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Títulos já publicados:
Mal-estar na atualidade, Joel Birman
Metamorfoses entre o sexual e o social, Carlos Augusto Peixoto Junior
O prazer e o mal, Giulia Sissa
Próximo título:
Problema de gênero, Judith Butler
Silvia A lexim N unes
O corpo do diabo
entre a cruz
e a caldeirinha
Um estudo sobre a mulher,
o masoquismo e a feminilidade
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
R io de Jan eiro
2000
C o p y r i g h t © 1 9 9 9 Silvia A lexim N un es
CAPA
Evelyn G rum acb
PROJETO GR ÁFI CO
Evelyn G rum ach e J o ã o d e Souza L eite
P R E P A R A Ç Ã O DE O R I G I N A I S
J o s é M auro Firm o
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÀO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Inclui bibliografia
ISBN 85-200-0507-1
CDD 155.633
9 9 -1239 CDU 1 5 9 .9 -0 5 5 .2
Impresso no Brasil
2000
Para Carlos Alberto, Júlia e Vicente,
amores que dão sentido à minha vida.
.
Sumário
INTRODUÇÃO 11
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
O século X I X entre a bela e a fera 5 Í
A NOVA REDENTORA JÈ6
A form ação da nova m ulher £ 8
M aternidade e paix ão J 4
Fem inilidade: passividade, dor e sacrifício 7 Í
A A N T I-M A D O N A 81
CAPÍTULO III
Psicopatologia da feminilidade 89
O M A SO Q U ISM O96
A vertente fem inina 103
A vertente m asculina 106
h is t e r ia 107
CAPITULO IV
Figuras do fem inino 129
FREUD E A QUESTÃO FEMININA 131
A HISTERIA 136
As prim eiras histéricas 142
D ora 146
O ENIGMA FEMININO E A MULHER PERIGOSA 151
A m ulher e o narcisism o 154
A m ulher castrada e a m ãe fálica 156
v
c a p ít u l o
CAPÍTULO VI
M asoqu ism o, fem inino? 205
208
SEXUALIDADE FEMININA E M ASOQUISMO
O m asoquism o fem inino no pensam ento pós-freudiano 212
A m ulher e o m asoquism o 219
A FEMINILIDADE PARA ALÉM D A DIFERENÇA DE SEXOS 2 2 2
Sujeito, pulsão e fem inilidade 223
A constru ção do con ceito de fem inilidade 227
CONCLUSÃO
Entre o m asoquism o e a fem inilidade 235
MADAME BOVARY 237
CASA DE BONECAS 243
BIBLIOGRAFIA 249
Introdução
WÊ
o sexo feminino começa a ganhar força. As mulheres, até então pensa
das como seres imperfeitos, pouco evoluídos, começam a ganhar uma
imagem edulcorada, mais condizente com o ideal de esposa e mãe.
A concepção sobre a mulher que prevalece até o final do século
X V II é aquela herdada do Cristianismo primitivo, que sobreviveu
durante toda a Idade Média e o Renascimento. Para os filósofos e pen
sadores de então, a mulher era vista como um ser mais carnal, dotada
de sentimentos maléficos e de um desregramento sexual ameaçador.7
O Cristianismo, desde seus primórdios, instituiu uma relação
entre a feminilidade, o sexo e o mal — as mulheres como seres trai
çoeiros que atiçavam a luxúria e o ciúme, lançando os homens uns
contra os outros. Considerada culpada pela Queda, embora toda a
humanidade seja condenada, a mulher passa a corporificar a corrup
ção material associada à carne. É tida como mais sexuada e, portan
to, mais sujeita a sucumbir às tentações.8 Se, por definição, todos os
humanos participam desde o começo do estado de pecado, a mulher é
a causa de tal iniqüidade. Entre os padres da Igreja dos primeiros
séculos do Cristianismo, a carne se torna sexualizada como especifica
mente feminina.9 Santo Agostinho, por exemplo, ao retornar do
deserto, propunha que só ali a salvação se apresentava aos homens,
porque estariam longe das tentações e especialmente das mulheres,
causa principal de todos os males. Para ele, os homens deviam man
ter-se afastados delas.10
Essa imagem ameaçadora da mulher sobrevive durante toda a
20 M olière, “As sabichonas” : in Teatro escolhido, volume II, São Paulo, D IFEL,
p. 3 9 ,1 9 6 5 .
21 M . Sonnet, op. cit., p. 1 4 7 .
idéia de uma igualdade intelectual para os dois sexos. Poullain pregava
a existência de uma essência única para homens e mulheres, demons
trando a identidade das aptidões masculinas e femininas. Acreditava
que a Razão era a mesma para toda a espécie humana e que as mulhe
res não eram inferiores, nem em relação às faculdades mentais nem em
relação à capacidade moral. Ao contrário, ao considerar a inferiorida
de feminina como um preconceito e advogar direitos iguais para ho
mens e mulheres, afirmava que a vocação feminina para a maternidade
seria sinal de uma superioridade moral da mulher, que apontaria para
uma maior capacidade de bondade e compaixão. A mulher encarna
para ele os mais altos valores da humanidade: a razão, a paz, o repou
so e o ju n o r jijic r ia tu r a ^ ^
Mas Poullain ainda faz parte de uma minoria que procura reabi
litar a imagem do sexo feminino, ligada ao mal, à natureza bruta e à
desordem. No século XVII, ainda é esse o perfil feminino mais difun
dido. Somente com a virada para o século XVIII, a partir da necessi
dade política de situar a mulher como guardiã da infância, observa-se
umíTmudança realmenFe sigmfícãtiva na representação do sexo femi
nino. Afinal, como dar uma responsabilidade tão grande a um ser tão
desqualificado? Ocorre então uma inversão de valores que permite
que atributos como fragilidade, sensibilidade e dependência passem a
ser tratados como positivos. Para que as mulheres pudessem assumir
os encargos da maternidade, foi preciso uma mudança radical em sua
imagem. A mulher não é mais identificada a uma criatura diabólica.
Ela se transforma numa pessoa doce e sensata, de quem se espera co-
medimento e indulgência. Eva cede lugar a Maria. A curiosa, a ambi
ciosa, a audaciosa, metamorfoseia-se numa criatura modesta e ponde
rada cujas ambições não ultrapassam o limite do lar.2223 A imperfeição
28
.1
l
dá lugar à perfeição na medida em que tem início uma nova concep
ção sobre a diferença entre homens e mulheres.
Diferença e complementaridade
| 36 Idem, p. 186.
questão da hierarquia entre os sexos tornava-se ainda mais complica
da e contraditória.
Desde Poullain de la Barre, a possibilidade de a mulher poder ser
pensada como igual ao homem tornou-se um problema, pois a pre
missa de uma igualdade sustentava-se na idéia de que todo indivíduo
era portador de uma mesma Razão. Além disso, o pensamento liberal
emergente advogava também que, em função dessa Razão, todos,
homens e mulheres, deveríam ser iguais perante a lei. O problema,
então, era como justificar a dominação da mulher pelo homem, sua
exclusão da esfera pública e as diferenças sociais, se todos deveríam
ter os mesmos direitos. O século XVIII trouxe então novas “luzes” so
bre o problema; o dilema foi resolvido pela ancoragem da diferença
social e cultural dos sexos em uma biologia da incomensurabilidade,
a partir da qual homens e mulheres são tratados como radicalmente
diferentes. A conseqüência lógica desse percurso foi que, a partir da
idéia de uma diferença biológica “natural”, passou-se a justificar e
propor inserções sociais diferentes para os dois sexos.
Rousseau foi um dos pensadores mais imporrantes na artirnlação
dessas idéias. Seu projeto de organização social pressupunha uma divi
são de papéis diferentes e complementares para homens e mulheres.
Para ele, a esfera de atuação feminina seria a doméstica e a masculina,
a pública. A mulher deveria “reinar” no lar, devendo abrir mão de
qualquer pretensão e desejo pessoal de outra ordem. Sua vida deveria
permanecer completamente vinculada à de seu marido.37 Em seu ideal
romântico, Rousseau negava às mulheres o status de cidadãs. Essa
perspectiva, no entanto, entrava em choque com sua própria proposta
de igualdade universal. Dessa forma, viu-se diante da necessidade de
justificar a desigualdade real que existia entre os sexos. A solução
encontrada para resolver essa contradição foi propor que as funções
preconizadas para homens e mulheres seriam determinadas por uma
suposta diferença de essência entre os sexos, que estaria ancorada em
uma diversidade morfológica sexual, naturalmente determinada.
43 Idem, p. 5 3 .
44 T. Laqueur, “A m or Veneris vel Dulcedo Appeletur” : in Fragments fo r a History
o f the Human Body. Part III. N ova Y ork, Feher, M . com Naddeff, R . e Tazi, N ,
p. 1 0 5 , 1 9 8 9 .
reprodução, reforçando a idéia de que o homem estaria mais ligado
ao sexo e a mulher à maternidade e ao afeto.45 Em nome de um deter
minismo natural, o pensamento médico confinou a feminilidade ideal
à esfera estreita que a ordem social liberal lhe destina: a mulher sã e
feliz é a mãe de família, guardiã das virtudes e dos valores eternos.
Em resumo, ao contrário do que se propunha na perspectiva galê-
nica, onde o modelo ideal do corpo humano era o masculino, sendo o
sexo feminino sua versão mal acabada, no século XVIII pensa-se a
diferença entre os sexos como uma diferença de essência. Essa diferen
ça de essência seria aqui produto da diferença sexual. No modelo
antigo não havia a idéia de uma sexualidade masculina e de uma
sexualidade feminina. Do ponto de vista sexual, a mulher nada mais
seria do que uma variação do homem. A diferença sexual não era o
parâmetro que explicava a diferença de gêneros.
Essa maneira de pensar só aparece no século XVIII, e seu surgi
mento está intimamente ligado à necessidade emergente de criação de
novos ideais de masculinidade e feminilidade. À mulher ficará reser
vado o ideal materno; a partir dele os discursos médicos passam a
construir um novo perfil feminino. É importante frisar, mais uma vez,
que a mudança da percepção médico-científica sobre a mulher deu-se
principalmente em função das transformações operadas e esperadas
da condição social feminina, e não devido a descobertas científicas
que caucionassem a idéia de um dimorfismo original. Distinguir a
mulher do homem pela particularidade do sexo foi uma preocupação
de filósofos e moralistas antes de ser uma crença de cientistas.46
Enfatizando a diferença sexual, a comunidade médica permitiu
que os adeptos da teoria da complementaridade construíssem argu
mentos para uma maior diferenciação de papéis. A tese de que ho
mens e mulheres não são física e moralmente iguais, mas opostos
i
complementares, ajustava-se perfeitamente ao pensamento liberal,
lu/.endo as desigualdades parecerem naturais, ao mesmo tempo em
i|iic satisfaziam as necessidades da sociedade européia de dar conti
nuidade à divisão sexual do trabalho, assinalando para a mulher um
imico lugar social. A mulher não deveria ser vista como inferior ao
homem, mas como fundamentalmente diferente e portanto incompa-
i.ível a ele. A figura da mulher doméstica e cuidadosa surge como um
i >posto à do homem público e racional.
50 Idem, p. 4 2 4 .
si Idem, p. 4 3 3 .
sua vida sem reclamar. É preciso criar o hábito da obediência, através
tio constrangimento e da disciplina constantes.52 A educação das me
ninas deve estar, portanto, voltada para a formação de um caráter dó-
i il, passivo e subserviente, que seria, se for o caso de acompanhar suas
considerações, a base para o sucesso da vida do casal e da família.
No entanto, em muitos momentos de suas descrições o processo
educativo preconizado por Rousseau se assemelha a uma verdadeira
tortura, onde a necessidade de subjugação contínua da vontade das
meninas é o fim principal. Sua orientação nesse sentido é bastante cla
ra e contundente.
r
jà
Justificai sempre as tarefas que impuserdes às jovens, mas impondo-
lhes sempre tarefas. A ociosidade e a indolência são os dois defeitos
mais perigosos para elas e de que dificilmente se curam após contraí-
los. As jovens devem ser vigilantes e laboriosas; não é tudo, elas
devem ser contrariadas desde cedo. Essa desgraça, se é que é uma, é
inseparável de seu sexo, e dela nunca elas se libertam senão para so
frer outras bem mais cruéis. Estarão a vida inteira escravizadas a
constrangimentos contínuos e severos, os do decoro e das conveniên
cias. É preciso exercitá-las desde logo a tais constrangimentos, a fim
de que não lhes pesem; a dominarem suas fantasias para submetê-las
às vontades dos outros. Se quisessem trabalhar sempre, dever-se-ia
forçá-las a não fazerem nada por vezes. A dissipação, a frivolidade, a
inconstância, são defeitos que nascem facilmente de seus primeiros
gostos corrompidos e sempre seguidos. Para prevenir tais abusos,
ensinai-lhes sobretudo a se dominarem. Nas nossas insensatas condi
ções de vida, a existência de uma mulher honesta é um combate per
pétuo contra si mesma; é justo que esse sexo partilhe as penas dos
males que nos causaram.53 U
CONFLITOS E IMPASSES
*7 Idem, p. 6 7 .
5* Idem, p. 9 0 .
59 Idem, p. 9 5 .
60 A . Goreau, “Duas inglesas do século X V II” : in Sexualidades ocidentais. São
Paulo, Brasiliense, 1 986.
Interessante notar que o exercício da maternidade era diretamen
te vinculado à necessidade de um sacrifício por parte das mulheres.
Elas deviam sacrificar seus anseios, seus projetos, sua capacidade de
pensar, seus direitos pessoais e civis, em nome dos filhos e do marido.
Essa capacidade de sacrifício seria considerada como um dos dons de
sua natureza, em função de sua vocação materna, e então enaltecida e
“santificada”. A mãe passa a ser tratada como uma mártir da moder
nidade, ganhando um valor positivo e inexistente até então. Seu sacri
fício a redimiría dos pecados de Eva e ela, pelo sofrimento e renúncia,
seria colocada em um pedestal. Ser mãe é padecer no paraíso: num
mundo divinizado a mulher purga suas culpas e atinge uma espécie de
beatificação.
As mulheres burguesas, que compartilhavam a proposta rousseau-
niana de um retorno à vida “natural”, aderiram a seu projeto de forma
voluntária; algumas, como Madame D ’Epinay, tornaram-se propagan-
distas de suas idéias. Deixando a ciência aos homens, ela se apoderou
simbolicamente de um novo papel deixado vago há muito tempo: o de
mãe.61 Outras mulheres, como Madame Châtelet, Mary Wollstone-
craft, Madame Roland e Olympe de Gouges, protestaram e advoga
ram seus direitos, tentando demonstrar que eram tão capazes de exer
cer atividades intelectuais quanto os homens. Muitas foram punidas.
Entre os intelectuais, as teses sobre a menor capacidade intelec
tual das mulheres ganha cada vez mais força. Algumas vozes isoladas
saem em defesa do sexo feminino. Dentre elas a mais importante é a
de Condorcet. Advogado ferrenho dos direitos femininos, é um dos
poucos a recuperar a idéia cartesiana de que não haveria uma diferen
ça de essência entre os sexos, por serem ambos seres de Razão.62
Na virada para o século X IX , as mulheres parecem ainda não ter