Professional Documents
Culture Documents
ÁLVARO LINS
O que explica que
ainda hoje possamos assistir ou ler as peças de Shakespeare
ou Corneille é o que nelas existe de puramente lm·
mano, mas não tenhamos dúvidas de que - pelo desaparecimento
do que contêm de social - alcançam sôhre nós
um efeito muito menor do que sobre os seus contempo·
râneos. O mesmo se poderá dizer de um autor dos nossos
dias : em um leitor do próximo século Mareei Proust
não obtel'á a mesma impressão que hoje a sua leitura
determina. Eis até que ponto a tragédia c a comédia do
passado se mo dificaram no sentido das modificações so·
c1a1s. Racine ou Moliere estão, de qualquer modo, ligados
a uma época em que a Classe socialmente dominante
era a aristocracia. O domínio posterior da burguesia
sobre a aristocracia implicou a criação de um teatro que
pudesse representar as condições e as consequência·
s desta
dominação. O teatro dos nossos dias é uma expressão
de sociedades burguesas, como o teatro antigo fora uma
expressão.. de sociedades aristocráticas.
(Acudi
em defesa do ausente, ponderando-lhe o fundo de criação
livre que há em todas as grandes manifestações da fantasia
literária : a Iliada, a Divina Comédia, o Fausto e mais da
metade do imenso Shakespeare, que delírio ! Bem examinados,
Balzac e Zola também tinham culpa em cartório, visionários
ambos, e ambos delirando no culto exclusivo do que
lhes parecia a Realidade. Mas , se era de fato a realidade a
última instância , em tais casos, por que motivo não se
bandeavam logo para a Sociologia, em vez de macaqueá-la
no romance? - Aí vem você com o paradoxo ! dizia Callage. Ora,
retomando o ingênuo debate com o regionalista
gaúcho, ao arrepio de tantos anos, direi que a criação literária
vive em grande parte desse mesmo paradoxo, ou melhor,
da contradição inevitável entre a mimese, ou imitação da
realidade, e a síntese criadora e subjetiva, que lhe dá
estilo e vida.)
Um enigma shakespeareano
Exercício de literatura comparada
O método do grande
critico e maior poeta inglês, T. S. Eliot, escapa a estas censuras:
"Método maravilhoso
que encara, em conjunto, toda a literatura universal, e que compara as
obras de
diversos povos em diversas épocas, sem consideração de pretendidas
relações
históricas, para tirar conclusões gerais" (Edmund Wilson).
Se vocês lamentam
que um poeta é demasiado retórico, e que se dirige a vocês
como se todos estivessem numa reunião pública, tentem prestar
atenção aos momentos em que ele não está se dirigindo a
vocês, mas apenas deixando-se ser ouvido ao acaso: ele pode
ser um Dryden, um Pope ou um Byron. E se vocês forem escutar
uma peça em verso, considerem-na antes de mais nada pelo
que ela vale como entretenimento, pelas personagens que falam
cada uma por si, qualquer que seja o grau de realidade que seu
autor lhes pôde atribuir. Talvez, caso se trate de uma grande
peça, e se vocês não tentarem se empenhar ao máximo para
ouvi-las poderão também discernir as outras vozes. Pois a obra
de um grande poeta dramático, como Shakespeare, constitui
um universo. Cada personagem fala por si, mas nenhum outro
poeta teria encontrado as mesmas palavras para que elã as dissesse.
Se vocês procurarem por Shakespeare, somente o encontrarão
nas personagens que ele criou, pois a única coisa em
comum entre tais personagens é que ninguém, a não ser Shakespeare,
poderia ter criado qualquer uma delas. O mundo de
um grande poeta dramático é um mundo no qual o criador
está presente em toda parte, e em toda parte oculto.
Unidade em
Shakespeare, mas não universalidade; ninguém pode ser universal:
Shakespeare
não teria descoberto muito em comum com a sua contemporânea
Sta. Teresa. Qualquer influência que a obra de Séneca e de Maquiavel
e de Montaigne me pareça exercer conjuntamente sobre aquele tempo,
e muito conspicuamente através de Shakespeare, é uma influência em
direcção a uma espécie de autoconsciência que é nova; a
autoconsciência
e a autodramatização do herói shakespeariano, de que Hamlet é
apenas
um exemplo. Parece marcar uma fase, ainda que uma fase não muito
agradável, da história humana ou progresso, ou deterioração, ou
mudança.
Não dizemos
isto quando lemos Shakespeare ou Milton porque estamos sempre
conscientes da grandeza do homem, e dos milagres que ele está a fazer
com a língua; aproximamo-nos mais talvez com Chaucer - só que
Chaucer
usa uma linguagem diferente, mais rudimentar segundo o nosso ponto
de vista. E Shakespeare e Milton, como a história posterior demonstra,
deixaram em aberto muitas possibilidades de outros usos do inglês em
poesia: enquanto que, depois de Virgílio, corresponde mais à verdade
dizer que não foi possível nenhum grande desenvolvimento, até a
língua
latina se tornar uma coisa diferente.
Shakespeare,
como demonstram os seus sonetos, tinha algo do aspecto
característico do poeta de conventículo;
Êle não
dispunha da "capacidade negativa" que Keats supunha ser a
fonte do poder de Shakespeare, o dom de ser capaz de "stl'
contentar com o semiconhecimento", de abandonar a .. irritante
busca do fato e da razão", de permanecer em meio a
"'incertezas, mistérios, dúvidas".
E
a própria classe é um fato social que, sempre quando trazido
à discussão, mantém, como o dinheiro, uma notável intimidade
com a metafísica e a teoria do conhecimento - já
sugeri como, para Shakespeare, todo distúrbio de classes
sociais sempre parece implicru.· uma desordem dos sntidos
na loucura ou no sonho, alguma pilhéria elaborada em tôrno
da natureza da realidade.
GEORGE STEINER – LA POESÍA DEL PENSAMIENTO
Kames: Shakespeare
satisfaz as exigências de Kames a respeito: cita numerosos exemplos
da penetração psicológica de Shakespeare e da sua experiência
da vida. Ainda assim, desaprova a tragicomédia porque "a&
emoções discordantes são desagradáveis quando misturadas," 41 e
despreza as unidades de espaço e tempo, que considera apenas
como contribuição para a unidade obrigatória única, a da ação.
O padrão de Kames é sempre o do efeito emocional, que só pode
ser realizado pela ilusão, pela impressão de realidade como se
fôssemos
espectadores de um acontecimento real.