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Sobre a diferença entre ética e moral

autor: Deleuze
Spinoza – Philosophie pratique, Paris : Minuit, 1981

[1981]

Nenhum filósofo foi mais digno, mas também nenhum outro foi tão injuriado e odiado
[quanto Espinosa]. Para apreender a razão disso, não basta relembrar a grande tese teórica do
espinosismo: há uma única substância e ela tem uma infinidade de atributos, Deus sive
Natura (Deus, isto é, Natureza), e todas as “criaturas” são apenas modos desses atributos ou
modificações dessa substância. Não basta mostrar como o panteísmo e o ateísmo se
combinam nessa tese, negando a existência de um Deus moral, criador e transcendente. É
preciso, acima de tudo, partir das teses práticas que fizeram do espinosismo um objeto de
escândalo.. Tais teses implicam uma tríplice denúncia: da “consciência”, dos “valores” e das
“paixões tristes”. São estas as três grandes semelhanças com Nietzsche. E são estas as razões
pelas quais Espinosa, ainda em vida, foi acusado de materialismo, de imoralismo e de
ateísmo.

[28]

Desvalorização da consciência (em proveito do pensamento): Espinosa, o materialista.


Espinosa propõe aos filósofos um novo modelo: o corpo. Propõe-lhes instituir o corpo como
modelo: “Não se sabe o que pode o corpo…”. Esta declaração de ignorância é uma
provocação: falamos da consciência e dos seus decretos, da vontade e dos seus efeitos, dos
mil meios de mover o corpo, de dominar o corpo e as paixões – mas nem mesmo sabemos o
que pode um corpo [1]. Porque não o sabemos, tagarelamos. Como dirá Nietzsche,
espantamo-nos diante da consciência, mas, “acima de tudo, o que surpreende é o corpo…”.

Todavia, uma das mais célebres teses teóricas de Espinosa é conhecida pelo nome de
paralelismo: ela não consiste apenas em negar toda relação de causalidade real entre o
espírito e o corpo, mas interdita toda eminência de um sobre o outro. Se Espinosa recusa
qualquer superioridade da alma sobre o corpo, não é para instaurar uma superioridade do
corpo sobre a alma, a qual não seria mais inteligível. A significação prática do paralelismo
aparece na subversão do princípio tradicional em que se fundava a Moral como
empreendimento de dominação das paixões pela consciência: quando o corpo agia, a alma
padecia, dizia-se; e a alma não agia sem que o corpo padecesse por sua vez (regra da relação
inversa, cf. Descartes, Tratado das paixões, artigos 1 e 2) [N Curso]. Segundo a Ética [de
Espinosa), ao contrário, o que é ação na alma é também necessariamente ação no corpo, e o
que é paixão no corpo é também necessariamente [29] paixão na alma [2]. Nenhuma
eminência de uma série sobre a outra. Então, que Espinosa quer dizer quando nos convida a
tomar o corpo como modelo?

Trata-se de mostrar que o corpo ultrapassa o conhecimento que se tem dele, e que o
pensamento igualmente ultrapassa a consciência que dele se tem. No espírito, há tantas coisas
que ultrapassam nossa consciência, assim como, no corpo, há coisas que ultrapassam nosso
conhecimento. Portanto, é graças a um só e mesmo movimento que chegaremos, se possível,
a apreender a potência do corpo para além das condições dadas do nosso conhecimento e a
apreender a potência do espírito para além das condições dadas da nossa consciência.
Procuramos adquirir um conhecimento das potências do corpo para descobrir, paralelamente,
as potências do espírito que escapam à consciência, e para poder comparar as potências. Em
suma, o modelo do corpo, segundo Espinosa, não implica desvalorização alguma do
pensamento em relação à extensão, mas, o que é muito mais importante, implica uma
desvalorização da consciência em relação ao pensamento: uma descoberta do inconsciente, e
de um inconsciente do pensamento, não menos profundo do que o desconhecido do corpo.

É que a consciência é naturalmente o lugar de uma ilusão. Sua natureza é tal que ela recolhe
efeitos, mas ignora as causas. A ordem das causas se define pelo seguinte: cada corpo na
extensão e cada idéia ou cada espírito no pensamento são constituídos por relações
características que subsumem as partes desse corpo, as partes dessa idéia. Quando um corpo
“encontra” um outro corpo e uma idéia encontra uma outra idéia, acontece que as duas
relações ora se compõem para formar um todo [30] mais potente, ora uma decompõe a outra
e destrói a coesão de suas partes. E eis o que é prodigioso tanto no corpo quanto no espírito:
esses conjuntos de partes vivas que se compõem e se decompõem segundo leis complexas [3]
. A ordem das causas é, pois, uma ordem de composição e de decomposição de relações,
ordem que afeta ao infinito a natureza inteira. Nós, porém, como seres conscientes,
recolhemos tão-somente efeitos dessas composições e decomposições: sentimos alegria
quando um corpo encontra o nosso e se compõe com ele, quando uma idéia encontra nossa
alma e se compõe com ela, e sentimos tristeza, ao contrário, quando um corpo ou uma idéia
ameaçam nossa própria coerência. Encontramo-nos numa tal situação que só recolhemos “o
que advém” ao nosso corpo, “o que advém” a nossa alma, isto é, o efeito de um corpo sobre o
nosso, o efeito de uma idéia sobre a nossa. Mas, o que o nosso corpo é sob sua própria
relação e o que nossa alma é sob sua própria relação, e o que os outros corpos e as outras
almas ou idéias são sob suas próprias relações respectivas, e as regras segundo as quais todas
essas relações se compõem e se decompõem — de tudo isso nada sabemos na ordem dada do
nosso conhecimento e da nossa consciência. Em suma, as condições nas quais conhecemos as
coisas e tomamos consciência de nós mesmos nos condenam a ter tão-somente idéias
inadequadas, confusas e mutiladas, efeitos separados de suas próprias causas [4]. Eis porque
nem sequer podemos pensar que as crianças sejam felizes e nem que o [31] primeiro homem
seja perfeito: ignorantes das causas e das naturezas, reduzidos à consciência do
acontecimento, condenados a sofrer efeitos cuja lei se lhes escapa, são escravos de qualquer
coisa, angustiados e infelizes à medida da sua imperfeição. (Ninguém mais do que Espinosa
se insurgiu contra a tradição de um Adão perfeito e feliz).

Como a consciência acalma sua angústia? Como pode Adão imaginar-se feliz e perfeito?
Graças à operação de uma tríplice ilusão. Dado que recolhe apenas efeitos, a consciência
suprirá sua ignorância subvertendo a ordem das coisas, tomando os efeitos por causas (ilusão
das causas finais): do efeito de um corpo sobre o nosso ela fará a causa final da ação do
corpo exterior; e da idéia desse efeito ela fará a causa final de suas próprias ações. Então, ela
tomará a si própria por causa primeira e invocará seu poder sobre o corpo (ilusão dos decretos
livres). E nos casos em que a consciência não pode imaginar-se causa primeira, nem
organizadora dos fins, ela invoca um Deus dotado de entendimento e de vontade, que opera
por causas finais ou decretos livres para preparar ao homem um mundo à medida da sua
glória e dos seus castigos (ilusão teológica) [5]. Nem mesmo basta dizer que a consciência
cria ilusões para si: ela é inseparável da tríplice ilusão que a constitui, ilusão da finalidade,
ilusão da liberdade, ilusão teológica. A consciência é somente um sonho com os olhos
abertos. “É assim que uma criança crê desejar livremente o leite, que um jovem encolerizado,
a vingança, que um medroso, a fuga. Um homem em estado de embriagues também [32]
acredita dizer por um livre decreto da alma aquilo que, saído desse estado, ele quereria ter
calado” [6].
É ainda preciso que a própria consciência tenha uma causa. Ocorre a Espinosa definir o
desejo como “o apetite com consciência de si mesmo”. Mas ele indica que se trata apenas de
uma definição nominal do desejo, e que a consciência nada junta ao apetite (“não tendemos
para uma coisa porque a julgamos boa, mas, ao contrário, julgamos que ela é boa porque
tendemos para ela” [7]). Portanto, é preciso que cheguemos a uma definição real do desejo,
que mostre simultaneamente a “causa” pela qual a consciência é como que cavada no
processo do apetite. Ora, o apetite nada mais é do que o esforço pelo qual cada coisa se
esforça por perseverar no seu ser, cada corpo na extensão, cada alma ou cada idéia no
pensamento (conatus). Mas, porque tal esforço nos leva a atuar diferentemente segundo os
objetos encontrados, devemos dizer que ele é determinado a cada instante pelas afecções que
nos vêm dos objetos. Estas afecções determinantes é que são necessariamente causa da
consciência do conatus [8]. E como as afecções não são separáveis de um movimento pelo
qual elas nos fazem passar a uma perfeição maior ou menor (alegria e tristeza), conforme a
coisa encontrada se compõe conosco ou, ao contrário, tende a nos decompor, a consciência
aparece como sentimento contínuo de uma tal passagem do mais ao menos, do menos ao
mais, testemunhando variações e [33] determinações do conatus em função dos outros corpos
ou das outras idéias. O objeto que convém com minha natureza me determina a formar uma
totalidade superior que nos compreende, a ele e a mim. Aquilo que não me convém
compromete minha coesão e tende a me dividir em sub-conjuntos que, no limite, entram sob
relações inconciliáveis com minha relação constitutiva (morte). A consciência é como a
passagem, ou melhor, o sentimento da passagem dessas totalidades menos potentes a
totalidades mais potentes, e inversamente. Ela é puramente transitiva. Mas não é uma
propriedade do Todo, nem de algum todo em particular; ela só tem um valor de informação, e
ainda de uma informação necessariamente confusa e mutilada. Também aí, Nietzsche é
estritamente espinosista quando escreve: “A grande atividade principal é inconsciente; a
consciência, habitualmente, só aparece quando o todo quer subordinar-se a um todo superior;
ela é, primeiramente, consciência desse todo superior, da realidade exterior ao eu [moi]; a
consciência nasce em relação ao ser do qual poderíamos ser função, ela é o meio de nos
incorporarmos nele”. [Onde?].

Desvalorização de todos os valores e sobretudo do bem e do mal (em proveito do “bom” e


do” mau” [do ruim]: Espinosa, o imoralista.
“Não comerás o fruto…”: Adão, o angustiado, o ignorante, entende estas palavras como
expressão de uma interdição. Entretanto, do que se trata? Trata-se de um fruto que, como tal,
envenenará Adão se este o comer. É o caso do encontro entre dois corpos cujas relações
características não se compõem: o fruto agirá como um veneno, [34] isto é, determinará as
partes do corpo de Adão (e, paralelamente, a idéia do fruto determinará as partes de sua alma)
a entrar sob novas relações que não mais correspondem com sua própria essência. Mas,
porque Adão é ignorante das causas, ele crê que algo lhe é proibido moralmente por Deus, ao
passo que este lhe revelou somente as conseqüências naturais da ingestão do fruto. Espinosa
salienta isso com obstinação: todos os fenômenos que agrupamos sob a categoria do Mau, as
doenças, a morte, são deste tipo: mau encontro, indigestão, envenenamento, intoxicação,
decomposição de relação [9].

De qualquer maneira, há sempre relações que se compõem em sua ordem, em conformidade


com as leis eternas da natureza inteira. Não há Bem nem Mal, mas há o bom e o mau. “Para
além do Bem e do Mal, mas isto não quer dizer: para além do bom e do mau”[10]. Há o bom
quando um corpo compõe diretamente sua relação com o nosso e, com toda ou uma parte de
sua potência, aumenta a nossa. Por exemplo, um alimento. Há o mau, para nós, quando um
corpo decompõe a relação do nosso, ainda que se componha com nossas partes, mas sob
outras relações que aquelas que correspondem à nossa essência: tal como um veneno que
decompõe o sangue. Bom e mau, portanto, têm um primeiro sentido, objetivo, mas relativo e
parcial: o que convém à nossa natureza, e o que não convém. E, conseqüentemente, bom e
mau têm um segundo sentido, subjetivo e [35] modal, qualificando dois tipos, dois modos de
existência do homem: será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça,
enquanto está em si, por organizar os encontros, por unir-se ao que convém à sua natureza,
por compor sua relação com relações combináveis e por aumentar sua potência graças a isso
tudo. É que a bondade tem a ver com dinamismo, potência e composição de potências. Será
dito mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se
contenta em sofrer os efeitos, pronto para lamentar e acusar toda vez que o efeito sofrido se
mostra contrário e lhe revela sua própria impotência. É que, de tanto encontrar não importa o
quê sob não importa qual relação, acreditando que sempre se sairá disso com muita violência
ou com um pouco de astúcia, como não ter mais maus encontros do que bons? Como não
destruir a si próprio à força de culpabilidade, e não destruir os outros à força de
ressentimento, espalhando por toda parte sua própria impotência e sua própria escravidão, sua
própria doença, suas próprias indigestões, suas toxinas e venenos? Não mais sabe encontrar
nem a si mesmo [11].

Eis, portanto, que a Ética, isto é, uma tipologia dos modos de existência imanentes, substitui a
Moral, a qual sempre refere a existência a valores transcendentes. A moral é o juízo de Deus,
o sistema do Julgamento. Mas a Ética subverte o sistema do julgamento. A oposição dos
valores (Bem-Mal) é substituída pela diferença qualitativa dos modos de existência (bom-
mau). A ilusão dos valores está unida à ilusão [36]da consciência: por ser essencialmente
ignorante, por ignorar a ordem das causas e das leis, das relações e suas composições, por se
contentar em atingir e recolher o efeito, a consciência desconhece toda a Natureza. Ora, para
moralizar, é suficiente não compreender. É claro que uma lei, desde que não a
compreendamos, aparece-nos sob a espécie moral de um “Deve-se”. Se não compreendemos
a regra de três, nós a aplicamos, nós a observamos como um dever. Se Adão não compreende
a regra da relação do seu corpo com o fruto, ele entende a palavra de Deus como uma
proibição. Ademais, a forma confusa da lei moral comprometeu de tal modo a lei de natureza
que o filósofo não deve falar de lei da natureza, mas somente de verdades eternas: “É por
analogia que a palavra lei é aplicada às coisas naturais, sendo que, comumente, só se entende
por lei um mandamento…”[12]. Como diz Nietzsche a propósito da química, isto é, da
ciência dos antídotos e dos venenos, é preciso tomar cuidado com a palavra lei, ela tem um
ressaibo moral.

Todavia, é fácil separar os dois domínios, o das verdades eternas da Natureza e o das leis
morais de instituições, mesmo que seja apenas por seus efeitos. Tomemos consciência da
palavra: a lei moral é um dever, tem apenas como efeito, como finalidade, a obediência. É
possível que esta obediência seja indispensável, é possível que os mandamentos estejam vem
fundados. Porém, a questão não é esta. A lei, moral ou social, não nos traz conhecimento
algum, nada nos leva a conhecer. No pior dos casos, ela impede a formação do conhecimento
(a lei do tirano) [37]. No melhor, ela prepara o conhecimento e o torna possível (a lei de
Abraão ou de Cristo). Entre estes dois extremos, ela substitui o conhecimento naqueles que
não são capazes de obtê-lo em razão do seu modo de existência. (a lei moral de Moisés). Mas,
de qualquer modo, não pára de se manifestar uma diferença de natureza entre o conhecimento
e a moral, entre a relação conhecido-conhecimento e a relação mandamento-obediência. O
drama da teologia, segundo Espinosa, sua nocividade, não são apenas especulativos; provêm
da confusão prática que ela nos inspira entre essas duas ordens diferentes por natureza. A
teologia considera, pelo menos, que os dados da Escritura são bases para o conhecimento,
mesmo que este conhecimento deva ser desenvolvido de maneira racional, ou mesmo
transposto , traduzido pela razão: donde a hipótese de um Deus moral, criador e
transcendente. Tem-se aí, como veremos, uma confusão que compromete inteiramente a
ontologia: a história de um longo erro, no qual se confunde o mandamento com algo a ser
conhecido, a obediência com o próprio conhecimento, o Ser com o Fiat. A lei é sempre a
instância transcendente que determina a oposição dos valores Bem-Mal, mas o conhecimento
é sempre a potência imanente que determina a diferença qualitativa dos modos de existência
bom-mau.

III. Desvalorização de todas as “paixões tristes” (em proveito da alegria): Espinosa, o ateu.

Se a Ética e a Moral se contentassem em interpretar diferentemente os mesmos preceitos, sua


distinção seria apenas teórica. Porém, algo mais acontece. [38] Em toda a sua obra, Espinosa
não pára de denunciar três tipos de personagens: o homem das paixões tristes; o homem que
explora estas paixões tristes e que delas necessita para assentar seu poder; por último, o
homem que se entristece com a condição humana e com as paixões do homem em geral (que
tanto pode zombar como indignar-se, não deixando de ser esta própria zombaria um mau riso
[13]). O escravo, o tirano e o padre… trindade moralista. Nunca, desde Epicuro e Lucrécio,
foi tão bem mostrado o profundo liame implícito entre tiranos e escravos: “O grande segredo
do regime monárquico e seu interesse profundo consistem em enganar os homens,
disfarçando, sob o nome o nome de religião, o temor a que se quer sujeitá-los; de tal modo
que eles combatem por sua servidão como se tratasse de sua salvação” [14] . É que a paixão
triste é um complexo que reúne o infinito dos desejos e a perturbação da alma, a cupidez e a
superstição. “Os mais ardorosos em abraçar todo tipo de superstição não deixam de ser
aqueles que desejam imoderadamente os bens exteriores” LO. O tirano tem necessidade da
tristeza das almas para triunfar, assim como as almas tristes têm necessidade de um tirano
para prover e propagar. De toda maneira, o que os une é o ódio à vida, o ressentimento contra
a vida. A Ética traça o retrato do homem do ressentimento, que faz da miséria ou da
impotência sua única paixão e para quem toda felicidade é uma ofensa. “Não deixam de ser
insuportáveis para si mesmos , esses que sabem quebrantar as almas em vez de fortificá-las.
Eis porque muitos preferiram viver entre os animais [39] do que entre os homens. Da mesma
maneira, crianças e adolescentes, que não podem tolerar com igual ânimo as reprimendas dos
seus pais, se refugiam no serviço militar, preferem mais os inconvenientes da guerra e a
autoridade de um tirano do que as comodidades domésticas e as advertências paternas, e
suportam que lhes imponham uma carga qualquer, contanto que se vinguem dos seus
pais…”[15].

É certo que há uma filosofia da “vida” em Espinosa: ela consiste, precisamente, em denunciar
tudo o que nos separa da vida, todos esses valores transcendentes orientados contra a vida,
ligados às condições e às ilusões da nossa consciência. A vida é envenenada pelas categorias
do Bem e do Mal, da falta e do mérito, do pecado e da remissão [16]. O que envenena a vida
é o ódio, o que inclui o ódio voltado contra si mesmo, a culpabilidade. Espinosa segue passo
a passo o terrível encadeamento das paixões tristes: primeiramente, a própria tristeza, depois
o ódio, a aversão, a zombaria, o temor, o desespero, o morsus conscientiae [LO]a piedade, a
indignação, a humildade, o arrependimento, a abjeção, a vergonha, o pesar, a cólera, a
vingança, a crueldade…[17]. Sua análise vai tão longe que ele reencontra, até na esperança e
na segurança, esse grão de tristeza que basta para delas fazer sentimentos de escravos [18]. A
verdadeira cidade propõe aos cidadãos o amor à liberdade mais do que a esperança das
recompensas ou mesmo a segurança dos bens, pois “é aos escravos, não aos homens livres,
que são dadas recompensas por sua [40] boa conduta” [19]. Espinosa não é daqueles que
pensam que uma paixão triste tenha algo de bom. Ele denuncia, antes de Nietzsche, todas as
falsificações da vida, todos os valores em nome dos quais depreciamos a vida: não vivemos,
mantemos apenas uma aparência de vida, imaginamos apenas evitar morrer, e toda a nossa
vida é um culto à morte.

Esta crítica das paixões tristes está profundamente enraizada na teoria das afecções. Um
indivíduo é, antes de tudo, uma essência singular, isto é, um grau de potência. A essa essência
corresponde uma relação característica; a esse grau de potência corresponde um certo poder
de ser afetado. Essa relação, finalmente, subsume partes; esse poder de ser afetado está
necessariamente preenchido por afecções. Assim, os animais se definem menos por noções
abstratas de gênero e de espécie do que por um poder de ser afetado pelas afecções de que são
“capazes”, pelas excitações às quais eles reagem nos limites de sua potência. A consideração
dos gêneros e das espécies implica ainda uma “moral”, ao passo que a Ética é uma etologia
que, em relação aos homens e aos animais, só considera em cada caso o poder de ser afetado.
Ora, precisamente do ponto de vista de uma etologia do homem, deve-se distinguir, em
primeiro lugar, dois tipos de afecções: as ações, que se explicam pela natureza do indivíduo
afetado e derivam de sua essência; as paixões, que se explicam por outra coisa e derivam de
fora. Portanto, o poder de ser afetado se apresenta como potência de agir, quando se supõe
preenchido por afecções ativas, mas, quando preenchido por paixões, ele se apresenta como
potência de padecer. [41] Para um mesmo indivíduo, isto é, para um mesmo grau de potência
que se supõe constante dentro de certos limites, o próprio poder de ser afetado permanece
constante nesses mesmos limites, mas a potência de agir e a potência de padecer variam
profundamente uma e outra em razão inversa.

É preciso distinguir, não só as ações e as paixões, mas dois tipos de paixões. Seja qual for o
tipo, é próprio da paixão preencher nosso poder de ser afetado separando-nos de nossa
potência de agir, mantendo-nos separados desta potência. Porém, quando encontramos um
corpo exterior que não convém com o nosso (isto é, cuja relação não se compõe com a
nossa), tudo se passa como se a potência desse corpo se opusesse à nossa potência, operando
uma subtração, uma fixação: diz-se, então, que nossa potência de agir é diminuída ou
impedida, e que as paixões correspondentes são de tristeza. Ao contrário, quando
encontramos um corpo que convém com nossa natureza, e cuja relação se compõe com a
nossa, dir-se-ia que sua potência se adiciona à nossa: as paixões que então nos afetam são de
alegria, e nossa potência de agir é aumentada ou ajudada. Esta alegria é ainda uma paixão,
pois ela tem uma causa exterior; permanecemos ainda separados de nossa potência de agir,
não a possuímos formalmente. Nem por isso esta potência de agir deixa de aumentar
proporcionalmente; “aproximamo-nos” do ponto de conversão, do ponto de transmutação que
nos tornará senhores dela e, por isso, dignos de ação, de alegrias ativas [20].

É o conjunto desta teoria das afecções que dá conta do estatuto das paixões tristes. Sejam elas
quais forem, seja qual for a maneira pela qual se justificam, elas representam o mais baixo
grau da nossa potência: aquele momento em que estamos separados ao máximo da nossa
potência de agir, em que estamos alienados ao máximo, entregues aos fantasmas da
superstição, às mistificações do tirano. A Ética é necessariamente uma ética da alegria: só a
alegria vale, só a alegria permanece, nos aproxima da ação e da beatitude da ação. A paixão
triste é sempre impotência. Eis, então, o tríplice problema prático da Ética: Como chegar ao
máximo de paixões alegres e daí passar aos sentimentos livres ativos (uma vez que nosso
lugar na Natureza parece nos condenar aos maus encontros e às tristezas)? Como conseguir
formar idéias adequadas, de onde decorrem, precisamente, os sentimentos ativos (uma vez
que nossa condição natural parece nos condenar a ter tão-somente idéias inadequadas do
nosso corpo, do nosso espírito e das outras coisas)? Como devir consciente de si mesmo, de
Deus e das coisas – “sui et Dei et rerum aeterna quadam necessitate conscius” (uma vez que
nossa consciência parece inseparável de ilusões)?

As grandes teorias da Ética – unicidade da substância, univocidade dos atributos, imanência,


universal necessidade, paralelismo etc. – são inseparáveis das três teses práticas sobre a
consciência, os valores e as paixões tristes. A Ética é um livro simultâneo escrito duas vezes:
uma vez na onda contínua das definições, proposições, demonstrações e corolários, que
desenvolvem os grandes temas especulativos com todos os rigores da cabeça pensante; uma
outra vez na cadeia [43] quebrada dos escólios, linha vulcânica descontínua, segunda versão
sob a primeira, que exprime todas as cóleras do coração e estabelecem as teses práticas de
denúncia e de libertação [21]. O caminho todo da Ética se faz na imanência; mas a imanência
é o próprio inconsciente e a conquista do inconsciente. A alegria ética é o correlato da
afirmação especulativa.

X X X

Fim do Capítulo II

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