Professional Documents
Culture Documents
1590/1984-0292/1232
Artigo
opção por essa metodologia não foi meramente estética A discussão da Política evocou uma pluralidade de
ou científica, mas foi fundamentalmente política, como ideias, remetendo às primeiras concepções da Política,
nos aponta o autor: que se estruturaram como modo de organização social,
Contar histórias, articular historicamente o passado, baseada na pluralidade dos homens, na relação entre
posicionar-se em relação ao passado e fazer um diagnóstico homens, na convivência e organização para certas coisas
do presente não são atitudes que se diferenciam nas em comum que seriam essenciais e fundamentais para
discussões benjaminianas e, talvez aí, se elaborem as a sobrevivência, produção e relação (ARENDT, 1997,
maiores contribuições para um estudo das narratividades 2004). Mas as análises se detiveram nas mais recentes
nas sociedades contemporâneas (FERREIRA, 2011, p. 127). concepções modernas que foram engendradas, a partir do
século XVII, em uma nova lógica econômica e social,
Utilizamo-nos de Benjamin, uma vez que a questão
com transformações profundas nos modos da produção do
da narratividade trazida pelo autor proporciona a figura
trabalho, da administração pública e da gestão política. O
do contador de histórias. O narrador é, exatamente,
que submeteu as sociedades contemporâneas, as Políticas
o portador do acervo de toda uma vida, não só da
Públicas e as suas formas de governo, a uma análise
própria experiência, mas também em grande parte da
centrada no capitalismo e no seu desenvolvimento, como
experiência alheia (BENJAMIN, 1994). Os nossos
sistema imanente, que se reencontra sempre com os
entrevistados nada mais foram do que contadores de
próprios limites em uma escala cada vez mais ampliada
histórias. Onze (11) psicólogos, servidores públicos,
(DELEUZE, 1992, p. 212).
que atuavam na Assistência Social no Espírito Santo e
participavam do Fórum Estadual dos Trabalhadores do Essas relações políticas são entremeadas em jogos de
SUAS; sendo esses os critérios que os elegeram como força e poder. Entendendo que o poder é um exercício
sujeitos da pesquisa, além da disponibilidade pessoal. e só existe nas relações de força, em uma situação
Tal Fórum é um espaço permanente de representação estratégica e em um dado momento (FOUCAULT, 1985).
dos trabalhadores e deliberação da política, aquele O poder que passou então a ser exercido sobre a vida, o
pretende se caracterizar como um espaço de discussão biopoder, são formas de gerir, administrar e maximizar
profissional. Tal espaço foi instituído a partir de uma a vida, constituindo um mecanismo que leva em conta a
mobilização nacional, que direcionou agentes inseridos regulação da população, como natalidade, mortalidade,
nas Políticas Sociais no Estado do Espírito Santo a se saúde pública, habitação (FOUCAULT, 2008). Tais
organizarem, com objetivo de articularem e mobilizarem fenômenos foram abarcados pela biopolítica, exercida
ações no âmbito da Assistência Social, resguardados por como uma política de regulamentação da vida, sobre
um Fórum Nacional com as mesmas pautas. Enquanto o corpo social, sobre a população, em seus fenômenos
pesquisa qualitativa foi baseada em depoimentos coletivos e políticos, sobre as massas. A biopolítica é
orais; desse modo, as entrevistas, que aconteceram no traduzida em uma tecnologia de controle da população
ano de 2012, tinham um roteiro semiestruturado a ser em dimensões globais com efeitos regulamentadores e
vencido, com temas extremamente amplos, a fim de protecionistas da vida.
propiciar depoimentos e relatos pessoais sobre formação, Esse novo modo de governar se dá pela
experiências profissionais, Política, Psicologia e Fórum Governamentalidade, que se define em termos de um
dos Trabalhadores. Os relatos orais foram gravados, conjunto de estratégias que tem por alvo a população,
transcritos e analisados a partir das temáticas afins. por forma principal de saber a economia política e por
Esses psicólogos narraram suas histórias que não se instrumentos os dispositivos de segurança (FOUCAULT,
separam de modo algum do período histórico em que 1984b, p. 171). É o modo que o Governo assume a forma
vivem, e do contexto político que envolve formação de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos, agindo
e trabalho na atualidade. Essa abordagem discursiva sobre as possibilidades de ação do outro, na perspectiva de
considera que os sujeitos estiveram inseridos em um estruturar o campo de ação dos indivíduos (FOUCAULT,
contexto histórico social e envolvidos por determinadas 1995, p. 244). É nessa perspectiva, que os governos
condições, e, que as formações e as práticas não foram empregam instrumentos de controle econômico e de
apresentadas com um percurso único presente nelas saberes no interior de uma série de aparelhos específicos
mesmas, mas sim foram construídas mediante as relações (FOUCAULT, 2000). Sendo através de um controle
de poder que estão instituídas bem como aos jogos contínuo implantado nas formas sutis de educação,
institucionais que instituem novas práticas (ORLANDI, sanção e tratamento na chamada Sociedade de Controle
1996, 2003; PÊCHEUX, 1990). (DELEUZE, 1992).
As perspectivas para a Clínica Ampliada: o campo As ações do Estado são mais amplas e difusas, não
das Políticas Públicas se vinculando mais ao domínio totalizador ou a proteção
essencial à sobrevivência. Ele se figura como protetor dos
Nessas análises, os pontos que foram privilegiados direitos do cidadão, em que a família e o indivíduo devem
nos relatos eram elementos constituintes da formação e ter suas vidas protegidas para que possam investir em uma
exercício da Psicologia e da vida política, relações nas ascensão na qualidade da vida disponibilizada pelo sistema
quais se observaram as políticas de gestão da vida – de de consumo (BENEVIDES DE BARROS, 2002). Em suas
controle e de resistências. formas tão múltiplas de relações, o Estado, embora não
mais centralize os jogos do poder, atrai-nos e captura-nos
como se as questões públicas estivessem concentradas 1980, que os psicólogos se perguntaram sobre sua
no seu interior. São governamentalizadas, elaboradas, responsabilidade diante do contexto social, a partir dos
racionalizadas, centralizadas na forma das instituições do movimentos sociais da década de 1980 que trouxeram
Estado (BENEVIDES DE BARROS; PASSOS, 2005). à cena novas questões, como o declínio da ditadura
Os mecanismos do Estado, dos modos de Governo e do militar e da redemocratização na história do Brasil.
Capital, produzem uma gama de informações, serviços, Assim, a Psicologia se focou em desnaturalizar as
desejos. São subjetividades produzidas pela biopolítica demandas produzidas pelo sistema econômico-social e
nesse processo de consumo social, responsabilizando propor intervenções a partir do entendimento a produção
individualmente a cada um pelo trabalho/estudo que o histórica e social das subjetividades (COIMBRA et al.,
permitirá ascender socialmente. A subjetividade não se 2000). E, então, nos anos 1990, deparou-se com a tarefa
refere às concepções de identidade, de estrutura psíquica de imiscuir-se com as políticas sociais sob outro olhar
ou de personalidade, mas traz o sentido da produção e foi inserida nas Políticas Públicas, inicialmente na
das formas de se relacionar, dos afetos construídos, dos saúde e nas questões sociais que envolvem a violência,
modos de vida (MACHADO, 1999). concorrendo para a construção de outros caminhos
e exercendo seu dever ético de contribuir para a
Assim, as políticas sociais e de segurança se
transformação da sociedade.
configuram a partir de um “caráter humanitário de
intervenções políticas que visam incentivar, proteger, A despeito do contexto repressor, esses movimentos
estimular e administrar” a vida das pessoas, como um sociais que aconteceram no país alcançaram avanços
novo modo de o Estado gerir o cuidado da vida (DUARTE, e conquistas sociais e políticas importantes para o
2006, p. 50). Apresentam técnicas de instituições abertas país, a partir da mobilização da sociedade brasileira
e atendimentos domiciliares já surgidas há tempos e em prol da promulgação de uma nova ordem social
que se atualizam nas diretrizes das políticas públicas e transformações em termos de políticas sociais
contemporâneas como direitos e acabam por integrar os traduzida na nova Constituição (BENEVIDES DE
mais novos mecanismos de controle. As políticas estão BARROS; PASSOS, 2005).
associadas às determinações das ciências da vida, de um A ideia da nova Política Social instaurada com a
modo geral, biomédicas, humanas e sociais. Constituição Federal era romper com os resquícios
As ciências da vida partilhavam as preocupações do assistencialismo e do clientelismo advindos das
teóricas e práticas de ordem psicológica junto com os protoformas da constituição do Serviço Social, que se
outros campos disciplinares: a Medicina, a Pedagogia, a davam entre ações de repressão e caridade paralelas
Filosofia. E, ao longo do processo histórico, a Psicologia às leis sociais para pobres do Estado e outros poderes,
foi então constituída a partir dessa visão de mundo como a igreja (IAMAMOTO; CARVALHO, 2001).
burguês e de homem liberal, que consolidou processos de Partindo de ações sociais pautadas em benesses, cada
naturalização junto com os ideais dominantes da época. gestão local deveria organizar seu município, em torno
da construção de centros de referências, que pudessem
Desse modo, a Psicologia nasceu com essa vertente
refletir a Assistência Social, como direito constitucional e
positivista, como um saber preditivo e diagnóstico, tendo
promover autonomia e protagonismo dos cidadãos, com
como principal preocupação no âmbito dos estudos a
princípios de fortalecer indivíduos e famílias, a partir dos
sua colocação como ciência, com a neutralidade, como
seus contextos socioeconômicos.
base para entendimento da criminologia, da loucura,
da colocação do homem no local de trabalho, visando Porém, desse avanço, em termos de mobilização
à adaptação e ao ajustamento tanto na área da escola social e conquistas legais, o Brasil entrou na era
quanto dos institutos psicométricos (ALBERTI, S., 1999; neoliberal, com movimentos globalizantes que já vinham
BARAÚNA, 1999; BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, acontecendo em outros países com a abertura do mercado
1999; CATHARINO, 1999; COIMBRA, 1999; nacional para a economia global logo no primeiro
GONÇALVES, 2003; JACÓ-VILELA, 1999; KEIDE; mandato presidencial efetivamente escolhido pelo povo
JACÓ-VILELA, 1999; MANCEBO, 1999; PEREIRA; após a redemocratização e a promulgação da nova
PEREIRA NETO, 2003; ROSAS, 2010; SOARES, 2010). Constituição. As políticas sociais deixaram o caráter
constitucional universal permanente para se tornarem
Com tal caráter neutro e diagnóstico, a Psicologia
políticas econômicas seletivas e emergenciais, muitas
se fez presente nas políticas públicas e sociais: escolas,
vezes compensatórias, temporárias e focadas na pobreza.
empresas, instituições de recuperação, situações grupais,
como um instrumento a serviço do controle social e da A Assistência Social que, por sua vez, em seu
adaptação dos indivíduos e com a função de produzir processo histórico de constituição foi marcada pelo
conhecimentos sobre os comportamentos humanos, assistencialismo, muitas vezes foi utilizada com esse
vinculada à emissão de laudos e diagnósticos, além do viés, perpetuando práticas de caridade e benefícios
atendimento clínico individual (GONÇALVES, 2003). eventuais. A continuidade dessas ações se perpetua, por
vezes, dentro dos programas políticos de gestores.
Somente a partir da década de 1970, a Psicologia
iniciou uma fase de questionamentos sobre a visão Tal política é discutida emaranhada nessas redes
de homem que a sustentava e sobre a própria atuação de produção de subjetividades e desejos. A legislação
profissional do psicólogo. E, só ao final da década de construída se apresenta como expressão política das lutas
364
Fractal, Rev. Psicol., v. 28 – n. 3, p. 362-369, 2016
Uma perspectiva da Clínica Ampliada: as práticas da Psicologia na Assistência Social
e das captações do sistema. A sua formulação é vinculada da lógica de controle capitalístico da ordem econômica
às estratégias capitalísticas, com os seus instrumentos de e social mundialmente colocada na contemporaneidade
controle da vida e, em contrapartida, nos movimentos (HARDT; NEGRI, 2005).
de desconstrução e construção de outros modos de A Clínica Ampliada: uma perspectiva no percurso da
viver. Isso traduz a noção da produção de subjetividade Psicologia
na cartografia subjetiva de áreas que seguem padrões
semelhantes de constituição da vanguarda capitalista Essa volta pela biopolítica do entendimento dos
(GUATTARI; ROLNIK, 1999). Os mecanismos de mecanismos de uma política de controle da vida, para uma
controle, sutilmente pensados nessa lógica, são também aposta na vida como potência, é que afirmam os filósofos
apresentados na política. Traduzem-se, em termos de contemporâneos, os psicólogos anônimos do cotidiano,
instrumentos de trabalho, na distribuição de atendimento os personagens das políticas públicas contemporâneas.
por profissionais conforme territorialização pela Uma aposta afirmada pelos profissionais, que, em
contagem de números de famílias e indivíduos, no corte suas narrativas, ao resistirem às forças das relações
de atendimento relativo às cifras de ganhos financeiros, de poder buscavam uma potente construção de prática
o controle dos índices de qualidade de vida e toda uma cotidiana. A construção dessa prática do psicólogo na
lógica de esquadrinhamento da vida. Política Pública foi pensada no sentido de problematizar
Nesse campo, também, a Psicologia se posicionou em os processos de subjetivação instituídos e marcados pelo
problematizar as formas de construção da subjetividade, capitalismo, os contextos sociais e desejos dos indivíduos,
dos modos de governar, de gerir a vida, pautada em uma construídos e constituídos em dadas situações, tempos e
postura ética-estética-política. Ética como pensamento espaços, que são produzidos e produtores de realidades,
que avalia os acontecimentos potencializadores ou não pela reprodução e invenção de diversos modos de
de vida; estética como criação, articulando pensamento, existir; atravessados por desejos e afetos. A partir
ação e sensibilidade; e política como a responsabilização dos depoimentos dos psicólogos entrevistados tonou-
ante aos afetos produzidos, sendo construídos nas ações se possível dimensionar essa afetação pelo trabalho
(GUATTARI, 1992). vivenciado, explicitado em falas, tais como: “Porque
está na pele, entendeu? Eu vivi intensamente mesmo esse
A partir desse posicionamento político é que
trabalho” (Psicólogo entrevistado 9).
se fizeram possíveis as transformações nas dadas
relações de poder. Como o outro termo das relações, as Os afetos apareceram nos relatos como ações que
resistências foram construídas nos entremeios da política. tendem a diminuir a potência de vida, amortecer,
As resistências são as relações estabelecidas no coletivo reduzir ao mínimo, acalmar, amansar, controlar,
que transformam os sujeitos e criam as linhas de fuga, mortificar e são entendidos como atributos que de
sendo constituídas pelas lutas que se fazem em nome da sobremodo já são cristalizados nas práticas políticas;
vida, ao galgar por novos caminhos e por novos modos contudo, também apareceram afetos que podem
de existência. As resistências não se configuram em potencializar a vida ao máximo e se definiram mais por
uma tomada de poder ou metas a serem alcançadas, mas suas linhas de fugas e encontros que traçam o limite do
fazem parte de todo o processo histórico desdobrados pensamento e do movimento (DELEUZE, 2002). Os
em modos contraditórios, aleatórios e imprevisíveis nas tais desejos estão em movimentos, possibilitando um
redes nas quais se movimentam o poder, o controle e o grau de abertura para a vida, que cada um permite a
posicionamento de luta. cada momento (ROLNIK, 1989).
É exatamente a tomada dessa potência da vida, a Apresentados pelos psicólogos, os discursos
biopotência, que se forja a biopolítica em uma inversão demonstraram aquilo que mortifica, mas o que também
do termo foucaultiano, como apontado por autores possibilita criar, inventar e reinventar.
contemporâneos (PELBART, 2009; AGAMBEM, 2002; A gente já sabe dizer assim: sabe com quem você tá
NEGRI; HARDT, 2000, LAZARATTO, 2002). É a falando? A gente já sabe com alguma outra palavra indicar
vida como coletivo, cooperação social, afetação, desejo, quem a gente já sabe que conhece do assunto. A gente já
inteligência, que se refere a ocupar, preencher e inventar sabe acalmar um morador quando aquilo deveria estar
os espaços-tempos desse cotidiano (LAZZARATO, ali e não está... E nessa falinha mansa, às vezes, a gente
2002). Essa produção biopolítica de relações e formas amansa. A gente já sabe mortificar mesmo (Psicólogo
sociais transforma-se em formas colaborativas de entrevistado 11).
trabalho, quando se faz possível a inversão do poder sobre Você não precisa aprender mil e uma dinâmicas, mil e um
a vida para a potência da vida (HARDT; NEGRI, 2005). testes, mil e uma formas prontas de atuar. Você tem que
Essa potência produz estilos de existência e modos produzir seus próprios instrumentos. Então, isso eu aprendi
de vida que exprimem uma cooperação coletiva, o muito com a formação, com o ensino e com a extensão
que constitui a multidão, quando se pode manifestar principalmente: isso de criar instrumentos para o seu
legitimamente um mundo de igualdade e liberdade em trabalho (Psicólogo entrevistado 10).
uma sociedade global democrática aberta e inclusiva. É
uma multiplicidade de todas as diferenças singulares,
a multidão se apresenta como a alternativa viva dentro
Embrenhados à Política nessas relações tecidas nas e descontextualizada. E, na verdade, não cabe não só na
gestões dos modos de vida, tanto no que diz ao controle Assistência, não cabe na Saúde, não cabe em lugar nenhum,
quanto a produção de subjetividade, a Psicologia tornou- enfim, não cabe talvez nem em um consultório particular
se eminentemente política e a Clínica a sua forma e que seja... A gente sabe que tem coisas que a gente tem
expressão política. capacidade técnica para intervir, para fazer uma escuta
diferenciada, para fazer uma intervenção que às vezes
Em oposição às subjetividades ajustadas, homogeinizadas
outros profissionais não têm (Psicólogo entrevistado 10).
e assujeitadas, sabemos que o desejo também pode
ser revolucionário. Portanto, acreditamos numa Desse modo, a Clínica como atuação política se
indissociabilidade entre clínica e política e reconhecemos faz necessariamente no campo social, onde produz e
outras interfaces como com a filosofia; com as ciências reproduz ideologias e práticas, não sendo possível separar
minoritárias, com a arte, com a ética/estética e, portanto, as múltiplas manifestações sociais da vida da produção
buscamos destacar na intervenção clínica os componentes de subjetividades e desejos nas estratégias biopolíticas
ético-políticos que atuam na produção subjetiva, da contemporaneidade. Nessa perspectiva em favor da
entendendo que a economia política e a economia subjetiva vida, a Psicologia assumiu uma responsabilidade social
são uma mesma coisa. Isso equivale a dizer que definir a e uma prática ética pela constituição de outros modos
clínica em sua relação com os processos de produção de de vida não assujeitados a um controle ou uma gestão
subjetividade implica-nos com a análise crítica das formas despotencializadora da vida.
instituídas – tornadas hegemônicas, comprometendo-nos
Pessoalmente, eu acredito que a função do psicólogo no
politicamente de maneira inexorável (MOURÃO; JORGE;
SUAS seja exatamente problematizar esses processos
FRANCISCO, 2002, p. 54).
de produção de subjetividade, as formas que estão
A Clínica, enquanto prática da Psicologia por implantadas, implementadas, de viver, de governar. Então
excelência, ocupou também uma nova forma política, é problematizar isso! A função do psicólogo tem essa
onde são problematizadas as relações de forças e função de problematizar, independente da abordagem
estratégias de gestão e investimento da potencialização teórica, a função dele é problematizar, então se ele está
da vida, tendo em vista o seu posicionamento ante os em uma política pública de Assistência Social, a função
efeitos produzidos pelas ações. é problematizar os modos de viver, os modos de governar
A Clínica também é Política. Política também tem naquele território (Psicólogo entrevistado 5).
ideologia, e ideologia ela está aí em volta de você, te Além da necessidade de ultrapassar o imaginário
absorve e você a põe para fora todo momento. Isso do papel diagnóstico e terapêutico ou, ainda, do fetiche
também é política. (Psicólogo entrevistado 1). do conhecimento e especialismo psi, paralelamente,
É nas entrelinhas das relações que a intervenção é preciso reafirmar o conhecimento específico e as
da clínica se inclina, deriva, desvia de um ponto contribuições reais da categoria em meio às estratégias
estabelecido, quando se propõe a descontruir aquilo que políticas de gestão da vida.
é sofrimento para dar lugar a criação de outros modos Dessa forma, quando tomamos a clínica como
de existência e estilos de vida (NEVES; JOSEPSHON, eminentemente política, ou seja, como problematização de
2001, p. 105). É pelo entendimento da origem grega da valores, sentidos fixos, universais e como possibilidades
palavra que sua concepção conceitual mais profunda de conexão com as práticas de “invenção de si”, é que
pode ser apreendida: podemos afirmar o que produzimos no campo da formação
“Psi”, bem como no campo da intervenção em instituições-
Derivada do grego klinikos (“que concerne ao leito”; de
estabelecimentos, como clínica. Ou seja, a crítica como
klíne, “leito, repouso”; de klíno “inclinar, dobrar”). Mais
clínica (NEVES; JOSEPHSON, 2001, p.105).
do que essa atitude de acolhimento de quem demanda
tratamento, entendemos o ato clínico como a produção de Os modos de intervenção se atualizam nos encontros,
um desvio (clinamen), na acepção que dá a essa palavra momentos e relações, que acolhem o outro que traz o
a filosofia atomista de Epicuro (1965). Esse conceito da sofrimento, lamento e queixas e facilitam transformações
filosofia grega designa o desvio que permite aos átomos, ao nos indivíduos, nos coletivos e nas próprias subjetividades,
caírem no vazio em virtude de seu peso e de sua velocidade, produzindo potência, e compondo vidas e produzindo
se chocarem articulando-se na composição das coisas. Essa sentidos, não dominantes e nem totalizantes.
cosmogonia epicurista atribui a esses pequenos movimentos
Os encontros da clínica partem de uma construção
de desvio a potência de geração do mundo. É na afirmação
coletiva, necessariamente não individualizante,
desse desvio, do clinamen, portanto, que a clínica se faz
independentemente se o atendimento realizado é
(BENEVIDES DE BARROS; PASSOS, 2001, p. 93).
estruturado sob modelo individual ou em grupos
Nas histórias de quem contou essas vivências do de trabalho; não sendo reduzida aos atendimentos
cotidiano da Psicologia na Política Pública, obteve-se o individuais ou mesmo às práticas coletivas padronizadas
entendimento nos seguintes termos: e individualizantes que veem o sujeito em uma dimensão
A minha compreensão de Clínica é de uma Clínica pessoal. Acontecem nos mais variados espaços e
Ampliada, uma clínica bem diferente desse chavão da contextos, dependendo cada vez menos de uma estrutura
visão que se tem hoje de um modo geral... A política de delimitada a um setting psicológico do consultório com
Assistência realmente não prevê uma prática clínica se divã ou dos testes diagnósticos.
for conceber uma clínica em um modelo individualizante
366
Fractal, Rev. Psicol., v. 28 – n. 3, p. 362-369, 2016
Uma perspectiva da Clínica Ampliada: as práticas da Psicologia na Assistência Social
ARENDT, H. O que é Política? Tradução de Reinaldo Guarany. FERREIRA, M. S. Walter Benjamin e a questão das
5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. narratividades. Mnemosine, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 121-
133, 2011. Disponível em: <http://www.mnemosine.com.br/
BARAÚNA, L. M. P. B. Da História da Psicologia para uma
ojs/index.php/mnemosine/article/view/233/pdf_218>. Acesso
História na Psicologia. In: JACÓ-VILELA, A. M.; JABUR,
em: 22 ago. 2013.
F.; RODRIGUES, H. B. C. (Org.). Clio-psyché: histórias da
psicologia no Brasil. Rio de Janeiro: UERJ, NAPE, 1999. FOUCAULT, M. A Governamentabilidade. In: MACHADO,
Disponível em: <http://www.cliopsyche.uerj.br/livros/clio1/ R. (Org.). Microfísica do Poder. 8. ed. Rio de Janeiro: Graal,
dahistoriadapsicologiapara.htm >. Acesso em: 5 nov. 2011. 1984b. p. 163-174
BENEVIDES DE BARROS, R. Clínica e social: polaridades FOUCAULT, M. A história da sexualidade: a vontade de saber.
que se opõem/complementam ou falsa dicotomia. In: Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A.
RAUTER, C.; PASSOS, E.; BENEVIDES DE BARROS, R. Guilhon Albuquerque. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. v. 1.
(Org.). Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: HUBERT; DREYFUS;
humanos. Equipe Clínico-Grupal, Grupo Tortura Nunca Mais RABINOW. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para
– RJ. Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia/ TeCorá, 2002. além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera
p. 123-139. Porto Carrero e Gilda Gomes Carneiro. Rio de Janeiro: Forense
BENEVIDES DE BARROS, R.; PASSOS, E. Clínica e Universitária, 1995. p. 231-249.
biopolítica na experiência do contemporâneo. Psicologia FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: Curso no Collège
Clínica, v. 13, n. l, p. 89-100, 2001. de France. Tradução de. Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
BENEVIDES DE BARROS, R. PASSOS, E. A humanização Martins Fontes, 2000. Coleção Tópicos.
como dimensão pública das políticas de saúde. Ciência e Saúde FOUCAULT, M. Segurança, território e população. Curso no
Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, jul.-set. 2005. p. 561- 571 Collège de France. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
CrossRef. Martins Fontes, 2008. Coleção Tópicos.
BENJAMIN, W. Sobre o conceito da História. Tradução de GONÇALVES, M. G. M. Psicologia Sócio-Histórica e
Sergio Paulo Rouanet. In: ______. Obras escolhidas: magia, Políticas Públicas: a dimensão subjetiva de fenômenos sociais.
técnica, arte e política. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 2003. Tese (Doutorado)—Pontifícia Universidade Católica de
1, p. 222-253. São Paulo, São Paulo, 2003.
BOCK, A. M. M.; FURTADO, O.; TEIXEIRA, M. L. T. GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de
Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia. São Janeiro: Ed. 34, 1992.
Paulo: Saraiva, 1999.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do
CATHARINO, T. R. Fragmentos da História da Psicologia desejo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
no Brasil - algumas notações sobre teoria e prática. In:
JACÓ-VILELA, A. M.; JABUR, F.; RODRIGUES, H. B. C. HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão: guerra e democracia na
(Org.). Clio-psyché: histórias da psicologia no Brasil. Rio de era do Império. Tradução de Clovis Marques. Rio de Janeiro:
Janeiro: UERJ, NAPE, 1999. Disponível em: <http://www. Record, 2005.
cliopsyche.uerj.br/livros/clio1/fragmentosdahistoria. IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. Relações sociais e
htm>. Aceso em: 5 nov. 2011. serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórica-
metodologica. São Paulo: Cortez, 2001.
COIMBRA, C. M. B. Práticas “Psi” no Brasil do “Milagre”:
algumas de suas produções. In: JACÓ-VILELA, A. M.; JACÓ-VILELA, A. M. Psicologia: um saber sem memória? In:
JABUR, F.; RODRIGUES, H. B. C. (Org.). Clio-psyché: JACÓ-VILELA, A. M.; JABUR, F.; RODRIGUES, H. B. C.
histórias da psicologia no Brasil. Rio de Janeiro: UERJ, NAPE, (Org.). Clio-psyché: histórias da psicologia no Brasil. Rio de
1999. Disponível em: <http://www.cliopsyche.uerj.br/ Janeiro: UERJ, NAPE, 1999. Disponível em: <http://www.
livros/clio1/praticaspsinobrasildomilagre.htm>. Acesso cliopsyche.uerj.br/livros/clio1/umsabersemmemoria.
em: 05 nov. 2011. htm>. Aceso em 05 nov. 2011.
COIMBRA, C. M. B. et al. Intervenão clínica quanto à violação KEIDE, R.; JACÓ-VILELA, A. M. “Mens in corpore”: o
dos Direitos Humanos: por uma prática desnaturalizadora na positivismo e o discurso psicológico do século XIX no Brasil.
teoria, na ética, na política. In: RAUTER, C.; PASSOS, E.; In: JACÓ-VILELA, A. M.; JABUR, F.; RODRIGUES, H. B.
BENEVIDES DE BARROS, R. (Org.). Clínica e política: C. (Org.). Clio-psyché: histórias da psicologia no Brasil. Rio
subjetividade e violação dos direitos humanos. Equipe Clínico- de Janeiro: UERJ, NAPE, 1999. Disponível em: <http://www.
Grupal, Grupo Tortura Nunca Mais – RJ. Rio de Janeiro: cliopsyche.uerj.br/livros/clio1/mensincorpore.htm >.
Instituto Franco Basaglia/ TeCorá. 2002. p. 113-121. Acesso em: 5 nov. 2011.
DELEUZE, G. Conversações. Tradução de Peter Pal Pelbart. LAZARATTO, M. Puissances de l’invention. Paris, Les
São Paulo: Editora 34,1992. Empêcheurs de penser em rond, 2002.
DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, MACHADO, L. A. D. Subjetividades contemporâneas.
2002. In: BARROS, M. E. B. (Org.). Psicologia: questões
DUARTE, A. M. Biopolítica e resistência: o legado de Michel contemporâneas. Vitória: EDUFES, 1999. p. 231-247.
Foucault. In: RAGO, M.; VEIGA-NETO, A. (Org.). Figuras de
Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. v. 1, p. 45-56.
368
Fractal, Rev. Psicol., v. 28 – n. 3, p. 362-369, 2016
Uma perspectiva da Clínica Ampliada: as práticas da Psicologia na Assistência Social