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1 M. G. S. Padilha & P. I. C.

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Estudos de Psicologia 2004, 9(1), 53-61
Gomide

Descrição de um processo terapêutico em grupo para adolescentes


vítimas de abuso sexual

Maria da Graça Saldanha Padilha


Universidade Tuiuti do Paraná
Paula Inês Cunha Gomide
Universidade Federal do Paraná

Resumo
Pessoas que sofreram abuso sexual na infância ou adolescência carregam seqüelas emocionais provenientes
do abuso, em diferentes graus. Este estudo teve como objetivo geral a análise de um processo terapêutico
em grupo desenvolvido com adolescentes do sexo feminino, vítimas de abuso sexual intrafamiliar, visando
dimi- nuir seqüelas do abuso e melhorar seu repertório de enfrentamento. O processo de quinze sessões foi
dividido em quatro fases, com objetivos específicos: (I) Preparação - dessensibilizar para facilitar a auto-
exposição; (II) Revelação e exposição de sentimentos - facilitar a revelação do abuso sexual; (III) Aceitação
- discutir a aceitação do abuso sexual e seu lugar na história de vida da pessoa; e (IV) Prevenção - facilitar
a aprendizagem de comportamentos de autoproteção que impeçam a revitimização. Os resultados mostraram
que exposições graduais ao tema feitas em grupo podem facilitar a revelação, a expressão de sentimentos e
a aceitação do abuso na história de vida das participantes.
Palavras-chave: abuso sexual; revelação; prevenção; revitimização

Abstract
Description of therapeutic group process with sexual abused female teenagers. People who suffered sexual
abuse in childhood or adolescence carry a great number of abuse-related sequela. The aim of this study was
the analysis of a therapeutic group process developed with female teenagers who were victims of
intrafamilial sexual abuse. It aimed for the sequela reduction left by the sexual abuse, and improve their
tools for facing up to the abuse situation. The process was composed of fifteen sessions, divided into phases,
each one having an specific aim: Preparation - desensitization to facilitate the self-exposure; Revelation and
feelings exposure
- to facilitate the sexual abuse revelation, and promote the feelings exposure; Acceptance - to discuss the
sexual abuse acceptance, and its place in the person’s life history; Prevention - to facilitate the learning of
self protection behaviors that prevent their selves from revictimization. The results show that the
gradual exposures to the subject made inside the group can facilitate the sexual abuse disclosure, and the
feelings expression.
Key words: sexual abuse; disclosure; prevention; passaram por situações de maus-tratos na infância ou ado-
revictimization lescência têm maior probabilidade de repetir estas
situações

A
proteção a crianças e adolescentes transformou-se
em um movimento social que vem sendo apoiado
por um crescente envolvimento de profissionais da
área da infância e da família (Wolfe, 1998). Questões ainda
não respondidas sobre os maus-tratos ganham cada vez mais
espaço como problemas de pesquisa, seja para o entendi-
mento da negligência, seja para a investigação do abuso físi- co,
psicológico ou sexual (Padilha, 2001).
De acordo com a hipótese da transmissão
intergeracional da violência, segundo a qual violência gera
violência e abuso gera abuso (Widom, 1989), pessoas que
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com sua prole, ativa ou passivamente. Como forma de maus-


tratos, o abuso sexual deve também ser foco de estratégias
de prevenção, para evitar que se repita em gerações seguin-
tes.
Para Born, Delville, Mercier, Sand e Beeckmans (1996)
uma definição de abuso sexual deve incluir: um abuso de
poder, orientado em direção à intimidade corporal, entre um
adulto e uma criança ou adolescente, que acontece no seio
da família ou fora do círculo doméstico.
As diferentes definições de abuso sexual têm, no mí-
nimo, três aspectos em comum: (1) a impossibilidade de uma
decisão por parte da criança ou adolescente sobre sua parti-
cipação na relação abusiva, já que na maior parte das vezes
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não está apta para compreender o seu envolvimento numa minação por parte da criança. Friedrich (1998) afirma que uma
relação sexual; (2) o uso da criança por parte do adulto para a mera “acusação” à mãe é infértil, se não for considerada
própria estimulação sexual; e (3) o abuso de poder exercido a relação direta entre a sua história de vida e os efeitos
pelo adulto, cujo comportamento coercitivo não pode ser iden- sobre seu repertório de proteger os filhos.
tificado facilmente, pois muitas vezes não existem provas físi- Segundo Eibl-Eibesfeldt (1977), a sexualidade huma-
cas de que o abuso sexual aconteceu (Amazarray & Koller, na tem dois objetivos: servir à reprodução e unir os pares
1998; Azevedo & Guerra, 1989; Diégoli, Diégoli, Lerner, (função vinculadora). Esta união exclui o incesto, tido como
& Ramos, 1996; Gabel, 1997). O incesto inclui-se nesta catego- tabu universal. “Há uma inibição inata que nos impede de
ria e é talvez a forma mais extrema de abuso sexual segundo casarmos com pessoas com as quais crescemos em relações
Azevedo, Guerra e Vaicunas (1997). de união íntima” (p.186). O incesto é, portanto, antinatural na
Conforme Amazarray e Koller (1998), as taxas de ocor- visão da Etologia.
rência reais do abuso sexual são provavelmente mais eleva- A figura do padrasto é freqüentemente ligada ao abu- so
das do que as estimativas existentes. A maioria de casos nun- ca sexual. De acordo com Tyler (1986), a razão para isso é que os
é revelada devido aos sentimentos de culpa, vergonha, padrastos têm menor probabilidade de convivência famili- ar e
ignorância e tolerância da vítima. formação de vínculo afetivo com a criança durante o período
Mesmo levando-se em conta esta afirmativa, os le- de socialização precoce.
vantamentos sobre ocorrências no Brasil mostram números O perfil da criança (ou adolescente) abusada e seu
que impressionam. Diégoli et al. (1996) apresentam dados le- relacionamento com o abusador são relatados pela literatura
vantados no setor de sexologia do Instituto Médico Legal de São como bastante complexos. A vítima é descrita como tendo
Paulo, onde cerca de 70% das queixas de abuso sexual uma participação involuntária em uma relação complementar
ocorreram em meninas com idade inferior a 18 anos. Em levan- em que tira ganhos e que muitas vezes é a relação mais impor-
tamento feito pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Ur- tante e significativa de toda a sua vida (Furniss, 1993). O
bano de Curitiba - PR (1999), junto ao Instituto Médico Legal, vínculo torna-se sexualizado e contém ao mesmo tempo ele-
foram apontadas as ocorrências sobre a violência na cidade mentos positivo-gratificantes e elementos danosos para a
de Curitiba e região metropolitana: cerca de 77% dos casos criança. Suas demandas afetivas são respondidas pelo
de violência sexual foram cometidos contra indivíduos com abusador num contexto que desperta precocemente a sua
idade inferior a 19 anos. Em levantamento realizado de abril a sexualidade. Ao buscar cuidado emocional, recebe uma res-
junho de 2002 pelo Sistema Nacional de Combate à Explora- posta sexual. Com o acúmulo de experiências de abuso, a
ção Sexual Infanto-Juvenil, foram feitas 250 denúncias de vítima em sua confusão entre cuidado emocional e experiên- cia
abuso sexual, sendo 52,86% de abusos cometidos por famili- sexual pode apresentar comportamento sexualizado, quan- do
ares e 47,14% de abusos cometidos fora da família (Associa- na verdade quer cuidado emocional. Além disso, desen-
ção Brasileira de Proteção à Infância e Adolescência, 2002). volve uma dificuldade em confiar nas pessoas, sejam próxi-
mas ou não.
Breve descrição do fenômeno e dos perfis
das pessoas envolvidas no abuso sexual O impacto do abuso sexual para crianças
O abuso sexual da criança é de natureza variada: e adolescentes
vai desde uma carícia íntima, manipulação da genitália, mama Os sentimentos de culpa são freqüentes entre os indi-
ou ânus, exploração sexual, pornografia, “voyeurismo”, víduos que sofreram abuso prolongado, independentemente
exibicionismo, até a penetração, vaginal, anal ou oral. Pode do grau de cooperação (Perrone & Nannini, 1998). A atitude do
também estar associado a um grau variável de violência, des- de abusador em apontar a vítima como co-responsável pelo
a intimidação até a agressão física. Pode ocorrer dentro da abuso pode fazê-la sentir-se ainda mais culpada.
família, sendo perpetrado mais comumente pelo pai ou pelo O abuso sexual prolongado pode prejudicar seriamente
padrasto contra a filha ou enteada e também fora da família, por o desenvolvimento emocional, cognitivo e comportamental
parte de indivíduos pedófilos ou agressivos, freqüen- temente da criança ou adolescente, particularmente no caso do inces- to.
pertencentes ao círculo de relações da criança. (Azevedo, Guerra, & Vaicunas, 1997). Segundo Knell e
Perrone e Nannini (1998) afirmam que a família que tem Ruma (1999) dez características podem ser evidenciadas em
uma criança abusada pode ter um padrão de comportamento pessoas que sofreram abuso sexual na infância: (1) síndrome
conivente com o abuso. Em outras palavras, é possível que dos “bens danificados” (sentimento de que a inocência foi
um pai ou padrasto abuse da filha ou enteada durante vários perdida, sentimento de que os sonhos foram destruídos),
anos, sob o olhar “cego” das outras pessoas da família. (2) culpa, (3) depressão, (4) baixa auto-estima, (5)
Se- gundo os autores, neste caso a mãe apresenta uma habilidades sociais empobrecidas, (6) raiva e hostilidade
atitude ambivalente e a revelação do abuso em si não reprimidas, (7) capacidade para confiar prejudicada, (8) limites
bastaria para romper o vínculo que a une ao pai abusador. pouco claros entre os papéis, (9) pseudomaturidade, e (10)
Esta mãe teria tido uma história de vida caótica, com problemas de autodomínio e controle.
abandonos e muitas vezes violência. Sua interação afetiva Friedrich (1998) afirma que indivíduos abusados se-
com a criança é por vezes distante e por vezes ambivalente, xualmente podem apresentar sintomas de natureza interna,
dificultando a discri-
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tais como, ansiedade, depressão, queixas somáticas, inibição subseqüente ou revitimização. Para explicar o fenômeno da
e sintomas de stress pós-traumático (hiperexcitação fisioló- revitimização têm sido sugeridos mecanismos como aquisi-
gica, medos e evitação, reexperiência) ou externa, como agres- ção de repertório inadequado de comportamento sexual, as-
são, delinqüência, envolvimento em prostituição, em níveis sociando sexualidade com experiências de punição e dor, de-
aumentados de atividade, além de problemas de comporta- samparo aprendido e autoconfiança diminuída. Se a cadeia
mento sexual. Amazarray e Koller (1998) sintetizam alguns original de comportamentos não for alterada, poderá haver
estudos que afirmam que o abuso sexual afeta o comporta- reincidência.
mento social da criança ou adolescente, a curto e longo pra- zo. Conforme Wolfe (1998), há necessidade de prevenção
A vítima tem dificuldade em confiar nos outros, e apresen- ta de abuso sexual em três níveis: primário, secundário e terciário.
poucos comportamentos pró-sociais, como compartilhar, A prevenção primária tem como objetivo a eliminação ou re-
ajudar, e associar-se. dução dos fatores sociais, culturais e ambientais que favore-
Kohlenberg e Tsai (1998) descrevem o abuso sexual cem a violência, atuando nas suas causas. A prevenção se-
repetitivo ou não como situação de trauma, com duas classes de cundária visa detectar precocemente as crianças ou adoles-
efeitos relacionados: aqueles baseados em respostas centes em situação de risco, atuando em situações já existen- tes.
autonômicas (respondentes) e aqueles baseados em respos- No nível da prevenção terciária o objetivo é o acompa-
tas de esquiva (operantes). No caso do abuso, o condiciona- nhamento integral da vítima e do agressor, por equipe
mento respondente é o pareamento de estímulos ligados à multidisciplinar, incluindo atendimento médico, psicológico,
situação de trauma com a situação de ameaça que evoca an- social e jurídico. Visa melhorar seqüelas de abuso e a proba-
siedade, de maneira que estímulos similares aos presentes bilidade de evitar a revitimização.
durante o abuso podem eliciar ansiedade. A resposta de es- Segundo Friedrich (1998) devem ser criados mecanis-
quiva ocorre porque previne a exposição aos estímulos mos capazes de recolocar a criança ou adolescente em seu
evocadores impedindo a ansiedade, o que explica porque ví- caminho normal de desenvolvimento, através da aquisição
timas de abuso sexual evitam até falar sobre ele. de repertório de enfrentamento com recursos como habilida-
De acordo com Painter e Howell (1999), mulheres que de de solução de problemas, habilidades sociais e habilida-
foram abusadas sexualmente quando crianças crescem repri- des para expressar sentimentos. O terreno da prevenção
mindo a raiva, por medo de repreensões, de isolamento ou da terciária tem por objetivo, portanto, melhorar seqüelas de
retirada do afeto. Em geral, não tiveram bons modelos de abuso e seus efeitos.
expressão apropriada da raiva, pois seus pais também não
Estratégias de tratamento
aprenderam repertório de comportamentos de expressar raiva de
uma maneira saudável. Nyman (1998) apresenta quatro áreas de tratamento
Gomide e Sperancetta (2002) realizaram um estudo no processo de reabilitação de vítimas de abuso sexual, a
sobre comportamento agressivo de adolescentes do sexo fe- saber: (1) descrever o abuso sexual, ou seja, falar, escrever,
minino, comparando a emissão de comportamentos agressi- desenhar, jogar, mostrar e quaisquer outras formas para des-
vos durante uma partida de futebol antes e depois de as par- crever com detalhes; (2) expressar em palavras ou ações
ticipantes assistirem ao filme Marcas do Silêncio (DiGiulio & os sentimentos de culpa, vergonha, decepção, tristeza, agres-
Huston, 1996, com a história de uma menina abusada sexual- são, ansiedade em relação ao agressor e em relação àqueles
mente pelo padrasto). Os resultados mostraram que houve que não perceberam o que estava acontecendo; expressar
aumento da freqüência de comportamentos agressivos após sentimentos ambivalentes; (3) dizer que não, uma pessoa cujos
assistirem ao filme. As autoras interpretaram os resultados territórios corporais e emocionais foram violados precisa de
à luz de algumas teorias, com particular atenção à Etologia, que ajuda para restabelecer os limites de tal território, identificar e
afirma que uma estimulação aversiva violenta desencadeia expressar sentimentos de desejo e não desejo, sentimentos
raiva, e esta emoção desencadeia o comportamento agressi- positivos e negativos, zonas privadas, bons e maus conta-
vo. A visão da agressão sofrida pela protagonista pode de- tos, bons e maus segredos e (4) aceitar, isto é, as experiências
sencadear a raiva. A agressão, humilhação, abuso sexual e difíceis não podem ser totalmente esquecidas, mas devem ser
ausência de proteção são fatores que potencialmente poderi- assimiladas, integradas e transformadas, passando de algo
am estar correlacionados com a expressão da raiva. Dentro da insuportavelmente vergonhoso a uma triste lembrança.
hipótese etológica, a raiva é o sentimento natural de quem Verduyin e Calam (1999) afirmam que o tratamento de
sofre abuso sexual, e sua expressão permite à vítima seqüelas deixadas pelo abuso sexual envolve, por um lado,
desvincular-se de afetos positivos em relação ao abusador, intervenções para aumentar as habilidades e competências e, por
o que facilitaria o tratamento. outro, intervenções para desafiar as cognições distorcidas.
Segundo os autores, avaliar a si mesmo como agente do abu- so
O repertório de enfrentamento como e não como vítima é uma cognição distorcida, que influen- cia
instrumento contra a revitimização sentimentos e comportamentos.
Krahé, Scheinberger-Olwig, Waizenhöfer e Kolpin Dentro do modelo cognitivo-comportamental, pres-
(1999) apontam para a possibilidade de que o abuso sexual na supõe-se que a percepção construída pela vítima é a de ser
infância constitua um fator de risco para a vitimização sexual agente do abuso sexual, ou seja, a história de vida da criança
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vítima permitiu que ela desenvolvesse a crença de ser partícipe ou usa ameaças para coagi-la a não revelar, fazendo com que se
do abuso. Logo, a vítima assume a culpa pelo abuso, o sinta cúmplice do “jogo” e formando o conceito de que
que resulta em comportamentos de evitação do assunto e revelar traz conseqüências negativas. Esta hipótese tem a
na im- possibilidade de novas aprendizagens de seguinte implicação para a terapia: a vítima que revelou o
comportamentos mais adaptativos. Mudar a crença da pessoa abuso e foi punida, ou foi ameaçada pela retirada do afeto
abusada de partícipe (culpada) para vítima é propiciar a caso revelasse, tem dificuldade para formar relações de con-
aprendizagem de um repertório comportamental que impeça fiança com outras pessoas. Iniciando terapia, seja quando
a revitimização (Padilha, 2001). criança, adolescente ou adulta, não revelará o abuso se a
Wolfe (1998) sugere algumas estratégias dirigidas a relação de confiança com audiência não punitiva não for de-
manifestações específicas: (1) para diminuir a hiperexcitação senvolvida pelo terapeuta. Os efeitos supressivos da puni-
fisiológica (uma vez que a ansiedade pode ser resistente à ção cessarão quando o terapeuta acolher empaticamente as
extinção) são necessárias técnicas de exposição, e algumas primeiras tentativas de revelação feitas pela vítima.
vezes tratamento medicamentoso e técnicas de redução da A segunda hipótese deriva de conceitos da Etologia.
ansiedade (relaxamento); (2) para diminuir medos e evitação Como afirma Eibl-Eibesfeldt (1977), o incesto é antinatural e
são aplicadas técnicas de exposição gradual às memórias não uma relação prazerosa. O abusador desencadeia um afe- to
do trauma, terapia cognitiva, dessensibilização sistemática e ambíguo quando elicia na vítima sensações de prazer sexu- al,
manejo de stress; (3) para trabalhar a reexperiência, é neces- ao mesmo tempo em que a coage mostrando que a própria
sário falar sobre o trauma, pois a experiência passa a fazer relação abusiva é socialmente inaceitável. Os sentimentos de
sentido; (4) os problemas de sexualidade podem ser trabalha- carinho e raiva coexistem para a vítima, que desculpa o
dos incluindo-se pais e criança, buscando promover a educa- abusador, afirmando que o afeto recebido é mais importante
ção sexual da família, ensinando os pais como responder do que a raiva. Na realidade, a emoção básica da vítima
às questões sexuais calmamente, desmistificando o de abuso é a raiva, “maquiada” pelo abusador com o afeto
comporta- mento sexual inapropriado, usando estratégias de que este lhe proporciona. A implicação desta hipótese para a
manejo (co- municação aberta sobre sexualidade, clarificar tera- pia é: desencadear a raiva numa situação protegida
conseqüênci- as, desenvolver comportamentos pró-sociais) e permite lidar com a imagem de “bonzinho” do abusador,
aprimorando o monitoramento (restrição de risco). favorecendo a desculpabilização da criança ou adolescente
Kohlenberg e Tsai (1998) afirmam que o trabalho abusada. O primeiro passo é a expressão deste sentimento,
terapêutico deve incluir a prevenção da esquiva, sem a qual o dificilmente admitido pelas vítimas, após o que é possível
processo fica comprometido. Para facilitar a prevenção da refazer a ima- gem que a pessoa abusada tem de si mesma.
esquiva podem ser usadas situações de exposição gradual A revisão da literatura sobre abuso sexual permite
a estímulos relacionados ao trauma. É necessário, portanto, que apontar alguns pressupostos para o trabalho em grupo com
o estímulo evocador de ansiedade seja conhecido, e que o adolescentes vitimizadas sexualmente: (1) vítimas de maus-
cliente seja cooperativo, estando disposto a tolerar certa quan- tratos na infância e/ou adolescência podem tornar-se
tidade de ansiedade ligada à situação de trauma. multiplicadores de maus-tratos na vida adulta; (2) a revelação
O processo de exposição recomendado para adoles- do abuso sexual numa situação protegida permite diminuir as
centes é mais gradual do que o proposto para adultos. Por seqüelas emocionais decorrentes do abuso; (3) para que a
meio de tentativas repetidas de confrontação com sinais rela- informação venha a público deve passar por um ouvinte não
cionados ao abuso, o adolescente aprende que pensamentos crítico e empático numa relação de confiança com audiência não
e lembranças do abuso não são prejudiciais e não precisam punitiva; (4) o trabalho terapêutico em grupo facilita o
ser evitados (Heflin & Deblinger, 1999). rompimento do segredo e do isolamento; (5) a revelação feita
Furniss (1993) afirma que na pré-adolescência e na por aproximações sucessivas permite a prevenção da esqui-
adolescência a terapia de grupo é preferível à terapia indivi- va, pela diminuição da ansiedade; (5) a livre expressão de
dual. Vítimas de abuso sexual definem a si mesmas inteira- sentimentos (principalmente o afeto ambíguo) ligados à situ-
mente através de sua experiência de abuso, e sentem-se úni- cas ação de abuso facilita a modificação da auto-imagem negati- va
nesta experiência, culpadas, isoladas e diferentes de seus iguais. de agente do abuso; (6) a compreensão do papel de vítima
Em sessões de grupo, todos são “normais no contex- to” e permite o desenvolvimento de habilidades de autoproteção
isso faz com que fique mais fácil romper o segredo e o para a de prevenção da revitimização. Estes pressupostos
isolamento (Padilha, 2001). embasam a estrutura e as intervenções praticadas com um
Duas hipóteses podem ser delineadas em relação ao grupo terapêutico para adolescentes abusadas sexualmente.
procedimento terapêutico para vítimas de abuso sexual, con- Este estudo teve como objetivo a análise de um pro-
siderando-se seu comportamento típico de não revelarem o cesso de intervenção terapêutica em grupo de vítimas de abu- so
abuso sofrido. A primeira hipótese refere-se à punição. Como sexual intrafamiliar. Tratou-se de um trabalho de preven-
dito acima, a mãe da vítima pode assumir uma atitude ção terciária, cujo objetivo foi o de diminuir seqüelas deixa- das
ambivalente em relação a ela, de modo que, quando ocorre a pelo abuso sexual e melhorar o repertório de
revelação, a mãe não acredita e pune a criança ou adolescen- te, enfrentamento das participantes. A análise se propôs a verifi-
culpando-a pelo abuso. O abusador também culpa a vítima car se um processo terapêutico de grupo de curto prazo faci-
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lita a revelação do abuso sexual e a exposição de sentimentos bo de Jornalismo, 24 de março de 2000); e a Historia de
ligados a ele, assim como sua aceitação. Analisou-se também a Rosinha (Padilha, 2001).
possibilidade de aprendizagem de um repertório de compor-
tamentos capaz de impedir a revitimização.
Procedimento
A intervenção foi dividida em quatro fases, cada uma
com um objetivo específico. Fase I - Preparação:
Método dessensibilizar para facilitar a auto-exposição, falar de si mes-
ma, dos próprios sentimentos; Fase II - Revelação e exposi-
Participantes ção de sentimentos: facilitar a revelação do abuso sexual,
Cinco adolescentes abrigadas em uma unidade de promover a exposição de sentimentos; Fase III - Aceitação:
abrigo na região de Curitiba e afastadas de suas famílias por discutir a aceitação do abuso sexual e seu lugar na história de
intervenção do Juizado da Infância e da Juventude. Todas vida da pessoa e Fase IV - Prevenção: facilitar a aprendiza-
eram vítimas de abuso sexual intrafamiliar. A intervenção tera- gem de comportamentos de autoproteção que impeçam a
pêutica em grupo foi realizada por três psicólogas, sendo revitimização. O esquema geral pode ser visto na Tabela 1.
uma a terapeuta principal e duas co-terapeutas.
Para a seleção das participantes, a pesquisadora reali-
Resultados e
zou algumas entrevistas individuais com cada participante
do estudo antes de iniciar as sessões em grupo, com o obje- tivo Discussão
de facilitar o vínculo terapêutico. O recrutamento foi fei- to com As análises das sessões serão apresentadas e discu-
consentimento informado, ou seja, foi-lhes dito que o grupo era tidas de acordo com as Fases de Intervenção Terapêutica
para tratar do abuso sexual que haviam sofrido. As sessões executadas, para melhor entendimento e avaliação dos obje-
foram realizadas no consultório particular de uma das tivos propostos.
terapeutas.
Fase I - Preparação
Material As sessões 01 a 05 tiveram o objetivo de preparar as
Foram utilizados diversos materiais para desenho e participantes para a auto-exposição, promovendo um clima
colagem; um vaso quebrado; televisão com videocassete para de confiança, que é pré-requisito para a revelação do abuso
apresentação de três vídeos (De braços abertos, de Souza, sexual. Os recursos utilizados foram: brincadeiras de aqueci-
Kuhn, & Lima, 1999; Marcas do silêncio, de DiGiulio & mento através da confecção de um modelo em argila com
Huston, 1996; e o programa Globo Repórter, da Central Glo- a consigna “represente na argila como está sua vida agora”
e pintura do modelo com comentário posterior (Knell & Ruma,

Tabela 1
Esquema do trabalho terapêutico em grupo
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1999; Ruma, 1993); interações diádicas (cliente-cliente, Já na sessão 07, foi exibido o filme Marcas do Silên- cio
terapeuta-cliente), com conversas em duplas sobre abuso e (DiGiulio & Huston, 1996), que conta a história de uma menina
família, que constituem uma aproximação ao falar em grupo de onze anos que sofre abuso sexual por parte do padrasto,
(Alexander, Neimeyer, & Follette, 1991). Os modelos de auto- sem a proteção da mãe. O estudo de Gomide e Sperancetta
expressão fornecidos pela terapeuta e co-terapeutas facilita- (2002) mostrou que este filme contém cenas com violenta
ram a auto-exposição das participantes, tanto durante os co- estimulação aversiva, que elicia sentimentos de rai- va e
mentários sobre os modelos em argila, quanto durante as comportamento agressivo. As cenas deste filme, com forte
interações diádicas. carga emocional, serviram como estímulo para eliciar as
Pode ser feita uma análise sobre os efeitos do convite emoções das participantes, que puderam expressar-se atra-
inicial às participantes, que colocou de forma clara o objetivo vés do choro, ainda sem falar abertamente sobre sua própria
principal do grupo: tratar do abuso sexual por elas sofrido. história. As terapeutas comentaram sobre a raiva, o desampa- ro
Apesar do óbvio consentimento de cada participante, nenhu- ma e a culpa, mostrando às participantes que estes sentimen-
delas falou diretamente de sua história de abuso sexual tos são característicos das pessoas que sofreram abuso se-
durante as entrevistas preliminares. A literatura (Amazarray e xual e encontram-se impossibilitadas de falar a respeito, mas
Koller, 1998; Furniss, 1993) discute a grande dificuldade que, quando o fazem, experimentam alívio e podem reconsi-
da vítima em confiar nas pessoas e revelar o abuso sofrido, derar o lugar do abuso em suas vidas.
o que reforça a necessidade de assegurar uma fase A auto-exposição sobre o abuso sexual começou na
preparató- ria especificamente orientada para propiciar a sessão 08. As participantes iniciaram o processo de revela-
revelação, como aqui descrito. O uso de atividades de ção, tornando pública sua história, falando do abuso por elas
aquecimento deu um tom de brincadeira, facilitando a sofrido. Comentaram trechos do documentário Globo Repór- ter
descontração e controle da ansiedade pelas participantes a (Central Globo de Jornalismo, 2000), que explorava temas
cada início de sessão. Ao limitarem suas intervenções às ligados aos maus-tratos contra crianças e adolescentes.
falas das participantes, as te- rapeutas permitiram a redução A auto-exposição continuou nas sessões 09 e 10. A
da ansiedade das mesmas, pre- venindo a esquiva. Friedrich estratégia usada foi a confecção do “fio da vida”, uma técni- ca
(1998) afirma que o abuso sexual pode ocasionar sintomas de que utilizou um barbante, para representar através de nós, os
ansiedade (como stress pós- traumático), de forma que a momentos bons e ruins da vida de cada uma delas. Cada
redução da ansiedade deve ser uma forte preocupação participante colou seu barbante em uma cartolina e lá foram
durante o processo terapêutico. Kohlemberg e Tsai (1998) anotados os eventos referentes a cada marca. Iniciaram rela-
lembram que as vítimas evitam falar do abuso por esquiva dos tando os fatos positivos de suas vidas para depois descreve-
estímulos eliciadores da ansieda- de. rem as situações negativas, incluindo o abuso.
A passividade observada nas participantes em alguns A sessão 10 foi o clímax da revelação sobre o abuso
momentos durante esta fase, pode ser interpretada como sexual. Todas expressaram seus sentimentos em relação ao
um retrocesso. Os terapeutas devem estar atentos, pois os abusador, a pessoas da família e a si mesmas e principalmente
movi- mentos de ir e vir dos clientes são esperados e necessários em relação à perda da inocência.
e representam uma necessidade temporária para absorver as O desenvolvimento desta segunda fase mostra clara-
informações e habituar-se às novas situações. Este cuidado mente a revelação. O uso dos filmes serviu para promover
é importante, pois interferir nesse momento pode criar um discussões e eliciar emoções, não só porque os filmes exibi- dos
clima de desconforto e propiciar a esquiva ao processo mostraram situações semelhantes às das vidas das partici-
terapêutico. Wolfe (1998) propõe diminuir a ansiedade atra- pantes, mas também porque se tratava de uma estimulação
vés de relaxamento e abordagens graduais, como realizado em diferentes níveis sensoriais, com destaque para as ima-
neste processo terapêutico. gens.
É importante que o terapeuta esteja preparado para
Fase II - Revelação e exposição de sentimentos
demonstrar uma forte acolhida neste ponto da intervenção,
Foram sessões com o objetivo de dessensibilizar o sendo hábil, paciente e sem duvidar do amadurecimento do
relato sobre o abuso sexual e os sentimentos ligados a ele. processo. Nyman (1998) propõe que falar sobre o abuso, ex-
Durante este processo, a expressão dos sentimentos de raiva pressar seus sentimentos negativos sobre ele e sentimentos
e culpa foi facilitada, iniciando a mudança da auto-imagem, ambivalentes sobre o abusador são etapas fundamentais para a
do papel de agente para o de vítima (Padilha, 2001; Verduyn aceitação da experiência negativa, que precisa ser assimila- da
& Calam, 1999). para posteriormente ser transformada.
Foi exibido (sessão 06) o filme De braços abertos (Sou-
za, Kuhn, & Lima, 1999), com a história de uma menina em Fase III - Aceitação
risco de ser abusada sexualmente, que evita o abuso com A terceira fase (sessões 11 e 12) objetivou promover a
sucesso. A função do filme foi de abrir espaço para a discus- aceitação do abuso e seu lugar na história de vida da pessoa,
são do abuso sexual, com baixo nível de ansiedade e final trabalhando também a emoção da raiva.
feliz. Os comentários sobre a história da personagem favore- Nestas sessões as participantes trabalharam em con-
ceram o início das falas referentes ao abuso de maneira geral, junto em um vaso de argila que havia sido previamente que-
ainda sem auto-exposição. brado em pedaços grandes. Foi solicitado às participantes
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que colassem o vaso e o pintassem, dando-lhe posteriormen- te Fase IV - Prevenção


um nome. Após colarem os pedaços, falaram sobre as ra- A última fase (sessões 13, 14 e 15) teve o objetivo de
chaduras no vaso, fazendo uma analogia com suas próprias permitir uma reflexão sobre a prevenção de abusos futuros
“feridas não cicatrizadas” e dizendo que “a dor é a água que através da aprendizagem de comportamentos de autoproteção
vazaria de dentro”; mostraram que compreenderam que abu- so (Friedrich, 1998; Krahé et al., 1999). Discutir a sexualidade
deixou marcas emocionais. Foi um passo importante para (sessão 13) permitiu a correção de uma série de concepções
aceitar ajuda. Disseram que o vaso sofreu uma violência, que errôneas sobre atitudes sexuais e sobre o próprio corpo. Ta-
cada uma delas “era como aquele vaso” e que “tem gente bus, ausência de conhecimento da anatomia e fisiologia dos
ajudando”. A metáfora do conserto do vaso quebrado foi órgãos sexuais masculinos e femininos tornam estas moças
eficaz no sentido de promover uma analogia com o abuso presas mais fáceis para abusadores. Krahé et al. (1999) salien-
sexual que deixa marcas. A compreensão sobre a possibilida- tam que a aquisição de repertório inadequado de comporta-
de de consertar as marcas do vaso e “consertar” as marcas mento sexual, associando sexualidade com experiências de
do abuso, revelou-se na dedicação com que realizaram a tare- punição e dor, desamparo aprendido e autoconfiança diminu-
fa. O nome que deram ao vaso (“marcas do passado, marcas do ída são componentes presentes na história das vítimas e pre-
silêncio”) sugeriu uma aceitação destes fatos em suas vidas. conizam que se a cadeia original de comportamentos não for
Nyman (1998) afirma ser fundamental falar sobre o trau- ma alterada, poderá haver revitimização.
para aceitá-lo. Neste mesmo sentido, Verduyin e Calam (1999), ensi-
Posteriormente (sessão 12), trabalhou-se novamente nam que o tratamento deve envolver intervenções que au-
a raiva como um sentimento que ajudaria a bloquear cadeias de mentem as habilidades e competências e também que alterem as
comportamentos que a incluíssem, como acontece com o concepções errôneas, particularmente a da vítima que se vê
abuso. Painter e Howell (1999) afirmam que este sentimento como agente do abuso sexual.
está presente nas falas de mulheres que recriam padrões de O momento seguinte (sessão 14) foi de teste, quando se
abuso em seus relacionamentos, deixando-se revitimizar. A verificou a capacidade das participantes de encontrarem
expressão da raiva é reprimida durante o crescimento através de alternativas para futuras situações de risco de abuso. A His-
ameaças de retirada do afeto ou de repreensões. As parti- tória de Rosinha (ficção criada pela terapeuta) serviu para
cipantes do grupo descreveram comportamentos autolesivos avaliar a aprendizagem de autoproteção. Rosinha é uma me-
que emitiam quando sentiam raiva, como bater a cabeça nina, envolvida pelo pai progressivamente em situações de
na parede, gritar, cortar-se ou agredir outros. As terapeutas soli- risco de abuso; a cada momento tem a oportunidade esqui-
citaram que escrevessem em pedaços de papel as situações var-se, ou não, do abusador. As participantes eram convida-
ou pessoas que nelas geravam sentimento de raiva. Em se- das a fazer comentários fictícios sobre os pensamentos e sen-
guida colocaram os papéis dentro de um recipiente e atearam timentos da personagem. Os sentimentos presentes numa
fogo. Escrever sobre a raiva é uma alternativa de expressão situação de abuso apareceram claramente nas falas das parti-
desta emoção, não autolesiva e que permite o enfraqueci- cipantes: medo, raiva, “uma dor por dentro”. A ambivalência
mento gradual dos estímulos desencadeadores deste senti- também apareceu: carinho e ódio em relação ao abusador.
mento e conseqüentemente da expressão do próprio senti- Comentários sobre a percepção do risco, tais como,
mento. A hipótese etológica (Eibl-Eibesfeldt, 1977; Gomide & “ela é ingênua”; “eu acho que ela não vai, que vai correr
Sperancetta, 2002) salienta que a expressão da raiva permite à dele”; “agora ela vai ser esperta” também foram obtidos. As
vítima desvincular-se de afetos positivos em relação ao falas mostraram a possibilidade de discriminação de sinais de
abusador e que este processo é facilitador para a perigo. Isto é um sinal inicial para o estabelecimento de
desculpabilização e, por conseguinte, facilitador da aprendi- um repertório comportamental adequado de autoproteção.
zagem de um repertório de autoproteção. A relação com a mãe apareceu de maneira forte. As
O mesmo parece ter acontecido em relação à culpa. participantes fizeram silêncio quando a terapeuta perguntou
Segundo Nyman (1998), deve haver espaço no processo de que forma poderiam ser convincentes ao contarem o abu- so
terapêutico para a expressão de sentimentos de culpa, raiva, para a mãe. O silêncio continuou quando foi colocada a
vergonha, decepção, tristeza, agressão, ansiedade em rela- questão da culpa, indicando uma dificuldade em apresenta-
ção ao agressor. Jongsma (1999) afirma que este rem um relato convincente. Segundo Perrone e Nannini (1998),
processamento é importante para a alteração da auto-imagem da é comum, nas histórias de vítimas de abuso sexual, que as
pessoa que sofreu abuso. mães sejam omissas e permissivas, negando e desqualificando
Knell e Ruma (1999), ao apresentarem as característi- as tentativas de relatos e pedidos de ajuda das filhas. Friedrich
cas das vítimas de abuso, chamam a atenção para a síndrome (1998) afirma que a história de vida da mãe deve ser conside-
dos “bens danificados” (sentimento de que a inocência foi rada, pois ela também pode ser uma vítima de abuso e isto se
perdida, sentimento de que os sonhos foram destruídos) e refletir em dificuldades de proteger os filhos.
sentimento de raiva e hostilidade reprimidas, além da capaci- Durante a última sessão foi pedido às participantes
dade para confiar prejudicada. As participantes deste estudo que confeccionassem um “caminho de grupo”, ou seja, uma
mostraram estas características, as quais foram objeto de representação gráfica de todo o processo vivenciado por elas.
in- tervenção visando a facilitação da expressão da raiva através Cada uma deveria desenhar individualmente seu próprio ca-
de uma relação terapêutica de confiança.
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minho. Nos comentários finais, a terapeuta deu ênfase aos maneira que obter a expressão destes sentimentos é um
comportamentos adquiridos no decorrer do processo, mos- im- portante marco no processo de intervenção.
trando-lhes o modo como se expuseram gradualmente até Durante o processo terapêutico houve revelação, ex-
relatarem abertamente o abuso sofrido e de como puderam posição de sentimentos, falou-se da ambigüidade de senti-
refletir sobre maneiras apropriadas de se proteger contra mentos típica das situações de abuso intrafamiliar, falou-se
fu- turos abusos em suas vidas. em “consertar marcas”, e também sobre a necessidade e for-
mas de prevenção de abusos futuros. Ao falarem sobre as
marcas deixadas pelo abuso e a necessidade de retomarem
Considerações Finais
suas vidas a partir deste entendimento, demonstraram claros
O objetivo geral deste estudo foi analisar um proces- so sinais de aceitação de sua história, o que permite considerar
terapêutico em grupo, desenvolvido com cinco adoles- que o terceiro objetivo, a aceitação da experiência de abuso, foi
centes do sexo feminino que haviam sido vítimas de abuso bem sucedido. De acordo com Nyman (1998), as experiên- cias
sexual intrafamiliar. A descrição do processo forneceu infor- difíceis não podem ser totalmente esquecidas, mas de- vem
mações para a sua análise em relação a alguns objetivos ser transformadas e aceitas.
es- pecíficos propostos: (1) facilitar a auto-exposição e a revela- O quarto objetivo, descrito como a operacionalização
ção do abuso sexual, (2) facilitar a exposição de sentimentos dos comportamentos de autoproteção contra a revitimização
ligados a ele, (3) facilitar a aceitação do abuso sexual, e (4) foi iniciado, e neste sentido sugere-se que outras interven-
facilitar a aprendizagem de um repertório de comportamentos ções, como técnicas de dramatização ou outras apropriadas à
que impeçam a revitimização. clientela atendida, devam ser implementadas para facilitar
O processo foi conduzido considerando-se duas hi- a aprendizagem destes comportamentos. A aprendizagem da
póteses: (1) a vítima forma o conceito de que revelar o abuso autoproteção contra a revitimização é um importante objetivo
sexual sofrido traz conseqüências negativas e, portanto, o de qualquer intervenção com pessoas vítimas de maus-tra-
terapeuta deve desenvolver uma relação de confiança com tos, pois, como afirma Widom (1989), abuso gera abuso e
audiência não punitiva e (2) a vítima desenvolve sentimentos violência gera violência. O indivíduo que aprende a se prote-
ambivalentes pelo abusador que devem ser expressos na te- ger estará mais apto a proteger aqueles que lhe são próximos.
rapia, para que seja possível a desculpabilização da vítima, Algumas alterações poderiam ser feitas em trabalhos
facilitada pelo trabalho em grupo. A terapia de grupo para futuros com o objetivo de melhorar a eficácia do atendimen- to.
adolescentes é preferível à terapia individual (Furniss, 1993). Já A fase de preparação poderia ser reduzida, visto que as
que vítimas de abuso sexual definem a si mesmas inteira- mente participantes demonstraram sinais de perfeita adaptação à
através de sua experiência de abuso, e sentem-se úni- cas nesta situação terapêutica desde o seu início. Por outro lado, um
experiência, culpadas, isoladas e diferentes de seus iguais aumento nas sessões que lidem com sentimentos de culpa
(Padilha, 2001), a experiência em grupo torna-se facilitadora e raiva seria pertinente, pois são o eixo central da intervenção,
para romper o segredo e o isolamento. O desen- volvimento ainda que se busque dar ênfase à operacionalização dos com-
deste grupo terapêutico mostrou que o processo de exposição portamentos que impedem a revitimização.
deve ser gradual para que a adolescente apren- da que Estes mesmos procedimentos podem ser aplicados a
pensamentos e lembranças do abuso não precisam ser adolescentes que permanecem no ambiente familiar. Nestes
evitados e podem ser confrontados (Heflin & Deblinger, casos, porém, é necessário que o procedimento terapêutico
1999) seja ampliado para o atendimento dos demais membros da
. família, principalmente a mãe e o abusador, caso ele ainda
Elementos do processo puderam ser analisados como esteja presente. São caminhos alternativos de prevenção
resultantes do método utilizado que empregou estratégias terciária, através dos quais se pretende atuar sobre todo o
específicas para a exploração do tema abuso sexual. O convi- te núcleo atingido.
feito às participantes nas entrevistas preliminares colocou Este estudo objetivou demonstrar uma modalidade de
de forma clara o objetivo principal do grupo. Entretanto, ne- trabalho dirigida a uma população ainda pouco focada pelos
nhuma delas falou diretamente de sua história de abuso sexu- al que fazem intervenção em Psicologia - as vítimas de abuso
durante as entrevistas preliminares, mas todas fizeram a sexual. Considerar que pessoas maltratadas quando crianças
auto-exposição no decorrer do processo. ou adolescentes podem multiplicar os maus-tratos remete-
Levando-se em conta os objetivos de facilitar a auto- nos à conclusão de que investir em estratégias de tratamento de
exposição, ou seja, a revelação do abuso e a exposição de seqüelas emocionais do abuso sexual poderá se revelar numa
sentimentos a ele relacionados, pode-se considerar que o importante fonte de prevenção de danos a gerações futuras.
processo terapêutico proposto foi adequado e eficaz. Deve-
se lembrar que, segundo Furniss (1993), a criança abusada
tem uma participação involuntária no abuso, numa relação Referência
com o abusador que muitas vezes é a mais significativa s
de toda a sua vida. Isso explicaria em parte a dificuldade Alexander, P., Neimeyer, R., & Follette, V. (1991). Group therapy for women
em revelar o abuso e falar sobre a ambivalência de sentimentos. sexually abused as children - a controlled study and investigation of indivi-
Por outro lado, para Painter e Howell (1999), as vítimas dual differences. Journal of Interpersonal Violence, 6(2), 218-231.
de abuso crescem reprimindo a raiva, por medo de punições, de
61 M. G. S. Padilha & P. I. C. Terapia para adolescentes abusadas sexualmente 61
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Maria da Graça Saldanha Padilha, mestre em Psicologia da Infância e Adolescência pela Universidade
Federal do Paraná, é professora no Departamento de Psicologia, Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail:
maria.padilha@utp.br e mari.gra@zipmail.com.br
62 M. G. S. Padilha & P. I. C. Terapia para adolescentes abusadas sexualmente 62
Gomide

Paula Inês Cunha Gomide, doutora em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo, é
professora na Universidade Federal do Paraná. Endereço para correspondência: Praça da Ucrânia, 80,
ap.162, Bigorrilho; Curitiba, PR; CEP 80730-430. E-mail: pgomide@onda.com.br

Recebido em 23.jul.02
Revisado em 04.fev.03
Aceito em 19.abr.04

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