You are on page 1of 10

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE PSICOLOGIA
DEPARTAMENTO DE PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA
DISCIPLINA DE PSICOPATOLOGIA II
PROFª MARTA DAGORD
ALUNA: CAROLINA SEIBEL CHASSOT

COMO SE PESQUISA A PERVERSÃO ATUALMENTE?

Pretendo, neste trabalho, apresentar um breve panorama do que vem sendo


pesquisado a respeito da perversão no Brasil e no mundo, procurando mapear quais os
recortes temáticos, teóricos e metodológicos que são feitos na produção científica.

No Brasil

Pesquisando no Scielo (Scientific Eletronic Library Online) os termos “perversão” e


“perverso”, encontramos 10 artigos. Desses, 5 foram descartados por que não se referiam à
perversão como um conceito, apenas utilizavam o termo em seu sentido denotativo, tal
como definido no dicionário:
- perverso: aquele que tem má índole, que tem tendência a praticar crueldades;
malvado.
- perversão: ato ou efeito de perverter(-se); condição de corrupto, de devasso.
(fonte: Dicionário Houaiss)
Permanecemos então com 5 artigos e notamos que todos eram de orientação
psicanalítica, o que já indica uma exclusividade desta abordagem no emprego do conceito
de perversão como diferenciado daquele comumente utilizado na língua brasileira.
Por termos um pequeno número de artigos encontrados, acreditamos que os dados
sobre a produção científica brasileira se prestam melhor a um mapeamento qualitativo e

1
não quantitativo. Por isso, seguem abaixo os resumos completos dos 5 artigos como
ilustração, seguidos de comentários acerca dos recortes que pretendemos analisar.

1. A dispersão de interpretações sobre o sintoma social na literatura


psicanalítica levou-nos a revisitar o texto freudiano "O mal-estar na
cultura", a fim de situar uma diferença entre as noções psicanalíticas de
cultura e laço social. De Freud a Lacan, propusemo-nos a avançar na
leitura do mal-estar pela aproximação entre perversão e cultura e neurose
e laço social. Seguindo esta linha interpretativa, indagamos sobre a
posição do psicanalista na crítica social, uma vez que identificamos a
assunção de uma posição moral, isto é, de fetichização dos ideais, ao
propor-se a defesa de um laço regulado pelo gozo fálico.- POLI, Maria
Cristina. Perversão da cultura, neurose do laço social. Ágora (Rio J.),
July/Jan. 2004, vol.7, no.1, p.39-54.

Neste artigo, a autora faz uma revisão de conceitos de Freud sobre o mal-estar na
cultura e de Lacan sobre o sintoma social, procurando entender o que se produz na cultura e
no laço social entre os sujeitos. Vemos um interesse na relação da perversão com a cultura,
não enfocando seu aparecimento clínico no sujeito. Trata-se de um estudo de revisão
literária. Ela não afirma que a cultura é perversa, mas entende a perversão como um
produto de uma cultura que se baseia em relações de objeto fetichistas.

2 Com base numa prática psicoterápica individual, de inspiração psicanalítica,


conduzida junto a agressores sexuais presos em uma casa de detenção para homens, este
estudo interpela, por um lado, os limites da inscrição de uma lógica terapêutica em um
quadro repressivo, o da prisão, cujas modalidades encontram-se regidas por um enquadre
legal - o da lei relativa à obrigação de tratamento - e, por outro, o paradoxo de uma terapia
imposta, sustentada por uma lógica de normalização, de efeitos enganadores e à qual os
agressores sexuais, sob o efeito de seu funcionamento dominado por processos de clivagem
e de recusa, se submetem "de bom grado".- HACHET, Amal. Agressores sexuais: é possível

2
um tratamento psicanalítico sob prescrição judicial? Ágora (Rio J.), Jan./June 2005, vol.8,
no.1, p.47-62. ISSN 1516-1498.

O autor faz um estudo acerca da possibilidade de tratamento psicanalítico como


forma de redução de pena. Interessa-nos a análise que ele faz da relação entre perversão
(especialmente as perversões sexuais) e lei e moral, que a afastam do campo psi e a
aproximam do campo jurídico penal. O estudo utiliza dados empíricos da psicoterapia de
orientação psicanalítica de sujeitos encarcerados.

3. Este artigo tem como objetivo discutir o conceito de psicose em Lacan a partir da
evolução do conceito de foraclusão em seu ensino. Trata-se da passagem da idéia de uma
foraclusão do Nome do Pai na psicose como algo que, ao mesmo tempo, a particulariza e a
diferencia das outras estruturas clínicas, para a proposição de uma foraclusão generalizada,
que se estende também à neurose e à perversão. - LACET, Cristine. Da foraclusão do
Nome-do-Pai à foraclusão generalizada : considerações sobre a teoria das psicoses em
Lacan. Psicol. USP, Jan./June 2004, vol.15, no.1-2, p.243-262.

Neste artigo, a autora retoma a teoria de Lacan para defender que a foraclusão não
se restringe apenas à estrutura psicótica, e fala de uma foraclusão generalizada, presente
também na perversão. Mas não privilegia o entendimento da perversão sob esse novo olhar,
mantendo-a como um assunto periférico. Trata-se, assim como o artigo 1, de um estudo
conceitual teórico.

4. Este trabalho é uma aplicação de uma estratégia clínica baseada no conceito de


alienação, tal como definido por Jacques Lacan, para o atendimento de uma criança
considerada psicótica e sua mãe. Tal estratégia, proposta por Jussara Falek Brauer,
prescreve um atendimento individual, com uma sessão semanal, para a criança e para a
mãe. Considera a estrutura familiar e pretende lidar com as determinações estruturais sobre
a constituição do Sujeito. Dois momentos são especialmente focados - quando o trabalho é
iniciado e outro posterior - que exemplificam a mudança de posicionamento dessa criança,
em função do processo terapêutico em curso. Os conceitos teóricos que embasam esta
abordagem - a Alienação, a Topologia Lacaniana da Constituição do Sujeito, o Significante,
o Inconsciente, a Castração, o Fetiche, a Perversão, a Separação - são apresentados e

3
relacionados ao material clínico. Algumas hipóteses são apresentadas a respeito da estrutura
psíquica da mãe, considerando a evolução observada e as mudanças de posicionamento
dessas pessoas, que levam ao estabelecimento de uma hipótese diagnóstica para a filha. -
BRUDER, Maria Cristina Ricotta. A alienação eternizada: uma abordagem estrutural de um
caso clínico. Psicol. USP, 2000, vol.11, no.1, p.189-205.

Neste estudo de caso, a autora apresenta uma análise com criança e levanta a
hipótese de que a menina estivesse servindo como fetiche para a própria mãe, que denegava
a castração – sendo, portanto, perversa. Novamente a perversão é um assunto periférico do
artigo.

5. É empreendido um exame dos debates contemporâneos sobre o entendimento da


noção freudiana de supereu, valorizando a importância desta noção não apenas para a
clínica psicanalítica, mas para uma teoria psicanalítica da cultura. Isso permite discriminar
diferentes versões da articulação entre supereu e consciência moral, assim como entre o
supereu e o ideal do eu. Os pontos de aproximação e de divergência entre o imperativo
categórico kantiano e o supereu são discutidos. - RUDGE, Ana Maria. Versões do supereu e
perversão. Psicol. Reflex. Crit., 1999, vol.12, no.3, p.00-00

Revisão da literatura psicanalítica enfocando o conceito de supereu e sua relação


com a estruturação da perversão.

É impressionante a pouca quantidade de artigos relacionados à perversão


encontrados no Scielo, grande base de dados brasileira. Em se tratando de um país com
uma tradição psicanalítica relativamente importante, parece que a pesquisa psicanalítica
vem sendo pouco priorizada no país, ao menos no que diz respeito à produção de artigos.
Sabemos, por outro lado, que existe uma tradição psicanalista de publicação em forma de
livros com coletâneas de artigos – que, diferentemente das revistas científicas, não chegam
a ser indexados. A respeito da ausência do uso do termo em trabalhos que partem de outras
orientações teóricas, pretendo abordar esse assunto ao longo do trabalho.

4
Cenário internacional

Utilizamos para mapear as pesquisas internacionais a respeito de perversão a base


de dados PsycInfo, que cataloga resumos de revistas científicas da área psi. Pesquisando o
termo “perversão”, obtemos uma resposta de nada menos que 1082 artigos. Devido ao
volume de resumos (que, juntos, compõem 374 páginas do Microsoft Word), utilizamos
uma amostra aleatória de 131 artigos, o equivalente a 12% do total. Após a leitura dos
resumos, 46 artigos foram excluídos por não tratarem do tema da perversão, seja por
utilizarem o termo no seu sentido usual da língua portuguesa ou por tratarem-no como um
conceito auxiliar na exploração de outro tema. Restaram, portanto, 85 artigos, cuja análise
delineou o seguinte quadro a respeito da produção científica internacional acerca da
perversão.

Quanto ao enfoque metodológico:


Revisão de conceitos teóricos: 55 artigos
Estudos de casos clínicos: 19
Crítica (review) de livros, filmes ou outras obras de arte que tenham como tema
principal a perversão: 10
Metodologia não identificada: 1

Quanto ao enfoque teórico


Teoria psicanalítica: 61
- Freudiana: 8
- Lacaniana: 2
- Freudiana e Lacaniana: 2
- outros autores: 7
- múltiplos autores: 4
- não especificada: 38
Teoria cognitivo-comportamental: 2
Psicodinâmica: 1
Teoria junguiana (psicologia analítica): 1

5
Não especifica teoria utilizada / estudo empírico: 18
Outras teorias: 2

Quanto ao recorte temático (obs: o mesmo artigo pode entrar em mais de uma
categoria por priorizar mais de um tema simultaneamente):
Perversões sexuais: 23
- sadismo / masoquismo: 8
- homossexualismo / transexualismo: 7
- pedofilia: 1
- voyeurismo: 1
- adição sexual: 1
- não especificadas: 5
Conceito teórico / fenomenológico / histórico da perversão: 15
Crítica (review) de livros, filmes ou outras obras de arte que tenham como tema
principal a perversão: 10
Perversão e narcisismo: 10
Perversão na cultura: 7
Perversão e feminilidade / maternidade: 6
Psicopatas, assassinos, serial killers: 4
Perversão e violência / agressividade: 3
Perversão na relação amorosa / casais: 3
Perversão e clínica / transferência: 2
Superego na perversão: 2
Perversão e função paterna: 2
Perversão e pensamento: 2
Perversão e dependência química: 1
Perversão e ética: 1

O que podemos depreender deste quadro que se apresenta? O que chama


inicialmente a atenção é o grande volume de artigos referentes ao tema, sinalizando um
interesse mundial da perversão como área de estudo científico. Vemos que a grande maioria

6
dos artigos refere-se à revisão de conceitos teóricos (64%) e utilizam como abordagem
fundamental a psicanálise (76%). O termo “perversão” permanece em grande parte sob o
domínio da psicanálise por, atualmente, referir-se a uma estrutura (ou uma formação, existe
este debate na área) inconsciente, e não a sintomas do sujeito. O termo foi abolido dos
grandes manuais diagnósticos, e os sintomas comumente relacionados à perversão foram
agrupados sob as denominações de parafilias, transtorno anti-social, transtorno de
personalidade anti-social.
Esta diferenciação remete a um aprofundamento da diferença entre o diagnóstico
psiquiátrico e o diagnóstico estrutural. A psiquiatria defende a existência de uma referência
universal de diagnósticos, permitindo unificar a linguagem utilizada para referir-se a
psicopatologias. Isto é possível através do DSM e do CID, manuais diagnósticos ateóricos,
descritores de sintomas e que não abordam as causas destes. Assim, inventariando sintomas
pode-se descobrir qual a moléstia que aflige os doentes mentais do mundo. Não se pode
deixar de apontar os méritos deste tipo de esforço pragmático, já que as diferenças teóricas
entre as incontáveis “escolas” que trabalham no campo da psicopatologia praticamente
impossibilitavam a comunicação científica neste campo. (Pereira in: Couto, 1996).
Já a psicanálise coloca-se na defesa árdua daquilo que chama de diagnóstico
estrutural. De muito mais difícil entendimento (enquanto o DSM e o CID, por serem
descritores de sintomas, não necessitam de muita formação, o diagnóstico estrutural na
psicanálise pressupõe anos de experiência clínica e de conhecimento teórico), este
diagnóstico parte da premissa de que existem estruturas psíquicas que não dependem de
sintomas associados. Essas estruturas correspondem à neurose, perversão e psicose
(salientando, novamente, que não há consenso na colocação da perversão como estrutura, e
este assunto deve ser aprofundado pelos meus colegas de grupo), e cada uma diz respeito à
forma de o indivíduo, na transferência, “lidar com a falta inscrita na subjetividade, que
condiciona a modalidade de cada um se haver com o sexo, o desejo, a lei, a angústia e a
morte, (...) conforme a posição do sujeito no Édipo em relação ao gozo”. (Quinet, 2001). A
grande crítica da psicanálise a este modelo comportamental (chamado assim porque remete
aos sintomas como comportamentos observáveis) é ao reducionismo que leva à exclusão da
subjetividade da prática psiquiátrica. O sintoma deixa de ser visto como uma produção do
inconsciente e passa a ser visto como fonte de sofrimento que deve ser eliminado

7
diretamente, sem qualquer preocupação com suas causas. A psicanálise propõe “tratar o
sujeito do sintoma” enquanto a psiquiatria propõe o tratamento “do sintoma do sujeito”.
Justamente por esse motivo, encontramos poucos estudos empíricos dentro do
campo da perversão, sendo que estes se restringem à metodologia dos estudos de caso. Fica
nítido que, na produção de conhecimento psicanalítica, a ênfase recai sobre a elucidação de
conceitos a partir de autores anteriores, ancorando o estudo (acredita-se) em uma prática
clínica difusa, não especificada, que se soma aos conhecimentos do autor mas não é
utilizada como ilustração ou como “comprovação” da teoria. A psicanálise busca refinar os
conceitos (e nisso não procura chegar a consensos) que serão utilizados como ferramentas
na clínica de sujeitos singulares, ao invés de utilizar os dados da análise de sujeitos como
forma de generalizar premissas acerca do ser humano.
O estudo de casos clínicos aparece como método secundariamente utilizado na
pesquisa sobre perversão (22%). Chama a atenção a quantidade relativamente alta (11%) do
uso de obras de arte como formas de compreender a perversão – um método bastante
“renegado” em pesquisas científicas. A aproximação histórica da psicanálise com a arte fica
registrada nesse tipo de estudo.
É interessante notar também que grande parte (62%) das pesquisas com orientação
psicanalítica não apresentam qual a vertente psicanalítica que seguem. Um dado curioso e
talvez preocupante, em se tratando de uma área de estudo que não se apresenta com um
corpo unificado de conhecimento e que é marcada profundamente por dissidências.
Podemos relativizar esse dado relembrando que tivemos acesso apenas aos resumos dos
artigos. De qualquer forma, este dado nos parece relevante o suficiente para ser citado no
resumo, e sua ausência pode indicar uma banalização do fazer psicanalítico a partir de
conceitos pinçados aleatoriamente com pouca consistência teórico-epistemológica.
Finalizando, percebemos que quanto aos recortes temáticos a perversão é
grandemente remetida a sua expressão no campo sexual (26% dos artigos totais, 35% dos
artigos temáticos). Talvez pela importância dada a este campo em toda a psicanálise, sendo
que muitos autores (como Aulagnier-Spaironi, 2003) reduzem a estrutura perversa às
perversões sexuais.
A grande presença de estudos acerca da feminilidade é interessante e algo
surpreendente. Como a perversão é uma estrutura (?) clínica encontrada majoritariamente

8
em homens e relacionada com o conflito edípico masculino, é interessante notar este
interesse naquilo que seria algo “dissidente” e que poderia trazer à tona um novo
entendimento acerca da perversão.

9
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Aulagnier-Spaironi, P.A perversão como estrutura. Revista Latino-Americana de


Psicopatologia Fundamental, v. VI, n. 3, set 03, p. 43-69.
Pereira, M.E.C. Questões preliminares para um debate entre psicanálise e psiquiatria
no campo da psicopatologia. In: Couto, L.F (org) (1996). Pesquisa em Psicanálise. Belo
Horizonte: Segrac.
Quinet, A. (2001). Psicanálise e psiquiatria: controvérsias, convergências;
Editora Rios Sinuosos/Contra-Capa

10

You might also like