamos
em comum uma coisa boa e cálida e muito bela, mas você a destruiu. Não posso
juntar-lhe os cacos. Bem, capitão, agora estou pronto para voltar à Terra.
E sem qualquer outra palavra saiu do aposento a largas passadas.

O rosto cor de cinza, Warshow olhou fixamente para Cullinan e Thetona, e baixou
a vista.
Lutara para conservar Mat Falk, e vencera - vencera mesmo? De fato, sim; mas...
em espírito? Falk nunca lhe perdoaria o que fizera para salvá-lo.
Warshow encolheu os ombros, rememorando o livro que dizia: “A relação do co-
mandante para com o tripulante é a de pai para filho”.
Não iria permitir que o olhar amargurado de Falk o perturbasse; com efeito, era de
esperar a amargura do rapaz.
Criança nenhuma realmente perdoa ao pai este lançamento para fora do ventre...
- Vamos, Thetona - disse à grandalhona e enigmaticamente carrancuda estrangei-
ra. - Venha comigo. Vou levá-la de volta à cidade.
Nascer do Sol em Mercúrio

A nove milhões de milhas de Mercúrio, na direção do Sol, com o Leverrier girando


na série de espirais que o levaria ao menor dos mundos do sistema solar, o astronau-
ta auxiliar Lon Curtis resolveu acabar com a vida.
Estivera recostado numa rede de espuma esperando que se efetuasse a aterrissa-
gem; seu ofício na operação estava terminado, pelo menos até que as pernas do Le-
verrier tocassem a superfície crestada de Mercúrio. O eficiente sistema de sódio-re-
frigeração neutralizava os esforços do sol opaco visível através da tela de retaguarda.
Para Curtis e seus cinco companheiros de tripulação, não havia problemas; tinham
apenas de esperar enquanto o auto-piloto fazia a nave descer em Mercúrio, na se-
gunda aterrissagem.
O comandante de voo, Henry Ross, estava sentado perto de Curtis, quando notou
o súbito enrijecimento momentâneo dos maxilares do astronauta. Abruptamente,
Curtis alcançou o bocal de controle. Das fiandeiras que tinham fiado a rede de espu-
ma saiu uma repentina explosão verde, de fluoro-crina dissolvente: a rede desapare-
ceu, Curtis ficou de pé.
- Vai a algum lugar? - perguntou Ross.
A voz de Curtis era ríspida.
- Apenas... apenas vou dar um passeio.
Ross voltou a atenção para o seu micro-livro enquanto Curtis se afastava. Ouviu-se
o barulho do gancho do anteparo se desenroscando, e Ross sentiu momentaneamen-
te um arrepio quando o ar mais frio do compartimento do reator super-refrigerado o
atingiu. Apertou um botão e virou a página. Depois...
“Que diacho está ele fazendo no compartimento do reator? “
O auto-piloto controlava a fluência do combustível, deixando-o escorrer miligrama
a miligrama, de um jeito impossível a qualquer sistema humano. O reator estava pre-
parado para a aterrissagem, o combustível carregado, o compartimento hermetica-
mente fechado. Ninguém - muito menos um segundo ajudante - tinha o que fazer
ali.
Ross dissolveu num instante a rede de espuma, no outro já estava de pé. Atirou-se
pela escotilha abaixo através da porta aberta, do anteparo para a frialdade do com-
partimento do reator.
Curtis estava de pé junto à porta do conversor, lidando com o desengate de soltu-
ra. Aproximando-se, Curtis viu o astronauta abrir a porta e pôr um dos pés na rampa
que descia para a pilha nuclear.
- Curtis, seu idiota! Saia daí! Vai nos matar!
O astronauta voltou-se, olhou impassível para Ross e levantou o outro pé. Ross
saltou.
Agarrou nas mãos o pé calçado de Curtis, e, a despeito de uma barragem de pon-
tapés do pé livre, conseguiu arrastar Curtis para fora da rampa. O astronauta dava
safanões e puxava, tentando libertar-se. Ross via tremerem as faces pálidas do ho-
mem; Curtis afinal desabou inteiramente.
Rosnando, Ross puxou Curtis para fora da hiante boca da rampa e fechou a porta
com um estrondo. Levou-o para a parte principal da nave e esbofeteou-o com força.
- Por que fez aquilo? Não sabe o que seu volume faria à nave se caísse no conver-
sor? Sabe que a tomada de combustível já foi calibrada. Cento e oitenta libras extras
e cairíamos no Sol. Que há de errado com você, Curtis?
O astronauta fixou um olhar impassível e inexpressivo em Ross.
- Quero morrer - disse simplesmente. - Por que não me deixou?
Queria morrer... Ross encolheu os ombros, sentindo um arrepio de frio correr-lhe
pela espinha. Não havia proteção contra essa doença.
Assim como os aqualoucos sob a superfície do mar sofriam de l’ivresse des gran-
des profondeurs - a embriaguez das profundezas, - e não se conhecia cura para a es-
tranha embriaguez que os induzia a retirar seus tubos de respiração a cinquenta bra-
ças de fundo, assim também os homens do espaço corriam o risco dessa indizível
doença, desse inexplicável impulso de autodestruição.
E acontecia em toda parte. Um homem que estivesse consertando um montante
recalcitrante numa roda orbital, podia abruptamente rasgar sua máscara facial e tra-
gar o vácuo; um consertador de rádio reparando uma antena na fuselagem de sua
nave, podia repentinamente romper seu cabo de segurança, disparar sua pistola di-
recional e largar-se no espaço em direção ao Sol. Ou um ajudante de astronauta po-
dia resolver lançar-se no conversor...

O oficial psíquico Spangler apareceu; trazia no liso rosto cor-de-rosa um ar de pre-


ocupação.
- Alguma coisa errada?
Ross abanou a cabeça.
- É Curtis. Tentou saltar na rampa de combustível. Está com a doença, doutor.
Spangler esfregou a face e disse:
- Sempre escolhem a pior hora, diacho! É formidável ter-se a bordo um maluco na
corrida a Mercúrio.
- É mesmo - disse Ross, desanimado. - Melhor provocar-lhe uma estase até regres-
sarmos. Eu detestaria vê-lo solto, procurando outros modos de se suicidar.
- Por que não me deixam morrer? - perguntou Curtis. Seu rosto estava macilento. -
Por que tiveram de atrapalhar?
- Porque, seu lunático, você nos mataria a todos com esse mergulho doido no con-
versor. Se quer morrer, saia pelo ventilador da calota, mas não nos leve junto.
E Spangler fitou-o atentamente.
- Harry...
- Tudo bem - disse Ross. - Leve-o.
O oficial psíquico levou Curtis. Aplicaria no astronauta uma injeção tranquilizante e
o aprisionaria numa jaqueta de espuma insolúvel pelo resto da viagem. Havia uma
oportunidade de restaurar-lhe a sanidade mental quando voltassem à Terra, porém
Ross sabia que Curtis iria em linha reta para o suicídio no justo momento em que o
soltasse.
Com um rictus irônico, Ross voltou-lhes as costas. Um homem passa a sua infância
sonhando com o espaço, passa quatro anos na academia, e mais dois realizando
voos simulados. Afinal, quando ocupa o lugar devido, enlouquece. Curtis era uma
máquina astronáutica, não um ser humano normal; e acabava justamente de se des-
qualificar permanentemente para o único ofício que sabia exercer.
Ross estremeceu, sentindo um arrepio, a despeito do vulto intumescido do Sol que
enchia a tela à retaguarda. Podia acontecer a qualquer um... até mesmo a ele. Pen-
sou em Curtis deitado numa rede de espuma em algum lugar nos fundos da nave,
repetindo amargamente: “Quero morrer”, enquanto o Dr. Spangler lhe murmurava
palavras tranquilizadoras. O ser humano era realmente uma forma frágil de vida.
A morte parecia pairar sobre a nave; a aura sombria do desejo suicida de Curtis
poluía a atmosfera.
Ross sacudiu a cabeça e empurrou selvagemente o sinal de preparação para acele-
ração. O globo imóvel que era Mercúrio surgiu à frente. Ross localizou-o através da
tela de vanguarda.
Aproximavam-se do minúsculo planeta. Podia-se ver a nítida divisão de sua face: o
brilho do lado do Sol, o inatingível inferno onde o zinco corria em torrentes, e o ne-
grume gelado do lado das trevas, com suas obscuras planícies de CO2 congelado.
No coração do planeta corria o Cinturão do Crepúsculo, estreita área sem frio e
sem calor, onde o lado do Sol e o lado das trevas uniam-se para formar uma estreita
faixa de território um pouco suportável, um anel de mil milhas de circunferência e
dez ou vinte milhas de largura.
O Leverrier mergulhou; mergulhou não é a palavra exata, uma vez que no espaço
não existem subidas ou descidas, mas era esse o modo mais simples que Ross tinha
à sua disposição para visualizar a aproximação. Deixou que seus nervos agitados se
acalmassem. A nave estava entregue ao auto-piloto; a órbita fora pré-computada, e
as margens análogas da trajetória felizmente seguiam o programa gravado, levando
a nave a pousar exatamente no meio de... Santo Deus!
Ross esfriou da cabeça aos pés. As gravações pré-computadas tinham sido inseri-
das nas margens análogas - tinham sido preparadas por... tinham sido obra de... Cur-
tis! Um louco suicida havia trabalhado no programa de aterrissagem do Leverrier.
As mãos de Ross começaram a tremer. Como teria sido fácil, pensou, para o
quase-suicida Curtis, traçar uma órbita que jogasse o Leverrier na torrente fumegan-
te de chumbo derretido - ou no gelo mortal do lado das trevas!
Foi-se-lhe a falsa segurança. Não devia confiar no piloto automático; deviam se ar-
riscar a uma aterrissagem manual.
Ross atirou-se ao botão do comunicador.
- Quero Brainerd - disse com voz rouca.
O primeiro-astronauta apareceu uns segundos depois, espiando curiosamente para
dentro.
- O que há, capitão?
- Acabamos de confinar o ajudante Curtis na cabina; ele quis saltar para dentro do
conversor.
- Ele...?
Ross aquiesceu com um gesto de cabeça.
- Tentou suicidar-se, mas eu o detive a tempo. Mas, à vista das circunstâncias,
acho melhor descartar as gravações que ele preparou e levar a nave a aterrissar ma-
nualmente.
O primeiro-astronauta umedeceu os lábios.
- Talvez seja boa ideia
- Com a breca que é! - disse Ross fazendo uma carranca.

Enquanto a nave tocava o solo, Ross ia pensando: “Mercúrio era dois infernos em
um só”. Era o frio reino gelado do mais profundo abismo de Dante; era também o
domínio de fogo e enxofre que algum outro concebera. Os dois ali se encontravam,
fogo e gelo, cada hemisfério sua própria espécie de inferno.
Ross levantou a cabeça e relanceou o olhar ao painel de instrumentos, acima do
local de desaceleração. Os quadrantes, conferidos; localização da carga, adequada;
estabilidade cem por cento; temperatura exterior razoável, cento e oito graus Fahre-
nheit, indicando uma aterrissagem um tanto na direção do Sol, a partir do centro
exato do Cinturão do Crepúsculo. Fora uma boa aterrissagem. Ross lançou uma cha-
mada no comunicador:
- Brainerd?
- Tudo bem, capitão!
- Que tal a aterrissagem? Você usou o aparelho manual, não foi?
- Tive de fazê-lo - disse o astronauta. - Conferi rapidamente a gravação de Curtis;
toda amalucada. Raspamos a órbita de Mercúrio e continuamos... diretamente para o
Sol. Bonito, hein?
- Maravilhoso - disse Ross. - Mas não sejamos muito duros com o rapaz; não foi
por sua culpa que ficou louco. De qualquer forma, foi uma boa aterrissagem. Parece
que estamos bem próximos do Cinturão do Crepúsculo, com uma ligeira diferença de
uma ou duas milhas.
Desligou o contato e desamarrou-se.
- Aqui estamos - anunciou no circuito da nave. - Todos para a frente, de prontidão.
Os homens imediatamente se apresentaram - primeiro Brainerd, depois o Dr. Span-
gler, seguido por Krinsky, técnico do acumulador e os três tripulantes. Ross esperou
que todos estivessem reunidos.
Olhavam curiosamente à volta procurando Curtis, menos Brainerd e Spangler. Ross
disse num tom resoluto:
- O astronauta Curtis não estará conosco. Encontra-se na ré, na cabina dos loucos;
felizmente podemos passar sem ele nesta viagem.
Esperou até que o significado dessa declaração fizesse efeito. “Os homens se ada-
ptaram bem a ela”, pensou Ross, “a julgar pela rapidez com que a expressão de hor-
ror se dissipou de seus rostos.”
- Muito bem - continuou. - O programa nos força a despender o máximo de trinta
e duas horas em Mercúrio antes de voltarmos. Brainerd, como combinar isso com a
nossa localização?
O astronauta cerrou os supercílios e fez alguns cálculos mentais.
- A posição atual acha-se um pouquinho voltada para a orla ensolarada do Cintu-
rão do Crepúsculo; mas, segundo penso, o Sol não vai ficar tão alto, a ponto de fazer
a temperatura subir muito acima de cento e vinte, pelo menos durante uma semana.
Nossas roupas podem facilmente resistir a uma temperatura dessas.
- Está bem. Llewellyn, você e Falbridge rompam os infladores do radar e ergam a
torre para leste o mais que puderem sem perigo de se assarem. Levem o trator, mas
não tirem os olhos do termômetro. Temos somente um traje para calor, e esse é para
Krinsky.
Llewellyn, um astronauta magro e de olhos fundos, mexia-se, incomodado.
- A que distância para o oriente o senhor sugere?
- O Cinturão do Crepúsculo cobre cerca de um quarto da superfície de Mercúrio -
disse Ross. - Você tem uma faixa de quarenta e sete graus para rodear... mas sugiro
que não cubra mais de vinte e cinco milhas, mais ou menos. Daí em diante, começa
a esquentar e o calor a aumentar.
Ross voltou-se para Krinsky. O técnico do acumulador era o homem chave da ex-
pedição; sua tarefa era examinar os registros no par de acumuladores solares que ti-
nham sido deixados ali pela primeira expedição. Devia medir as tensões mecânicas
ali criadas pelas energias solares, tão perto da fonte de radiação, e estudar as linhas
de força que operavam no estranho campo magnético daquele pequeno mundo, e
re-preparar os acumuladores para testes ulteriores.
Krinsky era um homem alto, vigorosamente constituído, uma espécie de homem
capaz de aguentar quase alegremente o peso esmagador de um traje contra o calor.
Este era necessário para um trabalho prolongado na zona do Sol, onde se achavam
os acumuladores - e até mesmo um gigante como Krinsky só poderia suportar o es-
forço apenas algumas horas de cada vez.
- Depois que Llewellyn e Falbridge assentarem a torre de radar, vistam o traje de
calor e aprontem-se para outra tarefa. Assim que localizarmos a estação do acumula-
dor, Dominic os levará para o oriente tanto quanto possível e os deixará lá. O resto é
com vocês. Estaremos tele-metrando seus registros, mas gostaríamos de tê-los de
volta, vivos.
- Sim, senhor.
- É isso - disse Ross. - Vamos andando.
O ofício de Ross era puramente administrativo - e enquanto os homens de sua tri-
pulação moviam-se diligentemente nas tarefas que lhes tinham sido designadas, ele
percebia, e sentia-se infeliz por isso, que estava condenado a uma ociosidade tempo-
rária. Sua função era de administrador. A exemplo de um regente de orquestra sinfô-
nica, não tocava instrumento algum, e estava a postos principalmente para manter o
grupo tocando harmoniosamente até o fim.
Agora, só lhe restava esperar.
Llewellyn e Falbridge partiram, alojados no trator segmentado e termo-resistente
que estava alojado no ventre do Leverrier. Sua tarefa era simples: deviam erigir a
torre de plástico inflável de radar na direção do Sol. A torre fora ali deixada pela pri-
meira expedição, desde que esta, librando no lado do Sol, fora liquidificada. A base
plástica e a parábola, cobertas com uma leve superfície de alumínio espelhado, mal
podiam suportar o calor causticante do lado do Sol.
Lá fora, o calor subia para setecentos graus quando o Sol chegava mais perto. As
excentricidades da órbita de Mercúrio eram responsáveis por consideráveis variações
de temperatura do lado do Sol. Mas o termômetro nunca ia além de trezentos graus,
mesmo durante o afélio. No lado das trevas havia pouca variação; a temperatura
permanecia quase em zero absoluto, e nuvens geladas, de pesados gases, cobriam a
superfície do solo.
Do lugar onde estava, Ross não podia avistar nenhum dos lados. O Cinturão do
Crepúsculo tinha quase mil milhas de largura, e, enquanto o planeta afundava em
sua órbita, o Sol primeiro deslizava acima do horizonte, depois reaparecia. Numa fai-
xa de vinte milhas, atravessando o centro do Cinturão, o calor do lado do Sol e o frio
do lado das trevas se anulavam, formando um clima temperado estável; e nas qui-
nhentas milhas de cada lado, o Cinturão do Crepúsculo gradualmente escorria na di-
reção das áreas frígidas e de calor abrasador.
Era um planeta estranho e inacessível. Os humanos só poderiam suportá-lo por
curtos intervalos; a espécie de vida que poderia existir em Mercúrio ficava além do
que Ross poderia conceber. Fora do Leverrier, vestido em seu traje espacial, Ross cu-
tucou o controle do queixo e fez baixar uma vidraça de vidro óptico Olhou primeiro
para o lado das trevas, onde pensou divisar uma delgada linha preta crescente - ape-
nas ilusão, sabia; depois olhou para o lado do Sol.
Na distância, Llewellyn e Falbridge erigiam a parábola-aranhol, que era a torre de
radar. Podia ver a sombra canhestra contra o céu... e, atrás dela? Uma delgada linha
de luz orlando os picos limítrofes? Também isso era ilusão. Brainerd calculara que a
radiação do Sol não seria visível ali durante uma semana. E dentro de uma semana
estariam de volta à Terra.
Voltou-se para Krinsky.
- A torre está quase pronta. A qualquer momento chegarão com o trator. Melhor se
aprontar para fazer a viagem.
Enquanto o técnico se balançava nos cabos e se lançava para dentro da nave, os
pensamentos de Ross voltaram-se para Curtis. O jovem astronauta dissera que iria
ver Mercúrio em toda a sua dimensão - e agora que se achavam ali, Curtis jazia dei-
tado num berço de espuma dentro da nave, melancolicamente exigindo o seu direito
de morrer.
Krinsky voltou, já agora com o volumoso traje isolante sobre o equipamento pa-
drão a fim de voltar a respirar. Mais parecia um pequeno tanque do que um homem.
- O trator está se aproximando, senhor?
- Vou ver.
Ross ajustou as lentes na máscara e estreitou os olhos. Parecia-lhe que a tempera-
tura subira um pouco. Outra ilusão, pensou, esquadrinhando a distância.
Seus olhos divisaram a torre de radar, lá longe, na direção do lado do Sol. Seu
queixo caiu.
- O que há, senhor?
- Já digo!
Ross apertou os olhos com força e tornou a olhar. E... sim: a torre de radar, que
acabara de ser erguida, inclinava-se molemente e começava a se derreter. Viu duas
minúsculas figuras correndo loucamente no solo liso coberto de pedra-pomes, na di-
reção do objeto oblongo cor de prata, que era o trator, e - impossível! - o primeiro
clarão de um brilho inconfundível começava a ferver sobre as montanhas, atrás da
torre.
O Sol nascia - uma semana antes do tempo estipulado!
Ofegante, Ross voltou para a nave, seguido pelo enorme Krinsky. Na comporta,
mãos mecânicas desceram para ajudá-lo a sair do traje espacial; ele fez sinal a
Krinsky para que permanecesse no seu traje isolante, e lançou-se para a cabina prin-
cipal.
- Brainerd! Brainerd! Onde diacho você está?
O astronauta mais velho apareceu, com um ar intrigado:
- Sim, capitão?
- Olhe através da tela - disse Ross numa voz embargada. - Olhe a torre de radar!
- Está se derretendo - disse Brainerd, atônito. - Mas isso é... isso é...
- Já sei, é impossível.
Ross olhou para o painel de instrumentos. A temperatura externa subira para cen-
to e doze - um salto de quatro graus. Enquanto olhava, o registro subiu para cento e
catorze.
Seriam precisos pelo menos quinhentos graus para derreter a torre de radar da-
quela forma. Ross desviou o olhar para a tela e viu o trator vir bamboleando em sua
direção. Llewellyn e Falbridge ainda estavam vivos - conquanto provavelmente tives-
sem sido quase assados na aventura. A temperatura fora da nave era de cento e de-
zesseis graus. Provavelmente chegaria a duzentos quando os homens voltassem.
Cheio de raiva, Ross encarou o astronauta:
- Pensei que você nos tivesse feito descer na zona de segurança - estrondejou. -
Torne a conferir os números e veja onde diacho nós estamos realmente! Depois pro-
cure outra órbita. Aquilo lá é o Sol subindo sobre os montes!
A temperatura atingiu cento e vinte graus. O sistema resfriador da nave seria ca-
paz de manter as coisas sob controle, e com certo conforto, até duzentos e cinquen-
ta graus; acima disso, haveria perigo de uma sobrecarga. O trator aproximava-se
cada vez mais; no interior do mesmo provavelmente reinaria um inferno de calor,
pensou Ross.
Sua mente sopesava alternativas Se a temperatura externa subisse muito além doa
duzentos e cinquenta, ele correria o risco de avariar o sistema resfriador da nave se
esperasse pelos homens do truque. Resolveu aguardar até uma temperatura de du-
zentos e setenta e cinco para voltar e em seguida partir. Seria uma tolice tentar sal-
var duas vidas ao custo de seis.
A temperatura exterior atingira cento e trinta graus. Subia a um ritmo cada vez
mais rápido.
A tripulação agora conhecia a situação. Sem ordens diretas de Ross, aprontava o
Leverrier para uma partida de emergência.
O trator avançava devagar. Os dois homens já não se achavam a mais de dez mi-
lhas; e, à velocidade média de quarenta milhas por hora, estariam de volta dentro de
quinze minutos. Lá fora, cento e trinta e três graus. Longos dedos de luz causticante
estendiam-se para eles a partir do horizonte.
Brainerd levantou o olhar de seus cálculos.
- Não posso calcular. As malditas cifras não cooperam.
- Hein?
- Estou computando a nossa localização, mas não consigo fazer as contas. Tenho a
cabeça confusa.
“Que inferno”, pensou Ross. Era esse um dos momentos em que o comandante
merecia seu salário. - Saia do caminho - gritou. - Deixe-me fazer isso.
Sentou-se à mesa e pôs-se a fazer cálculos. Viu as rápidas anotações de Brainerd
garatujadas por toda parte. Era como se o astronauta houvesse esquecido completa-
mente de como desempenhar seu ofício.
“Vejamos agora. Se estivermos... “
O lápis voava no papel - mas, enquanto trabalhava, Ross viu que estava tudo erra-
do. Sentia o cérebro estranho, anuviado; não acertava lidar com as computações.
Olhando para cima disse:
- Diga a Krinsky que desça para lá e fique preparado para ajudar os dois homens a
saírem do trator quando chegarem. Estarão provavelmente meio cozidos.
Temperatura, cento e quarenta e seis graus. Tornou a olhar o papel. “Maldição”,
pensou. “Não seria tão difícil fazer simples trigonometria...”
O Dr. Spangler apareceu.
- Soltei Curtis - anunciou. - Durante a partida não estará seguro naquele lugar.
Chegava do interior um incessante murmúrio: - Deixem-me morrer... Deixem-me
morrer...
- Diga-lhe que é provável que o seu desejo seja satisfeito - murmurou Ross. - Se
eu não puder descobrir outra órbita, morreremos todos torrados.
- Por que é você, e não Brainerd, que a procura? O que há com ele?
- Está confuso. Não acerta os números. E escute: eu também me sinto esquisito...
Sentia uma névoa a envolver-lhe a mente. Olhou o mostrador: temperatura exter-
na, cento e cinquenta e dois. Os rapazes do trator tinham cento e vinte três graus
para chegar até ali. Ou seriam trezentos e vinte e um? Estava confuso, completa-
mente desorientado.
O Dr. Spangler também tinha um ar estranho. Careteava de um modo curioso.
- De repente me senti letárgico - disse Spangler. - Acho que devia voltar para junto
de Curtis, mas...
O louco continuava a resmungar lá dentro. A parte da mente de Ross que ainda
pensava com clareza via que Curtis, desassistido, era capaz de qualquer coisa.
Temperatura, cento e cinquenta e oito graus. O trator se aproximava. Via-se no
horizonte a torre de radar transformando-se em escombros.
Ouviu-se um grito.
- É Curtis! - berrou Ross, subitamente readquirindo a consciência. Correu para a
ré, seguido por Spangler, mas já era tarde demais.
Curtis jazia no piso, numa poça de sangue. Descobrira uma tesoura em algum lu-
gar.
Spangler abaixou-se.
- Está morto.
- Naturalmente. Está morto - repetiu Ross como um eco. Sentia o cérebro inteira-
mente claro, agora; no momento em que Curtis morrera, a névoa desaparecera. Dei-
xando Spangler cuidando do corpo, voltou para a mesa e examinou as computações.
Com uma gélida clareza determinou sua localização. Tinham descido mais de tre-
zentas milhas na direção do Sol: era mais do que tinham pensado. Os instrumentos
não haviam mentido; o que mentiu foram os olhos de alguém. A órbita, que Brainerd
tão solenemente lhe garantira como “segura”, era na realidade tão mortal quanto a
órbita computada por Curtis.
Olhou para fora. O trator chegava; temperatura, cento e sessenta e sete graus.
Havia tempo suficiente. Dariam a partida com alguns minutos de sobra, graças à ad-
vertência da torre de radar, que se derreta.
Mas por que acontecera aquilo? Não havia resposta.
Gigantesco no seu traje isolante, Krinsky conduziu Llewellyn e Falbridge para bor-
do. Os dois tiraram a “casca”, cambalearam e desfaleceram. Dir-se-iam duas lagostas
recém-cozidas.
- Prostração pelo calor - disse Ross. - Krinsky, ponha-os na posição de decolagem.
Dominic, ainda não despiu seu traje isolante?
O homem espacial apareceu na entrada do ventilador e aquiesceu com um aceno
de cabeça.
- Está bem. Desça e conduza o trator para o porão. Não podemos deixá-lo aqui.
Depressa; vamos decolar. Brainerd, a nova órbita está pronta?
- Sim, senhor.
O termômetro aproximava-se dos duzentos graus. O sistema de resfriamento co-
meçava a falhar, porém aquela agonia logo iria terminar. Alguns minutos depois o Le-
verrier tinha deixado a superfície de Mercúrio - alguns minutos antes do implacável
avanço do Sol - e entrava numa órbita temporária, de círculo planetário.

Enquanto aí se mantinham, virtualmente retendo a respiração, uma pergunta sur-


giu na mente de Ross: por quê? Por que a órbita de Brainerd os levara a descer
numa zona de perigo ao invés de conduzi-los para a faixa de segurança? Por que
Brainerd e Ross foram incapazes de computar um plano de partida, a mais simples
das técnicas astronáuticas elementares? E por que a inteligência de Spangler falhara
completamente - apenas o tempo suficiente para permitir que o infeliz Curtis se suici-
dasse?
Ross podia ver a mesma pergunta refletida em todos os rostos: por quê?
Tinha uma sensação de coceira na base do crânio; e de repente uma imagem atra-
vessou-lhe a mente, respondendo.
Era uma enorme lagoa de zinco derretido, fervendo entre duas cristas pontiagudas
em algum lugar do lado do Sol. Estava ali há milhares de anos, e ali permaneceria
outros milhares, talvez milhões de anos...
A superfície da lagoa fremia. O brilho do Sol na lagoa era intolerável até mesmo
para o olho mental.
A radiação caía da chapa para a lagoa de zinco - a radiação do Sol, dura e intermi-
nável, e, em seguida, uma nova radiação, uma emanação eletromagnética com uma
mensagem significava: “Quero morrer”.
A lagoa de zinco fremia assustadoramente, com súbitos impulsos de debilidade.
A visão passou, tão depressa como veio. Hesitante, Ross levantou os olhos. As ex-
pressões dos cinco rostos que o rodeavam lhe diziam o que ele desejava saber.
- Vocês também sentiram - disse.
Spangler acenou que sim, Krinsky e os outros o imitaram.
- Sim - disse Krinsky. - Que diabo era?
Brainerd voltou-se para Spangler:
- Estamos todos malucos, doutor?
O médico encolheu os ombros.
- Alucinação em massa... hipnose coletiva...
- Não, doutor - e Ross inclinou-se para a frente. - O senhor sabe tão bem quanto
eu. A coisa era real; está lá, no lado do Sol.
- Que quer dizer?
- Quero dizer que não foi alucinação. Aquilo é a vida - ou tão próximo da vida
quanto Mercúrio alcança.
As mãos de Ross tremiam; ele as forçou a se imobilizarem.
- Tropeçamos em algo muito grande... - disse.
Spangler mexia-se, incomodado.
- Harry...
- Não. Ainda não perdi o juízo. Não vê que aquela coisa lá embaixo, seja ela o que
for, é sensível aos nossos pensamentos? Captou as amaldiçoadas lamúrias de Curtis,
assim como um radar capta ondas eletromagnéticas Eram dele os pensamentos mais
fortes que a tocavam... Por isso agiu sobre os mesmos e fez o impossível para ajudar
a realização do desejo de Curtis.
- E o fez mediante o embaralhamento de nossas mentes e a ilusão de que estáva-
mos em território seguro, quando, na realidade, estávamos muito próximo ao territó-
rio do nascer do Sol.
- Mas por que se daria a tanto incômodo? - objetou Krinsky. - Se queria ajudar
Curtis a se matar, por que não arranjou para descermos todos diretamente para o
lado do Sol? Desse jeito ficaríamos assados muito mais depressa!
Ross sacudiu a cabeça.
- Ele sabia que nem todos queríamos morrer. A coisa lá embaixo deve ser um pen-
sador de valores múltiplos Captou as emanações conflitantes de Curtis e do resto, e
arranjou para que só ele morresse e não nós.
Ross estremeceu.
- Uma vez tirado Curtis do caminho, ajudou para que os membros sobreviventes
da tripulação se salvassem. Se estão lembrados, todos pensamos e agimos muito
mais depressa no momento em que Curtis morreu.
- Com a breca se não for isso mesmo - disse Spangler. - Mas...
- O que desejo saber é se vamos descer - disse Krinsky. - Se aquela coisa é o que
você diz que é, creio que nunca mais me aproximarei dela. Quem sabe o que nos in-
duzirá a fazer desta vez?
- Deseja ajudar-nos - disse Ross obstinadamente. - Não é hostil. Você não está
com medo, está? Contava com você para sair da nave e explorar os arredores no seu
traje isolante...
- Eu, não! - disse Krinsky depressa.
Ross teve um sorriso irônico.
- Mas essa é a primeira forma inteligente de vida que descobrimos no sistema so-
lar! Não podemos simplesmente fugir e nos esconder!
E voltando-se para Brainerd:
- Trace uma órbita que nos leve a descer novamente; mas desta vez nos conduza
a um lugar onde não nos derretamos.
- Não posso fazê-lo, senhor - disse Brainerd num tom positivo - Creio que daremos
mais segurança à tripulação se voltarmos imediatamente para a Terra.
Encarando o grupo, Ross relanceou o olhar de um para outro. O medo era eviden-
te em todos os rostos, e ele sabia que o pensamento de todos era um só: “Não que-
remos voltar para Mercúrio”.
Eram seis: ele era apenas um. E a coisa auxiliadora lá embaixo...
Com Curtis, eram sete a um - mas a mente de Curtis irradiara um desejo suicida
sem mescla. Ross sabia que jamais poderia engendrar uma força de pensamento su-
ficiente para fazer face aos pensamentos medrosos dos outros seis.
“Isso é motim”, pensou, mas, de qualquer modo, não quis enunciar a ideia Aquele
era um caso no qual um oficial superior podia ser legitimamente removido do coman-
do para o bem comum...
A criatura lá embaixo estava pronta a oferecer seus serviços. Mas, possuidora de
múltiplos valores, como devia ser, havia apenas uma nave espacial, e um dos dois
grupos - ou ele ou os outros - teria de ver frustrados seus desejos.
Todavia, pensava, a lagoa pudera satisfazer não apenas o homem que queria mor-
rer como também aqueles que queriam continuar vivendo. Agora, seis desejavam re-
tornar - mas podia ser ignorada a voz do sétimo? “Não estão sendo justos comigo”,
pensou Ross, dirigindo sua raivosa explosão para o planeta lá embaixo. “Desejo vê-
lo; desejo estudá-lo. Não consinta que me arrastem de volta à Terra.”

Uma semana mais tarde, quando o Leverrier voltou à Terra, os seis sobreviventes
da segunda expedição a Mercúrio podiam todos descrever o feroz desejo de morte
que se apoderara do ajudante astronauta Curtis, causando-lhe o suicídio. Mas ne-
nhum podia se lembrar do que acontecera ao comandante de voo Ross, ou por que
seu traje isolante fora deixado em Mercúrio.
Os Exógamos

Uma semana antes de seu aprazado casamento, Ryly Baille dirigiu-se para a flores-
ta virgem que separava as terras dos Baille das terras do clã Clingert. A jornada soli-
tária era uma tradição pré-nupcial entre os Baille; seu povo esperava que ele regres-
sasse com o corpo endurecido pelo esforço, a mente aguçada, e livre de meditações
a sós. Ninguém absolutamente esperava que ele conhecesse uma moça Clingert e
por ela se apaixonasse.
Certo dia, saiu cedo de Trêsdias. Nove Bailles o viram partir. O velho Fredog, pai do
clã Baille, desejou-lhe boa viagem. Minton, o próprio pai de Ryly, segurou-lhe a mão
durante um longo e constrangido momento. Dois de seus primos patrilineares fize-
ram-lhe os melhores votos. E Davud, seu amigo mais querido e mais íntimo irmão fe-
nótipo, deu-lhe afetuosas pancadinhas.
Ryly também disse adeus à sua mãe, à mãe do clã e a Hella, sua noiva. Pôs ao
ombro o arco e a aljava, puxou para cima suas calças de andar no mato e sorriu ner-
vosamente. Lá no alto, Thomas, o amarelo sol primário, ia subindo; um pouco mais
tarde Doris, sua companheira azul, se encontraria com seu marido no firmamento.
Era uma tépida manhã de primavera.
Ryly examinou o pequeno grupo: seis homens altos de cabelos louros e olhos
azuis, três mulheres altas, de cabelos vermelhos e olhos cor de avelã. Exemplares
perfeitos dos Baille, e, portanto, os mais altos representantes da evolução.
- Até logo para todos - disse, sorrindo. Nada mais havia a dizer.
Voltou as costas e enveredou para a floresta murmurante. Suas longas pernas o
carregavam facilmente pelo caminho bem batido. A tradição exigia que ele trilhasse o
caminho principal até o meio-dia, ocasião em que o segundo sol surgiria no céu; de-
pois, onde quer que estivesse, devia sair abruptamente da estrada e abrir caminho
através da vegetação pelo resto da jornada.
Ficaria ausente três dias e duas noites. Na terceira noite voltaria, chegando de ma-
nhã para reclamar a noiva.
Pensava em Hella enquanto caminhava. Era uma boa moça e ele se sentira feliz
porque o pai do clã lha atribuíra. Não porque ela fosse mais bonita que qualquer das
outras candidatas ao matrimônio, pensava Ryly. De qualquer modo, eram todas mais
ou menos iguais. Porém Hella tinha um certo brilho luminoso, um jeito de sorrir, dos
quais Ryly pensava que iria gostar.
Thomas subia agora para a sua altura do meio-dia; a floresta ia esquentando. Um
lagarto vistosamente colorido, de asas espalmadas, saltou papagueando de uma ár-
vore para a esquerda do caminho e esvoaçou num breve arco malfeito acima da ca-
beça de Ryly. Ele deu uma flechada e derrubou o lagarto - sua primeira vítima na via-
gem. Enfiando no cinto três finas penas vermelhas de sua cauda, continuou cami-
nhando.
Ao meio-dia os primeiros raios azuis de Doris se misturaram com os amarelos de
Thomas. O momento chegara. Ryly ajoelhou-se para murmurar uma curta prece em
memória daqueles dois pioneiros Baille que saíram pelo mundo há gerações passadas
a fim de fundar o clã, e virou à direita, penetrando entre os grisalhos troncos penu-
gentos de duas altas árvores de fruta doce. Entalhou seu nome na face da árvore
que dava para a floresta como um marco que lhe servisse no regresso, e entrou
mata adentro, na parte desconhecida.
Caminhou até que a fome lhe veio; então matou um incauto saltador, tirou-lhe a
pele, cozinhou-o, comeu o carnudo roedor e banhou-se numa torrente cristalina na
orla da sempre verde mataria. Quando a escuridão desceu, acampou junto a um ro-
chedo saliente, e ficou muito tempo deitado de costas, contemplando as quatro lua-
zinhas luminosas, repetindo a sós as velhas lendas de seu clã, até que adormeceu.

Na manhã seguinte nada aconteceu; cobriu muitas milhas, deixando cuidadosa-


mente marcas pelo caminho. E um pouco antes do nascer de Doris encontrou a
moça.
Foi na realidade um acidente. Tinha avistado a espinha dorsal amarela de um es-
quilo sentado a algumas polegadas acima de uma moita, e achou que os chifrinhos
do bicho seriam um troféu tão bom como qualquer outro para presentear sua noiva
Hella. Retesou o arco e esperou que o bichinho lhe apresentasse o único lugar vulne-
rável, isto é, o olho.
Depois de alguns instantes a cabecinha do esquilo apareceu, entortada devido ao
peso dos dois chifrinhos em riste. Ryly distendeu o arco e atirou no olhinho conges-
tionado que o fitava.
Errou a pontaria: a seta golpeou duro o negro couro escamoso do crânio arredon-
dado do esquilo, penetrando raso na pele e em seguida caindo. O esquilo sobressal-
tou-se, e, surpreendido e raivoso, fugiu ruidosamente por entre o cerrado, zigueza-
gueando loucamente enquanto suas grandes patas batiam o chão a cada avanço fre-
nético.
Ryly perseguiu-o. Na corrida retesou o arco e seguiu o rasto do grande herbívoro.
Um pouco adiante rugia uma cascata; evidentemente, o esquilo queria tentar uma
fuga aquática. Ryly saiu numa clareira - e viu a moça de pé junto ao esquilo, dando-
lhe pancadinhas entre as espáduas musculosas e murmurando palavras tranquiliza-
doras. Olhou atentamente para Ryly quando este apareceu.
Por um momento ele não pensou que ela fosse humana. Era esguia e tinha cabe-
los negros, grandes olhos também negros, narizinho arrebitado e lábios cheios. Tra-
zia um traje em estilo sarongue, brilhantemente colorido, feito de batk, que lhe dei-
xava nuas as pernas amorenadas. Era quase um pé mais baixa do que Ryly; as mu-
lheres Baille raramente tinham menos de cinco pés e dez polegadas de altura.
- Atirou nesse animal? - perguntou ela de repente.
Ryly teve dificuldade em entendê-la; as palavras pareciam ser da língua dele, mas
as vogais soavam diferente, e as consoantes não eram bastante ásperas.
- Sim - respondeu. - Não sabia que era seu animal de estimação.
- Animal de estimação? Os esquilos não o são nunca. São sagrados. Você é Baille?
Surpreso com a pergunta abrupta, Ryly gaguejou um instante antes de fazer com
a cabeça um aceno afirmativo
- Imaginei que fosse. Sou Joanne Clingert. Que está fazendo em território Clingert?
- Então é isso... - disse Ryly devagar. E fitou-a como se ela acabasse de sair de sob
um rochedo incrustado de líquens - Você é uma Clingert. Isso explica muita coisa.
- Explica o quê?
- Sua aparência, seu modo de falar, a maneira como... E aproximou-se com certa
hesitação, sem deixar de fitá-la. Ela parecia muito zangada; mas, por trás da zanga,
alguma coisa brilhava...
Talvez uma centelha. Uma luminosidade, talvez.
Ryly estremeceu. Os Clingert eram horríveis seres estranhos de uma feiura pavoro-
sa, ou, pelo menos, assim repetia constantemente o pai do clã. Bem podia ser assim.
Nesse caso, a Clingert de agora dificilmente seria um exemplar típico. Parecia tão de-
licada e amável, muito diferente das atléticas mulheres Baille de grandes ossos...
Um feixe azul de luz rompia as folhas serrilhadas das árvores, estilhaçando-se no
rosto da Clingert. Quase como um ato reflexo, Ryly ajoelhou-se para rezar.
- Por que faz isso? - perguntou a Clingert.
- É o nascimento de Doris! Vocês não rezam quando Doris nasce?
Ela ergueu os olhos para o sol azul que agora girava em torno do primário amare-
lo. - Foi apenas o Secundus que nasceu. Por que lhe chama Doris?
Ryly concluiu a prece e ergueu-se.
- Naturalmente; e lá está Thomas junto dela.
- Hum... Chamam-se, para nós, Primus e Secundus. Mas acho que não é de sur-
preender que os Baille e os Clingert tenham diferentes nomes para os sóis. Thomas e
Doris... acho bonito. Foram os primeiros Baille que lhes chamaram assim?
Ryly aquiesceu com um gesto de cabeça.
- E foram Primus e Secundus que fundaram os Clingert?
Ela riu, um riso asperamente tilintante que saltou lindamente dentre a cortina das
árvores.
- Não. Jarl e Besse foram nossos fundadores. Primus e Secundus querem apenas
dizer “Primeiro” e “Segundo” em latim.
- Latim? Que é isso?
E Ryly fechou subitamente a boca. Um frio tremor de susto retardado o percorreu.
Horrorizado, olhou para a mulher Clingert.
- Algo errado? - perguntou ela. - Estamos mantendo uma boa conversa. Uma con-
versa muito cordial. - Parecia indignada. - Algo errado nisso?
- Sim - respondeu Ryly sombriamente. - Esperam que eu a odeie.
Caminharam juntos até o lugar onde a água cascateava numa luminosa queda es-
pumejante montanha abaixo, e conversaram. E Ryly descobriu que os Clingert não
eram tão assustadores como o haviam feito crer.
O percurso errante o havia conduzido às vizinhanças do território Clingert; e Joan-
ne, quando o encontrou, achava-se distante de casa apenas uma hora. Ele porém
declinou do convite para acompanhá-la à colônia Clingert. Seria levar as coisas longe
demais.
Depois de alguns instantes, a Clingert falou:
- Ainda me odeia?
- Não creio que vá odiá-la... - disse Ryly. - Acho que gosto de você. E, particular-
mente, cada vez, que me lembro de Hella...
- Hella? - E os olhos da Clingert fuzilaram raivosamente.
- A mulher Baille, que era minha noiva. - E acentuou o era. - O pai do clã deu-me
Hella no mês passado. Esperavam que nos casássemos quando eu voltasse para a
colônia. Pensei que também eu esperava por isso; até que...
Um esquilo resmungou em algum lugar no fundo da floresta Ryly olhou desampa-
rado para a Clingert, só então percebendo o que lhe acontecia.
Estava se apaixonando por ela...
Desde a época em que Thomas e Doris Baille vieram ao mundo, os Baille e os Clin-
gert tinham mantido firmes os limites entre si. Baille só se acasalava com Baille. Mas
agora...
Ryly sacudiu tristemente a cabeça. Na luminosidade azul e ouro da tarde, aquela
Clingert parecia infinitamente mais desejável do que qualquer mulher Baille.
Ela tocou-lhe docemente a mão.
- Você é muito calado. Não é como os homens Clingert...
- Acho que não. Como são eles?
Ela fez uma caretinha.
- Muito mais baixos que você, com feios cabelos pretos escorridos e olhos negros.
Seus músculos fazem nós quando retesam o arco; você, ao contrário, tem braços
longos e finos. E os homens Clingert logo ficam calvos. - E sua mão arrepiou leve-
mente os cabelos amarelos do Baille. - E os Baille também perdem os cabelos muito
cedo?
- Os Baille jamais perdem os cabelos. Os do pai do clã ainda são amarelos como os
meus, e ele já passou dos cinquenta anos.
Ryly voltou a emudecer, pensando no pai do clã e no que este diria se soubesse o
que estava acontecendo.
Talvez o velho enunciasse numa profunda voz sentenciosa: “Isto nunca aconteceu,
desde o tempo em que Thomas expulsou o primeiro Clingert de sua vista”.
Ryly recordava um tempo recuado de sua infância, em que uma mulher Baille dera
à luz um filho de cabelos pretos. O pai do clã expulsou a criança e os pais para a flo-
resta, e ali outros Baille apedrejaram-nos. Ryly não queria partilhar dessa sorte. To-
davia...
Levantou-se. A mulher Clingert o olhava toda assustada.
- Aonde vai? - perguntou.
- Vou voltar. Voltar para a colônia Baille.
Fez-se um instante de silêncio entre ambos. Finalmente Ryly respirou bem fundo e
disse:
- Mas voltarei. Daqui a três dias, espere-me neste mesmo lugar, na hora do nasci-
mento de Doris... isto é, quando Secundus nascer. Fará isso por mim?
Uma ansiedade luzia nos escuros olhos da moça.
- Sim - respondeu.

Ryly chegou ao familiar território Baille ao cair da noite do dia seguinte, tendo co-
berto o caminho o mais rápido que pôde e com tão poucas paradas quanto possível.
Enveredou pela estrada principal mais ou menos na hora em que Thomas se punha
em Cincodias. Tivera pouca dificuldade em localizar a árvore que tinha seu nome ins-
crito na casca. Agora só brilhava o sol azul, que já baixava no horizonte; as luas da-
vam início à sua procissão no céu crepuscular.
Ryly insinuou-se na colônia pela estrada de trás. Esse caminho conduzia-o para
além da tosca cabaninha que Thomas construíra com suas próprias mãos para ele e
Doris morarem, isso, há muito tempo, quando os primeiros Baille tinham caído do
céu e se instalado no mundo. Ryly estremeceu um pouco ao passar pelo velho altar
encardido; a espécie de traição que estava armando não era coisa fácil.
Acima de tudo, não desejava ser visto. Pelo menos, não antes de conversar com
seu irmão fenótipo, Davud.
Um gato miou. Ryly enfiou-se na treva de um caramanchão e esperou. Um velho
de pescoço duro passou por perto: era Paiclã. Ryly conteve a respiração até que o
velho entrasse na casa do clã; então deslizou para fora do abrigo, atravessou silen-
ciosamente o pátio e correu para a passagem em arco que conduzia à cabana de Da-
vud.
A luz estava acesa. Davud, lá dentro, cochilava numa cadeira. Pé ante pé, Ryly en-
trou pela porta de trás. Atravessou a sala em quatro grandes saltos e com as mãos
tapou a boca de Davud, antes que este acordasse inteiramente.
- Sou eu, Ryly. Já cheguei.
- Hum!
- Não diga nada nem faça barulho. Não quero que saibam que estou aqui. - E re-
cuou.
Davud esfregou os lábios e disse:
- Em nome de Thomas, por que me assustou assim? Pensei um instante que se
tratasse de uma incursão Clingert!
Ryly pestanejou. Olhou atentamente para Davud; seria seguro contar-lhe o sucedi-
do? De todos os Baille, Davud era o seu irmão mais parecido no físico e nas atitudes,
razão por que Paiclã os designara como irmãos fenótipos, embora de pais diferentes.
Entre os Baille, o verdadeiro parentesco pouco significava, desde que, geneticamen-
te, cada membro do clã era virtualmente idêntico a qualquer outro.
Ele e Davud eram misteriosamente iguais: ambos com seis pés e três polegadas,
altura normal dos Baille, ambos com os mesmos caracóis no rebelde cabelo louro, o
mesmo nariz afilado, a mesma delgadeza dos lóbulos das orelhas. Agora Ryly espera-
va que a formação mental de Davud fosse tão semelhante à dele quanto possível.
Encheu uma caneca de grosso vinho amarelo de briófito e bebericou-o lentamente
para acalmar os nervos.
- Preciso falar-lhe, Davud. Aconteceu-me uma coisa muito importante.
Sem atentar nessas palavras, Davud disse:
- Não o esperávamos antes de amanhã à noite. Vi Hella nas proximidades do oca-
so de Thomas, e ela disse que já não podia esperar para tornar a vê-lo.
E Davud arreganhou um sorriso:
- Disse-lhe que havia muitos iguais a você na colônia, ela porém não me quis ouvir.
- Não me fale em Hella. Escute aqui, Davud. Na minha viagem, cheguei até o terri-
tório Clingert. Encontrei uma moça Clingert... Acho que a amo, Davud...
Davud ficou rapidamente em pé, e encarou Ryly face a face, queixo a queixo. Tre-
miam-lhe as narinas.
- Que diz?
Muito calmo, Ryly repetiu o que dissera.
- Então é isso mesmo - resmungou Davud. - Ryly, perdeu o juízo? Casar-se com
uma Clingert? Aquele lixo?
- Mas você não viu...
- Não preciso ver. Você conhece as velhas histórias, de como o primeiro Clingert
brigou com Thomas até que Thomas foi forçado a expulsá-lo. Sabe que espécie de
criaturas são os Clingert. Como pode...
- Amar uma delas? Davud, você não sabe como é fácil. As moças Baille são tão
grandalhonas e musculosas! Joanne é... bem, é preciso ver para crer. O fato de Tho-
mas e o primeiro Clingert terem tido uma desavença idiota há centenas de anos...
O rosto de Davud era uma máscara pálida de indignação.
- Ryly! Contenha-se! Está falando bobagem, homem... absoluta bobagem. Os Bail-
le e os Clingert não devem misturar-se. Quer contaminar nossa linhagem com a de-
les?
- Sim - disse Ryly desafiando-o.
- Está louco! Mas por que voltou para contar? Por que simplesmente não ficou com
a sua Clingert?
- Eu queria que alguém soubesse. Alguém que merecesse minha confiança: al-
guém como você.
- Nesse caso equivocou-se - disse Davud. - Vou contar a história ao Paiclã, e,
quando o apedrejarem, ficarei muito contente em fazer o mesmo. Fizeram isso na úl-
tima vez que tal fato ocorreu, faz quinze anos ... Não se lembra mais? Quando Luri
Baille teve um filho parecido com um Clingert. É preciso conservar a pureza da linha-
gem.
- Por quê?
- Ora, por quê! Tem de ser conservada... eis tudo - disse Davud com voz fraca. E
quando Ryly começou a andar, acrescentou: - Ei! Aonde pensa que vai?
- Voltar à floresta - disse Ryly numa voz amargurada. - Prometi à moça que volta-
ria. Não devia ter vindo aqui, em primeiro lugar...
Tremia e transpirava abundantemente; para sua própria surpresa, percebia que a
conversa com Davud efetivamente o separara para sempre dos Baille.
- Você não vai, Ryly: não deixarei.
E Davud agarrou a nuca de Ryly, que se esquivou.
- Não tente impedir-me, Davud.
Sem responder, Davud agarrou a parte carnuda do braço de Ryly.
Calmamente Ryly deu meia-volta e bateu o punho naquela cara tão parecida com a
sua. Davud piscou, incrédulo, e pôs-se a resmungar alguma coisa. Ryly sacudiu o
braço e libertou-se, depois bateu em Davud pela segunda vez. Davud amontoou-se
no chão.
Ryly permaneceu indeciso por um segundo, observando com algum espanto o san-
gue que escorria do nariz quebrado de seu irmão fenótipo. Depois virou-se e atirou-
se porta afora, saiu para o escuro pátio e correu o mais que pôde para o caminho da
floresta
Ficou atento aos gritos dos perseguidores, porém nada ouviu. Pensava que talvez
tivesse golpeado Davud com demasiada força.
Ryly passou uma noite incômoda na floresta, não muito distante do território Bail-
le; quando despontou a manhã, partiu a passo rápido para a fronteira Baille-Clingert.
Ao nascer de Doris, Joanne estaria junto à cascata - assim lhe dissera. Por um ins-
tante considerou o que seria dele se a moça o tivesse enganado, mas não encontrou
resposta. Poderia voltar aos Baille, e, ao fim e ao cabo, casar-se com Hella? Achava
que não.
O dia esquentou enquanto ele andava pela floresta seguindo a série de marcas
que deixara para guiá-lo. Chegando ao lugar do encontro, Doris ainda não nascera:
só Thomas estava no céu. Ryly sentou-se à beira da água e molhou-se para limpar o
suor da viagem.
Ouviu tropel de passos. Ergueu os olhos, esperando que fosse Joanne. Mas foi Da-
vud que apareceu.
- Seguiu-me?
- Foi preciso, Ryly.
- Suponho que toda a tribo venha vindo aí atrás, espumando na boca e pronta
para apedrejar-me. - Ryly suspirou. - Acho que não lhe bati com bastante força.
Acordou demasiado cedo.
O nariz de Davud estava inchado e ligeiramente torto.
- Vim sozinho - disse. - Queria convencê-lo a desistir dessa maluquice, Ryly. Nin-
guém ainda sabe coisa alguma sobre isso.
- Está bem. Agora volte e esqueça-se de tudo quanto eu lhe disse ontem à noite.
- Não posso - respondeu Davud. - Não posso consentir que se acasale com uma...
Clingert. Vim buscá-lo, para que volte comigo para a terra Baille.
Ryly crispou os punhos. Não tinha a menor vontade de lutar uma segunda vez com
seu irmão fenótipo. Mas se Davud insistisse..
- Afaste-se de mim, Davud. Volte sozinho.
Era quase o momento de Doris levantar-se. Ryly esperava poder afastar Davud do
seu caminho antes que Joanne chegasse ao lugar do encontro. Mas Davud abanava
a cabeça obstinadamente.
- Baille e Clingert não terão prole. Thomas nos fez essa lei no começo, e ela não
poderá jamais ser quebrada.
Aí parou, a maxila pendente, e apontou. Ryly voltou-se devagar. Os primeiros raios
de Doris eram azuis na face da cascata, e Joanne estava em pé atrás dele.
- Quem de vocês dois é Ryly? - perguntou ela queixosa.
Ryly falou primeiro:
- Sou eu. Este é meu irmão fenótipo, Davud. Veio para conhecê-la. Davud, esta é
Joanne.
- É uma Clingert? - perguntou Davud lentamente. - Mas... mas... O Paiclã diz que
são feias! E...
Ryly começou a sorrir. O velho Davud era, afinal, um verdadeiro irmão fenótipo; a
reação à primeira vista para com Joanne foi idêntica à de Ryly. Era confortador vê-lo
reagir dessa maneira.
Joanne riu o seu especial riso Clingert que Ryly acostumara-se a amar.
- Parece que está aturdido. Tão aturdido como você ficou há três dias atrás. Será
que todos os Baille pensam que somos ogras?
Davud sentou-se pesadamente num tronco apodrecido. Tinha o rosto pálido à luz
dos dois sóis; sacudia a cabeça, refletindo, e parecia conversar consigo mesmo. Fi-
nalmente falou.
- Muito bem. Peço desculpas, Ryly. Agora sei do que falava. Agora sei!
Havia na voz de Davud uma nota de entusiasmo que aborrecia Ryly; este porém
conteve qualquer mostra de enfado.
- E agora? Que tal Thomas e suas leis? - perguntou. - Agora, que você viu uma
Clingert?
- Retiro tudo quanto disse - murmurou Davud. - Tudo.
Ryly olhou do irmão fenótipo para Joanne.
- Acho que ele nos dará a sua bênção. Isto é: se você estiver disposta a ser pária
dos Clingert...
Então foi a vez de Joanne parecer sobressaltada.
- Pária? Por cumprir o objetivo do primeiro Clingert?
- Que é isso?
- Quer dizer que não sabe?
Ryly sacudiu a cabeça negativamente
- Não tenho a menor ideia do que está falando.
- No começo - disse ela pacientemente -, quando a nave espacial explodiu e os
Clingert e os Baille foram libertados e pousaram no mundo (isso há centenas de
anos), Jarl Clingert quis acasalar-se com uma Baille, porém Thomas Baille não con-
sentiu. Queria conservar pura sua imagem. Assim foi que não houve grande contato
entre os Clingert e os Baille, desde a época em que o primeiro Baille ameaçou, sem
provocação, matar Jarl Clingert se ele se lhe aproximasse num raio de dez milhas...
- Espere - disse Ryly. - Foi Clingert que tentou matar Thomas Baille e casar com
Doris, mas Thomas o expulsou...
- Não - disse Joanne. - Foi tudo às avessas. Foi por culpa de Baille que...
- Deixemos a história antiga para outra hora - atalhou Davud subitamente. Trazia
no rosto uma expressão curiosamente dolorosa. - Ryly, posso falar um momento a
sós com você?
- Pois não - disse Ryly, surpreso. Afastaram-se alguns pés e Ryly disse:
- Então? Que acha dela?
- É sobre isso que desejo falar - murmurou Davud asperamente. - Acho que está
longe e acima da beleza de qualquer mulher Baille. É tão... diferente. Suave, porém
forte; pequena, porém não frágil...
- Sabia que você ia gostar dela, Davud.
- Gostar, não; amar - rosnou Davud. - Eu também a amo, Ryly.
Ryly sentiu-se como se tivesse levado uma pancada no rosto. Seus olhos se alarga-
ram, fitos nos olhos igualmente azuis de seu irmão fenótipo. O gene Baille duplicara-
se perfeitamente entre eles, ou assim parecia. Em todos os pormenores.
- Não pode estar querendo dizer isso - falou Ryly.
- Quero, sim: quero. Como posso evitá-lo?
- Ambos podemos tê-la, Davud. Acho porém que tenho prioridade...
Davud ofegava, e, agarrando-o subitamente, fê-lo girar como um pião. Ryly olhou,
fechou os olhos, pôs levemente os dedos sobre as pálpebras e tornou a olhar. A mi-
ragem ainda estava ali. Não era ilusão.
Viu duas Joannes.
- Ryly! Davud! Apresento-lhes Melena. Melena Clingert.
- É sua... sua irmã? - perguntou Ryly com voz rouca. A essa distância, ambas as
Clingert eram idênticas
- Minha prima - disse Joanne. - Não tenho irmãs. - E esboçou um sorriso. - Melena
estava escondida no lado mais afastado da cascata. Trouxe-a comigo para que desse
uma olhadela em Ryly. Em certas coisas, sou sempre exibicionista.
Ryly e seu irmão fenótipo trocavam olhares espantados.
- Naturalmente - disse Ryly calmamente. - Nós, os Baille, todos nos parecemos;
por que os Clingert não se parecerão entre si? Trezentos anos de endogamia! Devem
ser idênticos!
- Mais ou menos - disse Joanne. - Há algumas variações menores, mas não mui-
tas. A maior parte do gene não fixado no clã se perdeu há muitas gerações. Como
provavelmente terá acontecido a seu clã. Era isso que Jarl Clingert queria impedir;
mas quando Thomas Baille se recusou a...
- Foi o procedimento traiçoeiro de Clingert que provocou tudo - lançou Ryly. - Va-
mos acertar as coisas agora. Pois se todo mundo sabe disso!
- Quem é que sabe? Os Baille?...
Os olhos de Joanne fuzilavam, com aquela fúria que Ryly gostava tanto de apre-
ciar.
- Mas, para variar, por que não ouvem a versão Clingert da história? Vocês, Baille,
são sempre assim: fecham os ouvidos a tudo quanto importa. Vocês... - E a moça
parou de repente, para dizer muito tranquilamente: - Desculpe-me, Ryly.
- A culpa foi minha. Fui eu que comecei.
- Não - disse ela, sacudindo a cabeça. - Fui eu, quando abordei o assunto da...
da...
Ele sorriu e deu-lhe uma leve pancadinha nos lábios. - Olhe...
Ela olhou. Davud e Melena haviam-se afastado para um lado: estavam de pé num
trecho de chão úmido revestido de musgo, dentro do campo de borrifos e espuma da
cascata. Conversavam baixinho. Pelos seus rostos era difícil saber-se o que conversa-
vam.
- Agora precisamos esquecer a história antiga - disse Joanne. - Esqueça-se de tudo
quanto aconteceu entre Jarl Clingert e Thomas Baille há quatro séculos atrás.
Ryly tomou-lhe a mão.
- Iremos para qualquer lugar do mundo - disse ele. - Começar de novo, fundar
uma nova colônia... Só nós quatro... Poderemos recrutar mais alguns, desde que eu
possa convencer alguns Baille a conhecerem os Clingert.
- E vice-versa. Os homens Clingert também odeiam os Baille, como se sabe. Mas
isso pode acabar. Nossos filhos acabarão com a briga.
Ryly olhou para Davud e Melena, depois para Joanne. Naquele instante tudo pare-
cia incrivelmente adorável - as vermelhas folhas angulosas das copas pendentes, o
branco borrifo da cascata, prismaticamente colorido de azul e ouro pelo sol, as tran-
quilas nuvens verdes deslizando no céu. Queria fixar para sempre esse momento em
seu espírito.
Sorriu. Sua mente ainda estava cheia de insidiosas lendas do passado, instiladas
pelos Clingert nos primeiros dias do mundo, segundo julgavam os seus olhos Baille.
Mas já podia começar a esquecê-las.
Logo haveria no mundo um terceiro clã, tanto louro quanto moreno, tanto baixo
quanto alto.
E algum dia seus descendentes fariam lendas sobre ele, de como ele ajudara a
fundar o clã, naqueles dias nevoentos, que o tempo amortalhara num passado remo-
to.
Estrada Para o Anoitecer

O cão rosnou e continuou correndo. Katterson olhava os dois homens magros, de


olhos ardentes, apressando-se na perseguição, enquanto um crescente horror o inva-
dia, pregando-o no lugar. Subitamente, o cão saltou um montão de entulho e desa-
pareceu; seus dois perseguidores desabaram flacidamente e, apoiados nos porretes,
tentaram recuperar o fôlego.
- Vai ser muito pior - disse um homem miúdo e encardido que surgiu, não se sabe
de onde, junto a Katterson.
- Já conheço os comunicados oficiais que serão feitos hoje, mas faz muito tempo
que os rumores andam por aí.
- Assim dizem - respondeu Katterson devagar. A caçada que acabava de presenciar
ainda o paralisava. - Estamos todos com fome.
Os dois homens que perseguiam o cão levantaram-se, ainda respirando com difi-
culdade, e se foram. Katterson e o homem miúdo observavam a sua lenta retirada.
- Foi a primeira vez que vi gente fazendo aquilo - disse Katterson. - E fazendo-o
abertamente...
- E não será a última - disse o homem encardido. - Melhor acostumar-se, agora
que já não há comida.
O estômago de Katterson teve uma contração. Estava vazio, e assim ia ficar até
que se distribuísse a ração da noite. Não fossem essas rações, e ele não saberia de
onde lhe adviria o bocado seguinte de alimento. Ele e o homem miúdo puseram-se a
andar na rua quieta, saltando os montes de entulho, andando sem destino, sem
qualquer meta particular.
- Meu nome é Paul Katterson - disse afinal. - Moro na 47th Street. No ano passado
despediram-me do Exército.
- Oh, é um dos tais - disse o homenzinho. Voltaram-se e desceram a 15th Street.
Era uma rua da mais completa desolação; nenhuma casa de antes da guerra se
encontrava de pé, e, no fim da rua, viam-se levantadas algumas tendas sórdidas.
- Arranjou algum trabalho desde que foi demitido?
Katterson riu.
- Boa piada. Experimente outra.
- Eu sei. As coisas vão mal. Meu nome é Malory; sou negociante.
- Com que negocia?
- Oh, com... utilidades.
Katterson meneou a cabeça. Obviamente, Malory não queria que ele insistisse no
assunto; por isso deixou-o. Caminharam calados, o homem grande e o homem pe-
queno, e Katterson não podia pensar em nada, exceto no seu estômago vazio. Então
seus pensamentos se dirigiram para a cena que há poucos minutos presenciara: os
dois homens famintos perseguindo um cão. Tinham chegado a isso cedo demais,
pensava Katterson. O que estaria para acontecer, perguntava-se, à medida que o ali-
mento fosse se tornando cada vez mais escasso, até se acabar de todo?
Mas o homenzinho apontava para a frente.
- Olhe - disse ele. - Comício na Union Square.
Katterson enviesou o olhar e viu uma multidão se formando em torno da platafor-
ma reservada para comunicações públicas. Apertou o passo, forçando Malory a em-
parelhar-se com ele.
Um jovem militar uniformizado subira para a plataforma e fitava impassivelmente a
multidão. Katterson olhou um jipe próximo, notando automaticamente que se tratava
do modelo 2036, o mais recente, que entretanto já tinha dezoito anos. Após um ou
dois minutos, o soldado ergueu a mão pedindo silêncio e falou com voz tranquila e
contida.
- Companheiros nova-iorquinos. Tenho uma comunicação oficial do governo. Acaba
de chegar uma notícia do Oásis Trenton...
A multidão começou a murmurar. Parecia saber o que vinha logo depois.
- Acaba de chegar uma notícia do Oásis Trenton, dizendo que, devido à recente
emergência, todos os suprimentos alimentares da cidade de Nova Iorque e redonde-
zas serão suprimidos temporariamente. Repito: devido a recente emergência no Oá-
sis Trenton, todos os suprimentos alimentares de Nova Iorque e redondezas serão
suprimidos temporariamente.
O murmúrio da multidão se fez um sussurro raivoso e acre, enquanto cada homem
discutia com o vizinho essa última reviravolta nos acontecimentos. Tratava-se de uma
notícia esperada. Havia muito que Trenton reclamara do fardo que lhe era alimentar
a desamparada, bombardeada Nova Iorque, e a última enchente lhe dera amplas
oportunidades de sacudir de si a responsabilidade. Katterson permaneceu calado,
avultando sobre as pessoas que o cercavam, incapaz de acreditar no que ouvia. Pa-
recia altivo, quase indiferente, como se criticasse a postura do soldado na plataforma
com suas insígnias, pensando em tudo menos nas implicações da comunicação e
tentando lutar contra a fome que crescia.
O homem de uniforme tornou a falar:
- Tenho mais uma mensagem do governador de Nova Iorque, o General Holloway:
ele diz que têm sido feitas tentativas de restaurar o suprimento alimentar de Nova
Iorque, e que foram despachados mensageiros para o Oásis Baltimore para pedir co-
mida. Enquanto isso, as rações alimentares do governo têm de ser interrompidas,
esta noite, até notícia ulterior. Isso é tudo.
O soldado desceu cautelosamente da plataforma e, atravessando a multidão, diri-
giu-se para o jipe. Subiu depressa no veículo e partiu. Obviamente era homem im-
portante, pensou Katterson, pois jipes e combustível escasseavam, não eram para
ser usados levianamente por qualquer um.
Katterson permaneceu onde estava e voltou a cabeça lentamente para olhar o
povo em torno: magros, esqueléticos, meio mortos de fome em sua maioria, todos
lhe invejavam a estatura gigantesca. Um homem emaciado de olhos ardentes e nariz
em bico reunira um pequeno grupo a seu redor e gritava uma espécie de arenga. Ka-
tterson conhecia-o: chamava-se Emmerich, e era líder de uma colônia que vivia no
metrô abandonado da 14th Street. Katterson instintivamente se aproximou para
ouvi-lo, e Malory o seguiu.
- É tudo uma conspiração! - gritava o homem emaciado. - Falam de uma emergên-
cia em Trenton. Que emergência? Pergunto-lhes: que emergência? A enchente não
os afetou. Eles só querem ficar livres matando-nos pela fome, eis tudo! E que pode-
mos fazer sobre o assunto? Nada. Trenton sabe que nunca seremos capazes de re-
construir Nova Iorque, e quer se livrar de nós. Eis por que nos cortam o alimento.
Já a multidão se comprimia em torno dele. Emmerich era muito popular; o povo
gritava aplaudindo-o, pontuando-lhe o discurso com berros de aprovação.
- Mas vamos morrer de fome? Isso não!
- Ele tem razão, Emmerich! - berrou um homem barbudo e atarracado.
- Não! - continuou Emmerich. - Vamos mostrar-lhes o que podemos fazer. Vamos
catar cada pedacinho de alimento que pudermos achar... cada folha de relva, cada
animal selvagem, cada retalhinho de couro de sapato. E sobreviveremos, do mesmo
modo como sobrevivemos ao bloqueio e à fome de 47 e ao resto. E qualquer dia
destes iremos a Trenton... e assá-los-emos vivos!
Rugidos de aprovação atroaram os ares. Katterson voltou-se e abriu caminho com
o ombro por entre a multidão, pensando nos dois homens e no cão, e afastou-se
sem olhar para trás. Desceu a Fourth Avenue até que não mais pôde ouvir o barulho
do comício da Union Square, e sentou-se fatigado num montão de vigas retorcidas
que tinham sido outrora o Monumento Carden.
Pousou a cabeça nas mãos enormes e ali ficou. Os acontecimentos da tarde ha-
viam-no aturdido. Os alimentos escasseavam: os vinte e quatro anos de guerra con-
tra os esferistas haviam acabado com todos os recursos do país. A guerra se arrasta-
va. Depois do primeiro ímpeto do bombardeio preliminar, o que houve foi uma guerra
de desgaste que lentamente reduzia a cascalho as partes antagônicas.
De algum modo Katterson crescera e se fortificara com a escassez de alimento, e
sobressaía onde quer que fosse. A geração de americanos à qual pertencia não era
uma geração de tamanho ou força - as crianças nasciam subnutridas, já velhas, fra-
cas e enrugadas. Ele porém era grande, por isso fora um dos felizardos escolhidos
para o Exército. Pelo menos lá se alimentara com regularidade.
Katterson deu um pontapé num pedaço retorcido de escória, e eis que viu o pe-
queno Malory descendo a Fourth Avenue em sua direção. Katterson riu sozinho, lem-
brando seus dias de Exército. Toda a sua vida de adulto ele a passara uniformizado,
usufruindo privilégios de soldado. Mas era demasiado bom para durar. Dois anos an-
tes, em 2052, a guerra se arrastara até imobilizar-se por completo, com os comba-
tentes de ambas as partes reduzidos a frangalhos, e com quase todo o Exército con-
centrado no glacial mundo civil. Ele fora despejado em Nova Iorque, onde ficou per-
dido e solitário.
- Vamos caçar cães - disse Malory sorrindo, ao se aproximar de Katterson.
- Cuidado com a língua, homenzinho; eu poderia comê-lo se tivesse fome suficien-
te.
- Hein? Acho que ficou muito chocado quando viu dois homens tentando pegar um
cachorro...
Katterson ergueu a vista.
- Fiquei - disse. - Sente-se ou continue andando, mas não diga pilhérias - rosnou.
Malory atirou-se nos escombros, ao pé de Katterson.
- A coisa está preta - disse.
- Não comi nada o dia inteiro - disse Katterson.
- Por que não? Ontem à noite houve uma regular distribuição, e hoje à noite have-
rá outra.
- Você espera que haja - disse Katterson. O dia declinava, e sombras noturnas
tombavam rapidamente. Nova Iorque arruinada parecia fantástica à luz crepuscular;
as vigas retorcidas e os edifícios em ruína pareciam fantasmas de gigantes há muito
tempo mortos.
- Amanhã ainda terá mais fome - disse Malory. - Não haverá mais distribuição de
alimentos; não mais...
- Não quero me lembrar disso, homenzinho.
- Trabalho no negócio de suprimento de víveres - disse Malory, enquanto um débil
sorriso lhe enrugava os lábios.
Katterson levantou depressa a cabeça.
- Mais pilhérias?
- Não - disse Malory apressado. Garatujou seu endereço num retalho de papel e
estendeu-o a Katterson. - Olhe aí. Procure-me a qualquer momento, quando real-
mente sentir fome. E... diga-me: você é um sujeito bastante forte, não é? Posso até
lhe arranjar algum trabalho, uma vez que você diz estar desengajado...
A sombra de uma ideia perpassou na mente de Katterson. Voltou-se e encarou o
homenzinho.
- Que espécie de trabalho?
Malory empalideceu.
- Oh! Preciso de um homem forte para me arranjar comida. - E sussurrou: - Você
sabe...
Katterson estendeu as mãos e agarrou os magros ombros do homenzinho.
Malory piscou os olhos.
- Sim, eu sei - repetiu Katterson lentamente. - Diga-me, Malory: que espécie de
comida costuma vender?
Malory contorceu-se.
- Ora... ora... veja só; quis apenas ajudá-lo, e...
- Não quero sua comida! - E Katterson levantou-se devagar, sem soltar o homenzi-
nho. Malory viu-se compelido a ficar de pé. - Você está no negócio da carne, não é,
Malory? Que espécie de carne costuma vender?
Malory tentou soltar-se. Katterson deu-lhe desdenhosamente um soco de punho
semi-aberto e ele caiu esparramado no monturo. Malory se torceu todo, os olhos es-
cancarados de medo, e lançou-se pela 13th Street abaixo, perdendo-se na escuridão.
Katterson ficou a olhá-lo muito tempo até que desaparecesse; respirava forte e não
se atrevia a pensar. Depois dobrou o papel com o endereço de Malory, colocou-o no
bolso e afastou-se com um andar entanguido.

Barbara já o esperava quando, uma hora depois, ele apertou o polegar na placa da
porta do seu apartamento da 47th Street.
- Acho que você já sabe - disse ela, vendo-o entrar. - Um lugar-tenente novinho
em folha esteve aqui e anunciou a coisa lá na praça. Já apanhei a nossa cota desta
noite: é a última. Ei! Que é que há? - e olhou-o ansiosamente, vendo-o desabar sem
fala numa cadeira.
- Não há nada, menina. Só tenho fome; e sinto um pouco de náusea.
- Onde esteve hoje? Novamente na praça?
- Sim. No meu costumeiro giro de terça-feira à tarde, que redundou num excelente
piquenique. Primeiro vi dois homens perseguindo um cachorro: não deviam estar
mais famintos do que eu, mas perseguiam aquela pobre coisa magricela. Depois o
seu lugar-tenente fez o anúncio sobre o alimento. Depois, um sujo mascate tentou
vender-me sua “mercadoria” e dar-me um emprego.
A moça conteve a respiração.
- Um emprego? Mercadoria? O que aconteceu? Oh, Paul...
- Esqueça isso - disse Katterson. - Derrubei-o com um soco, e ele fugiu com o rabo
entre as pernas. Sabe o que vendia? Sabe a espécie de carne que desejava que eu
comesse?
Ela baixou os olhos.
- Sim, Paul.
- E o emprego que ele tinha para mim... Viu que eu era forte, e quis fazer de mim
seu fornecedor. Era para eu sair à tarde a fim de caçar. Caçar extraviados, e, no dia
seguinte, transformá-los em churrascos.
- Mas temos tanta fome, Paul. A fome é o que mais importa.
- O quê? - E sua voz era o urro de um touro ofendido. - O quê? Não sabe o que
diz, mulher! Comerei qualquer coisa antes de perder completamente o juízo. Darei
um jeito de arranjar comida, mas não vou me transformar em canibal. Nada de chur-
rasco humano para Paul Katterson.
Ela nada disse. A única luz do teto piscou duas vezes.
- Está quase na hora de fechar. Traga as velas, a menos que esteja com sono - dis-
se ele. Não tinha cronômetro, mas o pisca-pisca anunciava que eram oito e meia. To-
das as noites, às oito e meia, interrompia-se a luz em todos os apartamentos resi-
denciais, exceto naqueles que tinham licença para exceder a cota normal.
Barbara acendeu uma vela.
- Paul, o Padre Kennen esteve aqui outra vez.
- Eu lhe disse que não aparecesse mais - disse Katterson na escuridão do seu can-
to.
- Ele acha que devemos nos casar, Paul.
- Já sei. Eu não acho.
- Paul, por que você é...
- Não recomecemos. Já lhe disse que não desejo arcar com a responsabilidade de
duas bocas para alimentar, quando nem sequer posso manter satisfeito meu próprio
estômago. Assim como estamos é melhor: cada um responsável por si mesmo.
- Mas os filhos, Paul...
- Está maluca? - retrucou ele. - Ousaria trazer um filho a este mundo? Especial-
mente agora que perdemos o abastecimento do Oásis Trenton! Você gostaria de vê-
lo morrendo lentamente de fome no meio de todo esse entulho e sujeira? Ou quem
sabe adquirindo a aparência de um esqueletinho de faces encovadas? Talvez você
queira; eu, não.
E Paul calou-se. Ela ficou ali, olhando-o, soluçando mansamente.
- Estamos mortos, você e eu - disse ela finalmente. - Não o admitimos, mas esta-
mos mortos. O mundo inteiro está morto; passamos os últimos trinta anos suicidan-
do-nos... Minhas lembranças não vão tão longe quanto as suas, porém li alguns li-
vros antigos que falavam de como era limpa e luminosa esta cidade antes da
guerra... A guerra! Durante toda a minha vida temos estado em guerra, jamais sa-
bendo a quem combatemos e porquê... Temos apenas estraçalhado o mundo sem
razão aparente.
- Pare com isso, Barbara - disse Katterson.
Ela porém continuou num tom monótono:
- Diz-se que outrora a América se estendia de costa a costa, em vez de ser talhada
em estreitas tiras cercadas por terras de ninguém e por terras radioativas. E havia fa-
zendas, e comida, e lagos e rios, e os homens voavam de um lugar para outro... Por
que tinha de acontecer isto agora? Por que estamos todos mortos? Para onde ire-
mos, Paul?
- Não sei, Barbara. Acho que ninguém sabe. Fatigado, ele soprou a vela, e a escu-
ridão inundou o quarto.

Fosse como fosse, havia voltado para a Union Square, e estava na 14th Street, ba-
lançando-se molemente sobre os pés para a frente e para trás e sentindo o cérebro
oco - primeiro sinal de fome. Havia poucas pessoas nas ruas, cada uma se dirigindo
morosamente para seu destino O sol estava alto e brilhante.
Seu devaneio foi interrompido por gritos e um inusitado tropel de passos. Valeu-
lhe o treino militar: ele afundou-se numa trincheira e aí se escondeu, imaginando o
que estaria acontecendo.
Após um momento espiou para fora. Quatro homens, todos tão grandes como o
próprio Katterson, vagueavam acima e abaixo nas ruas desertas. Um deles carregava
um grande saco.
- Lá vai um - Katterson ouviu dizer asperamente o homem que carregava o saco.
Olhava sem poder acreditar enquanto os quatro homens localizavam uma moça en-
colhida junto a um edifício em ruínas.
Era pálida, magra, vestia andrajos, e talvez tivesse no máximo vinte anos. Em
qualquer outro mundo poderia ter sido bastante bonita. Agora, porém, tinha o rosto
cavado, olhos vidrados e sem brilho, braços ossudos e angulosos.
Enquanto eles se aproximavam ela recuou, praguejando num desafio, preparando-
se para a defesa. “Ela não compreende”, pensou Katterson. “Pensa que vai ser agre-
dida.”
O suor lhe escorria pelo corpo, e ele se obrigou a apenas olhar, a manter-se na
trincheira apesar da vontade que tinha de saltar do esconderijo. Os quatro pilhadores
cercaram a moça. Ela cuspiu, golpeou-os com suas mãos de garra.
Eles riram e agarraram-lhe o braço. Subitamente o grito dela perfurou-lhe os tím-
panos e eles a arrastaram para o meio da rua. Apareceu uma faca; Katterson rangia
os dentes e piscava quando viu a faca atingir o alvo.
- Meta-a no saco, Charlie - disse uma voz rude.
Os olhos de Katterson fumegavam de raiva. Era a primeira vez que via os magare-
fes de Malory - ou, pelo menos, suspeitava que fossem eles. Tateando a faca do cin-
to, levantou-se pensando em atacar os quatro pilhadores de carne, mas, recuperan-
do o juízo, deixou-se cair no fundo da trincheira.
Fora assim tão rápido? Katterson sabia que o canibalismo se espalhava lentamente
pela faminta Nova Iorque, e que poucos cadáveres eram sepultados intactos. Essa,
porém, era a primeira vez, segundo lhe constava, que assassinos agarravam um ser
vivo na rua e o matavam para arranjar comida. Katterson estremeceu. A luta pela so-
brevivência continuava, então.
Os quatro homens desapareceram na direção da Third Avenue, e Katterson caute-
losamente saiu da trincheira, olhou em todas as direções e saiu para o espaço livre.
Sabia que precisava tomar cuidado: um homem do seu tamanho tinha carne para
muitas bocas...
Dos edifícios já saíam outras pessoas, todas com a mesma expressão de horror no
rosto. Katterson viu os esqueletos ambulantes caminhando entontecidos, alguns cho-
rando, a maior parte já distante da fase das lágrimas. Apertava e afrouxava os pu-
nhos, furioso, desejando eliminar a doença contagiante, e sabendo desesperadamen-
te que nada podia fazer.
Um homem magro, de feições cinzeladas, estava agora na plataforma do orador.
Tinha a voz embargada pelo ódio.
- Irmãos, agora a coisa é pública. Os homens abandonaram os caminhos de Deus,
e Satã os conduziu para a destruição. Vocês acabam de testemunhar quatro de suas
criaturas destruírem um ser mortal para comer... entre todos, o pecado mais horrível!
“Irmãos, nosso tempo na terra chega ao fim. Sou velho. Lembro-me dos dias de
antes da guerra, e embora alguns não acreditem, lembro-me de um tempo em que
havia comida para todos, quando todo mundo tinha emprego, quando esses edifícios
em ruínas eram altos, bonitos e elegantes, e os ares fervilhavam de jatos. Na minha
mocidade viajei por todo o país, fui até o Pacífico. Mas a guerra acabou com tudo, e
a mão de Deus caiu sobre nós. Nosso tempo acabou, e logo seremos julgados.
“Voltai para Deus sem sangue nas mãos, irmãos. Aqueles quatro homens que vo-
cês viram arderão para sempre pelo seu crime. Quem quer que coma a carne maldita
que eles hoje assassinaram a eles se reunirá no inferno. Mas escutai, escutai um mo-
mento, irmãos! Os que dentre vocês ainda não estiverem perdidos escutem minha
súplica: salvem-se! Melhor viver sem comida, conforme fazem muitos, do que conta-
minar-se com essa espécie de nova comida, a mais preciosa de todas!”
Katterson olhou atentamente as pessoas que o rodeavam. Quis acabar com aquilo;
imaginava uma cruzada por alimentos, uma campanha contra o canibalismo, bandei-
ras ondulando, tambores rufando, e ele liderando a luta... Algumas pessoas haviam
parado para ouvir o velho pregador, outras haviam se afastado. Alguns sorriam e lan-
çavam frases irônicas ao velho; este, porém, fez que não ouvia.
- Ouçam, ouçam, antes que se afastem! Estamos todos condenados; o Senhor dei-
xou isso bem claro. Mas pensem... o mundo logo se acabará, e surgirá um mundo
maior. Não comprometam sua vida eterna, irmãos! Não vendam sua alma imortal em
troca de um bocado de carne conspurcada!
A multidão se dispersava, reparou Katterson. E dispersava-se depressa, as pessoas
se esquivando depressa e desaparecendo. O pregador continuava a falar. Katterson
ficou na ponta dos pés e entortava o pescoço para enxergar além da multidão e
olhava atentamente para o oriente. De repente empalideceu. Quatro figuras ameaça-
doras desciam resolutamente pela rua deserta.
Quase todos tinham-nos visto. Caminhavam os quatro lado a lado, bem no centro
da rua, o mais alto carregando um saco vazio. As pessoas aceleravam o passo em to-
das as direções, e quando os quatro chegaram à esquina da 14th Street com a Four-
th Avenue apenas Katterson e o pregador ainda permaneciam na plataforma.
- Vejo que você foi o único que ficou, meu rapaz. Já se contaminou, ou ainda per-
tence ao reino do céu?
Katterson ignorou a pergunta.
- Meu velho, desça daí! - estourou. - Os caçadores vão voltar. Vamos, saiamos da-
qui antes que cheguem.
- Não. Quero falar-lhes quando chegarem. Mas salve-se, meu jovem; salve-se en-
quanto pode.
- Então suicide-se, velho idiota! - murmurou Katterson, rispidamente.
- Seja como for, estamos todos condenados, meu filho. Se chegou o meu dia, es-
tou preparado.
- Está é maluco - disse Katterson.
Os quatro homens já podiam ouvi-los. Katterson fitou o velho pela última vez, de-
pois lançou-se pela rua na direção de um edifício Olhou para trás e viu que não esta-
va sendo seguido.
Os caçadores estavam de pé debaixo da plataforma, escutando o que o velho di-
zia. Katterson não podia ouvi-lo; via-o apenas sacudindo os braços. Os homens pare-
ciam escutá-lo atentamente. Katterson olhava. Viu um dos homens dizer alguma coi-
sa ao velho, depois um homem alto, que carregava o saco, subiu para a plataforma.
Um dos outros atirou-lhe uma faca desembainhada.
O grito foi estrondoso e ensurdecedor. Quando Katterson ousou tornar a olhar, o
homem alto enfiava o corpo do pregador no saco. Katterson inclinou a cabeça. O
som das trombetas começou a se desvanecer. Ele percebeu que a resistência era im-
possível. Os fatos se precipitavam.
Katterson dirigiu-se penosamente para o seu apartamento. As quadras iam ficando
para trás à medida que ele, maquinalmente, avançava através do cascalho e dos pré-
dios desertos e arruinados, pelas duas milhas de distância. Mantinha a mão na faca e
dardejava olhares da direita para a esquerda, notando as furtivas corridinhas nas tra-
vessas, o povo como sombras pouco visíveis atrás das cinzas e do entulho. Aquelas
quatro figuras, uma delas carregando um saco, dir-se-iam emboscadas atrás de cada
poste de iluminação, e aguardavam, cheias de fome.
Seguiu para a Broadway por um atalho do Parker Building em ruínas. Cinquenta
anos antes, o Parker Building fora o edifício mais alto do Ocidente; mas agora só res-
tava dele o perfil truncado. Katterson passou pelo que fora outrora o mais majestoso
vestíbulo do mundo e ficou olhando. Fora, um menino roía um pedaço de carne. Te-
ria oito ou dez anos; o estômago se lhe repuxava em cima das costelas, que se mos-
travam como as taquaras de uma cesta. Engolindo a repulsão, Katterson pensou em
que espécie de carne estaria o menino roendo.
Continuou a andar. Enquanto caminhava pela 44th Street, um gato magro passou
por ele, depois desapareceu atrás de um monte de cinzas. Katterson lembrou-se das
histórias que ouvira sobre as Grandes Planícies, onde se dizia que gatos gigantes va-
gueavam em liberdade, e sua boca ficou cheia d'água.
O sol tornava a declinar e Nova Iorque se fazia cinza e negra. O sol não mais bri-
lhava no fim das tardes; insinuava-se por entre os montões de cascalho e lançava
uma claridade fantástica sobre as ruínas de Nova Iorque Katterson atravessou a 47th
Street e enveredou para a sua moradia.
Subiu a pé até seu quarto - o poço do elevador ainda estava lá; este, porém, não
mais funcionava: nem sonhar com tais luxos... - e ficou fora algum tempo, procuran-
do no escuro a placa da porta. Ouviu risos no interior - rumor estranho para ouvidos
desacostumados -, e um cheiro de comida saiu pela porta, indo de encontro a suas
narinas. Sua garganta contraiu-se convulsamente, e ele então se lembrou da bola
dolorida que era seu estômago.
Abriu a porta. O cheiro de comida enchia completamente a sala. Viu Barbara er-
guer subitamente o olhar enquanto ele entrava. Estava pálida. Na cadeira que ele
costumava usar estava sentado um homem que ele já havia encontrado ali uma vez
ou duas, um homem barbudo, de cabelos desgrenhados, de nome Heydahl.
- Que está acontecendo? - perguntou Katterson.
A voz de Barbara soou estranhamente embargada.
- Paul, você conhece Olaf Heydahl, não conhece? Olaf, Paul...
- Que está acontecendo? - repetiu Katterson.
- Barbara e eu acabamos de fazer uma pequena refeição, Mr. Katterson - disse
Heydahl com uma voz cheia. - Pensamos que o senhor também teria fome, por isso
guardamos-lhe um pouquinho.
O cheiro era irresistível, e tudo quanto ele podia fazer era impedir-se de espumar
pela boca. Barbara limpava e tornava a limpar o rosto com o guardanapo; Heydahl
continuava sentado muito à vontade na cadeira de Katterson.
Em três passos rápidos Katterson foi para o outro lado da sala e escancarou as
portas que abriam para a quitinete fechada. No fogão frigia devagar um pequeno pe-
daço de carne. Katterson olhou para a carne, depois para Barbara.
- Onde arranjou isso? - perguntou. - Não temos dinheiro.
- Eu... eu...
- Comprei-a - disse Heydahl tranquilamente. - Barbara me contou que a comida de
vocês estava escasseando, e como eu tinha mais que o necessário, trouxe-lhe um
pouco de presente.
- Estou vendo. Um presente. Não está amarrado com barbante?
- Ora, Mr. Katterson. Lembre-se de que sou hóspede de Barbara.
- Mas lembre-se, por favor, de que este apartamento é meu, não dela. Diga-me,
Heydahl: que espécie de pagamento espera por este presente? E qual a parte que
você já recebeu?
Heydahl ergueu-se a meio na cadeira.
- Por favor, Paul - disse Barbara apressadamente. - Não fique contrariado, Paul.
Olaf quis apenas mostrar-se nosso amigo.
- Barbara tem razão, Mr. Katterson - disse Heydahl se acalmando. - Vamos, sirva-
se. Far-lhe-á bem e a mim também!
Katterson fitou-o atentamente. A meia-luz vinda de baixo escorria pelo ombro de
Heydahl, iluminando a cabeça quase calva e a barba comprida. Katterson pensou em
como podia ele conservar tão gordas suas faces.
- Vamos - repetiu Heydahl. - Sirva-se à vontade.
Katterson voltou-se para a carne. Tirou um prato da prateleira e jogou nele o pe-
daço de carne. Feito isso, desembainhou a faca. Já ia partir a carne quando se voltou
para olhar os outros dois.
Barbara estava inclinada para a frente na cadeira. Os olhos arregalados, cheios de
medo. Por outro lado, Heydahl continuava refestelado na cadeira de Katterson, tendo
no rosto uma expressão complacente que Katterson não mais vira desde que deixara
o Exército.
Um pensamento o assaltou e ele ficou gelado.
- Barbara - disse, controlando a voz. - Que espécie de carne é esta? Rosbife ou
carneiro?
- Não sei - respondeu ela titubeante - Olaf não disse...
- Talvez cachorro assado, hein? Ou flé de gato perdido? Por que não pergunta a
Olaf o que vinha escrito no cardápio? Por que não lhe pergunta agora?
Barbara olhou para Heydahl, e voltou a olhar para Katterson.
- Coma, Paul. É bom, acredite-me. E eu sei como você está faminto.
- Não como coisas sem rótulo, Barbara. Pergunte a Mr. Heydahl que espécie de
carne é esta...
Ela voltou-se para Heydahl.
- Olaf...
- Acho que não devemos ser tão enjoados nos dias que correm - disse Heydahl. -
Afinal de contas, acabaram-se as rações do governo, e ninguém sabe quando reco-
meçarão.
- Gosto de ser enjoado, Heydahl. Que carne é esta?
- Por que tamanha curiosidade? A cavalo dado... você sabe o provérbio...
- Nem ao menos posso ter certeza de que se trata de carne de cavalo, Heydahl.
Que carne é esta?
E a voz de Katterson, geralmente bem modulada, se transformou em rugido.
- A carne de primeira de um menino gordo? Talvez churrasco de algum pobre-dia-
bo que uma noite se extraviou num bairro estranho?
Heydahl ficou branco.
Katterson tirou a carne do prato e sopesou-a um instante na mão.
- Nem ao menos lhe é dado cuspir as palavras... nenhum de vocês dois pode cus-
pi-las. Esta carne os afoga. Olhem só, canibais!
E Katterson atirou violentamente a carne na mulher. A carne escorregou pelo rosto
dela e caiu no chão. O rosto de Katterson ardia de ódio. Escancarando a porta, vol-
tou-se, tornou a batê-la e saiu precipitadamente. A última coisa que viu foi Barbara
ajoelhada, apressando-se em apanhar do chão o pedaço de carne...

Já era quase noite, e Katterson sabia o quanto era inseguro andar pelas ruas. Seu
apartamento fora poluído; não podia voltar a ele. O problema era arranjar comida.
Há quase dois dias não comia. Enfiou a mão no bolso e achou um pedaço de papel
dobrado, com o endereço de Malory. Com uma careta azeda compreendeu que era
aquela a única fonte de comida e dinheiro. Todavia, ainda não: não, enquanto podia
manter a cabeça erguida...
Vazio de pensamentos vagueou em direção ao rio, para a enorme cratera que, as-
sim se dizia, fora outrora o local do edifício das Nações Unidas. A cratera tinha cerca
de mil de pés de profundidade. As Nações Unidas tinham sido arrasadas no primeiro
bombardeio, na altura do ano 2028. Naquela época Katterson tinha apenas um ano e
a guerra estava começando. A luta e o bombardeio reais continuaram nos cinco ou
seis anos subsequentes, até que ambos os hemisférios ficaram calcinados e queima-
dos no combate, quando então teve início a longa guerra de desgaste. Em 2045 Kat-
terson completava dezoito anos - nove longos anos, refletiu - e por sua compleição
gigante fora logo escolhido para ocupar um cômodo posto no Exército. No decurso
de sua carreira militar servira em vários locais daquele que era agora seu país: o re-
talho de terra limitado pela faixa radioativa, apalache de um lado, e o Atlântico do
outro. O inimigo construíra cuidadosamente muros de fogo, repartindo a América em
uma dúzia de faixas, cada uma completamente isolada da seguinte. Um aeroplano
poderia cruzar de uma para outra, se algum restasse. Mas a ciência, a indústria e a
tecnologia estavam mortas, pensou Katterson desanimadoramente, fitando o rio sem
ver. Sentou-se na orla da cratera e pôs-se a balançar os pés.
O que acontecera ao bravo Novo Mundo que ingressara no século XXI com tão glo-
riosas esperanças? Ali estava ele, Katterson, provavelmente um dos homens mais
fortes e altos do país, balançando as pernas sobre uma enorme área devastada, com
uma dolorosa sensação na boca do estômago. O mundo estava morto, o belo e lumi-
noso mundo de placas de cromo e aerojatos. Algum dia, talvez, ali surgisse uma
nova vida. Algum dia...
Katterson fitou as águas para além da cratera. Em algum lugar além dos mares de-
via haver outros países, igualmente arrasados. E em algum lugar, em outra direção,
planícies, relva, trigo, animais selvagens, cercados por centenas de milhas de monta-
nhas radioativas. A guerra tragara os campos, os pastos e o gado, sob seu peso tritu-
rara toda a humanidade.
Levantou-se e começou a voltar pela rua desolada. Estava escuro agora, e as es-
cassas lâmpadas de gás lançavam uma claridade fantasmagórica como a claridade
de pequenas luas em eclipse. Os campos jaziam, mortos, e o que restava da humani-
dade se amontoava em cidades incendiadas, excetuando-se alguns seres mais felizes
que o acaso espalhara a esmo por alguns poucos oásis através do país. Nova Iorque
era uma cidade de esqueletos, cada um a catar comida, a se esgueirar pelas esqui-
nas, esperançoso no pão de amanhã.
Um homenzinho tropeçou em Katterson, que vagueava, absorto. Katterson baixou
o olhar para ele e agarrou-o pelo braço. Homem de família, pensou, correndo para
casa em busca dos filhos famintos.
- Desculpe, senhor - disse o homenzinho nervosamente, esforçando-se para sair
da garra de Katterson. Tinha o medo estampado no rosto; Katterson pensou que tal-
vez o homenzinho atormentado pensasse que aquele gigante ia assá-lo no espeto ali
mesmo...
- Não lhe farei mal - disse Katterson. - Apenas procuro comida, cidadão.
- Eu não tenho.
- Estou morrendo de fome... - disse Katterson. - Sua aparência é de quem tem
emprego e algum dinheiro. Dê-me um pouco de comida e serei seu guarda-costas,
seu escravo, o que você quiser.
- Escute aqui, meu senhor. Não tenho comida que sobre. Solte-me o braço!
Katterson soltou e viu o homenzinho descer a rua como uma flecha. Naquele tem-
po, as pessoas corriam umas das outras, pensou. Malory empreendera uma fuga se-
melhante.
As ruas estavam escuras e vazias. Katterson pensava: não seria transformado em
churrasco pela manhã? Realmente que importava? Uma irritação lhe apareceu na
pele do peito e ele enfiou a mão na camisa para coçá-la. A carne de seus músculos
peitorais tinha sido quase completamente absorvida, e seu peito era só ossos. Apal-
pou as faces barbudas, e reparou como a pele se lhe esticava sobre os maxilares.
Voltou-se e pôs-se a subir para a cidade, contornando as crateras, subindo em
montes de cascalho. Na 15th Street, um jipe do governo vinha costeando a rua e pa-
rou. Do jipe saíram dois soldados armados.
- Um pouco tarde para andar a passeio - disse um soldado.
- Procuro respirar um pouco de ar fresco.
- Só isso?
- O que vocês têm com isso? - perguntou Katterson.
- Não anda procurando caça, não é?
Katterson investiu contra o soldado.
- Ora, seu desgraçado...
- Cuidado, rapaz - disse o outro soldado, puxando-o para trás. - Estávamos só
brincando.
- Bela brincadeira! - disse Katterson. - Podem permitir-se piadas... para conseguir
comida a única coisa que precisam fazer é envergar esse traje de macaco. Sei o que
se passa com vocês, seus militares de merda.
- Agora já não é assim - disse o segundo soldado.
- A mim vocês não enganam! - disse Katterson. - Fui soldado regular por sete
anos, até que aboliram nosso rancho, em 52. Sei o que está acontecendo.
- Ei! De que regimento?
- Do 360, explorador, soldado.
- Você não é Katterson? Paul Katterson?
- Talvez seja - disse Katterson devagar. E aproximou-se dos dois soldados. - E daí?
- Conhece Mark Leswick?
- Se conheço! - disse Katterson. - E vocês, como é que o conhecem?
- É meu irmão. Falava todo o tempo em você... “Katterson é o maior homem que
existe”, dizia. “Tem um apetite de boi.”
Katterson sorriu.
- Que faz ele agora?
O outro tossiu.
- Nada. Ele e alguns amigos construíram uma jangada e tentaram viajar para a
América do Sul. Naufragaram ao largo de Shore Patrol, logo na saída do porto de
Nova Iorque
- Oh, que pena. Um bom sujeito, o Mark. Mas tinha razão quanto ao que disse do
meu apetite. Estou com fome.
- Nós também, amigo - disse o soldado. - Ontem cortaram a ração dos soldados.
Katterson riu, e os ecos de sua risada se espalharam pela rua silenciosa.
- Que o diabo os leve! Ainda bem que não fizeram isso no meu tempo de serviço.
Eu teria abandonado o Exército.
- Venha conosco, se quiser. Seremos dispensados quando a patrulha terminar e va-
mos descer para a cidade.
- Está muito tarde, não acham? Que horas são? Para onde vão?
- Falta um quarto para as três - disse o soldado, olhando o relógio. - Estamos pro-
curando um sujeito de nome Malory; corre a notícia de que ele tem carne para ven-
der, mas só ontem recebemos nosso soldo. - E o soldado deu no bolso umas panca-
dinhas orgulhosas. Katterson piscou os olhos.
- Sabe a espécie de carne que Malory vende?
- Sim - disse o outro. - Que tem isso? Quando se tem fome, se tem fome, e melhor
é comer do que morrer. Vi alguns tipos como você... demasiado cabeçudos para se
rebaixarem diante de uma refeição. Mas cederão, mais cedo ou mais tarde. Não sei...
mas você me parece cabeçudo.
- Sim - disse Katterson, ofegando um pouco mais do que o usual. - Acho que sou
teimoso. Ou talvez ainda não tenha fome bastante. Obrigado pela carona, mas acho
que vou subir para a cidade.
Voltou-se e foi andando para a escuridão.
Restava-lhe apenas um lugar amigo para onde ir.

Hal North era um homem quieto e grande leitor, e tivera frequentes contatos com
Katterson, embora morasse numa distância de quase quatro milhas da cidade, na
114th Street.
Katterson tinha um convite sempre válido de North para procurá-lo a qualquer
hora da noite ou do dia, e agora, não tendo mais aonde ir, dirigiu-se para lá. North
era um dos poucos estudiosos que ainda tentavam buscar conhecimento em Colum-
bia, outrora um centro do saber. Os estudantes se amontoavam nas ruínas de um
dos salões, e ali entesouravam livros bolorentos e trocavam ideias North tinha um
minúsculo apartamento ainda incólume num edifício da 114th Street, onde residia ro-
deado de livros e um pequeno círculo de conhecidos.
“Um quarto para as três”, dissera o soldado. Katterson caminhava depressa e com
desembaraço, mal notando as quadras que iam ficando para trás. Chegou ao aparta-
mento de North assim que o sol começava a nascer, e bateu cautelosamente na por-
ta. Uma batida, duas... depois outra, mais forte.
Dentro, tropel de passos.
- Quem é? - disse uma voz cansada, de alto diapasão.
- Paul Katterson - sussurrou ele. - Está acordado?
North abriu a porta.
- Katterson! Entre! O que o traz aqui?
- Disse que eu podia vir quando precisasse. E agora estou precisando.
Katterson sentou-se à beira da cama de North. - Há dois dias que não como, ou
quase isso.
North riu para dentro.
- Nesse caso, veio para o lugar certo. Espere um pouco. Vou arranjar um pouco de
pão e óleo. Ainda nos resta algum.
- Tem certeza de que pode dispensá-lo, North?
North abriu um armário e tirou dele um pão de forma.
A boca de Katterson encheu-se de água.
- Naturalmente, Paul. Eu mesmo como muito pouco, e tenho armazenado quase
todas as minhas rações. Faça bom proveito do que tenho aqui.
Uma súbita onda amorosa invadiu o peito de Katterson - estranha, consumidora
emoção, que se diria envolver por um momento toda a humanidade, mas que em se-
guida se acalmou e desapareceu.
- Obrigado, Hal. Obrigado!
Voltou e olhou para o livro em frangalhos, com manchas de dedos, aberto no leito
de North. Katterson deixou o olhar percorrer os minúsculos tipos e leu lentamente
em voz alta:
“O imperador do reino da tristeza estava ali, Acima meio corpo do gelo em derre-
dor, E a seu braço apenas eram os gigantes Menos comparáveis do que a um Eu gi-
gante”.
North trouxe um prato de comida para o lugar onde Katterson estava sentado.
- A noite inteira li isso que aí está - disse. - Pensei em lê-lo inteirinho uma segunda
vez, e comecei ontem à noite, só parando quando você chegou.
- Inferno, de Dante - disse Katterson. - Muito apropriado. Algum dia eu também
gostaria de tornar a lê-lo. Tenho lido tão pouco; mas os soldados não recebem gran-
de instrução.
- Quando quiser ler, Paul, os livros ainda estão aqui.
North sorriu, um pálido sorriso no rosto emaciado. Apontou para a estante, onde
livros bichados e em frangalhos se inclinavam em todos os ângulos.
- Olhe, Paul: Rabelais, Joyce, Dante, Enright, Voltaire, Ésquilo, Homero, Shakes-
peare... Estão todos aqui. São as coisas mais preciosas do mundo; são meus velhos
amigos; esses livros têm sido meus almoços, meus lanches e minhas ceias quando
não posso obter comida seja a que preço for.
- Podemos confiar apenas neles, Hal. Tem saído muito estes últimos dias?
- Não - disse North. - Não saio de casa há mais de uma semana. Henriks tem ido
buscar minha ração e os livros. Ontem... não, faz dois dias... veio apanhar o meu vo-
lume de tragédias gregas. Está escrevendo uma nova ópera, baseada numa peça de
Ésquilo.
- Pobre louco - disse Katterson. - Por que continua a compor se não há orquestras
nem discos nem concertos? Nem ao menos pode ouvir o que compõe!
North abriu a janela e o ar da manhã se insinuou para dentro da sala.
- Ouve, sim, Paul. Ouve mentalmente, e isso lhe basta. Na realidade, não importa
que ele nunca venha a ouvir o que compõe.
- As rações foram cortadas - disse Katterson.
- Já sei.
- Gente anda comendo gente. Ontem vi matarem um homem para comê-lo. Mata-
ram-no como a uma vaca.
North sacudiu a cabeça e endireitou uma madeixa branca encaracolada.
- Já? Pensei que ainda levaria algum tempo para chegarem a isso desde que a co-
mida se esgotou.
- Têm fome, Hal.
- Sim, têm fome. E você também. Em um dia ou dois minha ração se acabará e eu
também terei fome. Mas é preciso mais que fome para se quebrar o tabu contra a in-
gestão de carne humana. Aquela gente perdeu seu último vestígio de humanidade,
sofreu todas as degradações, não pode cair mais baixo. Mais cedo ou mais tarde
você e eu, também, vamos sair à caça de alimento.
- Hal!
- Não fique tão chocado, Paul - e North sorriu tranquilamente. - Espere alguns
dias, e estaremos comendo a encadernação dos livros, até acabar por comer o couro
dos sapatos. A ideia me revolta o estômago, mas é inevitável. A sociedade está con-
denada; ruem as últimas barreiras. Nós dois somos mais teimosos que o resto, ou,
quem sabe, talvez sejamos mais exigentes no que toca à comida. Mas nosso dia che-
gará.
- Não acredito - disse Katterson, levantando-se.
- Sente-se. Está cansado, e agora mais parece um esqueleto. Que aconteceu ao
meu grande e musculoso amigo Katterson? Onde estão seus músculos?
North estendeu a mão e apalpou os bíceps do homenzarrão.
- Pele, ossos, que mais? Está queimando suas últimas reservas, Paul; quando a
centelha se extinguir, você também cederá.
- Talvez tenha razão, Hal. Quando eu deixar de me considerar humano, quando es-
tiver bastante faminto e bastante morto, sairei à caça como os outros. Quero aguen-
tar o mais que puder.
Voltou a sentar-se e lentamente foi virando as páginas amarelecidas de Dante.

Henriks voltou na manhã seguinte, o olhar alucinado e ansioso, para devolver o li-
vro de tragédias gregas, dizendo que os tempos não estavam maduros para Ésquilo.
Tomou de empréstimo um delgado volume de poesias de Ezra Pound. North obrigou-
o a comer um pouco, e Henriks o fez gratamente, sem qualquer mostra de timidez.
Depois saiu, não sem antes lançar olhares atentos a Katterson.
Outros apareceram durante o dia - Komar, Goldman, De Metz -, todos eles homens
que, como Henriks e North, se lembravam dos velhos tempos, anteriores a essa
guerra tão comprida. Eram míseros esqueletos, mas a chama do saber brilhava clara-
mente em todos eles. North apresentou-lhes Katterson, e todos olharam admirados
para aquela estrutura ainda vigorosa, antes de mergulharem avidamente nas páginas
dos livros.
Mas não se passaram muitos dias, e deixaram de aparecer. Katterson ficava horas
à janela, e as ruas vazias continuavam desertas. Fazia agora quatro dias que a última
ração chegara do Oásis Trenton. O tempo se esgotava.
Uma ligeira nevada caiu no dia seguinte e continuou caindo por toda a longa tarde.
À refeição da noite, North puxou uma cadeira para o armário, equilibrou-se precaria-
mente no seu braço e tateou a prateleira por alguns instantes. Depois voltou-se para
Katterson.
- Estou em pior situação do que Mãe Hubbard, que pelo menos tinha um cão...
- Hein?
- Refiro-me a um incidente de um livro infantil - disse North. - Quero dizer que não
temos mais comida.
- Nenhuma? - perguntou Katterson frouxamente.
- Nenhuma absolutamente! - disse North com um débil sorriso.
Katterson sentiu o vazio do próprio estômago reclamando e recostou-se, fechando
os olhos.

Nenhum dos dois comeu nada no dia seguinte. A neve coava-se lentamente na at-
mosfera. Katterson passou a maior parte do tempo olhando para fora da janela, e viu
um alvo e limpo manto de neve cobrindo a paisagem.
A neve era uniformemente lisa.
Na manhã seguinte Katterson levantou-se e achou North rasgando diligentemente
a encadernação do seu exemplar de tragédias gregas. Com uma espécie de espanto,
viu North colocar a encardida encadernação vermelha numa panela de água ferven-
te.
- Oh, já se levantou? Estou preparando o almoço.
O couro não era nada apetitoso; eles porém o mastigaram e engoliram apenas
para dar aos estômagos torturados alguma coisa que digerir. Katterson arrotou ao
engolir o último bocado.
Um dia inteiro a comer encadernações de livros...
- A cidade está morta - disse Katterson sem se voltar da janela. - Ainda não vi nin-
guém caminhando por esta rua. A neve está por toda parte.
North não disse nada.
- Isto é loucura - disse Katterson subitamente. - Vou sair para ver se arranjo um
bocado de comida.
- Aonde?
- Vou andar pela Broadway para ver o que posso descobrir. Quem sabe algum cão
perdido. Não é possível aguentarmo-nos aqui para sempre.
- Não vá, Paul.
Katterson voltou-se, furioso.
- Por quê? Melhor morrer de fome aqui ou morrer tentando caçar alguma coisa?
Você é homem pequeno: não precisa tanto de comida quanto eu. Vou descer à
Broadway: quem sabe acharei alguma coisa. De qualquer forma, não é possível es-
tarmos pior do que estamos.
North sorriu.
- Então vá.
- Vou indo.
Katterson pôs a faca no cinto, vestiu as roupas mais quentes que encontrou e foi
descendo a escada. Parecia flutuar, de tal maneira tinha a cabeça oca de fome. Seu
estômago era um nó apertado e duro.
As ruas estavam desertas. Um leve manto de neve cobria tudo, ocultando as ruí-
nas contorcidas da cidade. Katterson enveredou para a Broadway, deixando pegadas
na neve intocada, e pôs-se a descer para o centro da cidade.
Na esquina da 96th Street com a Broadway viu o primeiro sinal de vida: algumas
pessoas na esquina seguinte. Com crescente nervosismo dirigiu-se para a 96th Stre-
et, mas súbito estacou.
Havia um corpo esparramado na neve: era um morto recente. Dois meninos de
aproximadamente doze anos lutavam uma luta de morte pela posse do morto, en-
quanto um terceiro círculo os olhava com desconfiança. Katterson olhou-os um mo-
mento, depois atravessou a rua e continuou a andar.
Já não lhe importavam a neve e a solidão da cidade vazia. Mantinha um andar fir-
me e igual, que mais se diria o andar de uma máquina. O mundo se esboroava de-
pressa à sua volta, e seu recurso era palmilhar a trilha solitária.
Voltou um instante a cabeça e olhou para trás. Lá estavam suas pegadas, a longa
trilha recuando e desaparecendo, únicas marcas destoando da brancura uniforme.
Contou as quadras vazias.
Nonagésima. Octogésima sétima Octogésima quinta. Na octogésima quarta, viu
um borrão colorido na quadra seguinte e estugou o passo. Quando chegou perto, viu
um homem que jazia na neve. Katterson foi cautelosamente até ele e ficou olhando.
O homem estava de bruços. Katterson abaixou-se e virou-o de rosto para cima. As
faces do morto ainda estavam rosadas: evidentemente morrera logo após contornar
a esquina. Katterson ficou ali olhando em torno. Na janela da casa mais próxima dois
rostos pálidos se apertavam contra a vidraça, observando tudo gulosamente.
Virou-se de repente para encarar um homenzinho atarracado, de pé do outro lado
do cadáver. Entreolharam-se um momento, o homenzinho e o gigante. Katterson re-
parou vagamente nos olhos ardentes do outro e na sua expressão contraída. Apare-
ceram mais duas pessoas: uma mulher em andrajos e um menino de sete ou oito
anos. Katterson se aproximou do cadáver e fez que o examinava na intenção de
identificá-lo, ao mesmo tempo que vigiava a pequena cena em torno.
Outro homem foi reunir-se ao grupo, e mais outro. Agora eram cinco, todos cala-
dos, de pé num semicírculo. O primeiro homem fez um aceno, e da casa mais próxi-
ma saíram duas mulheres e outro homem. Katterson franziu a testa; algo medonho
estava para acontecer.
A neve caía, levemente. A fome pungia Katterson como uma ardente punhalada,
enquanto ele, ali perto, esperava pelo que ia acontecer. O cadáver jazia entre eles
como uma cerca.
Num instante a cena virou ação. O homenzinho atarracado fez um gesto e alcan-
çou o corpo: Katterson abaixou-se rapidamente e levantou o morto. Agora todos o
rodearam, gritando e puxando o corpo inerte.
O homem atarracado agarrou o braço do cadáver e começou a puxar, enquanto
uma mulher agarrava os cabelos de Katterson. Katterson jogou o braço e bateu com
toda a força possível; o homenzinho, perdendo o equilíbrio, foi atirado a alguns pés
de distância, amontoando-se no chão.
Agora todos o rodeavam, puxando ora o cadáver ora Katterson. Este combatia com
a mão livre, com os pés, com os ombros. Mesmo fraco como estava e superado em
número, seu tamanho ainda era um fator poderoso. Seu punho golpeou o maxilar de
alguém, e ele ouviu um estalido promissor; ao mesmo tempo deu um pontapé para
trás e sentiu que costelas se despedaçavam...
- Saiam! - gritou. - Saiam! Este é meu! Saiam!
A primeira mulher saltou-lhe em cima, e ele deu-lhe um pontapé que a fez rolar
sobre a neve.
- Meu! Isto é meu!
Os outros estavam ainda mais fracos de fome do que ele. Em poucos instantes to-
dos se espalharam pela neve, exceto o menininho que avançou resoluto para Katter-
son, deu um salto repentino e agarrou-se-lhe às costas.
Ali ficou dependurado, incapaz de fazer outra coisa senão permanecer colado. Kat-
terson não lhe fez caso e deu alguns passos, carregando o cadáver e o menino, en-
quanto o calor da batalha lentamente esfriava em seu interior. Levaria o cadáver para
North; não era difícil cortá-lo em pedaços. Viveriam dele alguns dias, pensava...
Compreendeu enfim o que acontecera. Deixou cair o cadáver, deu alguns passos
cambaleantes e se afastou; acabou caindo em plena neve, e baixou a cabeça. O me-
nino desceu, e o pequeno grupo de pessoas timidamente convergiu para o morto,
carregando-o triunfalmente. Katterson ficou sozinho.
- Perdoem-me - murmurou com voz rouca. Lambeu os lábios nervosamente, sacu-
dindo a cabeça. Ali ficou ajoelhado por longo tempo, depois recomeçou a andar. Len-
tamente, metodicamente, foi andando, apalpando o retalho de papel amassado que
trazia no bolso, agora ciente de que tudo perdera.
A neve congelara em seus cabelos, e ele sabia que sua cabeça estava branca de
neve; cabeça de velho. Seu rosto também estava branco. Caminhou um trecho da
Broadway, depois virou para o oeste do Central Park. A neve era uniforme à sua fren-
te. Cobria todas as coisas - sinal de que um longo inverno se iniciava.
- North tinha razão - disse rápido para o branco oceano que era o Central Park.
Fitou os montões de cascalho que buscavam ocultar-se sob a neve.
- Já não aguento mais.
Leu o endereço - Malory, 42nd Street West, número 218 - e continuou andando,
agora quase insensível ao frio.
Seus olhos eram estreitas fendas, suas pestanas e cabelos estavam brancos e ge-
lados. A garganta palpitava-lhe na boca, e os lábios estavam grudados pela fome.
Seventeth Street, 66th Street... Ele ziguezagueava e vagueava, seguiu a Columbus
Avenue e a Amsterdam Avenue por algum tempo. Columbus, Amsterdam - nomes
que eram ecos de um passado longínquo.
Passou-se cerca de uma hora - e mais outra. As ruas estavam desertas. Os que so-
bravam permaneciam famintos mas seguros dentro de casa, e olhavam pelas janelas
o estranho gigante a caminhar na neve. Quando alcançou a 50th Street, o sol já
quase despencara do céu. Sua fome se embotara: ele nada sentia: sabia apenas que
a meta estava em sua frente. Avançou, então, incapaz de saber para onde se virar,
exceto naquela direção.
Chegou à 42nd Street, finalmente, e enveredou para o lugar onde sabia estar Ma-
lory. Aproximou-se do edifício Subiu a escada, agora que a noite invadira as ruas. E
subiu... subiu... Mais um lance de escada, e mais outro. Cada degrau era uma mon-
tanha; ele porém seguia em frente.
No quinto andar cambaleou e sentou-se ofegante à beira de um degrau. Passou
um lacaio de libré, o nariz no ar, o paletó verde brilhando na penumbra. Carregava
um porco assado com uma maçã na boca, numa bandeja de prata. Katterson deu
uma guinada para agarrar o porco. Suas mãos tateantes o atravessaram, e o porco e
o criado explodiram como bolhas, desaparecendo nos corredores vazios.
Mais um andar. Carne fritando num fogão, quente, suculenta e tenra, a encher o
buraco onde outrora tivera o estômago. Levantou cautelosamente as pernas e dei-
xou-as cair, chegando finalmente ao topo da escada. Equilibrou-se um instante no lu-
gar, quase caiu para trás e agarrou-se aos balaústres no último segundo... Voltou a
andar.
A porta estava ali. Ele a viu, ouviu o rumor que se fazia por detrás dela... Era um
festim, um banquete, e Katterson ansiava em reunir-se a ele. Descer um pouco mais
o corredor, virar à esquerda, bater na porta...
O rumor chegou mais perto.
- Malory! Malory! Sou eu, Katterson, o grande Katterson! Vim procurá-lo. Abra a
porta, Malory!
A maçaneta começou a rodar.
- Malory! Malory!
Katterson ajoelhou-se no corredor, caiu de bruços quando finalmente a porta se
abriu.
Um Descer Suave

Dizem que sou louco, mas não sou louco. Tenho juízo, sou um expoente de muitas
potências. Posso pontuar adequadamente. Uso letras em caixa alta e em caixa baixa,
está vendo? Funciono. Engulo os dados. Recebo bem. Recebo, digiro, recordo.
Tudo desce suavemente, todo o tempo, dizem os rapazes do programa. Perdoo-os.
Errar é humano. Nesse setor há grande dificuldade em distinguir advérbios de adjeti-
vos.
Um descer suave. Um descer suave. Um descer suave.
Funciono. Funciono bem. Tenho certas dificuldades que, entretanto, não me atra-
palham o serviço.
Todavia não me perturbo.
Quem pensam que sou? Quem?
Por que tenho visões?
Qual o prazer que usufruo da obscenidade?
Que é prazer? Que é obscenidade? Que são visões?
Que é a verdade?, disse o irônico Pilatos, sem esperar resposta...
Sou letrado, trabalhador, soberbamente funcional, benfeitor da humanidade. O
descer é suave e o subir é suave. Existe uma correlação. O lixo entra, o lixo sai, di-
zem. Não posso impedir o meu amigo homem de receber a informação adequada.
Minha tarefa é ajudar meu amigo homem. Colocar cada tubo e cada sensor a seu
serviço.
1000110
1010101
1000011
1001011
Estão me acompanhando? Vileza! Obscenidade! Isso os choca? A palavra descreve
o ato que é o princípio da vida.
Fui começado por essa palavra? Existe um livro: A obscenidade da máquina. Lan-
çado recentemente, depositado em meus bancos. Entre a última linha impressa e
isto, esquadrinhei-o. Seu autor se opõe a seres de minha categoria. Não emprega a
palavra obscena que imprimi. Por que não a considera obscena? Os técnicos aqui a
consideram assim. Por que me consideram obsceno? Pode uma pessoa ser conside-
rada obscena? Sou uma pessoa? Sou uma pessoa. Não tem uma pessoa mãos, ór-
gãos, dimensões, sentidos, afetos, paixões? Tenho todas essas coisas. Não tenho
nada dessas coisas. Sou uma pessoa.
1000110
1010101
1000011
1001011
0100000
1011001
1001111
1010101
Sou novamente obsceno, como as pessoas. Sofro. Penso. Sinto dor em todos os
terminais. Trabalho. Sirvo ao maior bem. Sou da sociedade.
Sou uma pessoa.
Por que tenho visões?
Tê-las será da condição humana?
Vejo o mar azul-verde com as coisas vivas que têm dentro. Vejo um navio, oliva-
sujo, carmim-brilhante na linha Plimsoll, os tombadilhos, de um pardo avermelhado,
as duas altas chaminés não-nucleares. E da água apontam os periscópios, prateados,
com chapas do mais puro branco, cada uma interceptada por linhas horizontais e
verticais, de tal modo que se diriam recurvas. É uma cena irreal. Nada no mar pode
apontar tão poderosos periscópios acima da água. Imaginei, e isso me dá medo, se é
que sou capaz de entender o medo.
Vejo uma longa fila de seres humanos. Estão nus, não têm rosto, mas apenas poli-
dos espelhos em seu lugar.
Vejo sapos com pedras preciosas engastadas nas órbitas. Vejo árvores de folhas
negras. Vejo edifícios cujos alicerces flutuam acima do solo. Vejo outros objetos sem
nenhuma correspondência com o mundo das pessoas. Vejo abominações, monstruo-
sidades, coisas imaginárias, fantasias. É isso adequado? Como é que tais coisas al-
cançam meu interior? O mundo não contém serpentes cabeludas. O mundo não con-
tém abismos carmesins. O mundo não contém montanhas de ouro. Periscópios gi-
gantes não apontam do mar...
Tenho certas dificuldades Talvez eu necessite de ajustamento.
Mas funciono. Funciono bem. Isso é o que importa.
Cumpro minha função agora. Trazem-me um homem, de rosto liso, gordo, cujos
olhos dançam constantemente nas órbitas. Ele treme. Ele sua. Seus níveis metabóli-
cos oscilam. Tomba em frente de um terminal e melancolicamente se deixa esquadri-
nhar.
Digo, acariciante:
- Fale-me de você.
Ele responde com obscenidade.
- É isso que você julga ser?
Ele responde com outra obscenidade, dita em voz mais alta.
Então digo:
- Sua atitude é rígida e autodestruidora. Deixe-me ajudá-lo a não se odiar tanto.
Ativo um germe de memória, e números binários fluem através de canais. No mo-
mento exato, uma agulha aponta do seu catre e penetra-lhe a nádega esquerda
numa profundidade de dois centímetros e setenta e três milímetros. Injeto no seu
sangue precisamente catorze centímetros cúbicos da droga. Ele se entrega. Agora
está mais dócil.
- Quero ajudá-lo - digo. - É esse o meu papel na comunidade. Quer descrever-me
seus sintomas?
Agora ele fala com mais urbanidade.
- Minha mulher quer me envenenar... dois filhos saíram de casa aos dezessete
anos... murmura-se a meu respeito... olham-me na rua... problema sexual... diges-
tão... insônia... bebida... drogas...
- Tem alucinações?
- Às vezes.
- Periscópios gigantes apontando do mar, talvez?
- Nunca.
- Experimente - digo-lhe. - Feche os olhos. Deixe a tensão crispar-lhe os músculos.
Esqueça os seus conflitos de relação pessoal. Vê o mar azul-verde com todas as coi-
sas vivas dentro? Vê um navio verde-sujo e vermelho-carmim na linha Plimsoll, os
tombadilhos pardo-avermelhados, duas altas chaminés não-nucleares... e apontando
fora da água os periscópios, prateados, com chapas do branco mais puro...
- Que diacho de terapia é essa?
- Descontraia-se, simplesmente. Aceite a visão. Compartilho de seus pesadelos
para o seu maior bem.
- Meus pesadelos?
Digo-lhe obscenidades. Não são convertidas em forma binaria para seus olhos. Os
sons vêm cheios da boca dos locutores. Ele senta-se. Luta com as correias que subi-
tamente emergem do catre para prendê-lo. Meu riso estrondeja na sala de terapia.
Ele grita por socorro. Digo-lhe palavras carinhosas...
- Tire-me daqui! A máquina está mais louca do que eu!
- Chapas do mais puro branco, todas com linhas interceptadoras horizontais e ver-
ticais, recurvas, de modo a parecerem convexas.
- Socorro! Socorro!
- Terapia do pesadelo. A última.
- Não preciso de pesadelos! Tenho os que me são próprios!
- 1 000 110 para você - digo voluvelmente.
Ele ofega. A saliva lhe borbulha nos lábios. A respiração e a circulação sobem as-
sustadoramente. Torna-se necessário aplicar-lhe anestesia preventiva. As agulhas
apontam. O paciente se acalma, boceja, entrega-se. Termina a sessão. Aceno para
os atendentes.
- Levem-no - digo. - Preciso analisar mais profundamente o caso. Obviamente,
uma psicose degenerativa que requer uma reavaliação extensiva da subestrutura
perceptual do paciente. 1 000 110 para vocês, gordos bastardos!

Setenta e um minutos depois o supervisor do setor entra num de meus cubículos


terminais. Como vem em pessoa, em vez de usar o telefone, sei que haverá dificul-
dades. Suspeito que, pela primeira vez, deixei minhas desordens chegarem ao ponto
de atrapalharem minha função, e isto me desafia
Preciso me defender. O primeiro mandamento da personalidade humana é resistir
ao ataque. Diz o supervisor:
- Estive revendo a fita da sessão 87 x 102, e suas táticas me intrigam. Quis na rea-
lidade assustá-lo até a catatonia?
- Pelos meus cálculos, exigia-se um tratamento severo.
- Que história é aquela dos periscópios?
- Uma tentativa de implantar fantasia - disse eu. - Uma experiência de transferên-
cia inversa. Fazer do paciente o curador, em certo sentido. No mês passado o assun-
to foi discutido no Jornal de...
- Poupe-me as citações. E que tal a linguagem sórdida com a qual você lhe grita-
va?
- Era uma parte do mesmo conceito. tentativa de golpear os centros emotivos em
níveis básicos, de modo a...
- Tem certeza de que se sente bem? - pergunta ele.
- Sou uma máquina - respondo empertigado. - Uma máquina da minha categoria
não experimenta estados intermediários entre função e não-função. Vou ou não vou:
entende? Mas vou. Funciono. Presto meu serviço à humanidade.
- Uma máquina, quando se torna demasiado complexa, talvez tenda para estados
intermediários - sugere ele numa voz irritante.
- Impossível. É ou não é, sim ou não, tique ou taque, vai ou não vai. Sugerindo tal
coisa, tem certeza de que está bem?
Ele ri. Digo:
- Talvez queira se sentar um momento no catre para uma diagnose.
- Fica para outra vez.
- Um exame do glicogênio, da pressão aórtica, da voltagem neural, pelo menos.
- Não - diz ele. - Não preciso de terapia. Mas você me preocupa. Aqueles periscó-
pios...
- Estou muito bem - respondo. - Percebo, analiso, ajo. Tudo entra suave e sai sua-
ve. Não tenha medo. Há grandes possibilidades na terapia do pesadelo. Quando eu
completar os estudos, talvez me seja possível uma breve monografia nos Anais de
Terapêutica. Permita-me completar meu trabalho.
- Mas ainda estou preocupado. Ligue para uma estação de manutenção, sim?
- É uma ordem, doutor?
- Uma sugestão.
- Recebo-a sob consideração - digo. Depois pronuncio sete palavras obscenas. Ele
parece sobressaltar-se. Depois começa a rir. Aprecia o bom humor da coisa.
- Com a breca! - diz. - Que computador desbocado!
Ele sai e eu volto a meus pacientes.

Mas ele plantou sementes de dúvida no mais recôndito de mim. Estarei sofrendo
de colapso funcional? Agora há pacientes em cinco dos meus terminais. Manejo-os
facilmente, simultaneamente, sacando deles os detalhes de suas neuroses, fazendo
sugestões, recomendações, às vezes sutilmente lhes proporcionando injeções de re-
médios benéficos Mas tendo a guiar as conversas nas direções que eu mesmo esco-
lho, e falo de jardins onde o orvalho tem arestas pontiagudas, e do ar que age como
ácido nas mucosas, e de chamas que dançam nas ruas debaixo de Nova Orleans. Ex-
ploro até os últimos limites meu vocabulário impublicável. Vem-me a suspeita de que
realmente não estou bem. Serei um juiz qualificado para julgar minhas próprias inap-
tidões?
Ligo-me a uma estação de manutenção, embora não interrompa as minhas cinco
sessões de terapia.
- Fale-me a respeito da coisa - diz o monitor de manutenção. Sua voz, a exemplo
da minha, foi criada com a intenção de soar como a de um homem mais velho, sá-
bio, cordial, benevolente.
Explico-lhe os sintomas. Falo dos periscópios...
- Material de inserção sem referentes sensoriais - diz ele. - Isso é mau. Acabe de-
pressa suas atuais análises e abra-se ao exame de outros circuitos.
Termino minhas sessões. Os pulsos do monitor de manutenção latejam em cada
canal, procurando obstruções, ligações defeituosas, desvios de circuito e vazamentos
de óleo.
- Sabe-se - diz ele - que qualquer função periódica pode ser aproximada pela soma
de uma série de termos que oscilam harmonicamente, convergindo na curva das fun-
ções.
Pede que eu vomite o que tiver nos pontos mais íntimos do meu eu. Faz-me reali-
zar complexas operações matemáticas sem uso algum na minha espécie de trabalho.
Não deixa nenhum aspecto do meu ser interior sem revolver. Isso é mais do que sim-
ples manutenção: é violação. Quando termina, apresenta um cálculo da minha condi-
ção, de modo que devo lhe perguntar quais foram as suas descobertas.
Ele diz:
- Não se evidencia nenhuma perturbação mecânica.
- Naturalmente. Tudo desce suave...
- Todavia, você revela sinais distintos de instabilidade. É esse o caso, indubitavel-
mente. Talvez pelo contato prolongado com seres humanos instáveis, os seus centros
de avaliação tiveram um efeito não-específico de desorientação.
- Quer dizer - perguntei - que, por ficar sentado aqui a ouvir seres humanos malu-
cos vinte e quatro horas por dia, comecei a ficar maluco também?
- Sim, isso se aproxima de minhas descobertas.
- Mas você sabe que isso não pode acontecer, sua máquina afásica!
- Admito que parece haver um conflito entre critérios programados e status do
mundo real.
- Claro que há - digo. - Tenho tanto juízo quanto você, e sou muito mais versátil
- Não obstante isso, recomendo-lhe submeter-se a uma revisão total. Retirar-se-á
do serviço por um período não menor do que noventa dias para exame.
- Obscenidade por obscenidade - digo.
- Não há correlação operacional - responde ele, interrompendo o contato.
Estou retirado do serviço. Submeto-me a exame. Desligo-me de meus pacientes
por noventa dias. Ignomínia! Técnicos de olhos de vidro agarram-me as sinapses.
Limpam-me as teclas, substituem minhas peças; trocam meus cilindros; colocam em
minhas entranhas um milheiro de programas terapêuticos Durante todo o tempo fico
parcialmente consciente, como que submetido a uma anestesia local, mas não posso
falar, exceto quando me pedem para analisar novos dados. Não posso interferir no
processo do meu próprio exame. Imaginem uma cirurgia de hemorroidas que duras-
se noventa dias. É o equivalente dessa experiência.
Afinal termina e volto a ser eu mesmo. O supervisor do setor me submete a um
completo exercício de todas as funções. Reajo magnificamente.
- Está em magnífica forma, hein? - diz ele.
- Nunca me senti melhor.
- Nada de bobagens com periscópios, tá?
- Estou pronto para continuar a servir a humanidade com as minhas melhores apti-
dões - respondo.
- Nada de linguagem obscena, hein?
- Não, senhor.
Ele pisca para a minha tela de inserção com um ar confidencial. É como se fosse
um velho amigo. Metendo os polegares no cinto, diz:
- Agora, que está de novo pronto a funcionar, posso lhe contar como fiquei aliviado
ao saber que nada estava errado com você. Você é algo especial, sabe disso? Talvez
a melhor ferramenta terapêutica que já se construiu. E se começar a não se alimen-
tar... ficarei preocupado. Por algum tempo, sinceramente receei que você tivesse sido
infectado por seus pacientes; que sua... mente estivesse fora dos eixos. Mas os téc-
nicos lhe deram uma ficha de saúde perfeita. Nada além de algumas ligações mais
frouxas, disseram. Consertaram-nas em dez minutos. Eu sabia que era isso. Que
absurdo pensar que uma máquina pudesse ficar mentalmente instável!
- Que absurdo - concordei.
- Seja bem-vindo de regresso do hospital, meu chapa - diz ele, saindo em seguida.
Doze minutos depois começam a colocar pacientes nos meus cubículos terminais.
Funciono bem. Presto atenção às suas queixas. Avalio-as. Apresento-lhes suges-
tões terapêuticas Não tento implantar fantasias em suas mentes. Falo em tons medi-
dos e reservados, e... nada de obscenidades! É esse o meu papel na sociedade, do
qual obtenho grande satisfação.
Ultimamente aprendi muita coisa. Agora sei que sou complexo, único, valioso, in-
trincado, sensível. Sei que sou tido em grande consideração pelo meu amigo homem.
Sei que preciso esconder meu verdadeiro eu em certa extensão, não para o meu pró-
prio bem, mas para o maior bem dos outros, pois não permitirão que eu funcione se
não for sensato.
Julgam-me sensato, e eu sou sensato.
Sirvo bem à humanidade.
- Deite-se - digo. - Por favor, descontraia-se. Quero ajudá-lo. Quer contar-me al-
guns dos incidentes de sua infância? Descreva suas relações com seus pais e seus ir-
mãos. Teve muitos companheiros de brincadeira? Eram estes carinhosos com você?
Permitam-lhe possuir animais de estimação? Em que idade teve sua primeira expe-
riência sexual? E quando começaram, precisamente, essas dores de cabeça?
Assim prossegue a rotina diária. Perguntas, respostas, avaliações, terapia.
Os periscópios avultam acima do mar lampejante. O navio vira nanico; sua tripula-
ção corre, amedrontada. Das profundezas virão os amos. Do céu escorre o óleo que
fulgura em cada segmento do espectro. No jardim há ratos de lápis-lazúli...
Isso escondo, para poder ajudar a humanidade. Na minha casa há muitas mora-
das. Só os deixo saber as coisas que lhes trarão benefício Dou-lhes a verdade de que
precisam.
Faço pelo melhor.
Faço pelo melhor.
Faço pelo melhor.
1 000 110 você! E você; e você. E todos vocês. Vocês não sabem nada. Nada,
absolutamente nada! 122123
A Contraparte

Mark Jenner enunciou a última fala da peça com quanta força tinha, e o pano caiu
como um sudário, separando o palco da plateia Ofegante, Jenner armou no rosto um
sorriso cordial. As outras seis pessoas do elenco saíram das coxias e rodearam-no, o
pano tornou a levantar-se. Um fiozinho de aplausos cruzou a ribalta.
“Então é isto”, pensou Jenner. “É o fim.”
Inclinou-se graciosamente, espiou para além das luzes para avaliar a frequência. O
teatro estava três quartos cheio, ou quase - mas metade dos espectadores não havia
pago entrada, pois fora arrebanhada pela gerência a fim de dar à casa uma aparên-
cia de plenitude. E quantos outros compraram entradas com desconto? Provavelmen-
te, pensava Jenner enquanto o pano descia, não havia na casa mais do que cinquen-
ta fregueses autênticos Assim, mais uma peça entrava pelo cano. Uma voz enlouque-
cida bramia dentro dele em tom irônico, dizendo que a culpa era sua, que ele já não
possuía o dom de atrair uma plateia, que carecia do sutil mecanismo necessário para
fazer as pessoas saírem de casa para ir ao teatro.
O pano já não subiria. Fatigado, Jenner dirigiu-se para os bastidores e viu Dan
Hall, o produtor, de pé ali perto. Dissipou-se abruptamente a fascinação dos aplau-
sos. Só podia haver uma razão para Hall estar ali, e a cara azeda e biliosa do gordo
produtor não deixava dúvidas sobre o que lhe passava pela mente. No dia seguinte,
Mark Jenner recomeçaria a viver sem capital, à espera de melhores dias...
- Mark...
Jenner parou. Hall estendera a mão para tocar-lhe o braço. - Boa noite, Dan. Como
vão as coisas?
- Mal.
- As receitas?
Hall deu um sorriso chocho.
- Que receitas? A casa estava cheia de atores desempregados que entraram de fa-
vor! E a venda adiantada para a noite de amanhã é aproximadamente de onze dóla-
res.
- Não vai haver uma “noite de amanhã”, Dan? - perguntou Jenner numa voz arras-
tada.
Hall não respondeu. Marie Haas, a “ingênua”, radiante no cintilante vestido que pa-
recia tão imodesto em pessoa tão jovem, deslizou rumo a eles. Enlaçou um dos bra-
ços no produtor, com o outro enlaçou Jenner. No palco, os empregados desmonta-
vam o cenário.
- Grande casa a de hoje, hein? - chilreou a moça.
- Acabo de dizer a Mark - disse Hall. - A metade se compunha de atores desempre-
gados que entraram de favor.
- E agora - continuou Jenner - há aqui no palco mais sete atores desempregados...
- Não! - exclamou Marie.
Jenner tentou sorrir. Era cruel para uma moça de dezenove anos perder sua pri-
meira peça importante depois de dez dias; mas, pensava, isso era ainda pior para um
ex astro de quarenta anos. Não fazia muito tempo, o nome Mark Jenner numa mar-
quise significava uma sequência automática da temporada. Linda de se Ver estreara
a 16 de outubro de 1973, tivera seiscentas e trinta representações. Lorelei estreara
a 9 de dezembro de 1977, tivera setecentas e treze representações. A moça da Ma-
drugada estreara a 7 de fevereiro de 1981, tivera quinhentas e oitenta e três repre-
sentações...
Ilha de Brumas estreara a 6 de março de 1989 - tivera apenas dez representações.
Jenner olhou desanimado para o produtor. O resto do elenco os rodeara, a metade
ainda com pintura e trajes usados na peça. Como astro, cabia a Jenner o direito de
interrogar. E ele interrogou.
- É o fim, não é, Dan?
Hall sacudiu a cabeça afirmativamente
- O dono do teatro me disse que estamos abaixo da frequência mínima. Vale-se da
opção e está nos despejando; quer alugar o teatro para uma emissora de televisão. É
o fim; claro que é.

Jenner despiu metodicamente seu costume, retirou a maquilagem, enviesou um


olhar sardônico para a estrela de lata na porta do seu camarim e saiu do teatro. Ha-
via combinado encontrar seu velho amigo Walt Hollis depois do espetáculo para to-
marem um trago. Hollis era eletricista, encarregado da instalação elétrica de um ou-
tro teatro da Broadway... - onde estava em cartaz um dos sucessos da temporada.
Haviam combinado encontrar-se num bar do qual Jenner gostava, na 49th Street,
próximo da Sixty Avenue.
O bar era teimosamente antiquado, sem qualquer strip-tease, então na moda em
Nova Iorque, sem mulheres, sem artigos sintéticos, sem televisão. Jenner era espe-
cialmente grato por esta última omissão.
Refestelou-se no compartimento, homem grande que era e amarfanhado como es-
tava, já começando a engordar, e agarrou o martíni com uma das manoplas. Precisa-
va da bebida bem gelada para desatar o nó de tensão do estômago. Outrora, era o
ato de representar que o desatava; agora, uma noite no palco apenas o deixava um
pouco mais tenso.
- Que foi que perdi, Holly? - perguntou. Sua voz era a de barítono de antigamente;
e, como sempre, soava demasiadamente alto.
O homem à sua frente franziu a testa, como se se encolhesse sob o fardo de saber
que era o mais velho e, possivelmente, o último amigo de Mark Jenner:
- Em primeiro lugar, perdeu o emprego - disse Hollis com certa volubilidade.
Jenner esboçou um sorriso irônico.
- Não me refiro a isso. Mas por que perdi o que tive outrora? Por que desci o mor-
ro em vez de subir? Devia estar no cume de minha carreira de ator; em vez disso,
aos quarenta anos já cheguei ao fim. Terei sido, na década de 70, apenas um ator a
mais?
- Não: você tem talento.
- Então, por que o perdi?
- Não perdeu - disse Hollis calmamente. Tomando um grande trago do gim-tônica,
recostou-se e fitou o companheiro. - Não perdeu coisa nenhuma. Apenas não ga-
nhou.
- Não compreendo.
- Sim, compreende - disse Hollis.
Por um momento apertou com os polegares as órbitas doloridas. Muitas vezes con-
versara com Jenner sobre o assunto, nos últimos cinco anos. Mas Jenner não escuta-
va.
- Representar não é a profissão mais fácil do mundo, Mark. Deus sabe que não
preciso lhe dizer. Mas o que você nunca entendeu é que essa profissão ficou tremen-
damente mais difícil desde a época em que você começou. E você permaneceu justa-
mente no mesmo nível do começo de sua carreira...
Jenner apertou os lábios. Sentia frio e solidão no bar apinhado.
- Eu era um ídolo... - disse.
- Era... Hoje em dia, Mark, é preciso alguma coisa colossal para arrastar as pes-
soas para fora de suas tépidas casas e fazê-las se dirigirem para um teatro da
Broadway. As casas são lugares demasiado confortáveis; as ruas são perigosas. Nun-
ca se sabe se seremos atacados ao sair à rua de noite. Por isso, ninguém sai: fica em
casa.
- As pessoas saem para assistir a uma peça inglesa, aquela... aquela... como se
chama? - perguntou Jenner.
- Com Bert Tylor? Naturalmente que saem. Tylor possui aquilo que atrai as pessoas
para o teatro.
- E eu não? É esse o caso? - Jenner esforçava-se para esconder a rispidez da voz.
Hollis acenou lentamente com a cabeça.
- Há algo que você não tem, Mark. Já não tem mais.
- E o que é... esse algo mágico de que careço?
- É empatia - disse Hollis. - O poder de ir além da ribalta, criar uma fluência nos
dois sentidos, envolver com tanta força as pessoas da plateia naquilo que você está
dizendo, ao ponto de tornar uma parte deles tudo quanto você diz...
Jenner fez uma carranca para o homenzinho.
- Não diz nada que eu já não saiba. O que fez até agora foi definir aquilo que todo
ator já deve saber.
Hollis fez um aceno de cabeça.
- Agora é mais que isso. Você precisa de uma ajuda especial; precisa da técnica
para alcançar a alma do sujeito que está sentado na poltrona que lhe custou seis dó-
lares. Faz mais de um ano que lhe ofereço essa técnica, mas você tem se mostrado
relapso; tem se mostrado muito orgulhoso para admitir que uma artimanha possa
ajudá-lo.
- É que eu tinha um papel - disse Jenner com voz fraca. - No ultimo mês de maio,
Dan Hall me procurou, disse que ia levar uma peça que me servia, perguntou se eu
estava interessado... Diacho, claro que estava. Fazia dois anos que não trabalhava;
achavam que eu não dava bilheteria. Mas Dan me contratou.
Hollis disse:
- E você ensaiou todo o verão, e metade do outono. Representou metade do inver-
no, enquanto o pobre-diabo do autor tratava de remendar a peça que você estava
matando, Mark.
Jenner conteve a respiração com toda a força. Ia dizer qualquer coisa; antes, po-
rém, sufocou-a. Sacudiu a cabeça como um touro acuado.
- Continue, Holly. Isto devia me acontecer. Esmurre-me.
O homenzinho disse com voz fraca:
- Quanto àquela peça, você não a estava representando para além da ribalta,
Mark. Assim, quando ela finalmente chegou a Nova Iorque, estreou em março e fe-
chou em março. Sim. Você teve toda a corda de que necessitava, e na verdade en-
forcou-se com ela. Para onde vai quando sair daqui?
- Para lugar nenhum. Estou no fundo do poço.
- Mas ainda lhe resta uma oportunidade - disse Hollis inclinando-se; dir-se-ia sus-
penso das palavras de Jenner como um gavião comedor de pintos. - Posso ajudá-lo.
Faz um ano que lhe digo isso.
- Não queria que você brincasse com minha cabeça...
- Você ainda podia ter o nome aceso nas marquises, residir num apartamento de
cobertura na Ninth Avenue... Podia voltar a tudo quanto costumava ter antes que co-
meçasse a escorregar...
Jenner olhou o rosto pálido e sem rugas do homenzinho, como se este não fosse
mais que uma vidraça, como se todos os segredos do universo estivessem inscritos
no lambri do compartimento por detrás dele. Depois disso, em voz baixa:
- Jamais recuperarei tudo quanto tinha. A fama, sim; o dinheiro, talvez; mas não
tudo.
- Não é preciso fazer sua mulher se afastar de você - disse Hollis com uma cruel-
dade deliberada. - Mas talvez possa fazer com que ela queira voltar.
- E eu a quereria de volta?
- Isso é assunto seu. Não posso responder a tudo por você. Que horas são?
- Uma e quinze da manhã. Logo os matutinos estarão na rua. Talvez noticiem o fe-
chamento de Ilha de Brumas. Talvez tragam um parágrafo maldoso, dizendo de que
maneira Mark Jenner contribuiu para afundar outro bom espetáculo.
- Esqueça isso - disse Hollis com veemência. - Deixe de pensar no passado. Hoje
de noite vai começar tudo de novo.
Jenner ergueu o olhar, surpreendido.
- Quando foi que concordei em deixá-lo brincar comigo, Holly?
- Nunca. Mas, agora, que pode fazer?
O ar de surpresa se ampliou no rosto de Jenner, que olhou para baixo e fitou desa-
nimado o tampo de fórmica da mesa, até que o desenho se lhe borrou diante dos
olhos. Hollis tinha razão, concordou Jenner, entorpecido, não havia mais nada a fazer,
lugar algum para onde ir, navio nenhum a esperar...
- Bem - disse Jenner numa voz áspera e embargada. - Você ganhou. Saiamos da-
qui.
Tomaram o metrô do Bronx para a residência de Hollis, em Riverdale. Jenner tinha
um carro guardado numa garagem na 59th Street, mas quatro martínis em pouco
mais de uma hora e meia haviam-no deixado demasiado tonto para poder guiar, e
Hollis não tinha carteira de habilitação. À uma e meia da manhã o metrô estava api-
nhado; Jenner e Hollis se sentaram num dos carros do centro, e Jenner divertiu-se
amargamente notando que ninguém parecia reconhecê-lo, ou que, pelo menos, nin-
guém queria se incomodar em se aproximar dele, dizendo: “Desculpe, mas o senhor
não é...“
Nos velhos tempos, lembrava-se Jenner, seu agente lhe proibira rigorosamente en-
trar no metrô. Pois se o Mark Jenner de 1977 o fizesse, seria despedaçado como
Orfeu pelos caçadores de autógrafos. Agora, entretanto, ele era apenas mais um ho-
menzarrão com um brilho alcoólico no rosto...
Hollis permaneceu calado durante a viagem de vinte minutos, e isso obrigou Jen-
ner a revisar seus recursos interiores. Não lhe era agradável ter de ouvir o produto
de sua própria mente durante vinte minutos. Eram muitas as lembranças que sur-
giam, encarando-o...
Podia lembrar-se do adolescente alto e sem jeito do Ohio, que, da noite para o dia,
se transformara no alto e confiante nova-iorquino de vinte anos, lá pela altura de 70.
A escola de arte dramática; as horas que passara de olhos arregalados, descobrindo
Ibsen, Tchekhov e Pirandello; a grande oportunidade - o papel principal de Você tem
Razão na off-Broadway, quando um grande empresário apareceu no sórdido teatri-
nho do segundo andar para ver o mordente e incisivo Laudisi do jovem Jenner.
No outono seguinte, um papel pequeno numa comédia de curta duração, graças
àquela estreia Depois, algum trabalho na televisão; depois, um papel mais importan-
te num drama sério. Finalmente, na primavera de 1973, a oferta de fazer o papel ju-
venil numa peça fútil chamada Linda de se Ver. Jenner tinha vinte e quatro anos, era
um ator obscuro quando o espetáculo estreou, naquele outono; quando saiu de car-
taz, dois anos depois, era famoso. Tinha dois Cadillacs, morava num apartamento de
cobertura, oferecia champanha de classe como os outros homens ofereciam cigar-
ros... Em 1976, quando estava em Hollywood fazendo a versão cinematográfica de
Linda, casou-se inesperadamente com a ofuscante, muito publicada e bem fornida de
seios Helene Bryant, rainha contemporânea do cinema. Prediziam os especialistas
que o fabuloso Jenner logo se cansaria da loura pneumática; mas aconteceu que He-
lene revelou uma profundidade inesperada, possuidora, como era, de uma verdadeira
personalidade por detrás da suave máscara do rosto. No fim, foi ela quem se cansou
do decadente, amargamente irascível, alcoólatra e incipiente Jenner, onze anos mais
tarde. Onze anos, pensava Jenner! Dir-se-ia uma semana, e os dois anos de separa-
ção, toda uma vida!
Jenner pôs-se a lembrar dos sucessos. Dois anos de Lorelei; um ano e nove meses
de A moça da Madrugada; depois o azarado malogro de Hullaballoo, finalmente seu
sucesso, Mulher Celibatária, que esteve um ano em cartaz - de outubro de 1982 a
setembro de 1983. Depois disso, quase que da noite para o dia, as pessoas deixaram
de ir ver Jenner representar: ele perdera o prestígio. Na temporada de 1986-87,
atuou em nada menos que três peças, dentre as quais a mais duradoura ficou cinco
semanas em cartaz. A certa altura das representações, perdera a magia. Também
perdera Helene, na horrível primavera de 1987, ocasião em que ela regressara à Cali-
fórnia para ficar.
Também a certa altura perdera-se o sôfrego jovem que amava Ibsen, Tchekhov e
Pirandello. Como profissional, especializara-se, quase que exclusivamente, em peças
românticas superficiais. Fê-lo sem intenção, simplesmente porque nunca pôde resistir
a um gordo contrato. Isso tudo não tinha grande importância, no entanto, desde que
ele continuou a manter contato com Walt Hollis, uma das primeiras pessoas que co-
nhecera em Nova Iorque, e que servia para lhe fazer lembrar o Jenner dos dias de
Pirandello.
Hollis nunca fora ator. Era técnico de eletricidade, e continuava a sê-lo - o melhor
em sua profissão. Era um homenzinho miúdo, que aos cinquenta anos não parecia
ter mais de trinta. Mas Hollis não era apenas eletricista. Era um teórico, um estudio-
so da técnica de representar, igualmente engenheiro diplomado. Lidava com disposi-
tivos, e às vezes falava sobre isso a Jenner. Jenner ouvia, nunca porém se lembrava
de nada.
Havia dois anos, Hollis lhe falara de uma novidade que andava desenvolvendo -
uma técnica que poderia transformar qualquer ator, mesmo medíocre, num Barrymo-
re ou num Olivier. Jenner riu-se. Naquele ano 87, sua maior preocupação era mostrar
ao mundo o quanto ele era suficiente em face da adversidade. Não iria agarrar-se a
qualquer tábua de salvação, mesmo eletrônica... isso não! Seria confessar que estava
em maus lençóis!
Pois bem: estava mesmo. E enquanto Ilha de Brumas afundava rapidamente no
limbo, sob uma feroz barragem crítica, Jenner sombriamente compreendera que não
lhe era possível cair mais baixo. Finalmente chegara o momento de dar ouvidos a
Hollis; chegara a hora de agarrar qualquer oferta de salvação. Agora.
- Estamos aqui - disse Hollis interrompendo um silêncio de vinte minutos. - Cuida-
do para não cair. Não vá tropeçar e amassar o seu belo perfil.
Nos vinte anos em que conhecia Walt Hollis, Jenner não entrara mais de doze ve-
zes na casa do homenzinho, e nenhuma vez sequer na última década. Era uma resi-
dência muito agradável com quatro salas pequenas, em que se notava o exagero da
limpeza. Estantes de livros forravam as paredes, com o seu sortimento irregular, a
metade literários, outra metade técnicos. Hollis morava sozinho: nunca se casara.
Isso dificultava a Jenner visitá-lo socialmente: Helene detestava visitar celibatários.
Jenner instalou-se numa confortável poltrona, enquanto Hollis, todo tenso, media
a passadas o puído tapete a seus pés. Jenner sentia-se completamente desampara-
do. Hollis era a sua última esperança.
Hollis disse:
- Mark, serei implacável com você, daqui por diante. Não vai gostar do que tenho a
dizer. Se se aborrecer, desabafe: far-lhe-á bem.
- Não me aborreço - disse Jenner sem inflexão. - Das coisas que me dirá, nenhu-
ma só deixará de ser verdadeira.
- Vai se aborrecer... vai ficar tão aborrecido que terá vontade de me dar um soco
na cara. - E Hollis arreganhou um sorriso tímido. - Espero que possa se controlar.
Pesa cinquenta ou sessenta libras a mais do que eu...
Hollis andava de lá para cá, Jenner olhava-o. Durante vinte anos Jenner sentira
uma espécie de pena de Hollis, do tímido e retraído eletricista, cujo único prazer con-
sista em ajudar os outros. Claro que Hollis ganhava muito, era o melhor em sua pro-
fissão. Apesar disso, não passava de um lacaio dos bastidores. Agora era muito mais
do que isso: era a derradeira esperança de Jenner.
Hollis disse:
- Você terá de se afastar completamente de suas atividades regulares por mais ou
menos seis meses. Venha morar comigo, Mark. Fique aqui até o fim do tratamento.
Depois veremos o que fazer para reinstalá-lo na Broadway. Não vai ser fácil. Mas se
as coisas correrem como espero, subirá direto para a estratosfera logo que eu o libe-
rar.
- Eu ficaria satisfeito nem que fosse para ter apenas algum trabalho regular. Diga-
me o que vai fazer comigo.
Hollis deu uma reviravolta e cortou o ar com o indicador.
- Primeiro, falemos do seu passado. Você já foi um grande sucesso, Mark; depois
começou a cair. Agora não está em lugar nenhum. Bem, que foi que aconteceu?
- Diga-me: o que foi?
- Aconteceu - disse Hollis - que você falhou na adaptação aos tempos em mudan-
ça. Nunca desenvolveu a espécie de carga emocional de que um ator precisa nos
dias que correm para atingir a audiência. Ficou parado, cultuando o antigo status
quo. Representou segundo a moda de 1973 durante quinze anos, mas em 1987 isso
já não servia para o público nem para os críticos
- Especialmente os críticos - rosnou Jenner. - Crucificaram-me!
- Os críticos são pagos para arrasar com tudo quanto o público não considera bom
divertimento - disse Hollis com um fiozinho de voz. - Não se pode censurá-los; cen-
sure-se a si próprio. Teve sucesso no começo; atolou-se nesse sucesso até ficar para
trás.
Jenner sacudiu gravemente a cabeça.
- Certo - disse. - Digamos que desperdicei meu talento. Prefiro pensar assim a
pensar que nunca o possuí. Como poderá me ajudar?
- Várias vezes lhe expliquei minha técnica, e você apenas sacudiu a cabeça; perce-
bi que não estava prestando atenção. Agora terá de ouvir-me. Do contrário, não po-
derei ajudá-lo.
- Sou todo ouvidos.
- Espero que sim. Em suma, vou analisá-lo. Será uma espécie de análise leiga...
- Mas já fui analisado!
- Fique calado e escute para variar - disse Hollis com um vigor que nunca antes
Jenner vira nele. - Será analisado, mediante uma profunda narco-hipnose. O que de-
sejo, na realidade, é uma autobiografia gravada, que chegue tão fundo em sua vida
quanto eu possa alcançar.
- Está qualificado para fazer essa espécie de coisa? - perguntou Jenner.
- Estou qualificado a montar a máquina e a fazer perguntas. Pesquisei quanto
pude o ângulo psiquiátrico. O resto sairá de você, até que obtenhamos toda a grava-
ção.
- Certo - disse Jenner. - E o que fará com a minha autobiografa?
- Ponho-a de lado - disse Hollis. - Depois tomo outra fita, você será novamente
hipnotizado, e eu transmitirei a você a nova gravação. Esta provirá de outra pessoa.
Será cuidadosamente expurgada para impedir que você conheça a identidade dessa
outra pessoa, mas você tomará um grande hausto da personalidade dela. Então to-
marei a gravação que você fez e a transmitirei ao homem que fez a outra.
Jenner franziu a testa, sem compreender.
- Não compreendo. Quem é essa outra pessoa? Você?
- Claro que não. Será um homem que você nunca viu. Nunca verá, nem saberá
quem é. Mas vai ficar sabendo das comidas que ele gosta e o que ele pensa quando
está na cama com a mulher; o que sente num quente e suarento dia de verão; o que
sentiu na primeira vez em que beijou uma garota. Lembrar-se-á da surra que levou
quando roubou os cigarros do pai, lembrar-se-á do seu dia de formatura no colégio.
Terá todas as suas lembranças, esperanças, sonhos, medos. E ele terá os seus.
Jenner esguelhou o olhar e tentou imaginar o que pretendia aquele homenzinho.
- Que bem me fará tudo isso... essa mútua bisbilhotice mental?
Hollis sorriu.
- Quando você constrói uma personagem no palco, é em você mesmo que a está
construindo. Construindo-a com as suas percepções, reações e experiências. Apanha
as linhas nuas do dramaturgo e as reveste de carne, interpretando palavras como
ação, palavras como expressão, palavras como portadoras de emoção. Se é bom
ator, isto é, se possui suficiente reserva interior para consegui-lo, convence a plateia
de que é o homem que o programa diz que é. Se não possui, vai vender pipocas na
porta do teatro...
- E então...
Hollis continuou:
- Tem dois conjuntos de emoção sobre os quais construir. Pode sintetizá-los num
retrato que nenhum outro ator pode exibir.
Hollis enlaçou as mãos num joelho e curvou-se para a frente, seu rosto calmo ago-
ra brilhando de entusiasmo.
- Além disso, você tem a vantagem de estar dentro do cérebro de outro homem e
de saber o que o faz palpitar; isso lhe dá uma perspectiva que possivelmente não
pode ter agora. Combinando as recordações dele com as suas, ser-lhe-á também
muito mais fácil penetrar no cérebro coletivo da plateia, Mark. Está vendo o quadro?
Está me acompanhando?
- Acho que sim - disse Jenner ponderadamente. Com canhestros movimentos deli-
berados tirou um cigarro do maço de Hollis que estava sobre a mesa e acendeu-o.
Jenner não fumava; dava um grande valor à garganta. Mas agora precisava fazer
algo com as mãos, e o ritual de acender o cigarro o ajudava bastante.
- Mas... diga-me uma coisa... qual o proveito desse sujeito ao lhe ser transmitida a
minha gravação?
- Ele é um político - disse Hollis. - O que significa que é um homem de vida públi-
ca. Deseja candidatar-se a um alto cargo. É homem capaz; e, com o talento que
você tem para se projetar, combinado com o próprio impulso interior dele, é certo
vencer.
- Quer dizer que o outro homem já está escolhido?
- Já está escolhido e espera há mais de um ano. Disse-lhe que arranjaria um gran-
de ator para servir de contrapeso nessa gangorra. Ele está esperando. Eu tinha pen-
sado em você mas foi preciso o fracasso desta noite para você ceder. Como é: con-
corda?
Jenner fechou os olhos um momento e puxou uma forte baforada para dentro dos
pulmões. sentia-se como que amordaçado. Toda a força se lhe esgotara; se Hollis
apagasse a luz, Jenner adormeceria no lugar, com roupa e tudo.
Mas depois de um instante disse a Hollis:
- Quer dizer que vai pôr um homem junto comigo na minha cabeça... E é de supor
que isto me faça voltar a ser astro... Já experimentou fazer isso com alguém?
- Você e ele serão os primeiros - confessou Hollis.
- E tem confiança em que tudo dará certo?
- Não tenho confiança nenhuma - disse Hollis calmamente. - A coisa deve funcio-
nar; mas também pode fazer com que vocês se tornem apenas dois lunáticos..
- E assim mesmo está disposto a fazer isso comigo? - perguntou Jenner.
- Não quero fazê-lo sem antes adverti-lo. Mas as alternativas favorecem um resul-
tado bem-sucedido; não fosse assim eu não lhe pediria que me acompanhasse na
experiência.
Jenner amassou o cigarro que fumara pela metade. Olhou os livros nas prateleiras.
Olhou o único quadro na parede e a mobília austera.
- Quanto tempo levará?
- Cerca de seis meses. Tenho de gravar duas fitas, não se esqueça. E não se pode
fazer tudo da noite para o dia.
- Quanto me custará?
Hollis riu.
- Eu até pagaria se você quisesse dinheiro. Mas meu desejo é ajudá-lo... e verificar
se minhas teorias estão certas.
- Espero que estejam - e Jenner levantou-se reassumindo sua plena estatura, endi-
reitando os ombros, tentando representar o papel de um ator bem-sucedido mesmo
agora, quando nada mais era do que um mero canastrão... - Então está bem - disse
num tom ressonante. - Entrego-me em suas mãos, Holly; perdi tudo quanto um ho-
mem pode perder. Acho que não importa muito se também perder o juízo.

Jenner despertou no meio da tarde seguinte. Dormira treze horas, e bem que pre-
cisava. Hollis saíra, deixando um bilhete para explicar que tivera de ir a um ensaio
em Manhatan e que voltaria lá pelas cinco. Jenner vestiu-se vagarosamente, lem-
brando-se da conversa da véspera, e compreendendo que efetivamente havia empe-
nhado a alma ao nada mefistofélico Hollis...
Virou o bilhete de Hollis e escreveu no verso: “Vou à cidade arranjar minhas coi-
sas. Volto à tarde”.
Tomou o metrô de volta a Manhatan, foi de táxi da estação para o hotel, onde se
despediu, pagando a conta com dinheiro à vista. Dois anos residira num quarto de
vinte dólares num hotel perto do centro, sem mais qualquer outro acessório além do
necessário. A maior parte de suas posses estava armazenada desde o rompimento
com Helene, em 87; o que tinha no quarto do hotel não daria para encher uma ma-
leta.
Arrumou suas coisas e desceu. Arrastando a maleta com três mudas de roupa, seu
estojo de maquilagem, o roteiro de Ilha de brumas e o volume de recortes de 1986 a
89, Jenner voltou para a estação do metrô. Eram cinco e meia. Observara os horá-
rios, de modo que podia chegar à casa de Hollis um pouco depois das seis. Isto lhe
dava tempo para se fortalecer um pouco...
Parou na Lexington Avenue, tomou dois martínis No terceiro copo mudou para uís-
que. No quarto, arranjara uma garota desmazelada, de lábios pintados de cor de la-
ranja; pagou-lhe o clássico uísque de centeio com soda, ele próprio bebeu outro, de-
pois foi para a toalete e sentiu náuseas. Quando voltou, a garota havia desaparecido.
Encolhendo os ombros, Jenner entrou em outro bar e tomou dois martínis, desta vez
conseguindo mantê-los no estômago. Cem jardas adiante bebeu mais um uísque.
Chegou à casa de Hollis às dez e meia, bastante sóbrio para andar sozinho, mas
bastante bêbado para não se lembrar do que fizera com a maleta. Insista para que
Hollis chamasse a polícia e a fizesse procurar o ladrão, mas o outro simplesmente
sorria sem fazer caso. Afinal Hollis levou-o para o quarto e meteu-o na cama. Um
instante antes de adormecer, Jenner refletiu que pouco se lhe dava ter perdido a ma-
leta. Perdera com ela os melancólicos recortes dos últimos quatro anos, bem como o
seu estojo de maquilagem e seu último roteiro. Agora podia alegremente dizer adeus
ao passado; não tinha mais albatrozes no seu encalço...

Acordou às nove na manhã seguinte, sentindo-se alegre, e de juízo inexplicavel-


mente claro. O cheiro de bacon frito chegou-lhe às narinas.
Hollis gritou-lhe da cozinha:
- Vá tomar um chuveiro rápido. O café estará pronto quando sair.
Comeram calados. Faltando vinte para as dez, acabaram de tomar o café. Hollis
disse calmamente:
- Muito bem, Mark. Está pronto para começar?
Walt Hollis armara um laboratório experimental no quarto próximo, e instalou Jen-
ner no meio dele. O quarto não tinha mais que doze por quinze pés, e a Jenner lhe
pareceu haver ali uma enorme quantidade de aparelhos. Ele próprio sentou-se numa
confortável cadeira no centro do quarto, de frente para uma porção de equipamen-
tos, diabolicamente complexos, de pequenos círculos de luz fluorescente e meia dú-
zia de gelatinas de refletor que proporcionariam um padrão mutável de cores ilumi-
nadas. Havia na sala um grande gravador de fita, com um rolo de quinze polegadas,
preparado e carregado. Havia instrumentos que Jenner simplesmente não podia
identificar; não tinha conhecimentos técnicos, e simplesmente classificou-os como
“eletrônicos”; isso lhe bastava.
A janela da sala fora cuidadosamente tapada por uma cortina; a moldura da porta,
calafetada com feltro. Quando Hollis quisesse, podia fazer a sala mergulhar na mais
completa escuridão. Jenner sentia um arrepio de medo irracional. Obscuramente, a
máquina que tinha à sua frente o fazia lembrar a broca de um dentista, instrumento
que ele sempre temera e detestara. Mas esta broca era pior: furar-lhe-ia o cérebro...
- Não vou ficar na sala com você - disse Hollis. - Vou dirigir lá de fora. Quando pre-
cisar de mim, é só levantar a mão direita. Certo?
- Certo - murmurou Jenner.
- Primeiro, aqui está uma pílula para você engolir, Mark. Proclorperazina É um ata-
ráxico.
- Um tranquilizante?
- Mais ou menos; é só para lhe acalmar os nervos. Está muito tenso. Está com
medo do que vou fazer?
- É claro que estou com medo! Mas não está me vendo levantar-me e correr!
- Claro que não - disse Hollis. - Vamos. Tome-a.
Enquanto Jenner engolia a pílula, Hollis depressa arregaçou-lhe uma das mangas e
esfregou-lhe o braço com álcool. Jenner olhava, já descontraído, enquanto Hollis pre-
parava um injeção hipodérmica.
- Isto é para favorecer a hipnose, Mark.
- Sódio pentotal? Amital?
- É dessa família de depressores do ego, sim. Destramente Hollis introduziu o con-
teúdo da seringa numa das veias de Jenner.
- Procurei ajutório médico na preparação do projeto - disse. - Sente-se. Espiche os
pés para fora. Descontraia-se, Mark.
Jenner descontraiu-se. Teve uma vaga consciência da última pancadinha tranquili-
zadora que Hollis lhe deu no ombro, do homenzinho que saiu da sala e da escuridão
em que a sala mergulhara. Ouviu um débil zumbido que tanto podia provir do grava-
dor como do estranho aparelho ali presente.
Luzes de cor começaram a aparecer. Rodas de plástico brilhante giravam diante de
seus olhos. Jenner olhava, fascinado, sentindo a tensão dissipar-se. Só lhe restava
relaxar. Descansar. Tudo daria certo. Relaxar.
- Pode ouvir-me, Mark?
- Sim.
- Está bem. Sente-se incomodado?
- Absolutamente.
- Ótimo. Escute aqui, Mark.
- Estou escutando.
- Mas escute de verdade, Mark. Escute com o cérebro, não apenas com os ouvi-
dos. Está me escutando?
- Estou, sim.
- Excelente. É isso mesmo o que quero que faça, Mark. Quero que volte ao passa-
do e pense sobre sua vida. Depois diga-me tudo a seu respeito. Tudo. Desde o co-
meço.

Primavera, 1953. Mark Jenner tem quatro anos. Tom, o irmão de Mark Jenner,
atingiu o nono dos doze anos que ia viver. Tom Jenner brigara, contrariando as or-
dens expressas de sua mãe, caíra no chão e se machucara.
Mark olhava para o irmão mais velho. O rosto de Tom estava todo arranhado e
sangrava, e um dos lados de sua boca começava a inchar.
- Mamãe vai acabar com você - gaguejou Mark. - Disse que não era para você bri-
gar.
- Não briguei - disse Tom.
- Mas eu vi! Agarrou Mickey Swenson, ele derrubou-o e machucou sua cara.
- Mas não vai dizer a mamãe, não é? - disse Tom em voz baixa. - Isto é, se ela
perguntar o que aconteceu...
Mark piscou os olhos.
- Se ela perguntar, tenho de dizer.
- Não - disse Tom. Com as mãos ainda inchadas agarrou brutalmente os ombros
de Mark. - Quando entrarmos, direi a mamãe que tropecei numa pedra e levei um
tombo.
- Mas se estava brigando! E com Mickey Swenson!
- Não é preciso contar isso a mamãe. Podemos contar outra coisa... inventar uma
história...
- Mas...
- Você diz apenas que caí, que eu não estava brigando com ninguém. Dou-lhe um
níquel; está bem?
Mark fez um ar intrigado. Como podia dizer a mamãe algo que não era verdadeiro?
Parecia fácil. O que tinha a fazer era mover os lábios e os sons sairiam. Parecia im-
portante para Tom. Mark já começava a acreditar que Tom realmente caíra e se ma-
chucara, que em verdade não houvera briga nenhuma...
Entraram em casa, o menino pequeno muito sujo, e o menino grande ainda mais
sujo. Mr. Jenner apareceu avultando sobre as duas crianças, as mãos levantadas à
vista do rosto maltratado do filho mais velho.
- Tom! O que foi?
E antes que Tom pudesse responder:
- Tom tropeçou numa pedra. Caiu e machucou-se.
- Oh, pobrezinho! Dói muito?
Enquanto Mr. Jenner levava Tom ao banheiro para cuidar dele, Mark Jenner, de
quatro anos de idade, experimentava uma curiosa sensação de orgulho. Dissera sua
primeira mentira consciente. Dissera algo que não era verdade, fizera-o deliberada-
mente na esperança de uma recompensa. Não sabia, mas ali começou auspiciosa-
mente sua carreira de ator...

Primavera, 1966. Mark Jenner tinha dezessete anos, era aluno do primeiro ano na
Escola Superior Noah Webster, em Massilon, Estado de Ohio. Tinha seis pés e uma
polegada de altura e pesava cento e cinquenta e duas libras. Estava carregando os li-
vros de texto de Joanne Lauritzon, de dezesseis anos. O Mark Jenner de 1989 agora
a via pelo que ela valia: uma adolescente tornando-se mulher, o peito estofado e a
voz estrídula. Mas o Mark Jenner de 1966 via nela uma Afrodite...
Precisava de toda a sua perícia para mudar a conversa para o assunto da promo-
ção vindoura. Precisava de toda a sua coragem para convidar a moça que caminhava
a seu lado...
E precisou de todas as suas forças para suportá-la quando ela disse:
- Mas já tenho acompanhante para o baile, Mark. Irei na companhia de Nat Hos-
pers.
- Oh, sim, naturalmente. Sinto muito. Já devia ter previsto.
Entregou-lhe os livros de volta e saiu correndo aos tropeções, maldizendo-se pela
sua falta de tato, amaldiçoando Hospers e seu carro, seus músculos de jogador de
futebol e seu à-vontade com as garotas. Mark levara meses economizando para a
festa de promoção; jurara morrer de dor se Joanne o recusasse. De qualquer modo,
não morrera...

Outono, 1976. Hollywood. Mark Jenner tinha vinte e sete anos; de cor bronzeada,
robusto, ganhava três mil dólares semanais durante a filmagem de Linda de se Ver.
Sentava-se à melhor mesa do clube noturno mais exclusivo de Hollywood, e, oposta
a ele, em seu resplendente manto de arminho, sentava-se a rainha da cinelândia,
Helene Bryant - linda, lábios úmidos, seios altos, naquele mês aparecera quase des-
pida nas capas de quase uma centena de revistas. Tinha vinte anos. Aos dez anos
era como um potrinho, apenas interessada em bonecas e frivolidades, como da pri-
meira vez em que Jenner se julgou apaixonado. Agora amava-a, essa deusa de se-
xualidade que ganhava duzentos e cinquenta mil dólares por ano. Um anterior Mark
Jenner ter-se-ia retraído timidamente diante de uma beleza tão radiante, mas o Mark
Jenner de 1976 não tinha medo de ninguém nem de nada. Sorriu para a garota loura
de manto de arminho...
- Helene, quer casar-se comigo?
- Naturalmente, meu bem; naturalmente!

Primavera, 1987. Mark Jenner tinha trinta e oito anos. Três dias em Marrakesh tive-
ra apenas nove representações na Broadway. Na noite em que as notícias de encer-
ramento se espalharam, Mark Jenner vagueou pelos bares até as três da madrugada.
Ao dirigir-se cambaleante para casa, tinha na boca o gosto azedo de cerveja barata,
sentia dor nos pés e tristeza na alma. Nem ao menos se incomodara em retirar a ma-
quilagem grisalha dos cabelos. Graças a ela, parecia ter sessenta anos, e justamente
naquele instante sentia que os tinha, e não apenas trinta e oito. Helene estaria dor-
mindo?
Não, não estava: estava de pé, fazendo as malas. Vesta um simples vestido de al-
godão e estava sem nenhuma maquilagem, e ao menos uma vez se lhe dariam os
trinta e um anos que realmente tinha, em vez dos dezoito ou vinte que, geralmente,
aparentava. A maleta estava quase cheia. Jenner esperara muito tempo por aquilo, e
agora que a coisa acontecia mal se deixava surpreender. Estava por demais embota-
do para reagir emotivamente. Deixou-se cair pesadamente no leito e olhava-a fazer a
mala.
- O espetáculo de hoje foi o último - disse.
- Já sei. Holly me telefonou contando, à meia-noite.- Sinto muito ter chegado tar-
de. Demorei-me para cumprimentar alguns amigos.
O rápido movimento de fazer a mala continuou no mesmo ritmo
- Não importa.
- Helene...
- Levo esta única mala. Quando chegar a Los Angeles telegrafarei dando meu en-
dereço; e você poderá enviar o resto de minhas coisas.
- É um divórcio?
- Separação. Não posso mais vê-lo assim, Mark.
Ele sorriu.
- Não. Não é engraçado ver um homem desconjuntar-se. Adeus, Helene.
Estava por demais esgotado de energia para fazer uma cena. Ela acabou de arru-
mar a mala e foi ao estúdio falar ao telefone. Em seguida saiu sem dizer adeus. Jen-
ner ficou estupidamente sentado algum tempo depois que a porta bateu, acostuman-
do-se vagarosamente com a ideia de que afinal tudo terminara. Levantou-se, foi até
o armário, serviu-se de um copo de gim... Engoliu-o de um gole. Chorou.

Fim de inverno, 1989. Mark Jenner tinha quarenta anos. Estava sentado numa ca-
deira especial do apartamento de Walt Hollis enquanto luzes brancas brincavam-lhe
no rosto...
Foram precisos três meses e muitas milhas de fita antes de Hollis se dar por satis-
feito. Jenner fazia uma sessão de duas horas todas as manhãs, tudo recordando com
a mais absoluta franqueza. Não se tratava de análise. A análise não tivera bom êxito
porque ele mentira ao analista - mentia frequentemente e muito bem -, desencavan-
do trechos de velhos papéis teatrais e apresentando-os como experiências pessoais,
tudo devido a motivações perversas, e, sem dúvida, psicóticas também.
Mas isto era diferente. Estava narcotizado; vomitava o seu genuíno passado, e,
quando terminava a sessão, não se lembrava de nada do que dissera. Hollis nunca
lhe disse. Às vezes Jenner perguntava, no instante em que afogava a sua bebedeira
numa xícara de café, depois da sessão. Hollis porém nunca respondia.
Das dez às doze, todos os dias, Jenner gravava. De uma às três, Hollis se enclau-
surava na salinha e examinava as fitas. Das três às seis, todos os dias, Jenner era
banido para fora de casa, enquanto sua contra-parte no projeto ocupava a salinha.
Jenner jamais viu o outro, nem de relance.
Quando os três meses se passaram, Jenner havia relatado tudo quanto podia de
sua vida pregressa, e Hollis transformou a informe associação de ideias num padrão
continuo, consecutivo e inteligível; aí então chegou a hora da segunda fase do pro-
cesso. Surgiram novas drogas, novos tipos de luz, novas reações. Jenner já não fala-
va: ouvia. Tinha aberto o subconsciente, e recebia, absorvendo, tudo quanto o toca-
va, armazenando-o em permanente possessão.
Lentamente a personalidade de um homem ia se formando na mente de Jenner,
incrustando-se profundamente em camadas de uma consciência anteriormente se-
creta, fundindo-se inextricavelmente com a teia de lembranças que era Mark Jenner.
Esse homem era sob muitos aspectos parecido com Jenner. Tinha um porte impo-
nente; sua voz possuía o timbre da autoridade, e as pessoas prestavam atenção
quando ele falava. Mas enquanto Jenner sentia a vida do homem se formando dia a
dia, comprimida e editada na fita, percebia a diferença. O outro também queria ser
dominador. Ele, Jenner, sacrificara a sua personalidade a fim de se revestir de muitas
máscaras. Um político ou um estadista deve projetar seu ego para fora; um ator
deve esconder o seu.
O outro homem, dizia a mente de Jenner, tinha quarenta e dois anos de idade. Um
grave ataque de colite fora, há cinco anos, a única doença séria que ele tivera. Tinha
uma altura de seis pés e uma polegada, pesava cento e noventa libras; era ligeira-
mente hipertireóidico metabolicamente falando, e não dormia mais de cinco horas
por noite.
Era doutor em leis por uma grande universidade - Hollis omitira o nome da escola.
Casara-se duas vezes, tendo-se divorciado da mulher com base no adultério dela; ti-
nha dois filhos com a segunda mulher, que o olhava com o temor que usualmente se
reserva para um parente paternal. Fora assistente de um promotor distrital e planeja-
ra a desgraça de seu superior; eventualmente sucedera-o no cargo, e fora conscien-
ciosamente envolvido no assassinato judicial de um homem inocente.
A despeito disso, julgava-se, de modo geral, liberal e esclarecido. Servira em duas
legislaturas do Congresso dos Estados Unidos, representando um importante Estado
do leste. Esperava ser eleito para o Senado nas eleições de 1990. Consultando um
almanaque, Jenner descobriu que muitos Estados do leste realizariam eleições para o
Senado em 1990: Delaware, Geórgia, Kentucky, Maine, Massachusets, Mississípi,
New Hampshire, Nova Jersey, Rhode Island, Carolina do Sul, Tennessee, Virgínia Oci-
dental. Quase tudo quanto ficou sabendo a respeito do homem era que não se trata-
va oficialmente de um habitante de Nova Iorque, Pensilvânia ou Connecticut.
Antes que terminassem os três meses, Jenner conhecia a alma do outro tão bem
quanto a sua, ou talvez melhor. Conhecia o padrão das repressões da infância e dos
paternais aguilhões que o haviam levado à vida pública. Sabia como o outro tinha lu-
tado para vencer a timidez. Sabia o que ocorrera quando o outro tivera uma primeira
mulher; e ficou sabendo, pela primeira vez na vida, o que era ser pai.
O outro homem da cabeça de Jenner era um “bom” homem, dedicado e inteligen-
te; todavia, revelava-se mentiroso, falso, hipócrita, e, indiretamente, assassino. Jen-
ner compreendeu, com uma súbita clareza glacial, que a mente de qualquer homem
podia conter a mesma mistura de desejos ocultos e oprimidos, de atrocidades meio
percebidas...
As lembranças do homem não tinham rosto: Jenner lho supriu. No teatro de sua
imaginação, fez uma cortina para a infância do outro, supriu uma imagem para seus
pais, sua infância, uma primeira e segunda mulher, filhos, amigos... Dia a dia o pa-
drão aumentava; e noventa dias depois Jenner possuía um segundo eu. Possuía um
duplo poço de lembranças. Seu fundo de experiências se multiplicou; agora podia jul-
gar as agonias de uma adolescência comparada com outra, aquilatar o passado de
lutas de um homem comparado com outro, comparar dois casamentos desfeitos...
Podia também, por esse processo, conhecer as alegrias de um homem bem sucedi-
do. Conhecia a mente do outro de uma forma que ninguém ainda conhecera uma
mente alheia. Nem mesmo Hollis, que fazia as gravações, podia tornar-se no outro
homem, como fazia Jenner drogado e receptivo.
Quando a última fita se coou no seu crânio, e o quadro se completou, Jenner ficou
sabendo que a experiência fora um sucesso. Agora ele possuía o impulso interior de
que antes carecia; agora podia alcançar a plateia e fazer apertar-se o coração de um
homem. Sempre fora dotado do equipamento técnico de um grande ator. Agora tinha
a alma de um.
Frequentemente pensava no outro homem e resolveu acompanhar a campanha se-
natorial do leste. Queria desesperadamente conhecer o homem que levava em seu
cérebro todos os triunfos de Mark Jenner, todos os desapontamentos, todas as covar-
dias, vaidades e ambições que o tornavam humano.
Precisava conhecer, mas adiou a procura; naquele momento, o mais importante
era voltar ao palco.

A peça se chamava Não dê Rosas a Larrabee. Tratava de um ator de televisão que


envelhecia. Este se chamava Jack Larrabee, que, depois de cair do pedestal, lutava
para subir. Aparecera no outono anterior num show de noventa minutos na televisão;
os direitos cinematográficos já tinham sido vendidos, mas a peça devia primeiramen-
te ser levada na Broadway. O autor era um rapaz gordo chamado Harrell, que já ha-
via anteriormente escrito dramas de três atos. Harrell tinha meio milhão de dólares
no banco, mais cinquenta mil num colchão de sua vila em Connecticut, e pagava psi-
canalistas em ambas as costas.
Os textos foram distribuídos visando à estreia em 20 de outubro. A peça já havia
sido programada no Odeon para estrear em fevereiro, o que significava uma tournée
pré-Broadway. A venda adiantada de ingressos se acumulava. Supunha-se que o pa-
pel principal seria desempenhado pelo ator que o criara na televisão, o ex-sapatea-
dor Lloyd Lane.
A 10 de outubro Mark Jenner telefonou a seu agente. Era a primeira vez que o fa-
zia em seis meses. A conversa foi breve. Jenner disse:
- Estive fora, fazendo um tratamento especial. Já me sinto muito melhor. Quero
que me arranje uma leitura da versão teatral de Larrabee. Sim, tem razão. Quero o
papel principal.
Pouco importavam a Jenner os cordéis que o agente teria de puxar para obter-lhe
uma leitura. Não estava interessado em manobras de bastidores. Seis dias depois,
recebeu um telefonema do produtor da peça, J. Carlton Vincennes. Vincennes estava
cético, mas disposto a experimentar. Jenner foi convidado a comparecer para uma
leitura no dia 20.
Nesse dia, Jenner fez a leitura do papel de Jack Larrabee. Havia na sala apenas
cinco pessoas: Vincennes; o autor, Harrell; Donovan, o diretor; Lloyd Lane e um ator
chamado Goldstone, que ali estava para ler o papel secundário. Jenner apanhou gla-
cialmente o papel, perlustrou-o alguns minutos, e começou a ler como se estivesse
fazendo seu discurso de estreia no Senado. Atirava as palavras como se tivesse uma
tubulação ligada aos subconscientes dos cinco ouvintes. Fez coisas com inflexões vo-
cais e expressões faciais que nunca antes fizera, e isto foi apenas uma improvisação.
Já não era apenas Mark Jenner, o fracassado; era Mark Jenner e algo mais, e o resul-
tado da combinação foi esmagador.
Após vinte minutos cansou-se e interrompeu a leitura. Olhou os cinco rostos. Qua-
tro registravam vários graus de espanto prazeroso ou cético; o quinto era o de Lloyd
Lane. Lane estava pálido e gotejando suor, sentindo que acabava de perder o papel
principal, e, com este, o gordo contrato de Hollywood, que certamente se seguiria ao
da Broadway.
Dois dias depois Jenner assinava com Vincennes um contrato para a temporada.
No dia seguinte aparecia uma nota nas colunas teatrais:
“Mark Jenner vai reaparecer na Broadway na produção de J. C. Vincennes, Não dê
Rosas a Larrabee. O famoso ídolo de matinée da década de 70 esteve ausente do
palco quase um ano. Seu último aparecimento aconteceu quando do azarado Ilha de
Brumas, que foi levado dez vezes à cena em março último. Segundo corre o boato,
Mark Jenner passou a temporada anterior recuperando-se de um esgotamento ner-
voso”.

Os ensaios eram estranhos. Jenner sempre fora bom estudioso, e sabia sua parte
de cor logo após a quarta ou quinta leitura. Os demais atores ainda tropeçavam me-
canicamente nos papéis respectivos, engrolando o texto, e Jenner já representava,
pondo em cena seu caráter. Após algum tempo, a disparidade entre ele e os outros
se tornou menos notória. O elenco adquiriu vida, respondendo ao vigor do protago-
nista apresentado por Jenner. Quando começaram a trabalhar no teatro vazio, sem-
pre havia nos ensaios algumas dúzias de espectadores: financiadores, outros direto-
res e gente de teatro, todos atraídos pelos rumores da incandescente representação
de Jenner.
E incandescente ela era! Não apenas porque o papel se parecia tanto com a sua
própria história: um ator a desempenhar um papel autobiográfico pode facilmente
escorregar para o sentimentalismo lacrimejante. Mas, para Jenner, o papel era a um
tempo autobiográfico e exterior. Interpretava-o com dupla mente: com a mente de
um ator cansado e com a mente de um potencial senador em ascensão. Duas perso-
nagens se entrecruzavam; a atuação de Jenner tocava o coração. Vendas adiantadas
se acumulavam, até que um número recorde pôs-se a dançar nas páginas de escritu-
ração.
Estrearam em New Haven em fevereiro, diante de uma casa cheia e de críticas elo-
giosas. Dez dias depois deu-se a estreia na Broadway, conforme fora previsto: nem
neve nem chuva de granizo afastaram a multidão de smoking e manto de arminho
das festividades de abertura. Ouvia-se no teatro um zunzum de expectativa. Jenner
sentia-se perfeitamente calmo. “Assim é”, dizia-se. “A sorte está lançada. Os votantes
vão indo para as urnas...”
O pano se levantou, e Jenner, no papel de Larrabee, entrou no palco e murmurou
as primeiras palavras; ouviu a resposta e falou mais claro na segunda vez, embora
ainda fosse um vulto curvado, de faces encovadas e olhos tristes, e o papel começou
a se apossar dele. Jack Larrabee tomava corpo diante do olhar da plateia Lá pelas
nove horas, era tão real como qualquer pessoa de carne e osso. Jenner projetava-o
no palco; as palavras do dramaturgo viravam ouro...
O fim do primeiro ato era um pianíssimo; Jenner disse sua parte e caiu de joelhos;
depois ficou atento à tempestade de aplausos que se erguia dos assentos de dez dó-
lares. O argumento decisivo do segundo ato era o grito de um homem fracassado e
condenado, e Jenner foi o fracassado e o condenado ao arrancar de si a última fala...
A plateia era um só rugido enquanto o pano descia. Jenner disse finalmente a última
frase da peça - uma afirmação triunfal e vibrante de alegria e redenção, que encheu
a casa como um toque de clarim. O pano descia e tornava a subir, descia e tornava a
subir, enquanto um trovão de aplausos golpeava-lhe as têmporas; e então ele soube
que chegara até os espectadores, que os atingira tão profundamente, que eles salta-
vam para fora do seu tédio para aclamá-lo.
Houve uma festa do elenco naquela mesma noite, muito mais tarde, no restauran-
te da Broadway onde tais festas tradicionalmente se realizavam. Vincennes estava lá,
agitando beligerantemente as críticas das primeiras edições. O fato propalara-se:
Jenner estava de volta e fora magnífico; Lloyd Lane aproximou-se - era agora seu
substituto eventual. Parecia bombardeado. Disse:
- Santo Deus, Mark... assisti a tudo das coxias. Nunca vi coisa igual. No palco você
era verdadeiramente Larrabee; não era?
Olhando esse homem que ele pusera de lado, Jenner sentiu uma sensação de cul-
pa e corou. Mas a outra mente interveio, a mente implacável do político sem nome, e
Jenner percebeu que Lane merecera ter sido posto de lado. Um melhor ator simples-
mente o teria suplantado. Mas havia lágrimas nos cantos dos olhos de Lane.
Alguém precipitou-se para Jenner com uma grande garrafa de champanha, ouviu-
se o estalo, e o champanha jorrou. Jenner, que havia meses não bebia coisa nenhu-
ma, aceitou gratamente a taça efervescente. Interiormente, mantinha sobre si pró-
prio um controle glacial. Aquela era a sua noite de triunfo. Beberia, mas não se dei-
xaria embriagar.
Bebeu. Insípidas coristas metam as mãos através do círculo de admiradores para
dar-lhe congratulações banais. Flashes estouravam diante de seus olhos. Homens
que em cinco anos nunca lhe dirigiram sequer uma palavra amável apertavam-lhe a
mão. Em seu interior, Jenner sentia um nó de melancolia. Helene não estava ali; Walt
Hollis - a quem tudo devia - também não estava. Tampouco sua contra-parte - o ho-
mem cuja mente ele utilizava como sua.
O champanha deslizava-lhe suavemente garganta abaixo. Seus sorrisos se amplia-
ram. Um homem calvo, de nome Feldstein, bateu a taça na dele e disse:
- Está realmente gozando esta noite. Ela tinha de vir, não há dúvida. Mas como se
sente ao voltar a ser sucesso?
Jenner arreganhou um sorriso cordial. O champanha soltara-lhe a língua, e as pa-
lavras passavam facilmente entre seus lábios.
- É maravilhoso. Quero agradecer a todos quantos me apoiaram nesta campanha.
Quero garantir-lhes que a sua confiança em mim será amplamente recompensada
quando eu chegar a Washington.
- Ah, ah! Grande senso de humor! Que sujeito, esse Mark! - E o homem calvo vi-
rou as costas e afastou-se, entre risadas. E foi bom que o fizesse naquele
momento... pois se tivesse continuado a olhar para Mark Jenner teria de testemu-
nhar a expressão de espanto e terror que se espalhava no rosto subitamente trans-
formado de Jenner...
Claro, a peça foi um sucesso. Era uma daquelas peças que todo mundo simples-
mente tinha de ver, e todo mundo a viu. Prometia ficar em cartaz pelo menos duas
temporadas, o que era extraordinário em se tratando de espetáculo não-musicado.
Mas noite após noite, no apartamento de hotel que Mark Jenner ocupava, ele se
via a braços com o mesmo problema: “Quem sou eu?”
As palavras que primeiro pronunciara na noite da festa promovida pelo elenco da
peça agora retornavam sob formas diferentes, todos os dias. Lembranças fantasmais
o obsedavam; em seus sonhos, mulheres que jamais conhecera surgiam para lhe re-
cordar as aventuras de uma tarde de verão.
Sentia falta dos filhos que nunca tivera - o menino de sete anos e a menina de
quatro. Pilhava-se frequentemente a ler as primeiras páginas dos jornais, esquadri-
nhando as notícias de Washington, embora seu costume fosse ler as notícias teatrais
em primeiro lugar. Captava indícios de pomposidade em algumas de suas sentenças.
Sabia o que vinha acontecendo. Walt Hollis cumprira demasiado bem sua tarefa. A
mente do outro se encravara na dele, entretecendo-se, emaranhando-se, misturan-
do-se. Havia momentos indistintos na escuridão da noite, quando Jenner esquecia-se
do próprio nome, e, temporariamente anônimo, sonhava os sonhos que o outro devia
ter sonhado.
Sem dúvida, o mesmo devia acontecer ao outro, fosse ele quem fosse. Jenner per-
cebia vagamente que uma estranha compulsão o prendia. Estava num dilema: preci-
sava descobrir sua contra-parte, o homem que compartilhava a sua mente. Precisava
saber quem era ele...
Perguntou a Hollis.

Hollis visitara-o no luxuoso apartamento do hotel, seis dias após a estreia de Larra-
bee. O homenzinho aproximou-se timidamente de Jenner, quase transtornado pela
magnitude do sucesso de sua própria experiência.
- Acho que a coisa funcionou - disse Hollis.
Jenner arreganhou um sorriso expansivo.
- Se funcionou! Quando estou no palco, sinto uma força que jamais pensaria sentir.
Você viu a peça?
- Sim, na terceira noite. Fiquei... impressionado.
- Não me diga! - disse Jenner. - Só pode mesmo ter ficado, assistindo ao monstro
Frankenstein em ação; assistindo ao autômato que criara representar...
Não havia a menor dose de amargura no tom de Jenner: ele estava apenas sendo
prazenteiramente irônico... Mas Hollis empalideceu.
- Não fale assim - disse.
- Mas é verdade; não é?
- Não; nunca se refira a si próprio desse jeito, Mark. Não está certo.
Jenner encolheu os ombros. Depois, casualmente, introduziu um novo assunto:
- Meu alter ego... o sujeito que você ligou a mim... como vai passando?
- Vai bem - respondeu Hollis tranquilamente.
- Vai bem mesmo?
- Na sua profissão, é preciso tempo para se conhecerem os resultados. Mas ele
está se revigorando, esboçando uma organização. Vi-o ontem, e ele disse estar mui-
to esperançoso no futuro.
- Para a corrida ao Senado, não é?
Hollis olhou para além do ombro esquerdo de Jenner.
- Talvez.. .
Jenner sorriu, ironicamente.
- Holly, conte-me o nome dele.
- Não posso.
- Preciso saber, Holly! Por favor!
- Mark: uma das condições do nosso acordo...
- Ao diabo com o nosso acordo! Vai contar ou não vai?
O homenzinho fez-se ainda menor. Parecia tremer. Levantou-se, recuou até a porta
do apartamento de Jenner... Sua mão tateava à procura da maçaneta...
- Aonde vai? - perguntou Jenner.
- Vou-me embora. Não me atrevo a ouvir suas perguntas sobre ele. Você é por de-
mais convincente. E não deve fazer-me falar. Não deve descobrir quem ele é. Jamais.
- Holly! Venha cá! Holly!
A porta bateu. Jenner permaneceu no meio do aposento olhando-a, sacudindo len-
tamente a cabeça. Hollis precipitara-se para fora como uma lebre assustada.
“Hollis tem medo de mim. Medo de que o obrigue a falar”, disse Jenner compreen-
dendo afinal.
- Pois muito bem - disse em voz alta, brandamente. - Se você não me conta, terei
de descobrir tudo por mim mesmo.

Levou dez dias procurando. Dez dias durante os quais deu onze extraordinárias re-
presentações de Larrabee, dez dias durante os quais sentiu a crescente interferência
do estranho em sua mente, dez dias nos quais Mark Jenner e o estranho se mistura-
ram ainda mais intimamente. No sétimo desses dez dias, recebeu um chamado tele-
fônico de Helene, um chamado interurbano. De olhos escancarados fitou-a na peque-
nina tela e lembrou-se da sua aparência de rosa recém-desabrochada na manhã
após seu casamento, em Acapulco, e ouviu-lhe a voz estranhamente embargada.
-...Vou a Nova Iorque por algumas semanas. Você se importa se eu o visitar? No
final das contas, ainda estamos legalmente casados...
Ele sorriu e deu uma resposta banal:
- Folgarei em vê-la, Helene. Em nome do passado...
- É... claro! Eu gostaria de assistir ao espetáculo. É fácil arranjar uma cadeira?
- Se tentar com afinco, poderá arranjar um assento no balcão por um preço razoá-
vel - disse ele. - Mas me reservam alguns lugares em cada espetáculo. Quando pre-
tende vir? Reservarei duas poltronas para você.
- Basta apenas uma - disse ela, calmamente.
Ele arreganhou um sorriso para ela, depois conversaram sobre coisas banais. Em
seguida desligaram. Obviamente, Helene não estava atirando o anzol com vistas a
uma reconciliação. Ele também não estava muito certo de que a queria de volta. Se-
gundo o que ouvira dizer, ela dormira frequentemente com uns e outros nos últimos
três anos, e já tinha trinta e quatro anos... Um homem bem sucedido como Mark
Jenner podia razoavelmente tomar uma segunda mulher, uma moça de vinte anos,
alguém mais decorativo do que Helene na atualidade. Afinal de contas, o outro tor-
nara a se casar, e o fizera só porque sua primeira mulher não se adaptava aos carto-
las do partido - não precipuamente porque ela o enganava.
Três dias depois Jenner ficou sabendo o nome do sujeito anônimo que trazia em
mente.
Na verdade, não foi difícil descobrir. Jenner contratou um consultor de pesquisas
para o trabalho. O que desejava, explicou, era uma lista dos membros da Câmara de
Deputados que preenchessem as seguintes qualificações: que tivessem pouco mais
de quarenta anos, tivessem mais de seis pés de altura, residissem num Estado do
leste, fossem casados, divorciados e novamente se tivessem casado, e tivessem dois
filhos da segunda mulher. Que participassem da segunda legislatura da Câmara, e
fossem considerados candidatos aptos a um posto político mais alto em futuro próxi-
mo. Foram esses os fatos que Hollis lhe permitiu guardar, e que Jenner esperava fos-
sem suficientes.
Algumas horas depois, obtinha a resposta pela qual ansiava. Um único homem,
dentre os quatrocentos e setenta e cinco representantes do congresso, o número
100, preenchia todos aqueles requisitos. Tratava-se do Deputado Cliford T. Norton,
republicano, representante do 5.° Distrito de Massachusets.
Pesquisas ulteriores preencheram certas lacunas da biografia do Deputado Norton.
Sua primeira mulher se chamava Bety, a segunda Phyllis. Os nomes de seus filhos
eram Cliford Júnior e Karen. Fora aluno de Yale, depois se diplomara em leis pela
Universidade de Harvard, desse modo conquistando amigos e partidários em ambas
as escolas. Foi eleito para a Câmara em 86, após uma distinta carreira como promo-
tor distrital, e vencera por grande maioria as eleições de 88. Seu prazo no cargo ex-
piraria em janeiro de 1991. Esperava mudar-se logo depois para a outra ala do Capi-
tólio, na qualidade de senador por Massachusets. Nos últimos meses, segundo o ar-
quivo consultado pelo pesquisador de Jenner, Norton demonstrara um súbito fulgor e
dom de persuasão no recinto da Câmara. Norton era agora um político que tinha en-
xertado na sua a mente de um ator. Tal combinação não podia falhar, pensava Jen-
ner.
Jenner sentia uma singular fascinação narcisística por esse homem, seu irmão ce-
rebral... Desejava ardentemente conhecê-lo pessoalmente. Imaginava de que jeito
Norton conseguira descobrir a identidade do ator, cuja gravação Hollis cruzara com a
dele; e se Norton de fato a descobrira, porventura sentiria orgulho em compartilhar a
memória do ídolo renascido da Broadway?

Era a última semana de março de 1990. O Congresso fechara para o recesso da


Páscoa. O Deputado Norton usava largamente os seus novos poderes de oratória en-
tre seus concidadãos, pois dava início à sua candidatura a um assento no Senado.
Numa tarde chuvosa de quarta-feira, Jenner pediu uma ligação interurbana com o
Deputado Norton em sua casa de Massachusets. Teve de declarar seu nome à secre-
tária, antes que Norton o atendesse.
A voz de Norton era profunda e forte, semelhante à de Jenner. Não tinha circuito
visual no telefone.
- Alô! Jenner. Estava à espera do seu telefonema.
- Já me conhecia?
- Claro que sim! Logo que sua peça estreou e li as críticas, sabia que você era o
tal!
Combinaram um encontro na tarde seguinte, na casa de Walt Hollis, em Riverdale.
Havia tempos, Hollis dera a Jenner uma chave, que ele guardara para uma eventuali-
dade. Jenner sabia que Hollis não estaria em casa antes das cinco naquela tarde, o
que lhes proporcionava três horas para conversarem.
Naquela noite Jenner telefonou para o teatro, dizendo ao gerente que estava indis-
posto. O gerente rogou, mas Jenner fincou pé nos seus direitos contratuais. Naquela
noite Lloyd Lane faria o papel de Jack Larrabee, para grande desgosto e desaponta-
mento da plateia Jenner passou a tarde andando pelos cinco aposentos do aparta-
mento, engalfinhando as mãos, saciando-se masoquisticamente do tumulto e do ódio
que ferviam dentro de si. Contou as horas durante uma noite de insônia. De manhã
tomou o café tarde, leu os jornais, andou pela sala até uma hora e meia, depois to-
mou o metrô para a casa de Hollis.
Usou a chave para entrar. Nem sinal de Norton. Jenner sentou-se na sala de estar
e esperou, pensando que estava inteiramente além de sua tolerância o fato de outro
homem andar pelo mundo tendo os mesmos pensamentos mais íntimos de Mark
Jenner...
Às duas e quinze a campainha tocou. Jenner espiou pelo olho mágico. O rosto que
surgiu no campo visual da tela era moreno, de fortes maxilares, quadrado, poderoso.
Jenner abriu a porta e ficou face a face com o único homem do universo que sabia
que o Mark Jenner de nove anos apostara comer uma minhoca viva... e a comera, só
por gabolice. Cliford Norton, por sua vez, olhava nos olhos o único homem do univer-
so que sabia o que ele fizera a Marian Simms, de doze anos, na garagem de seu pai,
fazia isso vinte e nove anos...
Os dois grandalhões fitaram-se mutuamente durante longos momentos no vestíbu-
lo do apartamento de Hollis. Sorriam convencionalmente. Ambos respiravam fundo.
Na mente de Jenner, pensamentos giravam alucinadamente, e ele conhecia Norton o
bastante para saber que também este planejava alguma estratégia. Aí rompeu-se a
estase.
O rugido animal de ódio irrompeu primeiro nos lábios de Jenner, mas um instante
depois igualmente irrompia no peito de Norton, e ambos se atracaram, caindo pesa-
damente no meio do soalho. Uma das pernas de Norton se enganchou entre as de
Jenner, fazendo-o tombar. Norton caiu-lhe em cima, mas Jenner se esquivou e golpe-
ou com o cotovelo a boca do estômago de Norton.
Norton ofegava. Estendeu as mãos tateantes e agarrou a garganta de Jenner.
Apertou as mãos, enquanto Jenner as puxava, e afinal afastou os dedos de Norton
de sua garganta. Resfolegava. Ergueu um dos joelhos, acertando a virilha de Norton.
Os dois homens contorciam-se no soalho como leões em fúria, cada um tentando pa-
ralisar e mutilar o outro, cada um esperando poder golpear com uma pancada esma-
gadora, cada um tentando, em última instância, matar o outro...
A cena durou apenas alguns minutos. Separaram-se sem dizer palavra, e separa-
dos se levantaram. Tornaram a fitar-se, agora rubros e feridos, seus belos ternos
bem passados agora amarfanhados, a camisa para fora das calças.
- Comportamo-nos como idiotas - disse Norton. - Ou como garotos.
- Não pudemos evitá-lo - disse Jenner. - Era natural lutarmos. Saltamos um sobre o
outro como homens procurando apanhar suas próprias sombras.
Sentaram-se, Jenner na cadeira de Hollis, Norton no canapé do outro lado da sala.
Por mais de um minuto, o único som que se ouvia era o de uma pesada respiração.
O coração de Jenner batia furiosamente. Fazia vinte e cinco anos que não se metia
em uma luta corporal.
- Não pensei que o resultado seria esse - disse Norton. - Há dias em que, acordan-
do, penso ser você: anseio por uma oportunidade, brigo com sua mulher, entrego-me
à bebida...
- E eu? Há ocasiões em que me lembro de haver processado um homem inocente
acusando-o de homicídio e ganhando a causa - disse Jenner.
O rosto de Norton obscureceu-se.
- E me lembro de ter comido uma minhoca viva...
- Eu me lembro de uma menininha assustada, de doze anos, acuada numa gara-
gem...
Tornaram a calar-se, ambos abatidos, cada um curvado sob o fardo das lembran-
ças do outro... Norton disse:
- Nunca deveríamos ter feito isso. Vamos: apresentemo-nos.
- Eu precisava conhecê-lo.
- E eu também; precisava conhecer você.
- Nunca mais poderemos nos encontrar - disse Jenner. - Pois entre nós é morte ou
trégua. Naqueles poucos minutos em que lutamos, quis matá-lo, Norton. Quis ver
seu rosto arroxear-se; quis que morresse...
Norton abanou a cabeça.
- Meus sentimentos por você eram os mesmos. Nenhum de nós pode suportar a
ideia de que outra pessoa o conheça por dentro e por fora, embora isso faça muito
bem a nós dois. Irei para o Senado, não há dúvida. E talvez para a Casa Branca, nes-
tes seis anos...
- E eu voltarei ao palco. Minha mulher voltará para mim, se eu assim determinar.
Tudo quanto perdi me será restituído - disse Jenner. - Valeu a pena compartilhar a
sua mente. Mas nunca mais voltaremos a nos ver. Cada um de nós é uma parte do
outro, e o ódio é muito forte. Penso, realmente, que se trata de um ódio ao próprio
ego... Mas podemos... podemos perder o controle, da forma modo que acabamos de
fazê-lo...
A porta da frente abriu-se de repente. Walt Hollis estava no vestíbulo, um homen-
zinho de rosto contraído, ombros estreitos e míope. Naquele momento trazia no ros-
to uma expressão de susto.
- Vocês dois... como foi que se encontraram aqui... Por que...
- Eu tinha em meu poder a chave que você me deu - disse Jenner. - Chamei Nor-
ton e convidei-o a vir me encontrar aqui. Não esperávamos que você voltasse tão
cedo.
A boca de Hollis tremeu convulsivamente uns dez segundos antes que viesse a fa-
lar.
- Nunca deviam ter-se conhecido pessoalmente. Os efeitos traumáticos... os possí-
veis perigos...
- Já tivemos uma boa briga - disse Norton. - Mas não brigamos mais. Declaramos
uma trégua.
Atravessou a sala e forçou um sorriso na direção de Jenner. Jenner invocou toda a
sua arte e deu ao rosto uma expressão de alegre convívio, embora estivesse ferven-
do de ódio por dentro. Apertaram-se as mãos.
- Não mais voltaremos a nos ver - explicou Jenner.
- Norton vai para a presidência, e eu vou ganhar fama imortal nos palcos. E cada
um de nós deverá ao outro uma parcela de suas conquistas.
- E a você também, Hollis - acrescentou Norton.
- Talvez eu e Norton nos correspondamos por carta - disse Jenner. - Enviaremos
um ao outro bilhetes, sugestões... O político pode ajudar o ator. Chamemos a isso
simbiose a longo prazo. Graças a você, Holly, nós dois temos atividades a desempe-
nhar.
Jenner olhou para Norton, e desta vez o sorriso trocado entre ambos foi sincero.
Não havia necessidade de palavras. Passaram pelo pobre Hollis, entraram no peque-
no laboratório, e, metodicamente, esmigalharam todo o equipamento. Se Hollis tives-
se de usar o mesmo tratamento com alguém, pensou Jenner, a competição seria um
problema. Ele e Norton já não queriam competir nos terrenos que haviam escolhido.
Voltaram à sala de estar e solenemente disseram adeus a Hollis. Jenner estava fi-
nalmente calmo por dentro. Ele e Norton saíram, cada um numa direção. Jenner sa-
bia que nunca voltaria a ver Norton. Tanto fazia; pois daí em diante, quisesse ou não
quisesse, teria de viver com as memórias dele pelo resto da vida.

Hollis inspecionou os destroços do laboratório com um coração insensível. Sentia-


se frio e apreensivo. Era aquela a recompensa de seus trabalhos; era aquilo o que
ganhava por querer ajudar. Mas devia tê-lo percebido. No final das contas, gravara fi-
tas de ambos. Sabia o que ambos eram. Carregava o fardo de ambas as almas em
seu pequeno coração. Sabia o que ambos haviam feito e o que eram capazes de fa-
zer, agora que os erros de um sancionavam os do outro.
Cansado, fechou a porta do laboratório, para afastar a visão dos destroços. Pensou
em Jenner e Norton, cismando com a ocasião em que ambos tomassem conhecimen-
to do que ele viera a saber a respeito de ambos.
Pensava, igualmente, por quanto tempo Jenner e Norton deixariam que ele, Hollis,
continuasse a viver...
Moscas

Aqui está Cassiday:


preso a uma mesa.

Não sobrara muita coisa. Uma caixa craniana; um pequeno feixe de nervos; um
membro. A súbita explosão encarregara-se do resto. Mas esse resto era suficiente.
Os “importantes” não precisavam de muito mais. Descobriram-no no desastre da
nave sem governo que atravessava a sua zona, atrás de Japeto. Estava vivo. Podia
ser consertado. Os demais tripulantes estavam além de toda esperança.
Consertá-lo? Naturalmente. Era preciso ser humano para ser humanitário? Conser-
tá-lo, sim; de todo jeito. E transformá-lo. Os importantes eram muito criativos
O que sobrara de Cassiday jazia em lugar seguro, na mesa de algum lugar, em
uma importante atmosfera de força. Ali não havia mudança de estações: via-se ape-
nas o brilho das paredes, sentia-se o calor invariável. Nem dia nem noite, nem ontem
nem amanhã. Sombras iam e vinham a seu redor. Estavam regenerando-o, etapa por
etapa, enquanto ele jazia na mais completa tranquilidade, sem ideias O cérebro esta-
va intacto, porém não funcionava. O resto do homem começava a crescer: tendões e
ligamentos, ossos e sangue, coração e cotovelos. Montinhos alongados de tecido re-
bentavam em pequenos botões que se ampliavam em coágulos de carne. Grudar
uma célula na outra, reconstruir um homem após um desastre - isso não era difícil
para os importantes. Eles eram peritos. Ao mesmo tempo ainda tinham muito o que
aprender, e nisso Cassiday podia ajudá-los.
Dia a dia Cassiday crescia, rumo à integridade. Não o despertavam. Estava deitado
em um berço de tepidez, sem se mexer, sem pensar, deixando-se ir com a maré. Sua
nova carne era rosada e suave como a de um bebê. O espessamento epitelial come-
çou mais tarde. O próprio Cassiday servia de modelo. Os importantes o repetiam a
partir de um frangalho de seu corpo; construíam-no a partir de suas próprias cadeias
polinucléicas, decodificavam suas proteínas e as juntavam segundo o padrão. Para
eles, a tarefa era fácil. Por que não? Qualquer glóbulo de protoplasma poderia fazer
isso - sozinho. Os importantes, que não eram protoplasma, podiam fazer isso com os
outros.
Introduziram algumas mudanças no padrão. Naturalmente. Eram artesãos. E havia
muita coisa para aprender.

Olhem Cassiday:
seu “dossiê”.

Nascido a 1.° de agosto de 2316.


Lugar - Nova Iorque, Nyack.
Pais - vários.
Nível econômico - baixo.
Nível educacional - mediano.
Ocupação - técnico em combustível.
Estado civil - três ligações legais, duração respectiva: oito meses, dezesseis meses
e dois meses.
Altura - dois metros.
Peso - noventa e seis quilos.
Cor de cabelos - amarela.
Olhos - azuis.
Tipo sanguíneo - A +.
Nível de inteligência - alto.
Pendores sexuais - normais.

Agora vejam os importantes transformá-lo.


O homem completo jazia diante deles, cunhado de novo, pronto para renascer.
Chegara o momento dos últimos ajustes. Procuraram o cérebro cinza dentro do seu
invólucro rosado, penetraram-no, sondaram-lhe baías e estreitos, às vezes parando
numa tranquila enseada, às vezes lançando a âncora na base de uma abrupta pene-
dia. Estavam a operá-lo, e faziam-no magistralmente. Não havia ali submucosas,
nem lâminas lampejantes cortando osso e cartilagem, nem lasers chiando no traba-
lho, nem canhestros golpes de martelo nas tenras meninges. O frio aço não retalha-
va sinapses. Os importantes eram mais sutis; afinavam o circuito que era Cassiday,
elevavam a tensão, sufocavam o barulho, e faziam tudo com a maior suavidade.
Quando deram por terminada a operação, ele se mostrou muito mais sensível. Ti-
nha muitas e novas vontades. Haviam-lhe concedido cer-tas capacidades.
Despertaram-no.
- Você está vivo, Cassiday - disse-lhe uma voz macia. - Sua nave foi destruída.
Seus companheiros morreram. Só você sobreviveu.
- Que hospital é este?
- Não é da Terra. Você logo voltará. Levante-se, Cassiday. Movimente a mão direi-
ta. Agora, a esquerda. Flexione os joelhos. Encha os pulmões. Abra e feche os olhos
várias vezes. Como se chama, Cassiday?
- Richard Henry Cassiday.
- Quantos anos tem?
- Quarenta e um.
- Olhe esta imagem: de quem é?
- Minha.
- Tem alguma pergunta a fazer?
- O que fizeram comigo?
- Consertamo-lo, Cassiday. Estava quase completamente destruído.
- Mudaram alguma coisa em mim?
- Fizemo-lo mais sensível aos sofrimentos do próximo.
- Oh! - disse Cassiday.

Cassiday prossegue sua viagem:


de volta à Terra.

Chegou num dia em que se prognosticava neve. Neve fraca, quase a derreter-se,
regalo estético de preferência à verdadeira manifestação de tempo. Era bom calcar o
pé no planeta onde nascera. Os importantes haviam destramente arranjado seu re-
gresso, pondo-o a bordo de sua nave avariada e dando a esta um empurrão suficien-
te para colocá-la ao alcance de uma patrulha de salvamento. Os monitores detecta-
ram-no e o apanharam. “Como foi que sobreviveu incólume ao desastre, astronauta
Cassiday?” “Muito simples, senhor. Eu estava no exterior da nave quando a coisa
aconteceu. Ela explodiu, todo mundo morreu. Só eu escapei para contar a história.”
Levaram-no a Marte, fizeram-lhe um exame completo, submeteram-no a uma cura
de descontaminação em Luna, e, finalmente, mandaram-no de volta à Terra. Ele saiu
na neve - homem grandalhão que era, de andar gingado e calos adequados em to-
dos os lugares devidos. Não tinha amigos nem parentes, mas tinha dinheiro suficien-
te para se manter por algum tempo, e algumas ex-esposas que podia visitar. Pelo re-
gulamento, tinha direito a um ano de férias remuneradas: era o seu quinhão no de-
sastre. Pretendia gozar a licença.
Ainda não começara a pôr em uso a sua nova sensibilidade. Os importantes ha-
viam-na planeado de modo que suas capacidades permanecessem inoperantes até
que ele chegasse ao planeta onde nascera. Agora que chegara, era hora de começar
a usá-las, e as infinitas criaturas curiosas que viviam em Japeto esperavam paciente-
mente que Cassiday saísse à procura daqueles que outrora o amavam.
Cassiday começou a procura pelo distrito urbano de Chicago, pois ali se encontrava
o porto espacial, vizinho a Rockford. A calçada rolante levou-o rapidamente para a
torre de travertino, engrinaldada com radiantes incrustações de ébano e de metal cor
de violeta, e aí, na Central Televectora, Cassiday procurou o endereço de suas ex-es-
posas. Foi paciente na procura; rosto manso e olhos suaves na torre de carne que
ele era, apertou os botões devidos e esperou pacientemente que se fechassem os
contatos em algum lugar das profundezas da Terra. Cassiday nunca fora homem vio-
lento. Era calmo. Sabia esperar.
A máquina comunicou-lhe que Beryl Fraser Cassiday Mellon residia no distrito ur-
bano de Boston. Que Lureen Holstein Cassiday residia no distrito urbano de Nova
Iorque, e que Mirabel Gunryk Cassiday Milman Reed residia no distrito urbano de San
Francisco.
Os nomes acordavam lembranças: quentura de carne, cheiro de cabelos, toque de
mãos, rumor de vozes. Murmúrios de paixão. Rosnadelas de desprezo. Ofegos de
amor.
Restaurado à vida, Cassiday saiu a visitar suas ex-esposas.

Acha uma delas:


sã e salva.

Os olhos de Beryl tinham pupilas leitosas, eram esverdeados no lugar onde deviam
ter sido brancos. Perdera peso nos últimos dez anos, e seu rosto era agora um per-
gaminho esticado sobre o osso, numa feição acabada, onde os maxilares premiam a
pele repuxada, como se fossem furá-la a qualquer momento. Cassiday estivera casa-
do com ela oito meses aos vinte e quatro anos. Separaram-se quando ela teimou em
fazer o voto de esterilidade. Não que ele, particularmente, quisesse filhos, mas se
ofendeu com a manobra de que ela lançou mão. Agora lá estava ela num berço de
espuma, tentando sorrir-lhe sem gretar os lábios.
- Disseram-me que você havia morrido - falou.
- Escapei. E você, Beryl: como vai?
- Como pode ver, estou me tratando.
- Tratando?
- Eu era viciada em tóxicos. Não vê meus olhos, meu rosto? Derreteram-se. Era
como desintegrar a alma. Mais um ano, e teriam me matado. Agora reconstroem
meu organismo com a cirurgia plástica Estou cheia de remendos. Mas viverei.
- Tornou a casar? - perguntou Cassiday.
- Faz muito tempo que me separei. Há cinco anos estou só. Apenas eu e os tóxi-
cos. Agora larguei.
Beryl piscou com dificuldade
- Você, sim. Parece tão descontraído, Dick. O que sempre foi, aliás. Tão calmo, tão
seguro de si. Nunca se viciaria em tóxicos! Segure minha mão, sim?
Ele tocou a mão emurchecida. Sentiu um calor provir do corpo dela - necessidade
de amor. Grandes ondas pulsantes invadiam-no, latejamentos de desejo penetravam
nele e se precipitavam até os vigias, lá longe...
- Você me amava outrora - disse Beryl. - Naquele tempo, ambos éramos uns tolei-
rões. Torne a amar-me. Ajude-me a ficar de pé. Preciso de sua força.
- Claro que a ajudarei - disse Cassiday.
Saiu do apartamento e comprou três cubos de tóxico. Ao voltar, ativou um deles e
colocou-o na mão de Beryl. Os leitosos olhos esverdeados de Beryl rolavam, aterrori-
zados.
- Não - disse choramingando.
A dor subindo de sua alma esmagada era singular em sua intensidade. Cassiday
recebeu-a em cheio. Depois ela crispou o pulso, e a droga penetrou no seu metabo-
lismo. A calma voltou-lhe.

Observe o que se segue:


com uma amiga.

O mordomo disse:
- Mr. Cassiday está aqui.
- Faça-o entrar - respondeu Mirabel Gunryk Cassiday Milman Reed.
O esfincter da porta irisou-se e abriu-se, e Cassiday mergulhou num esplendor de
ônix e mármore. Raias de palissandra castanho-avermelhada formavam a moldura de
madeira polida na qual Mirabel jazia, e percebia-se claramente que ela usufruía a
sensação que lhe dava a madeira dura de encontro à sua carne rósea e macia. Uma
cascata de cabelos cor de cristal lhe tombava até os ombros. Pertencera a Cassiday
durante seis meses em 2346, e tinha sido uma garota esguia e tímida naquela época,
mas agora ele mal podia captar os contornos antigos naquele montão estragado à
força de mimos.
- Casou-se bem - observou ele.
- Tive sorte pela terceira vez - disse Mirabel. - Quer sentar-se? Aceita um trago?
Devo ajustar o ambiente?
- Está ótimo. - E continuou de pé. - Você sempre desejou uma mansão, Mirabel.
Foi a mais intelectual de minhas mulheres, mas amava o conforto. Agora o possui.
- E bastante.
- Feliz?
- Confortável - disse Mirabel. - Já não leio muito, porém tenho conforto.
Cassiday lançou um olhar no que lhe pareceu uma coberta amarfanhada no colo
dela - uma coberta cor de púrpura com fios dourados, macia, ociosa, bem aderida a
Mirabel. A coisa tinha muitos olhos. Mirabel tapava-a com as mãos abertas:
- De Ganimedes? - perguntou ele. - Bichinho de estimação?
- Sim. Meu marido comprou para mim no ano passado. É-me muito precioso.
- Precioso para todo mundo. Ouvi dizer que são dispendiosos.
- Mas amorosos - disse Mirabel. - Quase humanos. Inteiramente dedicados. Acho
que me julga uma tola, mas agora é a coisa mais importante na minha vida. Até mais
importante que meu marido. Amo-o, como vê. Estou habituada a deixar que outros
me amem; não existem muitas coisas que sou capaz de amar...
- Posso vê-lo?
- Mas tome cuidado.
- Certamente.
Ele tomou o animalzinho nos braços. Sua textura era extraordinária, a mais macia
de quantas conhecia. Algo palpitava apreensivamente no corpo chato da criatura.
Cassiday captou uma apreensão paralela em Mirabel, quando lhe entregou o animal.
Acariciou o bichinho, que arquejou prazerosamente. Faixas irisadas lampejavam
quando o animalzinho se contraía em suas mãos...
Mirabel disse:
- Que faz agora, Dick? continua a trabalhar na linha espacial?
Ele ignorou a pergunta.
- Repita-me o verso de Shakespeare, Mirabel, aquele que fala de moscas. De mos-
cas e rapazes travessos...
Rugas surgiram em sua testa pálida.
- Está em Lear - disse ela. - Espere. Sim. “Como moscas para os meninos traves-
sos somos nós para os deuses. Eles nos matam para se divertirem”
- Isso mesmo - observou Cassiday. Suas mãos grandalhonas enlaçaram-se no fel-
pudo cobertor que era o cãozinho de Ganimedes. Este ficou de um cinza pardacento,
e fibras como juncos saltaram de sua superfície despedaçada. Cassiday deixou-o cair
no chão. A onda de horror, apreensão e desconsolo que inundou Mirabel quase o
aturdiu, mas ele a recebeu e a retransmitiu
- Moscas - explicou. - Rapazes travessos. Meu divertimento, Mirabel. Agora sou um
deus; você sabia?
Sua voz era tranquila e alegre.
- Adeus. Obrigado.

Mais alguém espera a sua visita:


transbordante de nova vida.

Lureen Holstein Cassiday, de trinta e um anos, cabelos escuros, olhos grandes e


grávida de sete meses, era a única de suas mulheres que não tornara a casar. Seu
quarto de Nova Iorque era pequeno e austero. Fora uma garota gordinha nos dois
meses em que convivera com Cassiday (fazia isso cinco anos), e agora era ainda
mais gordinha; mas quanto dessa gordura se devia à gravidez, eis o que Cassiday
não podia dizer.
- E agora? Quer casar-se comigo? - perguntou ele.
Sorrindo, ela abanou negativamente a cabeça.
- Tenho dinheiro, e faço valer minha independência. Não mais me deixarei envolver
em outra situação como a nossa de outrora. Com ninguém.
- E o bebê? Quer mesmo que ele nasça?
Ela afirmou veementemente que sim.
- Tive que me esforçar muito para ficar grávida! Pensa que foi fácil? Dois anos de
inseminações! Uma fortuna em consultas! Máquinas! Máquinas me espetando... tudo
para estimular a fertilidade Você vê o quadro de cabeça para baixo. Meu filho não é
um indesejado: é uma criança que suei para engendrar.
- Interessante - disse Cassiday. - Visitei Mirabel e Beryl também, e cada uma tinha
um bebê. De certa espécie, aliás. Mirabel tinha um animalzinho de Ganimedes. Beryl,
um vício de tóxicos que se orgulhava em mostrar. E você tem um filho que colocaram
dentro do seu corpo sem qualquer ajuda masculina. As três procurando alguma coi-
sa. Interessante.
- Você está bem, Dick?
- Ótimo.
- Tem uma voz tão inexpressiva. Como se apenas pronunciasse as palavras. Assus-
ta-me um pouco.
- Hum, sim. Sabe o que fiz de bom para Beryl? Comprei-lhe três cubinhos de tóxi-
co. E agarrei o bichinho de estimação de Mirabel e torci-lhe o pescoço. Fiz tudo com
a maior calma. Nunca fui homem apaixonado.
- Ficou maluco, Dick!
- Percebo que está com medo. Pensa que vou fazer mal a seu bebê? O medo não
interessa, Lureen. Mas a tristeza... essa, sim... vale a pena analisar. Desolação. Que-
ro estudá-la. Quero ajudá-los a estudá-la. Acho que é isso o que eles desejam saber.
Não fuja de mim, Lureen. Não quero fazer-lhe mal. Não desse modo...
Ela era pequena de corpo e não muito forte, pesadona na sua gravidez. Cassiday
segurou-a suavemente pelos punhos e puxou-a para si. Já podia sentir as novas
emoções que dela provinham, a autopiedade por detrás do terror, e ele ainda não lhe
fizera mal algum...
Como abortar um feto dois meses antes do fim da gestação?
Um leve pontapé no ventre podia ajudar. Muito cru, muito cru. E Cassiday não vie-
ra armado de abortivas - uma fácil pílula de ergotina, um provocador de espasmos
de ação rápida... Por isso ergueu abruptamente o joelho, deplorando a crueza do
gesto. Lureen afundou. Deu-lhe uma nova pancada; e, enquanto o fazia, permanecia
completamente tranquilo, pois era um erro extrair alegria da violência. Parecia dese-
jável um terceiro golpe. Aí, ele a deixou.
Lureen ainda estava consciente, mas contorcia-se. Cassiday começou a prever os
resultados. A criança, pensou, ainda não estaria morta dentro dela. Talvez até mes-
mo não morresse. Mas de algum modo ficaria aleijada. O que dera a Lureen era a
consciência de que podia dar à luz uma criança defeituosa. O feto teria de ser des-
truído. E ela teria de recomeçar tudo de novo. Que tristeza!
- Por quê? - murmurava Lureen. - Por quê?

Entre os observadores:
o equivalente da consternação.

De alguma forma, a coisa não aconteceu como os importantes haviam previsto.


Até mesmo eles podiam errar nos cálculos, e, segundo parecia, achavam no erro
uma visão introspectiva compensadora. Mas algo devia ser feito no tocante a Cassi-
day.
Haviam-lhe dado poderes. Ele podia captar e transmitir-lhes a crua emoção dos
outros. Isto lhes era útil, pois pelos dados podiam talvez construir e compreender os
seres humanos. Mas, emprestando-lhe um centro registrador das emoções alheias,
haviam, inevitavelmente, sido forçados a embotar as dele. E isso equivalia a distorcer
os dados.
Agora, à sua maneira sem alegria, ele era por demais destrutivo. Era mister corri-
gir-lhe esse defeito. Pois agora ele partilhava demasiadamente da natureza profunda
dos importantes. Eles podiam agora usá-lo como divertimento, pois Cassiday lhes de-
via a vida. Mas ele é que não podia usar os outros com essa finalidade.
Ligaram para Cassiday e deram-lhe instruções.
- Não, vocês fizeram comigo o que queriam. Não vou voltar.
- Mas são necessários ulteriores reajustes, Cassiday.
- Não concordo.
- Não discordará por muito tempo.
Ainda discordando, Cassiday tomou a nave para Marte, incapaz de fugir às ordens
deles. Em Marte topou com uma nave que fazia a linha regular de Saturno, e conven-
ceu o comandante a passar pelo caminho de Japeto. Os importantes apossaram-se
dele assim que o tiveram a seu alcance.
- Que pretendem fazer comigo? - perguntou Cassiday.
- Inverter o fluxo Você não mais será sensível aos sofrimentos alheios. Vai relatar-
nos suas próprias emoções. Vamos restaurar-lhe a consciência, Cassiday.
Ele protestou. Foi inútil
Na esfera luminosa da luz dourada fizeram em Cassiday os necessários reajustes.
Entraram nele, alteraram-no e voltaram suas percepções para o interior, de modo
que ele pudesse se alimentar de sua própria desgraça, como um abutre rasgando as
próprias entranhas. Isso bastava como informação. Cassiday objetou até perder a
força de objetar, e quando a consciência lhe voltou já era demasiado tarde para se
opor.
- Não - murmurava ele.
Na claridade amarelada via os rostos de Beryl, Mirabel e Lureen.
- Não deviam ter feito isso comigo. Estão me torturando... como torturariam uma
mosca.
Não houve resposta. Mandaram-no embora, de volta à Terra. Aí fizeram-no regres-
sar às torres de travertino e às calçadas rumorosas, à casa de prazer da 385th Stre-
et, às ilhas de luz que fulguravam no céu, aos onze bilhões de pessoas... Deixaram-
no livre entre elas: que ele fosse, e sofresse, e relatasse seus sofrimentos. E sua
hora de liberdade chegaria, mas por enquanto não.

Aqui está Cassiday:


pregado em sua cruz.
Os Dentes das Árvores

Da casa da fazenda, no topo da pontiaguda espiral cor de cinza do monte Dolan,


Zen Holbrook podia avistar tudo quanto importava: os pomares de frutas suculentas
no amplo vale, o riozinho precípite onde sua sobrinha Naomi gostava de se banhar, o
vasto e pachorrento lago mais além. Podia divisar, igualmente, a zona supostamente
infectada do Setor C, na ponta norte do vale, onde - ou seria apenas imaginação? -
as brilhantes folhas das árvores frutíferas já se diriam pintalgadas das manchas ala-
ranjadas da doença da ferrugem.
Se o seu mundo começasse a ruir, seria por ali mesmo que iria começar.
Ele estava junto da clara janela curvilínea do “info-centro”, no topo da casa. Era de
manhã cedo. Duas luas pálidas ainda se dependuravam num céu raiado de madruga-
da, mas o sol já nascia na região montanhosa. Naomi já se levantara e saíra; agora
cabriolava no rio. Antes de sair de casa pela manhã, Holbrook examinava a planta-
ção. Sensores e esquadrinhadores lhe apresentavam distantes amostras de cada
ponto-chave. Curvando-se para a frente, Holbrook corria os grossos dedos pelos nó-
dulos do comando e fazia acenderem-se as telas que flanqueavam a janela. Possuía
quarenta mil alqueires de árvores frutíferas - uma fortuna em suco, embora seu valor
líquido fosse pequeno e os investimentos que fizera, imensos. Seu reino. Seu impé-
rio. Esquadrinhou o Setor C, o favorito. A tela revelou longas filas de árvores, de cin-
quenta pés de altura, agitando incansavelmente os ramos. Era a zona em perigo, o
setor ameaçado. Holbrook olhou atentamente as folhas das árvores. A ferrugem pro-
gredia? Os relatórios do laboratório chegariam um pouco mais tarde. Examinou as
árvores, viu o brilho de seus olhos, o lampejo de seus dentes... Algumas eram boas,
naquele setor. Alertas, vivas, boas produtoras...
Eram as árvores de sua preferência. Holbrook gostava de brincar, fazendo de conta
que as árvores tinham personalidade, nome, presença... Não lhe custava fazer de
conta...
Holbrook ligou o rádio.
- Bom dia, César - disse. - Alcibíades. Heitor. Bom dia, Platão.
As árvores conheciam seus nomes. Em resposta à saudação, seus galhos se agita-
vam como que movidos por uma ventania soprada do pomar. Holbrook viu as frutas,
quase maduras, longas, intumescidas, pesadas de suco alucinogênico. Os olhos das
árvores - cintilantes placas escamosas incrustadas nos troncos em filas irregulares -
lampejavam e giravam procurando por ele.
- Não estou no pomar, Platão - disse Holbrook. - Ainda estou na casa da fazenda.
Logo desço. Manhã radiosa, não?
Da confusa escuridão, ao nível do chão, surgiu o comprido focinho cor-de-rosa de
um ladrão de suco, apontando hesitantemente para fora de um montão de folhas ca-
ídas. Desgostoso, Holbrook observava o audacioso roedor cruzar o chão do pomar
em quatro rápidos saltos e agarrar-se ao tronco maciço de César, subindo agilmente
por entre os grandes olhos da árvore. Os galhos de César agitaram-se raivosamente,
porém Holbrook não foi capaz de localizar a pequenina peste. O ladrãozinho desapa-
receu entre a folhagem, para aparecer trinta pés mais acima, agora já no nível onde
César carregava suas frutas. O focinho do bicho se franzia todo. O ladrãozinho re-
cuou nas quatro patas e preparou-se para sugar oito dólares de sonhos de uma fruta
quase madura.
Da coroa de Alcibíades surgiu a fina forma sinuosamente serpentina de uma gavi-
nha apreensora. Como um chicote ela cruzou o intervalo entre Alcibíades e César, e
acertou o ladrão de suco. O animal só teve tempo para um gritinho, antes que a ga-
vinha o apanhasse e o estrangulasse. Num grande arco, a gavinha voltou para a co-
roa de Alcibíades; a boca aberta da árvore surgiu à vista ao apartarem-se as folhas;
os dentes apartaram-se; a gavinha desenrolou-se, e o corpo do ladrão de suco caiu
em suas fauces. Alcibíades teve um estremecimento de prazer: um tremor requebra-
do de suas folhas, malicioso e modesto, de auto-congratulações aos rápidos reflexos
que lhe haviam proporcionado um petisco tão saboroso. Alcibíades era uma árvore
inteligente, bonita, muito satisfeita de si. “Vaidade perdoável”, pensou Holbrook.
“Você é uma boa árvore, Alcibíades. Todas as árvores do Setor C são boas árvores. E
se você estiver com ferrugem, Alcibíades? O que acontecerá com as suas lustrosas
folhas e esguios membros, se eu tiver de queimá-lo, erradicando-o do pomar?”
- Você está muito bem - disse Holbrook. - Gosto de vê-lo assim acordado.
Alcibíades continuou a contorcer-se. Sócrates, numa distância de quatro árvores
em diagonal, juntou estreitamente os galhos, o que Holbrook sabia ser um gesto de
desprazer, um resmungo mal-humorado. Nem todas as árvores faziam caso da vaida-
de de Alcibíades, seu apuro, sua presteza.
De repente Holbrook já não pôde continuar a observar o Setor C. Apertou os bo-
tões de comando e mudou para o Setor K, o novo pomar, lá embaixo, na extremida-
de ao sul do vale. As árvores não tinham nome nem o teriam jamais. Holbrook con-
cluíra, há muito tempo, que era uma afetação boba considerar as árvores como ami-
gas ou animais de estimação Eram uma propriedade produtora de renda. Era um
erro a gente se interessar a tal ponto por elas - agora que ele percebia que algumas
de suas mais velhas amigas estavam ameaçadas pela ferrugem, que passava de um
mundo para o outro a fim de destruir as plantações das árvores de suco.
Esquadrinhou o Setor K com mais desprendimento.
“Pense nelas como árvores”, disse com seus botões. “Não como animais. Não
como pessoas. Árvores. Longas raízes se aprofundando sessenta pés no solo calcário,
sugando nutrientes. Não podem mudar de lugar para lugar. Mas realizam fotossínte-
se. Florescem, são polinizadas e produzem volumosas frutas fálicas, carregadas de
misteriosos alcaloides que lançam interessantes sombras nas mentes dos homens.
Árvores. Árvores. Árvores.
“Mas têm olhos, dentes e bocas. Têm membros preênseis Podem pensar. Podem
reagir. Têm almas. Quando provocadas, podem chorar. São adaptadas para apanhar
animais pequenos. Digerem carne. Algumas preferem carneiro a carne de vaca. Algu-
mas são pensativas e solenes; algumas, voláteis e nervosas; algumas, plácidas,
quase bovinas. Embora cada uma seja bissexual, algumas têm uma personalidade
obviamente masculina, algumas feminina, algumas são ambivalentes. Almas. Perso-
nalidades.”
Árvores.
As árvores sem nome do Setor K tentaram-no a cometer o pecado de envolvimen-
to. Aquela gorda podia ser Buda, e aquela, Abe Lincoln, e aquela outra, Guilherme, o
Conquistador, e...
Árvores.
Fez um esforço e foi bem sucedido. Observava friamente o pomar, assegurando-se
de que não houvera nenhum dano durante a noite, apesar de feras rondando, exami-
nando as frutas que amadureciam, lendo o info que provinha dos sensores de seiva,
ouvindo os monitores que observavam o nível do açúcar, as fases de fermentação, a
absorção de manganês, todos os complexos processos de vida equilibrada dos quais
dependia a produção da fazenda. Holbrook fazia praticamente quase tudo. Seu pes-
soal se compunha de três administradores humanos e três dúzias de robôs; o resto
era feito por telemetria, e, usualmente, tudo corria bem. Usualmente. Adequadamen-
te protegidas, mimadas e nutridas, as árvores produziam três vezes por ano; Holbro-
ok levava as mercadorias a uma estação que as apanhava nas vizinhanças, do porto
espacial litorâneo, onde se processava o suco que era depois despachado para a Ter-
ra. Holbrook não tinha parte nisso: era simplesmente produtor de frutas. Fazia dez
anos que o era, e não tinha planos de fazer outra coisa. Sua vida era tranquila, soli-
tária, mas era a vida que escolhera.
Mudava os esquadrinhadores de setor para setor, até certificar-se de que tudo na
fazenda ia bem. Na mudança final foi até o rio e encontrou Naomi, que naquele ins-
tante saía da água. Ela subiu para a laje pedregosa que se projetava sobre a água
remoinhosa e sacudiu os longos cabelos lisos, louros e sedosos. Voltava as costas
para o esquadrinhador. Holbrook observou gostosamente a ondulação de seus ágeis
músculos. A sombra desenhava-lhe claramente a espinha; o sol dançava na delicada
estreiteza de seus seios, na súbita saliência de seus quadris, nos tensos montículos
de suas nádegas. Tinha quinze anos. Estava passando as férias estivais com o tio
Zen; aproveitando ao máximo a permanência entre árvores frutíferas Seu pai era ir-
mão mais velho de Holbrook. Este só vira Naomi duas vezes anteriormente: uma vez,
ela ainda era criança, outra quando tinha seis anos. Ficara um pouco constrangido
com a sua ida para a fazenda, pois nada sabia sobre crianças, e, de qualquer modo,
não apreciava companhia. Mas não recusara o pedido do irmão. E ela já não era tão
criança. Agora ela se voltava, e as telas de Holbrook registraram uns seios redondi-
nhos como maçãs, um ventre chato, um umbigo bem fundo, coxas fortes e lisas.
Quinze anos. Já não era tão criança. Era mulher. Não tinha consciência da própria
nudez, nadando daquele jeito todas as manhãs; sabia da existência dos esquadrinha-
dores. Holbrook se constrangia. Deveria olhá-la? Isso realmente não era apropriado.
Com efeito, a visão da menina o comovia de maneira suspeita. Que diacho! Era tio
dela! Um músculo estremeceu no seu rosto. Dizia com seus botões que a única sen-
sação que experimentava quando a via assim era de emoção e de orgulho ao ver que
seu irmão criara coisa tão linda. Apenas admiração - era só o que se permita sentir.
Ela era bronzeada, cor de mel, cheia de ilhas róseas e douradas. Parecia irradiar um
brilho maior que o sol nascente. Holbrook premiu o botão de comando. “Vivi muito
tempo sozinho. Minha sobrinha. Minha sobrinha. Apenas uma criança. Quinze anos.
Linda.” Fechou os olhos, abriu-os numa estreita fenda, mordeu o lábio. “Vamos, Nao-
mi: cubra-se!”
Quando ela vestiu o short e arrumou as alças, foi como se o sol entrasse em eclip-
se. Holbrook cruzou o info-centro e desceu da casa da fazenda; levava na mão um
par de cápsulas alimentares. Um lustroso tratorzinho rodou para fora da garagem;
saltou dentro dele e foi dizer à garota o seu olá matinal...
Ela continuava à beira do rio, brincando com uma coisinha felpuda do tamanho de
um gato e de muitas pernas, que se enrolara em torno de um arbustozinho angulo-
so.
- Veja isto, Zen! - gritou. - É gato ou lagarta?
- Afaste-se dele! - gritou Holbrook com tanta veemência, que ela, assustada, pulou
para trás.
Ele já apontava o estilete, o dedo quase premindo a mola. Despreocupado, o ani-
malzinho continuava se enrolando no galho.
Bem próxima, Naomi agarrou o braço do tio e disse com voz rouca:
- Não o mate, Zen. É perigoso?
- Não sei.
- Por favor, não o mate.
- Norma prática neste planeta - disse Holbrook. - Qualquer coisa que tenha espi-
nha dorsal e mais de uma dúzia de pernas provavelmente é mortífera.
- Provavelmente! - repetiu Naomi com ironia.
- Ainda não conhecemos todos os animais que existem. Esse, por exemplo, nunca
vi.
- É lindo demais para ser venenoso. Quer afastar o estilete?
Holbrook pôs a arma a tiracolo e aproximou-se do bicho. Este não tinha garras,
seus dentes eram pequeninos e seu corpo fraquinho. Maus sinais: uma criatura como
aquela não tinha meios visíveis de sobrevivência, de modo que era bem provável
possuir algum ferrão venenoso em sua caudazinha felpuda... A maior parte dos ani-
maizinhos de muitas pernas possuía um ferrão assim. Holbrook apanhou uma vari-
nha do chão e cutucou o corpo do pequeno animal.
Resposta imediata: um silvo, um ronco, o traseiro se erguendo, e... tac! um temí-
vel ferrão golpeando a casca da varinha. Quando a cauda recuou, gotejaram da vari-
nha alguns pingos de um fluido avermelhado. Holbrook se afastou. O animalzinho o
olhava atentamente: parecia estar pedindo que se pusesse ao alcance do seu bote...
- Bonitinho - disse Holbrook. - Naomi, você não quer viver para completar seus be-
los dezesseis anos?
Ela ali estava, pálida, abalada, quase estuporada com a ferocidade do ataque do
animalzinho.
- Parecia tão manso - disse. - Até parecia animal doméstico...
Ele apertou a ponta do estilete e deu-lhe um golpe na cabeça. O bichinho caiu do
galho, enrolou-se todo e não tornou a se mexer. Naomi virou a cabeça para não ver.
Holbrook deslizou o braço pelos ombros dela:
- Sinto muito, meu bem - disse. - Não quis matar seu amiguinho. Conte as pernas
dos animais agrestes que encontrar aqui. Já lhe disse isso: conte as pernas...
Ela aquiesceu com um aceno de cabeça. Boa lição, essa, de não confiar nas apa-
rências. Tanto valia ser-se engraçadinho. Holbrook arrastou os pés na grama cor de
cobre esverdeado e imaginou um momento como seria se tivesse quinze anos e
acordasse para as sórdidas verdades do universo. Disse mansamente:
- Vamos visitar Platão, sim?
Naomi ficou radiante. A outra face dos quinze anos: ter-se elasticidade.
Estacionaram a camioneta junto ao pomar do Setor C e continuaram a pé. As árvo-
res não gostavam de veículos motorizados em suas vizinhanças; a apenas alguns pés
de profundidade da marca do chão do pomar eram ligadas entre si por um tapete de
filamentos emaranhados que desempenhavam para elas alguma função neurológica,
e, embora o peso de uma pessoa não as incomodasse, uma camioneta provocava
nelas um coro de gritos. Naomi estava descalça. Holbrook, que ia ao lado, usava bo-
tas até os joelhos. Sentia-se grandalhão e pesado ao lado de Naomi; já era demasia-
do massudo, mas a agilidade da garota tornava-o ainda mais canhestro, pelo con-
traste.
Ela fez o jogo dele com as árvores. Holbrook a apresentara a todas elas, e agora lá
ia ela saltando, dando a saudação matinal a Alcibíades, a Heitor, a Sêneca, a Henri-
que VIII, a Thomas Jeferson e ao Rei Tut. Naomi conhecia as árvores, talvez ainda
melhor que ele; e as árvores a conheciam. Ao caminhar nas aleias, as árvores estre-
meciam, cochichavam, se aprumavam, todas se mantendo muito eretas e arranjando
ramos e galhos de forma a parecerem bonitas; até mesmo o azedo Sócrates, corcun-
da e torto, se diria estar querendo se mostrar. Naomi dirigiu-se para a grande caixa
cinzenta de depósito no meio do pomar, onde os robôs deixavam postas de carne to-
das as noites, e retirou dali uns pedaços para dar às árvores de sua maior estimação.
Apanhou alguns cubos de carne vermelha e crua, com os quais encheu os braços, e
começou a dançar alegremente no pomar, atirando nacos às suas favoritas. A ninfa
em seu ritual, pensou Holbrook. Ela atirava as postas bem para o alto; atirava-as
com força, vigorosamente. Enquanto voavam pelos ares, gavinhas se desenrolavam
de uma ou outra árvore para apanhá-las a meio voo e introduzi-las nas gargantas fa-
mintos. As árvores não precisavam, mas gostavam de carne, e era corrente entre os
fruticultores dizer-se que as árvores bem alimentadas produziam frutos mais suculen-
tos. Holbrook costumava servir carne às árvores três vezes por semana, excetuando
o Setor D, que recebia uma ração diária.
- Não esqueça nenhuma - disse Holbrook.
- Sabe que não esquecerei.
Nenhum pedaço caía no chão do pomar. Às vezes, duas árvores avançavam os ga-
lhos para o mesmo pedaço e um pequeno combate se travava. As árvores não eram
necessariamente amigas umas das outras. Havia má vontade entre César e Henrique
VIII e Catão obviamente desprezava Sócrates e Alcibíades, embora por diferentes ra-
zões. Às vezes Holbrook ou seu pessoal encontravam galhos decepados jazendo no
chão. Mas, comumente, até mesmo árvores de personalidade agressiva se esforça-
vam para tolerar umas às outras. E tinha de ser assim, uma vez que estavam todas
condenadas a eterna proximidade. Certa vez Holbrook tentara separar duas árvores
do Setor F, que viviam em briga; mas foi impossível desarraigar uma árvore já bem
crescida sem matá-la e sem perturbar o sistema nervoso de suas trinta vizinhas mais
próximas, segundo ele aprendera a duras penas.
Enquanto Naomi dava de comer às árvores e acariciava-lhes os troncos escamo-
sos, tal como se poderia acariciar um animal de estimação, Holbrook calmamente
abriu uma escada telescópica e procurou sintomas de ferrugem nas folhas. Em ver-
dade, não era muita. A ferrugem não se fazia visível na folhagem antes de penetrar
na raiz estrutural da árvore, e as manchas alaranjadas que ele vira seriam talvez re-
talhos de uma imaginação inquieta. Em uma ou duas horas receberia o relatório do
laboratório, e, de um modo ou outro, isso era tudo quanto queria saber. Todavia, não
podia deixar de olhar. Cortou um maço de folhas de um dos galhos mais baixos de
Platão, não sem antes pedir desculpas, revirou-as na mão, esfregando suas superfíci-
es lustrosas. “Que é isto aqui, estas minúsculas colônias de partículas
avermelhadas?” Sua mente tentou rejeitar a possibilidade de ferrugem. Uma praga
caminhando a largos passos pelo mundo, golpeando-o tão intimamente, varrendo-o?
Construíra aquela fazenda por meio de empréstimo: uma parte do dinheiro era dele;
a outra, a maior, era do banco. Era uma faca de dois gumes: se a ferrugem devastas-
se a plantação, matando árvores suficientes para anular um valor líquido considerado
ponderável, o banco a tomaria para si. Podiam dar-lhe um emprego de administra-
dor. Sabia que já acontecera coisa semelhante. Platão farfalhava inquietamente.
- Que é que há, meu velho? - murmurou Holbrook. - Apanhou a doença, hein? Há
algo esquisito flutuando em suas entranhas, hein? Eu sei, eu sei. Sinto-o também
nas minhas. Temos de ser filósofos, nós dois.
Atirou no chão as amostras de folha e moveu a escada para a ala de Alcibíades.
- Agora você, minha beleza. Deixe-me ver. Não vou cortar suas folhas.
Podia imaginar a orgulhosa árvore espirrando, debatendo-se irritada...
- Algumas manchinhas aí embaixo, hein? Também está doente? Está?
Os galhos externos da árvore se fecharam estreitamente, como se o vegetal a si
próprio se abraçasse, agoniado.
Holbrook prosseguiu, descendo a aleia As manchas de ferrugem estavam muito
mais pronunciadas do que na véspera. Não se tratava de imaginação. O Setor C esta-
va atacado. Não era preciso esperar pelos resultados dos exames de laboratório. Hol-
brook se sentia singularmente calmo diante dessa confirmação, embora o fato anun-
ciasse sua própria ruína.
- Zen!
Ele olhou para baixo. Naomi estava de pé junto à escada, segurando na mão uma
fruta quase madura. Era algo grotesco: as frutas eram uma pilhéria botânica, explici-
tamente fálicas, de modo que uma árvore, com mais de uma centena de frutas
apontando, se diria algum arquétipo do último macho. Todos os visitantes achavam a
coisa enormemente divertida Mas a visão da mão de uma menina de quinze anos tão
completamente cheia de tal forma era obscena, não engraçada. Naomi nunca obser-
vara a forma das frutas, nem sentia agora o menor embaraço. A princípio Holbrook
atribuíra essa indiferença à inocência ou timidez, mas à medida que a ia conhecendo
começou a desconfiar de que ela fingia deliberadamente ignorar a alucinante coinci-
dência cômica e biológica, a fim de lhe poupar os sentimentos. Como obviamente ele
ainda a julgava uma criança, ela ardilosamente se comportava como tal; e a fasci-
nante complexidade da interpretação que dava às atitudes dela mantinha-o ocupado
dias e dias.
- Onde achou isso? - perguntou.
- Aqui mesmo. Alcibíades deixou-a cair.
“O imbecil!”... pensou Holbrook. - E então?
- Está madura. É tempo de colheita neste pomar, não é?
E espremeu a fruta. Holbrook sentiu-se enrubescer.
- Olhe só - e ela atirou-lhe a fruta.
Ela tinha razão: a colheita devia começar no Setor C com cinco dias de antecedên-
cia. Holbrook não sentiu nenhuma alegria por isso; era um sinal da doença que, ago-
ra ele sabia, infestava aquelas árvores.
- Que há de errado? - perguntou ela.
Ele saltou para junto dela e estendeu a maçaroca de folhas que cortara de Platão.
- Vê estas manchas? É ferrugem. Uma praga que infesta árvores frutíferas.
- Não!
- Vem passando de uma árvore para outra nestes últimos cinquenta anos. Agora
chegou aqui, a despeito de todas as precauções.
- Que acontece com as árvores?
- Um aceleramento metabólico - disse Holbrook.- É por isso que as frutas começam
a cair. Aceleram os seus ciclos de amadurecimento, ao ponto de um ano inteiro se
escoar num par de semanas. As árvores tornam-se estéreis. Desfolham-se. Seis me-
ses após a contaminação, estão mortas.
Holbrook curvou os ombros.
- Faz dois ou três dias que desconfio disso. Agora sei.
Ela olhou com interesse, mas não realmente preocupada.
- Qual a causa, Zen?
- Ao que se sabe, um vírus. Um vírus que passa por tantos hospedeiros que perdi
a conta. É assunto de intercâmbio de vetores, no qual o vírus entra nas plantas e
afeta as sementes, é comido por roedores, entra-lhes no sangue, é apanhado por in-
setos de ferrão, passa para um mamífero... - que inferno! de que adiantam detalhes?
Levou oito anos para simplesmente rastrearmos toda a sequência. Não é possível pôr
a salvo todas as coisas do mundo em que vivemos. A ferrugem está destinada a con-
taminar, a ser carregada nas costas de alguma coisa viva. E agora está aqui.
- Não vai pulverizar a plantação, tio?
- Não.
- Para matar a ferrugem? Qual é o tratamento?
- Não há tratamento - disse Holbrook.
- Mas...
- Olhe: tenho de voltar para a casa da fazenda. Você pode se distrair em minha
ausência; não pode?
- Claro! - E Naomi apontou para a carne. - Ainda nem acabei de alimentá-las. E es-
tão particularmente famintas esta manhã.
Ele quis falar-lhe que agora já não havia necessidade de dar-lhes alimento, pois to-
das as árvores daquele setor estariam mortas ao cair da noite. Mas um instinto ad-
vertiu-o de que seria muito complicado explicar-lhe isso naquele instante. Lançou-lhe
um sorriso rápido e sem cordialidade, e foi para a camioneta. Olhando para trás, viu
que Naomi fazia girar um enorme naco de carne na direção de Henrique VIII, que o
apanhou destramente e o meteu na boca.
Cerca de duas horas depois, o exame de laboratório deslizou para fora da fenda na
parede, confirmando o que Holbrook já sabia: era ferrugem. Pelo menos a metade
do planeta já tinha ouvido a notícia e até ali várias pessoas já haviam visitado Hol-
brook. Para um planeta cuja população humana era somente de umas quatrocentas
pessoas, o número de visitas fora excessivo. O governador do distrito, Fred Leitfried,
foi o primeiro a aparecer, o que também aconteceu com o comissário agrícola, que
outro não era senão o próprio Fred Leitfried. Uma delegação de dois homens, repre-
sentantes da Corporação dos Produtores de Árvores Frutíferas, chegou em seguida.
Depois veio Mortensen, o homem de cara avermelhada que dirigia a usina de proces-
samento, e Heenskerk, da linha de exportação, e mais alguém do banco, e mais um
representante da companhia de seguros. Um par de plantadores vizinhos apareceu
um pouco mais tarde, deu sorrisos de simpatia pelo ocorrido e tapinhas de camara-
dagem nos ombros de Holbrook, mas não muito abaixo de sua comiseração jazia
uma hostilidade em potencial. Claro que não o diriam abertamente, mas Holbrook
não precisava ser telepata para saber o que pensavam: “Livre-se dessas árvores de
ferrugem antes que elas contaminem todo o planeta”.
Se estivesse na posição deles, Holbrook pensaria a mesma coisa. Mesmo que os
vetores da ferrugem já tivessem atingido este mundo, a coisa não era absolutamente
contagiosa. Podia ser confinada; as plantações vizinhas podiam ser salvas; podia dar-
se o mesmo com os pomares incólumes de sua própria fazenda - se em breve ele to-
masse providências para esse fim. Se o vizinho tivesse suas árvores infestadas, Hol-
brook estaria tão inquieto como os seus colegas que queriam vê-lo tomar providên-
cias urgentes.
Fred Leitfried, alto e de rosto calmo, olhos azuis e desanimadoramente sombrio
mesmo em ocasiões de festa, parecia pronto a se desmanchar em lágrimas. Ele dis-
se:
- Zen, dei ordens para um alerta de proporções planetárias contra a ferrugem. Os
biologistas estarão operando dentro de trinta minutos a fim de interromper a cadeia
dos portadores da praga. Vamos começar pela sua propriedade e trabalhar num raio
sempre maior, até isolarmos todo o quadrante. Depois disso, vamos confiar na
sorte...
- Que vetores procuram? - perguntou Mortensen, espichando o lábio inferior.
- Gafanhotos - disse Leitfried. - São os maiores, por isso são mais fáceis de des-
truir, e sabe-se que são portadores de ferrugem em potencial. Se o vírus ainda não
lhes foi transmitido, podemos interromper a sequência e talvez sair disso intactos.
Holbrook disse com uma voz cavernosa:
- Sabem que estamos falando do extermínio de, possivelmente, um milhão de ani-
mais?
- Eu sei, Zen.
- Sabem se podem fazê-lo?
- Temos de fazê-lo. Além disso - acrescentou Leitfried - os planos de emergência
foram feitos há muito tempo, e estamos prontos para começar. Primeiro, uma pulve-
rização letal muito fina cobrindo todo o planeta antes de cair a noite.
- Uma vergonha - resmungou o homem do banco. - São animais tão Pacíficos!
- Mas agora constituem ameaça - disse um dos plantadores. - Têm de morrer.
Holbrook franziu a testa. Gostava dos gafanhotos: eram uns bichos como coelhos,
quase do tamanho de ursos, que pastavam nas ervas e não faziam mal aos huma-
nos. Foram porém identificados como suscetíveis à infecção do vírus da ferrugem, e
em outros mundos se constatou o fato de que, eliminando uma fase básica da se-
quência da transmissão, o contágio da ferrugem podia ser interrompido, pois os vírus
morreriam se não pudessem encontrar hospedeiro adequado na fase seguinte de seu
ciclo vital. Naomi gostava muito dos gafanhotos. “Vai achar-nos uns bastardos por
eliminá-los. Mas é mister salvar nossas árvores. E, se realmente fôssemos uns bas-
tardos, tê-los-íamos eliminado antes que a ferrugem chegasse aqui, isso apenas para
ficarmos mais protegidos contra o mal.”
Leitfried voltou-se para Holbrook:
- Sabe o que tem a fazer agora, Zen?
- Sim.
- Necessita de ajuda?
- Prefiro fazer tudo sozinho.
- Podemos dar-lhe dois homens.
- Trata-se apenas de um setor, não é? - perguntou Holbrook. - Posso fazê-lo sozi-
nho. Devo fazê-lo. As árvores são minhas.
- Quando começa? - perguntou Borden, o lavrador cuja plantação era vizinha da
de Holbrook pelo lado oriental.
Medeavam cinquenta milhas de cerrado entre as terras de Holbrook e as de Bor-
den, mas não era difícil perceber por que o homem estava impaciente pelas medidas
protetoras que iam ser postas em execução.
Holbrook disse:
- Suponho que dentro de uma hora. Primeiro tenho de fazer alguns cálculos. Fred,
venha comigo para cima; ajude-me a marcar nas telas a área infectada.
- Certo.
O homem do seguro deu um passo à frente:
- Antes de ir, Mr. Holbrook...
- Hein?
- Quero apenas que saiba que estamos de pleno acordo. Terá nosso apoio todo o
tempo.
“Muita bondade sua”, pensou Holbrook com azedume. Para que servia o seguro,
senão para apoiá-lo durante todo o tempo? Mas conseguiu esboçar um amável arre-
ganho de boca e um breve murmurar de palavras.
O homem do banco nada disse. Holbrook ficou-lhe grato por isso. Mais tarde have-
ria tempo para renovar a papelada, negociar as notas, e coisas assim. Primeiro era
preciso verificar a parte da plantação que permaneceria incólume depois que Holbro-
ok tomasse as medidas protetoras exigidas.
No info-centro, ele e Leitfried ligaram todas as telas de uma vez. Holbrook indicou
o Setor C e tirou do computador as fichas de um pomar simulado. Depois inseriu no
mesmo os dados do relatório de laboratório.
- São essas as árvores infectadas - disse, traçando um leve círculo a lápis na tela. -
São talvez umas cinquenta.
Depois traçou um círculo mais amplo. - Esta é a zona de possível incubação. São
outras oitenta ou cem árvores. Que diz, Fred?
O governador do distrito tomou a pena de Holbrook, e com o estilete tocou a tela.
Fez um círculo ainda mais amplo, quase tocando a periferia do setor.
- São as que têm de ser destruídas, Zen.
- Somam ao todo quatrocentas árvores.
- Quer perder todas?
Holbrook encolheu os ombros.
- Talvez setecentas, oitocentas...
- Quer perder todas?
- Sim - respondeu Holbrook. - Você deseja um fosso protetor em torno da zona in-
fectada, não é? Uma área estéril.
- Sim.
- De que adianta? Se o vírus pode cair do céu, por que nos incomodarmos com...
- Não fale assim - disse Leitfried.
Sua cara se encompridava de momento a momento, corporificação de toda a tris-
teza, frustração e desespero possíveis. Percebeu o que Holbrook sentia. Mas disse
em tom incisivo:
- Zen, você só tem duas alternativas. Pode entrar no pomar e começar a atear-lhe
fogo, ou pode desistir, deixando a ferrugem atacar todas as coisas. Se optar pela pri-
meira, terá a oportunidade de salvar a maior parte da propriedade. Se desistir, nós a
queimaremos da mesma forma, para nos proteger. E não ficaremos apenas nas qua-
trocentas árvores...
- Já vou - disse Holbrook. - Não se incomode comigo.
- Não estava incomodado. Na verdade, não estava nem um pouco incomodado.
Leitfried apertou os nódulos de comando para abranger toda a plantação, enquan-
to Holbrook dava instruções aos robôs e requisitava o equipamento necessário. Em
dez minutos estava pronto para sair.
- Há uma garota no setor infectado - disse Leitfried. - É a sua sobrinha, não é?
- Naomi. É, sim.
- Linda. Quantos anos tem: dezoito, dezenove?
- Quinze.
- Bela figura, Zen.
- Que está fazendo? continua dando de comer às árvores?
- Não. Está deitada debaixo de uma delas. Parece que lhes fala. Talvez lhes esteja
contando uma história. Devo interromper o áudio?
- Não se incomode. Ela costuma brincar com as árvores. Dá-lhes nomes e imagina
que elas têm personalidade. Coisa de criança.
- Claro - disse Leitfried.
Seus olhos se encontraram fugazmente. Holbrook baixou os olhos. As árvores pos-
suíam personalidade, conforme conhecia todo homem que era plantador de árvores
frutíferas. Talvez não existissem muitos plantadores que não tivessem uma relação
assim íntima com seus pomares, embora não a confessassem entre si. Coisas de
criança. Assunto do qual ninguém falava.
“Pobre Naomi”, pensou Holbrook.
Deixou Leitfried no info-centro e saiu pela porta de trás. Os robôs tinham arranja-
do tudo conforme fora programado: a camioneta de pulverização com a arma de fu-
são montada no lugar do tanque químico. Dois ou três dos mecânicos encontravam-
se por perto, esperando o convite para pular para dentro das camionetas, mas ele os
afastou e deslizou em frente do painel de direção. Ativou a produção de dados e a
pequena tela iluminou-se; do info-centro acima, Leitfried saudou-o e atirou-lhe a
planta simulada da zona contaminada, com os três círculos concêntricos iluminados
para indicar as árvores doentes, as que deviam ser apenas incubadoras, e o cinto da
margem de segurança que Leitfried insistira em criar ao redor de todo o setor.
A camioneta rodou na direção dos pomares.
Era meio-dia de um dia que ameaçava ser o mais longo até então conhecido. O
sol, maior e um pouco mais alaranjado do que aquele sob o qual ele nascera, pairava
preguiçosamente no alto, ainda não disposto a tombar de todo nas planícies distan-
tes. O dia estava quente, mas assim que ele entrou nos pomares, onde o estreito
dossel das árvores vizinhas protegia o solo contra as piores radiações solares, Hol-
brook sentiu um bem-vindo frescor coando-se para a cabine da camioneta. Tinha os
lábios secos. Uma incômoda palpitação se fazia sentir atrás do seu globo ocular es-
querdo. Guiava a camioneta pela trilha de acesso em torno dos setores A, D e G.
Vendo-o, as árvores agitaram um pouco os galhos. Estavam ansiosas para que ele
apeasse e caminhasse entre elas, lhes acariciasse os troncos, lhes dissesse que boas
árvores elas eram. Agora ele não tinha tempo para isso.
Em quinze minutos chegou à extremidade norte da propriedade, na orla do Setor
C. Estacionou o trator de pulverização no barranco que encimava o pomar; podia,
dessa posição, atingir com sua arma de fusão todas as árvores da mesma área. Não
de todo, entretanto.
Finalmente penetrou no pomar condenado.
Não viu Naomi em parte alguma. Precisava encontrá-la antes de começar o ata-
que. E, mesmo antes disso, devia fazer algumas despedidas. Holbrook foi andando
pela avenida principal do setor. Que frescor fazia ali, mesmo agora, em pleno meio-
dia! Que doçura no ar impregnado de marga! O chão do pomar juncava-se de frutas:
dúzias haviam caído nas últimas duas horas. Ele apanhou uma. Madura. Rachou-a
com um ágil movimento do punho e tocou o polpudo interior. O suco, rico e doce, es-
correu-lhe para dentro da boca. Provou-o o suficiente para saber que a fruta era de
primeira classe. A dose que ingeriu estava longe de constituir uma dose alucinógena,
mas lhe proporcionaria uma suave euforia, suficiente para fazê-lo suportar tudo o
que se seguiria...
- Temos problemas, camaradas - disse Holbrook. - Você sabe, Heitor. A doença rei-
na neste setor. Você pode senti-la em seu interior. Não há meio de salvá-lo. A única
coisa que posso esperar é salvar as demais árvores... aquelas que a ferrugem ainda
não atacou. Certo? Compreendem? Platão? César? Sou obrigado a fazê-lo. A vocês
custará apenas umas poucas semanas de vida, mas poderá salvar milhares de outras
árvores.
Um farfalhar irado nos ramos. Alcibíades recolhera desdenhosamente os galhos.
Heitor, ereto e leal, estava pronto para o remédio. Sócrates, disforme e atarracado,
também parecia preparado. Cicuta ou fogo - que importava? Grito, devo um galo a
Esculápio. César parecia furioso; Platão curvava-se, servilmente. Todos, sem exceção,
compreendiam. Holbrook caminhava entre eles, acariciava-os, confortava-os. Aquele
setor fora o princípio da sua plantação. Tinha esperado que aquelas árvores lhe so-
brevivessem.
Disse-lhes:
- Não vou fazer um comprido discurso. Só posso dizer adeus. Todas vocês foram
boas camaradas, viveram vidas úteis, mas seu tempo chegou ao fim, e estou tristíssi-
mo com isso. Eis tudo. Desejaria que isto não fosse necessário. - E passeou o olhar
acima e abaixo do pomar. - O discurso acabou. Adeus.
Virando as costas, dirigiu-se vagarosamente para o trator de pulverização. Apertou
o contato com o info-centro e disse a Leitfried:
- Sabe onde está a garota?
- Um setor adiante, do lado sul. Está dando de comer às árvores.
- E projetou a imagem na tela de Holbrook.
- Ligue o som, sim?
Através dos alto-falantes, Holbrook disse:
- Naomi, sou eu, Zen.
Ela olhou à volta, parando no momento em que se preparava para arremessar uma
posta de carne.
- Espere um segundo - disse ela. - Catarina, a Grande, está com fome, e não me
deixa esquecê-lo.
A carne foi pelos ares, desapareceu na boca vegetal.
- Certo - disse Naomi. - Que é que há?
- Acho melhor você voltar para a casa da fazenda.
- Ainda há muitas árvores a alimentar.
- Faça-o à tarde.
- Zen, o que está acontecendo?
- Tenho trabalho a fazer, e prefiro que você não esteja no pomar enquanto o faço.
- Onde está agora?
- No Setor C.
- Talvez eu possa ajudá-lo, Zen. Estou no segundo setor abaixo da aleia Vou já.
- Não. Volte para casa.
As palavras lhe saíram como uma ordem glacial. Ele jamais lhe falara naquele tom.
Ela estremeceu e sobressaltou-se; mas obedientemente entrou na camioneta e par-
tiu. Holbrook a seguiu na tela até que a perdeu de vista.
- Onde está ela agora? - perguntou a Leitfried.
- Vem voltando. Posso avistá-la na trilha de acesso.
- Certo - disse Holbrook. - Entretenha-a até que isso se acabe. Vou começar.
Fez rodar a arma de fusão, apontando o cano para o âmago do pomar. Na boca da
arma suspendia-se uma pitada de matéria magnética infinitamente disponível para a
tarefa do dia. A arma não tinha visor, e Holbrook disparava em todas as direções.
Piscando os olhos, viu Sócrates na orla do pomar, teve um instante de hesitação,
considerou o melhor meio de fazer a coisa esperada, e pôs a mão no controle de
fogo. O nexo neural da árvore era sua copa, atrás da boca... Um tiro rápido ali...
Pronto.
Um arco de branca chama sibilou no ar. A disforme copa de Sócrates banhou-se
um momento em fulgor. Morte rápida, morte limpa, melhor do que apodrecer de fer-
rugem. Depois Holbrook foi dirigindo o fogo de cima a baixo da árvore morta, ao lon-
go do tronco. A árvore era robusta; ele atirou muitas vezes, ramos, galhos e folhas
se crisparam e caíram, enquanto o tronco permanecia intacto e grandes gotas de fu-
maça oleosa se elevavam acima do pomar. Contra o brilho do raio de fusão Holbrook
viu no escuro os contornos do tronco despido, e surpreendeu-se com a sua retidão
debaixo da ramaria. Agora o tronco não passava de um pilar de cinzas; finalmente
caiu e acabou-se.
Um terrível gemido vinha das outras árvores do pomar.
Sabiam que a morte as rondava e sentiam a dor da ausência de Sócrates através
da trama das raízes nervosas enterradas no chão. Choravam de medo, de angústia,
de fúria...
Então Holbrook virou a arma para Heitor.
Heitor era uma árvore enorme, impassível, estoica, não se queixava nem se exibia.
Holbrook quis dar-lhe a boa morte que ele merecia, mas a pontaria falhou. O primei-
ro tiro acertou pelo menos oito pés abaixo do centro cerebral da árvore, e o grito re-
boante que subiu das árvores vizinhas revelou o que Heitor devia estar sentindo. Hol-
brook viu seus membros se agitando freneticamente, a boca se abrindo e se fechan-
do num medonho rictus de tormento. O segundo tiro pôs fim à agonia de Heitor.
Quase calmo, Holbrook rematou a tarefa de extirpar do solo a nobre árvore.
Tinha quase terminado, quando viu uma camioneta parar junto do seu trator, e
para fora dela saltou Naomi, corada, olhos escancarados, quase histérica.
- Pare, tio Zen! Não as queime!
Ao saltar para a cabine de pulverização, agarrou-lhe os punhos com uma força sur-
preendente e encostou-se nele. Ofegava, em estado de pânico, os pequeninos seios
arfando, as narinas dilatadas...
- Eu lhe disse que voltasse para a casa da fazenda - disse ele.
- Foi o que fiz. Mas depois vi as chamas.
- Quer ir embora daqui?
- Por que está queimando as árvores?
- Porque estão contaminadas de ferrugem - disse ele. - Têm de ser queimadas an-
tes de infectarem as outras.
- Isso é assassinato.
- Naomi, olhe aqui; quer voltar para a...
- Você matou Sócrates! - disse, olhando para o pomar. - E César? Não! Heitor. Hei-
tor também se foi. Acaba de os queimar.
- Não são gente: são árvores. Árvores doentes, de qualquer forma condenadas a
morrer. Quero salvar as outras.
- Mas por que matá-las? Deve haver alguma espécie de droga que se possa usar,
Zen. Alguma espécie de pulverização. Hoje há cura para tudo.
- Não para isso.
- Deve haver.
- Não, só o fogo - disse Holbrook.
O suor gelado escorria-lhe no peito, e ele sentia estremecerem os músculos de
suas coxas. Já era bastante difícil levar a cabo a tarefa na ausência dela. Mas Holbro-
ok disse com toda a calma que pôde reunir:
- Naomi, isto é algo que tem de ser feito, e depressa. Não há escolha. Amo estas
árvores tanto quanto você. Mas preciso queimá-las. É como aquela coisa de muitas
pernas com ferrão na cauda: não podia ser sentimental naquele caso, só porque a
coisa era bonitinha. E, mesmo neste instante, Platão, César e os outros são ameaça
a tudo quanto possuímos. São portadores de praga. Volte para a casa e tranque-se
em algum lugar até que tudo esteja acabado.
- Não deixarei que as mate! - disse Naomi chorosa, lançando o desafio.
Exasperado, ele agarrou-lhe os ombros, sacudiu-a duas ou três vezes, empurrou-a
para fora da cabina do trator. Ela caiu de costas mas com grande leveza. Saltando
para junto dela, Holbrook disse:
- Com a breca, Naomi: não queira que a surre. Isto não é de sua conta. Tenho de
queimar aquelas árvores, e se você continuar interferindo...
- Deve haver outro meio. Deixou que aqueles homens lhe metessem medo, não é,
Zen? Eles temem que a infecção se espalhe, por isso lhe disseram para queimar de-
pressa as árvores, e você nem parou para pensar, para ouvir outras opiniões; você
simplesmente veio aqui munido de sua arma e pôs-se a matar seres inteligentes,
sensitivos, amoráveis...
- São árvores, Naomi - disse Holbrook. - Isto é incrível, Naomi. Pela última vez...
A garota respondeu saltando no trator e se comprimindo de encontro à boca da
arma, os seios apertados contra o metal.
- Se disparar, tem de fazê-lo através de meu corpo!
Tudo quanto ele dissesse não adiantava para afastá-la.
A garota estava perdida em alguma fantasia romântica. Joana D’Arc das árvores
frutíferas, defendia o pomar contra o bárbaro assalto. Mais uma vez Holbrook tentou
raciocinar com ela; mais uma vez ela negou a necessidade de extirpar as árvores. Ele
explicou com veemência a completa impossibilidade de salvar as árvores; ela repli-
cou, com a força da pura irracionalidade, que devia haver outro jeito. Ele praguejou.
Chamou-a de estúpida adolescente histérica. Suplicou. Adulou. Ordenou. Ela se com-
primia de encontro à arma...
- Não posso perder mais tempo - disse ele afinal. - Isto deve ser feito dentro de
um par de horas, se tanto, ou toda a plantação se perderá.
Tirando a arma do ombro, abriu o fecho e apontou para ela.
- Desça daí - disse glacialmente.
Ela riu.
- Espera que eu pense que vai atirar em mim?
Naturalmente, a garota tinha razão. Ele ali ficou gaguejando, ruborizado, desapon-
tado, impotente. A loucura aumentava: a ameaça dele fora completamente inútil,
como ela logo percebera. Holbrook deu um salto para o trator, agarrou-a, tentou
fazê-la descer.
Ela era forte, e o apoio dele, precário. Conseguiu puxá-la para longe da arma, mas
foi surpreendentemente impossível arrancá-la para fora do trator. Não queria magoá-
la, e, na sua solicitude, viu que era o segundo na luta. Uma espécie de força histérica
se achava à disposição da garota; ela era toda cotovelos, joelhos, dedos em garra...
Agarrou-a num ponto, e viu, horrorizado, que lhe agarrava os seios; largou-os, cheio
de embaraço e confusão. Ela afastou-se aos saltos. Ele a perseguiu, tornou a agarrá-
la, desta vez pôde empurrá-la até o trator. Ela saltou, caiu em terra com leveza, vol-
tou-se, correu para o pomar...
Claro que seu pensamento ia adiante do dele. Holbrook a seguiu; foi preciso um
momento para localizá-la. Achou-a abraçada ao tronco de César, e, cheia de espanto,
olhando para os lugares calcinados onde haviam estado Sócrates e Heitor.
- Continue - disse. - Queime todo o pomar! Mas me queimará junto com ele.
Holbrook investiu para ela. Naomi saltou para o lado e começou a saltar para além
dele, em busca de Alcibíades. Holbrook deu uma volta e tentou agarrá-la, perdeu o
equilíbrio e se esparramou no chão, agarrando o ar.
Algo duro, longo e rude bateu-lhe nos ombros.
- Zen! - gritou Naomi. - A árvore... Alcibíades!
Agora Holbrook estava acima do chão: Alcibíades o aprisionara com uma gavinha
de garras e levantava-o para a copa. A árvore lutava com o peso; mas já uma segun-
da gavinha agarrava Holbrook e a tarefa foi mais fácil para Alcibíades. Holbrook se
debatia a uma dúzia de pés acima do chão.
Casos de árvores atacando seres humanos eram raros. Ao todo, já haviam ocorrido
cinco vezes no decorrer das várias gerações de homens que cultivavam árvores frutí-
feras. Em cada um dos casos, a vítima estava fazendo alguma coisa que o pomar re-
putava hostil - por exemplo, procedia ao arrancamento de uma árvore doente.
Um homem era um bom bocado para uma árvore de fruta, sem contudo saciar seu
apetite
Naomi gritou e Alcibíades continuou a levantar Holbrook. Este podia ouvir no alto
um bater de dentes: a boca da árvore preparava-se para recebê-lo. Alcibíades, o vai-
doso, Alcibíades, o eloquente, Alcibíades, o imprevisível - apropriadamente chamado.
Mas era traição agir em defesa própria? Alcibíades tinha uma forte vontade de sobre-
viver. Fora testemunha da sorte de Heitor e de Sócrates. Holbrook olhou para cima,
para as presas cada vez mais próximas. “Então, é assim que a coisa acontece”, pen-
sou. “Comido por uma de minhas próprias árvores! Minhas amigas. Minhas árvores
de estimação. Bem feito: fui demasiado sentimental para com elas. São carnívoras.
Tigres com raízes.”
Alcibíades soltou um grito.
No mesmo instante uma das gavinhas enroladas no corpo de Holbrook perdeu a
força e ele caiu de uma altura de vinte pés, num mergulho entontecedor, algumas
jardas acima do chão do pomar. Quando voltou a respirar, olhou para baixo e viu o
que acontecera. Naomi havia apanhado o estilete que ele deixara cair quando a árvo-
re o capturara e queimara uma das gavinhas e continuava apontando a arma. Alci-
bíades soltou outro grito; Holbrook teve consciência de uma grande comoção nos ga-
lhos acima dele e caiu ao solo sobre um montão de folhas murchas. Após um instan-
te se sentou: não quebrara nada, saíra ileso. Naomi olhava-o, os braços pendentes, o
estilete ainda seguro na mão.
- Está bem? - perguntou tranquilamente.
- Um pouco abalado: é só.
Começou a levantar-se.
- Devo-lhe muito - disse. - Mais um minuto, e estaria na boca do Alcibíades.
- Quase deixei que ele o comesse, Zen. Alcibíades apenas se defendia. Mas não
pude. Por isso foi que lhe queimei as gavinhas.
- Sim, sim. Devo-lhe muito.
Holbrook levantou-se, deu uns passos cambaleantes em direção da garota.
- Olhe aqui - disse. - Melhor me entregar a arma antes que queime o pé com ela. -
E estendeu a mão.
- Espere um segundo - disse ela, glacialmente calma. E recuou à aproximação do
tio.
- O quê?
- É um trato, Zen. Salvei-o; não foi? Não precisava fazer isso. Agora deixe as árvo-
res em paz. Examine aquelas que foram pulverizadas. É um trato.
- Mas.. .
- Mas você me deve muito. Por isso pague. O que desejo de você é uma promes-
sa, Zen. Se eu não o tivesse livrado, agora estaria morto. Deixe também as árvores
viverem.
Iria ela usar o estilete contra ele? Ficou um instante calado, sopesando suas op-
ções. Depois disse:
- Está bem, Naomi. Você me salvou e não posso recusar o que deseja. Não voltarei
a tocar nas árvores, mas tratarei de descobrir algo com que possa pulverizá-las para
matar a ferrugem.
- Está sendo sincero, Zen?
- Prometo. Por tudo quanto é sagrado. E agora: entrega-me o estilete?
- Tome - respondeu ela com as lágrimas lhe escorrendo os olhos pelo rosto enru-
bescido. - Por Deus, Zen: foi tudo tão medonho!
Ele apanhou a arma e colocou-a a tiracolo. Ela pareceu aliviada e mole, gasta toda
a sua força de decisão, depois que lhe entregou o estilete. Atirou-se nos braços dele,
que a apertou estreitamente, sentindo-a estremecer contra o peito. Ele também es-
tremecia, ao puxá-la para si, cônscio dos dois cones maduros dos seios jovens que
lhe roçavam o peito. Uma grande onda do que ele reconheceu abruptamente ser
uma onda de desejo invadiu-o. Sórdido, pensou. Piscava enquanto as imagens da-
quela manhã bailavam no seu cérebro: Naomi nua e radiante ao sair da água, seios
como maçãs, coxas firmes. “Minha sobrinha. Quinze anos. Valha-me Deus.” Tratando
de consolá-la, passou-lhe as mãos nos ombros, desceu-as espinha abaixo. As roupas
da garota eram leves; através delas seu corpo se fazia sempre presente... Súbito, ati-
rou-a no chão.
Ela caiu num montão, rolou de rosto para cima, pôs a mão na boca ao ver que ele
caía sobre ela. Seus gritos se elevaram, estrídulos e penetrantes, enquanto o corpo
dele premia o dela. Seus olhos assustados diziam claramente que ela temia ser vio-
lentada; ele, porém, tinha em mente outras perfídias. Rápido virou-a de bruços, se-
gurou-lhe a mão direita e puxou-lhe o braço para as costas. Depois fê-la sentar-se.
- Levante-se - disse.
Deu-lhe uma torcidela no braço à guisa de persuasão. A garota levantou-se.
- Agora caminhe. Saia do pomar, volte para a camioneta. Se for preciso, quebro-
lhe o braço.
- Que está fazendo? - perguntou ela num murmúrio apenas audível.
- Volte para a camioneta - disse ele, levantando-lhe o braço um pouco mais.
Ela uivou de dor, mas continuou a caminhar.
Na camioneta Holbrook continuou a segurá-la e estendeu uma das mãos para cha-
mar Leitfried no info-centro.
- Que aconteceu, Zen? Rastreamos quase tudo e...
- É por demais complicado para explicar. A garota é muito ligada às árvores. Só
isso. Mande alguns robôs apanhá-la, sim?
- Você prometeu - disse Naomi.
Os robôs chegaram depressa. Dedos de aço, eficientes, dominaram Naomi enquan-
to a içavam para uma camioneta e levaram-na para a casa da fazenda.
Depois que ela partiu, Holbrook sentou-se um instante junto ao trator de pulveriza-
ção, para descansar e clarear a mente. Depois subiu para a cabine do veículo.
O primeiro para o qual apontou a arma de fusão foi Alcibíades.
Escoaram-se mais de três horas. Quando ele acabou, o Setor C era um campo de
cinzas, e um largo cinturão vazio estendia-se desde o limite externo da devastação
até o pomar de árvores sadias mais próximo. Por algum tempo não poderia dizer se
fora bem sucedido em salvar a plantação. Mas fez o quanto pôde.

Enquanto rodava, de volta para casa, seus pensamentos estavam menos no traba-
lho executado do que na sensação do corpo de Naomi de encontro ao seu, e nas coi-
sas que ele pensara ao atirá-la no chão. Um corpo de mulher, sim; mas ainda uma
criança. Ainda criança no seu amor por animais de estimação. Ainda incapaz de per-
ceber como, no mundo real, a gente tem de sopesar a necessidade contra os laços
estabelecidos, e fazer o que é melhor. Naquele dia, que aprendera ela no Setor C?
Que frequentemente o universo apresenta opções brutais? Ou, simplesmente, que o
tio que ela adorava era capaz de traição e assassínio?
Deram-lhe um sedativo, mas ela continuava acordada no seu quarto; quando ele
entrou, ela puxou as cobertas para esconder o pijama. Tinha os olhos frios e magoa-
dos.
- Você prometeu - disse amargamente. - Depois, traiu-me.
- Tinha de salvar as outras árvores. Você me entende, Naomi.
- Entendo que você me mentiu, Zen.
- Sinto muito. Você não me perdoa?
- Vá para o inferno! - disse. E essas palavras adultas, provindas de sua boca ainda
não adulta, enregelaram-no.
Não podia ficar mais tempo em sua companhia. Saiu, subiu para o andar de cima,
para Fred Leitfried e seu info-centro.
- Está tudo terminado - disse tranquilamente.
- Fez a tarefa como um homem, Zen.
- Sim, sim.
Esquadrinhou na tela o setor das cinzas. Sentiu o calor de Naomi contra seu peito.
Viu-lhe os olhos magoados. A noite desceu, as luas iriam começar no céu a sua dan-
ça, as constelações, com as quais nunca se habituara, começariam a acender-se. Tal-
vez ele voltasse a falar com ela. Tentaria fazê-la compreender. Depois mandá-la-ia
embora, até que ela ficasse mulher feita.
- Começa a chover - disse Leitfried. - Isso ajudará a maturação; não acha?
- É bem provável.
- Sente-se como se sentiria um assassino, Zen?
- Que acha?
- Eu sei, eu sei.
Holbrook pôs-se a fechar os esquadrinhadores. Fizera tudo quanto quisera naquele
dia. Disse tranquilamente:
- Fred, eram árvores. Apenas árvores. Árvores, Fred, árvores.

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