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POLITICAS DA

INIMIZADE

ACHILLE MBEMBE

Tradução de marie thauront, a partir da edição


em francês de 2016 da “editions la découverte”

1
Para Fabien Éboussi Boulaga
Jean François bayart e
Peter L. Geschiere

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p.7

Introdução
A provação do mundo

Não basta ter um livro em mãos para saber usá-lo. No início, a intenção foi
escrever um que não fosse envolto em mistério. No fim das contas, eis um
breve ensaio feito de hachuras de esboços, de capítulos paralelos, de
traços mais ou menos descontínuos, apontamentos, gestos vivos e
rápidos, e até leves movimentos de retraída seguidos de bruscas
reviravoltas.
É verdade, o assunto, rugoso, não combinava com voz de violino. Bastou
então sugerir a presença de um osso, de uma caveira ou de um esqueleto
dentro do elemento. Esse osso, essa caveira e esse esqueleto têm nomes-
o repovoamento da Terra, a saída da democracia, a sociedade da
inimizade, a relação sem desejo, a voz do sangue, o terror e o contra-
terror como remédio e veneno de nossa época (capítulos 1 e 2). A melhor
forma de acessar esses diversos esqueletos era produzindo uma forma
que não fosse medrosa, mas sim tensa e carregada de energia. Qualquer
que seja o caso, eis um texto sobre a superfície do qual o leitor pode
deslizar livremente, sem nenhum controle de documento ou visto de
entrada. Pode estadear nele tanto quanto quiser, se mover a vontade,
entrar e sair a qualquer momento por qualquer porta. Ele pode partir em
qualquer direção conservando, em relação a cada uma de suas palavras e
de suas afirmações, um constante distanciamento crítico e se preciso, uma
pitada de ceticismo. Se supõe de fato que todo gesto de escrita envolva
uma força ou ainda uma discordância – o que aqui, é chamado de
elemento.

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No caso presente, se tratava de um elemento bruto e de uma força
paralisante, uma força de separação mais do que uma força que
intensifica o laço- uma força de cisão e de isolamento, virada
exclusivamente sobre si, que procura se eximir do resto do mundo e ao
mesmo tempo que pretende garantir o seu último governo. A reflexão que
segue trata de fato da recondução em escala planetária da relação de
inimizade e suas múltiplas reconfigurações nas condições
contemporâneas. O conceito platônico de pharmakon- a ideia de um
medicamento que opera ao mesmo tempo como remédio e como veneno-
constitui o seu eixo central. Apoiados em parte na obra política e
psiquiátrica de Franz Fanon, mostramos como, no rastro dos conflitos da
descolonização, a guerra (sob a figura da conquista e da ocupação, do
terror e da contra insurreição) se tornou, no fim do século 20, o
sacramento de nossa época.
Essa transformação, por sua vez, liberou movimentos passionais que,
pouco a pouco, levam as democracias liberais a vestir as roupas da
exceção, a empreender ao longe ações incondicionais, e a querer exercer
a ditadura contra elas mesmas e contra seus inimigos. Nos interrogamos,
entre outras coisas, sobre as consequências dessa inversão, e os novos
termos com os quais se coloca agora a questão das relações entre
violência e lei, norma e exceção, estado de guerra, estado de segurança e
estado de liberdade. No contexto de encolhimento do mundo e de
repovoamento da Terra, graças à novos ciclos de circulação das
populações, esse ensaio não se esforça só em abrir pistas novas para uma
crítica dos nacionalismos atávicos. Se interroga também, de maneira
indireta, sobre o que poderiam ser os fundamentos de uma genealogia
comum, e ai, de uma política do vivo para além do humanismo.
O ensaio trata de fato desse tipo de combinado com o mundo- ou ainda
de uso do mundo- que, nesse início de século, consiste em considerar
como nada tudo o que não é si mesmo. Esse processo tem uma genealogia
e um nome: a corrida em direção à separação e ao desligamento. Essa
corrida acontece sobre uma base de angustia de aniquilamento. De fato,
numerosos são aqueles que hoje, são tomados pelo espanto.

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Eles temem ter sido invadidos e estar prestes a desaparecer. Povos
inteiros têm a impressão de ter chegado ao fim dos recursos necessários
para continuar assumindo sua identidade. Estimam que não há mais lado
de fora, e que precisa, para se proteger da ameaça e do perigo, multiplicar
as cercas. Como não querem se lembrar de nada, e principalmente de
seus próprios crimes e desfeitos, eles fabricam objetos ruins que
terminam efetivamente obcecando- os e dos quais procuram agora se
desfazer violentamente.
Possuídos pelos gênios do mal que eles nunca deixaram de inventar e que,
numa reviravolta espetacular, hoje os cercam, agora se fazem perguntas
mais ou menos parecidas àquelas que tiveram que enfrentar, não há
muito tempo, muitas sociedades não ocidentais presas nas redes de forças
bem mais destrutivas- a colonização e o imperialismo¹. Diante de tudo que
está acontecendo, o Outro ainda pode ser considerado meu semelhante?
Chegados ao extremo, como é o caso para nós aqui e agora, de que
exatamente, relevam minha humanidade e a de outrem? O peso de Outro
se tornou tão arrebatador, não seria melhor se minha vida não fosse mais
atada à sua presença, assim como a dele à minha? Porque, contra ventos
e marés, apesar de tudo, tenho que olhar pelo outro, respeitando da
melhor forma a sua vida, se, por sua vez, ele só almeja a minha perda? Se,
no fim das contas, a humanidade só existe contanto que ela esteja no
mundo e seja do mundo, como fundar uma relação com os outros
baseada sobre o reconhecimento recíproco de nossas vulnerabilidade e
finitude comuns?
Manifestamente não se trata mais de aumentar o círculo mas sim de fazer
das fronteiras formas primitivas para manter à distância inimigos, intrusos
e estrangeiros, todos aqueles que não são os nossos. Num mundo mais
que nunca caracterizado por uma redistribuição desigual das capacidades
de mobilidade e onde, para muitos, se mover e circular constitui a única
chance de sobrevivência, a brutalidade das fronteiras é doravante um
dado fundamental do nosso tempo. As fronteiras não são mais lugares
que se

1-Chinua Achebe, le monde s´effrondre, presence africaine, paris 1973

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atravessam, mas linhas que separam. Nesses espaços mais ou menos
miniaturizados e militarizados, tudo presumidamente se imobiliza.
Numerosos são aqueles e aquelas que agora encontram neles o seu fim,
deportados, quando não são simplesmente vítimas de naufrágio ou
eletrocutados.
O princípio de igualdade derrotado tanto pela lei de origem comum e de
comunidade nativa quanto pelo fracionamento da cidadania e sua
declinação em cidadania “pura” (a dos autóctones) e em cidadania
“emprestada” (essa que já precarizada, não está livre de destituição).
Frente às situações perigosas tão características do momento, a questão,
pelo menos em aparência, não é mais saber como conciliar o exercício da
vida e da liberdade com o conhecimento da verdade e a solicitude para
com o outro. Doravante, a questão é saber como, numa espécie de jorro
primitivo, atualizar a vontade de potência usando meios ao mesmo tempo
cruéis e virtuosos.
Daí, a guerra não só se instalou como fim e como necessidade na
democracia, mas também na política e na cultura. Ela se tornou remédio e
veneno - nosso pharmakon. A transformação da guerra em pharmakon de
nossa época liberou por sua vez paixões funestas que, pouco a pouco,
levam nossas sociedades a sair da democracia e se transformar em
sociedades da inimizade, como foi o caso sob a colonização. Essa
recondução planetária da relação colonial e suas múltiplas
reconfigurações nas condições contemporâneas não poupam as
sociedades do Norte. A guerra contra o terror e a instauração de um
“estado de exceção” em escala mundial só fazem amplifica-la.
E quem hoje poderia verdadeiramente tratar da guerra como pharmakon
do nosso tempo sem convocar Franz Fanon à sombra de quem esse ensaio
foi escrito? A guerra colonial- já que é principalmente dela que ele fala-
finalmente é, senão a matriz em última instancia do nomos da Terra, pelo
menos um dos meios privilegiados de sua institucionalização. Guerras de
conquista e de ocupação, e, em muitos aspectos, guerras de extermínio,

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as guerras coloniais foram ao mesmo tempo guerras de cerco tanto
quanto guerras estrangeiras e guerras raciais. Mas como esquecer que
elas tinham também aspectos de guerra civis, guerras de defesa, quando
as guerras de libertação não traziam de volta guerras ditas “contra-
insurrecionais”? Na verdade, empilhamento de guerras acorrentadas
umas nas outras, causas e consequências umas das outras, é o motivo
pelo qual causaram tanto terror e atrocidades. Também é o motivo pelo
qual provocaram naqueles e naquelas que as sofreram ou participaram
delas, ora a crença numa potência toda poderosa ilusória, ora o pavor e o
desvanecimento puro e simples do sentimento de existir.
Como a maioria das guerras contemporâneas- a guerra contra o terror e
as diversas formas de ocupação inclusas-, as guerras coloniais foram
guerras de extração e de predação. De ambos os lados, o dos vencidos e o
dos vencedores, levaram invariavelmente à ruina de alguma coisa
irrepresentável, quase sem nome, tão difícil de pronunciar- como se
reconhece, através do rosto do inimigo que se procura abater mas que
também poderia ser o rosto de quem se procura curar as feridas, um
outro rosto de homem em sua plena humanidade, e portanto semelhante
ao nosso (capitulo 3)? As guerras liberaram forças passionais que, por sua
vez, aumentaram as faculdades dos homens em se dividir. Levaram alguns
a confessar mais abertamente do que no passado seus desejos mais
reprimidos e a comunicar mais diretamente do que antes com seus mitos
mais obscuros. Para outros, as guerras ofereceram a possibilidade de sair
de seu sono abissal, sentir talvez pela primeira e única vez a potência de
ser parte do mundo ao redor, e, de quebra, aguentar suas próprias
vulnerabilidade e incompletude. Brutalmente expostos ao sofrimento de
terceiros desconhecidos, outros, ainda, se deixaram tocar e afetar. Ao
chamado desses inumeráveis corpos de dor, saíram de repente do círculo
da indiferença no qual estavam, até então, emparedados. Diante do poder
colonial e das guerras do mesmo nome, Fanon tinha entendido que só há
sujeito se vivo (capitulo 3). Como vivo, logo o sujeito estava aberto para o
mundo.

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Ao compreender a vida dos outros vivos e dos não-vivos, ele compreendia
a própria; que ele existia como forma viva; e que podia então corrigir as
assimetrias da relação introduzindo nela uma dimensão de reciprocidade
e trazer cuidados à humanidade. Além disso, Fanon considerava o gesto
curativo como uma pratica de re-simbolização na qual sempre entrava em
jogo a possibilidade de reciprocidade e mutualidade (o encontro autentico
com outros). Para o colonizado que se recusava em ser castrado, ele
aconselhou dar as costas para a Europa, ou seja, começar por si mesmo,
ficar de pé fora das categorias que o mantinham curvado. A dificuldade
não era somente ter sido designado à uma raça, era de ter chegado a
desejar a castração e ser cumplice dela. Porque a ficção que o Outro tinha
fabricado a respeito dele, tudo, ou quase tudo, incitava o colonizado a
vestir ela como se fosse a sua pele e sua verdade.
Ao oprimido que procurava se livrar do fardo da raça, Fanon propôs então
um longo caminho de cura. Essa cura começava por e dentro da linguagem
e da percepção, pelo conhecimento dessa realidade fundamental segundo
a qual se tornar homem no mundo, é aceitar estar exposto a outrem. A
cura prosseguia com um trabalho colossal sobre si, por novas experiências
do corpo, do movimento, do estar junto (e até da comunhão) como esse
fundo comum que o homem tem de mais vivo e vulnerável, e
eventualmente pelo exercício da violência. Essa violência era dirigida
contra o sistema colonial. Uma das particularidades desse sistema era
manufaturar um leque de sofrimentos que não suscitavam por sua vez
nenhuma responsabilização, nem solicitude, nem simpatia, e muitas
vezes, nem piedade. Pelo contrário, tudo era empreendido para desgastar
qualquer capacidade para quem quer que seja de sofrer pelo sofrimento
dos indígenas, de se deixar afetar por ele. Mais ainda, a violência colonial
tinha como função capturar a força de desejo do sujeitado e desvia-la em
direção à investimentos improdutivos. Ao pretender querer o bem do
indígena no lugar dele, o aparelho colonial não só procurava bloquear seu

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desejo de vida. Almejava atingir e diminuir suas capacidades de auto
estima como agente moral.
É contra essa ordem que se opôs com determinação a pratica política e
clínica de Fanon. Melhor que outros, ele tinha colocado o dedo sobre uma
das grandes contradições herdadas da era moderna, mas que sua época
penava em compreender. O vasto movimento de repovoamento do
mundo inaugurado no alvorecer dos Tempos modernos tinha resultado
em uma massiva “tomada de terras” (a colonização), numa escala e graças
à técnicas jamais conhecidas antes na história da humanidade. Longe de
levar à uma planetarização da democracia, a corrida para as terras novas
tinha desembocado num novo direito (nomos) da Terra cuja principal
característica era consagrar a guerra e a raça como os dois sacramentos
privilegiados da história. O sacramento da guerra e da raça nos altos
fornos do colonialismo fez delas ao mesmo tempo o antidoto e o veneno
da modernidade, seu duplo pharmakon.

Nessas condições, pensava Fanon, a descolonização como evento político


constituinte não podia abrir mão da violência. Em todos os casos, força
ativa primitiva, ela pre- existia ao seu advento. A descolonização consistia
em colocar em movimento um corpo animado, capaz de se explicar
exaustivamente e num choque sem reserva com tudo o que, lhe sendo
anterior e exterior, o impedia de advir ao seu conceito. Porém, por mais
criativa que devia ser, a violência pura e ilimitada nunca estava livre de
uma possível cegueira. Bloqueada numa repetição estéril, ela podia, a
qualquer momento, degenerar e a sua energia ser colocada ao serviço da
destruição pela destruição.
Por outro lado, o gesto medical não tinha como primeira função a
erradicação absoluta da doença ou a supressão da morte e o advento da
imortalidade. O homem doente era um homem sem família, sem amor,
sem relações humanas e sem comunhão com uma comunidade. Era o
homem privado de um encontro autentico com outros homens com os
quais ele não compartilhava, a priori, laços de descendência ou de origem
(capitulo 3).

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Esse mundo dos homens sem laços (ou dos homens que só aspiram em se
despedir dos outros) ainda está conosco, porem em configurações sempre
renovadas. Está conosco nos meandros do renascimento judeofóbico e de
seu novo pendente mimético, a islamofobia. Está conosco, na forma do
desejo de apartheid e de endogamia que azucrina nossa época, nos
mergulhando num sonho alucinatório, aquele da “comunidade sem
estrangeiros”.
Em quase todo canto, a lei do sangue, a lei do talião e o dever de raça – os
dois suplementos constitutivos do nacionalismo atávico- reaparecem na
superfície. A violência até então mais ou menos escondida das
democracias sobe à tona, desenhando um círculo mortífero que sufoca a
imaginação e do qual está cada vez mais difícil de sair. A ordem política,
em quase todo canto, se reconstitui como forma de organização para a
morte. Pouco a pouco, um terror de essência molecular e pretensamente
defensivo procura se legitimar embaçando as relações entre a violência, o
crime e a lei, a fé, o comando e a obediência, a norma e a exceção, ou
ainda a liberdade, a perseguição e a segurança. Não se trata mais, pelo
direito e pela justiça, de excluir o crime das contas da vida em comum.
Todas as vezes, é a aposta suprema que se arrisca. Nem o homem de
terror nem o homem aterrorizado, ambos novos substitutos do cidadão,
negam o assassinato. Pelo contrário, quando simplesmente, não
acreditam na morte (dada ou recebida), eles a consideram a garantia
última de uma história temperada no ferro e no aço - a história do Ser.
A irredutibilidade do laço humano, a não separabilidade do humano com
os outros vivos, a vulnerabilidade do homem em geral e do homem
doente de guerra em particular, ou ainda o cuidado necessário para
escrever o vivo no tempo longo – Fanon teve essas preocupações do início
até o fim, tanto no seu pensamento quanto na sua práxis. É dessas
interrogações que tratam, de víeis e com figuras cambiantes, os capítulos
que seguem. Já que Fanon mostrou uma solicitude especial para com a
África, e que ele ligou definitivamente a sua sorte à do continente, era
normal que a África ocupasse um lugar de primeiro plano nessa reflexão
(capitulo 4).

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De fato, tem nomes que, como não remetem à coisa, passam por cima ou
ao lado dela. A função deles é desfigurar e distorcer. É o motivo pelo qual
a coisa, a verdadeira, tende a resistir tanto ao nome quanto à qualquer
tradução. Não porque seria revestida de uma máscara mas sim porque a
sua força de proliferação é tamanha que qualquer qualificativo se torna de
repente supérfluo. Era, para Fanon, o caso da África e de sua máscara, o
Negro. Entidade genérica, embaçada e sem peso nem relevo histórico, a
respeito da qual qualquer um pode dizer aproximadamente qualquer
coisa sem que isso tenha consequência alguma? Ou força própria ao
mesmo tempo que projeto capaz, com as suas próprias reservas de vida,
de advir ao seu conceito e se auto escrever nesse novo tempo planetário?
Para prestar conta do mundo do vivo sem cair na repetição, Fanon prestou
atenção na experiência que as pessoas tinham das superfícies e das
profundezas, do mundo das luzes e dos reflexos e do mundo das sombras.
Como se tratava dos significados últimos, ele sabia que tinha que busca-
los tanto do lado das estruturas que do lado tenebroso da vida. Por isso a
extraordinária atenção que ele consagrou para a linguagem, a palavra, a
música, o teatro, a dança, o aparato, o cenário e todo tipo de objetos
técnicos e estruturas psíquicas. No mais, não se trata, nesse ensaio, de
louvar os mortos, mas evocar de forma fragmentaria um grande pensador
da transfiguração.
Para isso, não se encontrou nada mais apropriado do que uma escrita
figural, que oscila entre o vertiginoso, a dissolução e o espalhamento. É
uma escrita feita de curvas entrecruzadas, e cujas arestas e linhas sempre
se encontram no seu ponto de fuga. Deu para entender- nessa escrita, o
função da língua é trazer de volta para a vida tudo que tinha sido
abandonado para as potencias da morte. É abrir de novo o acesso aos
jazidos do futuro, começando pelo futuro daqueles dos quais, não tem
tanto tempo, era difícil dizer qual era a parte do humano e qual era a do
animal, do objeto, da coisa ou da mercadoria (capitulo 4).

Johannesburg, 24 de janeiro de 2016.

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Esse ensaio foi escrito durante minha longa estadia no Witwatersrand
Institute for Social and Economic Research (WISER) na universidade de
Witwatersrand (Johannesburg, África do Sul).
Ao longo desses anos, aproveitei muito com as trocas constantes com
meus colegas Sarah Nuttall, Keith Breckenridge, Pamila Gupta, Sara Duff,
Jonathan Klaaren, Cath Burns, e recentemente, Hlonipa Mokoena e
Shireen Hassim, Adam Habib, Tawana Kupe, Zeblon Vilakazi, Ruksana
Osman e Isabel Hofmeyr nunca deixaram de me encorajar muito. O
seminário pós doutorado que animei em WISER com minha colega Sue
Van Zyl e para o qual Charne Lavery, Claudia Gastrow, Joshua Walker,
Sarah Duff, Kirk Side e Timothy Wright contribuíram regularmente foi um
inestimável espaço de pesquisa e criatividade.
Paul Giroy, Davis Theo Goldberg, Jean Camaroff, Jonh Camaroff, Françoise
Verges, Eric Fassin, Laurent Dubois, Srinivas Aravamudan, Elsa Dorlin,
Gregoire Chamayou, Ackbar Abbas, Dilip Gaonkar, Nadia Yala Kisukidi, Eyal
Weizman, Judith Butler, Grassam Hage, Ato Quayson, Souleymane Bachir
Diagne, Adi Ophir, Celestin Monga, Siba Grovogui, Susan Van Zyl, Henry
Louis Gates e Xolela Mangcu foram fontes fecundas de inspiração, e,
muitas vezes sem sabê-lo, interlocutores de primeiríssimo plano.
Agradeço meus colegas do Johannesburg Workshop in Theory and
Criticism (JWTC), Leigh-Ann Naidoo, Zen Marie e Kelly Gillespie porque
foram companheiros tão fieis, assim como Najibha Deshmukh e Adila
Deshmukh pela sua profunda amizade.
Meu editor Hugues Jallon e sua equipe, Pascale Iltis, Thomas Deltombe e
Delphine Ribouchon foram, como sempre, um apoio certo.
O ensaio é dedicado à um homem além dos nomes, Fabien Éboussi
Boulaga, e a dois amigos indefectíveis, Jean François Bayart e Peter L.
Geschiere.

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p.17

Capitulo 1

A saída da democracia

O objetivo deste livro é contribuir, a partir da África onde vivo e trabalho


(mas também a partir do resto do mundo que eu nunca parei de
percorrer), para uma crítica do tempo que é o nosso – o tempo do
repovoamento e da planetarização do mundo sob a égide do militarismo e
do capital, e última consequência, o tempo da saída da democracia (ou de
sua inversão). Para realizar este projeto, seguiremos uma abordagem
transversal, atenta aos três padrões da abertura, da travessia e da
circulação. Tal abordagem só pode ser bem sucedida se der espaço para
uma leitura regressiva do nosso presente.
Ela parte do pressuposto que toda desconstrução verdadeira do mundo
do nosso tempo começa por um pleno reconhecimento do estatuto
obrigatoriamente provincial dos nossos discursos e do caráter
necessariamente regional dos nossos conceitos – e portanto por uma
crítica de toda forma de universalismo abstrato. Fazendo assim, é uma
abordagem que se esforça em romper com a tendência que conhecemos,
de fechamento e de demarcações de todo tipo, fronteiras entre o aqui e o
ali, o próximo e o distante, o de dentro e o de fora servindo de linha
Maginot para grande parte do que hoje chamam de “pensamento global”.
Mas só pode ter “pensamento global” quando, dando as costas para a
segregação teórica, este pensamento se apoia de fato em todos os
arquivos do que Edouard Glissant chamava de “Todo-Mundo”.

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p.18.

Reviravolta, inversão e aceleração.


Para as necessidades da reflexão que se esboça aqui, quatro traços
característicos do tempo que é o nosso merecem um destaque. O
primeiro é o encolhimento do mundo e o repovoamento da Terra em prol
da virada demográfica que, de agora em diante, opera a favor dos mundos
do Sul. O desenraizamento geográfico e cultural, depois a relocação
voluntaria ou a implantação forçada de populações inteiras em vastos
territórios outrora povoados exclusivamente por povos autóctones, foram
elementos decisivos para o nosso advento na modernidade¹. No lado
atlântico do planeta, dois momentos significativos ligados à expansão do
capitalismo industrial, deram ritmo à esse processo de redistribuição
planetária das populações.
Se trata da colonização (que começou no início do século 16 com a
conquista das américas) e do tráfico de escravos negros. Tanto o comercio
negreiro quanto a colonização coincidiram em grande parte com a
formação do pensamento mercantilista no ocidente, isto quando pura e
simplesmente não estão na sua origem². O comercio negreiro funcionava
da base da hemorragia e da punção dos braços os mais úteis e das
energias as mais vitais das sociedades fornecedoras de escravos.
Nas américas, a mão de obra servil de origem africana foi posta ao
trabalho, no quadro de um vasto projeto de submissão do meio ambiente
com a finalidade de arranja-lo de forma racional e rentável. Em vários
aspectos, o regime da plantação foi, antes de tudo, o das florestas que
precisou cortar, queimar e devastar regularmente; do algodão ou da cana
que tinham que substituir a natureza que existia antes, das paisagens
antigas que foram remodeladas, das formações vegetais anteriores que
precisou destruir, e de um ecossistema que foi substituído por um
agrossistema³. Contudo, a
1 Paul Gilroy, l ´atlantique noir, modernité et duble conscience, editions Amsterdam, paris 2010

2 para uma visão geral, ver Parkakunnel Joseph Thomas, mercantilism and east índia trade, Frank Cass,
Londres,1963; William J. Barber, British economic thought and índia, 1690-1858, clarendon press,
Oxford, 1975

3 ver Walter Jonhson, river of dark dreams, slavery and empire in the cotton kingdom, the belknap press
of havard university press, Cambridge, ma, 2013

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P19.
plantação não era apenas um dispositivo econômico. Para os escravos
transplantados no Novo Mundo, ela era também o palco onde se
desenrolava outro começo. Aqui, começava uma vida doravante vivida
segundo um princípio essencialmente racial. Mas, longe de ser apenas um
significante biológico, a raça assim compreendida remetia à um corpo sem
mundo e fora do chão, um corpo de energia combustível, um tipo de
duplo da natureza que se podia, pelo trabalho, transformar em estoque
ou fundo disponível4.
A colonização funcionava, por sua vez, com a excreção daqueles e
daquelas que, em vários aspectos, eram julgados supérfluos, em
excedente no seio das nações colonizadoras. Era o caso, em particular, dos
pobres à cargo da sociedade e dos perambulantes e delinquentes que
acreditava-se serem nocivos à nação. Era uma tecnologia de regulação dos
movimentos migratórios. Muitos eram aqueles que, na época,
consideravam que esta forma de migração beneficiaria em última
instancia aos países de origem. “Não só um grande número de homens
que vivem hoje no ócio aqui, e representam um peso, uma carga e não
dão lucro nenhum a este reino, serão colocados assim para trabalhar, mas
os seus filhos de doze ou quatorze anos, ou até menos, também serão
afastados do ócio, fazendo mil tipos de coisas fúteis, que, quem sabe
poderão se tornar boas mercadorias para este pais”, escrevia, por
exemplo, Antoine de Montchrestien no seu tratado de economia política
no início do século 17. E mais ainda, ele acrescentava, “nossas mulheres
ociosas [...] serão uteis arrancando, tingindo e separando penas, puxando,
batendo e trabalhando o cânhamo, e colhendo o algodão, e diversas
coisas na tinturaria”. Os homens poderão, por sua vez, “serem uteis
trabalhando nas minas, e lavrando, arando ou até caçando baleia [...] além
da pesca do bacalhau, do salmão, do arenque, e derrubando arvores”,
assim concluía5.

4 encontra se in Richard s. Dunn, a tale of two plantations, slave life and labor in Jamaica and Virginia,
Harvard university press, Cambridge, 2014, uma analise comparada dessa instituição.

5 Antoine de Montchrestien, traité d´economie politique, droz, geneve, 1999 (1615) p 187

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P20.
Do século 16 ao século 17, estas duas modalidades do repovoamento do
planeta pela predação humana, a extração das riquezas naturais e a
imposição do trabalho para os grupos sociais subalternos formaram os
desafios econômicos, políticos e em muitos aspectos filosóficos maiores
do período6. Tanto a teoria econômica quanto a teoria da democracia
foram em parte construídas em cima da defesa ou da crítica de uma ou de
outra dessas duas formas de redistribuição espacial das populações7.
Estas, por sua vez, estiveram na origem de numerosos conflitos e guerras
de repartição ou de apoderação. Resultado desse movimento planetário,
uma nova distribuição do planeta apareceu, com, no centro, as potências
ocidentais e, fora, ou nas margens, as periferias - espaços da luta extrema
e condenadas à ocupação e à pilhagem.
Ainda é preciso levar em conta a distinção geralmente aceita entre a
colonização comercial – ou ainda de balcão - e a colonização de
povoamento propriamente dita. É verdade que nos dois casos, se
considerava que o enriquecimento da colônia – toda colônia - só fazia
sentido se contribuísse para o enriquecimento da metrópole. Porém a
diferença se encontrava no fato de que a colônia de povoamento era
concebida como uma extensão da nação enquanto que a colônia de
balcão ou de exploração não era mais do que uma forma de enriquecer a
metrópole pelo víeis de um comercio assimétrico, não equitativo,
praticamente sem nenhum investimento pesado no local.
Além disso, a apropriação das colônias de exploração teoricamente tinha
um fim e a implantação de europeus naqueles lugares era de caráter
realmente provisório. No caso das colônias de povoamento, a política de
migração visava manter no colo

6 ver por exemplo, Josiah Child, a new discourse of trade, J. Hodges, Londres, 1690, p197; Charles
Davenant, “discourses on the public revenue ando n the trade”, in the political and commercial Works,
collected and revised by sir Charles Whitworth, R. Horsfield, Londres, 1967 (1711) p.3

7 ler Christophe Salvat, formation et diffusionde la pensee economique liberale française. André
Morrellet et l ´economie politique du xvii siecle, these, lyon 2000; Daniel Diatkine (dir) le liberalisme à
l´epreuve: de l´empire aux nations (Adam Smith et l´economie coloniale), cahiers d´economie politique,
n27-28, 1996

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P21
da nação pessoas que seriam perdidas se ficassem entre nós. A colônia
servia de solução para os indesejáveis, as categorias da população “cujos
crimes e desvios” poderiam se tornar “rapidamente destrutivos”, ou cujas
necessidades os teriam levado à cadeia ou à mendigar, os tornando
inúteis para o pais. Essa cisão da humanidade em populações “úteis” e
“inúteis” – “excedentárias” e “supérfluas” - continua a regra, a utilidade
se medindo essencialmente pela capacidade de aumento da força de
trabalho.
No mais, o repovoamento da terra no início da era moderna não passa
apenas pela colonização. Migrações e mobilidade se explicam também por
fatores religiosos. Ao longo do período 1685-1730, nos dias que seguiram
a revogação do edito de Nantes, em torno de 170000 a 180000
huguenotes fogem da França. A emigração religiosa atinge muitas outras
comunidades. Na verdade, diferentes tipos de circulações internacionais
se encaixam, seja por parte dos judeus portugueses cujas redes comerciais
se articulam ao redor dos grandes portos europeus de Hamburgo,
Amsterdã, Londres ou Bordeaux, seja os italianos que investem-no mundo
da finança, do negócio ou das profissões altamente especializadas como o
trabalho do vidro e dos produtos de luxo, seja até soldados, mercenários,
engenheiros que graças aos múltiplos conflitos da época, passam
alegremente de um mercado da violência para outro 8.
No alvorecer do século 21, o tráfico de escravos e a colonização das
regiões distantes do globo não são mais os meios pelos quais se efetua o
repovoamento da terra. O trabalho, na sua acepção tradicional, não é
mais necessariamente o meio privilegiado de formação de valor. Porém o
momento é de abalamento, com grandes e pequenas deslocações e
transferências, ou seja, é de novas figuras do êxodo9. As novas dinâmicas
circulatórias

8 Ver Jean Pierre Bardet et Jacques Dupaquier (dir) histoire des populations de l´europe. I des origines
aux premices de la revolution demographique, fayard, paris, 1998

9 sobre o tamanho dessas novas formas de circulação, ver World Bank, Development goals in na era of
demographic Change. Global monitoring Report 2015/2016 (disponível em www.worldbank.com)

17
p22
e a formação das diásporas passam em grande parte pelo comercio ou o
negócio, as guerras, os desastres ecológicos e as catástrofes ambientais, e
as transferências culturais de todo tipo.
O envelhecimento acelerado dos conjuntos humanos das nações ricas do
mundo representa, deste ponto de vista, um evento com alcance
considerável. Ele é o inverso dos excedentes demográficos típicos do
século 19 que acabaram de ser evocados. A distância geográfica como tal
não representa mais um obstáculo à mobilidade. As grandes rotas da
migração se diversificam e dispositivos cada vez mais sofisticados
contornando as fronteiras são instalados. Assim, mesmo que centrípetos,
os fluxos migratórios se orientam em várias direções simultaneamente, a
Europa e os Estados Unidos em particular se mantêm mesmo assim como
os pontos de fixação maiores das multidões em movimento -
especialmente as que vêm dos centros de pobreza do planeta. Aqui
surgem novas aglomerações e se constrõem, apesar de tudo, novas
cidades polinacionais. Diversos arranjos de territórios mosaicos aparecem,
pouco a pouco e no conjunto do planeta, por conta das novas circulações
internacionais.
Esta nova polinização - que vem se acrescentar às ondas anteriores de
migrações oriundas do Sul - embaça os critérios de pertencimento
nacional. Pertencer à nação não é mais apenas uma questão de origem,
mas também de escolha. Uma massa cada vez maior de pessoas participa
doravante de vários tipos de nacionalidades (nacionalidade de origem, de
residência, de escolha) e de laços identitários. Em alguns casos, eles são
compelidos a se decidir, e se fundir na população, botando um fim às
fidelidades duplas; ou, em caso de delito colocando em perigo a
“existência da nação”, a correr o risco de serem destituídos da
nacionalidade de acolhimento10.
Mais ainda, no coração do repovoamento – em curso - da terra, não se
encontram apenas humanos. Os ocupantes do mundo não se limitam mais
aos únicos seres humanos.

10 ver Seyla Benhabib e Judith Resnik (dir) migrations and mobilities. Citizenship, borders, and genders,
new York univeesity press, new York, 2009, e Seyla benhabib, the rights of others, aliens, residents and
citizens, Cambridge university press, Cambridge, 2004.

18
P23
Mais que nunca, eles incluem numerosos artefatos e todas as espécies
vivas, orgânicas e vegetais. E nem as forças geológicas, geomorfológicas e
climatológicas deixam de completar o conjunto dos novos habitantes da
Terra11. Sim, não se trata de seres nem de grupos ou de famílias de
existentes como tais. Pode se dizer que nem se trata de meio ambiente
nem da natureza. Se trata de agentes e meios de vida - a agua, o ar, a
poeira, os micróbios, os cupins, as abelhas, os insetos -, autores de
relações específicas. Passamos então da condição humana para a condição
terrestre.
O segundo traço característico do nosso tempo é a redefinição - em curso
- do humano no quadro de uma ecologia geral e de uma geografia
doravante ampliada, esférica, irreversivelmente planetária. De fato, o
mundo não é mais apenas considerado como um artefato que o homem
fabrica. Saído da idade de pedra e da prata, do ferro e do ouro, o homem
por sua vez tende hoje a se tornar plástico. O advento do homem plástico
e do seu corolário, o sujeito digital, vai diretamente contra numerosas
convicções tidas, até recentemente, como verdades imutáveis.
É assim com a crença segunda a qual existiria um “próprio do homem”, ou
um “homem genérico” que seria separável do animal ou do mundo
vegetal; ou ainda, que a Terra que ele habita e explora não passaria de
objeto passivo de suas intervenções. Assim, também, com a ideia segunda
a qual, de todas as espécies vivas, o “gênero humano” seria o único a ter
conseguido se livrar em parte de sua animalidade. As correntes da
necessidade biológica arrebentadas, ele teria se erguido quase à altura do
divino. No reverso desses artigos de fé e muitos outros, se admite hoje
que, no seio do universo, o gênero humano em particular não passa de
parte de um conjunto mais vasto de sujeitos vivos, os quais incluem os
animais, os vegetais e outras espécies.

11 a palavra “novos habitantes” não significa que não estavam aqui ainda. Por “novos”, tem que
entender a mudança do seu estatuto nos nossos dispositivos de representação. A respeito desses
assuntos, ver Bruno Latour, face à Gaia, huit conferences sur le nouveau regime climatique, la
decouverte, paris 2015.

19
p24.
Se ficarmos nas áreas da biologia e da engenharia genética, não teria,
propriamente falando, nenhuma “essência do homem” para preservar e
nenhuma “natureza do homem” para proteger. Assim, não teria quase
nenhum limite à modificação da estrutura biológica e genética da
humanidade. No fundo, com manipulações genéticas e germinais, acredita
se realmente possível não só “aumentar” o ser humano (enhancement)
mas também, num ato espetacular de autocriação, produzir o vivo pela
tecnomedicina.
O terceiro traço constitutivo da época é a introdução generalizada de
instrumentos e maquinas calculadores ou computacionais em todos os
aspectos da vida social. A potência e ubiquidade do fenômeno numérico
ajudando, não existe mais separação vedada entre a tela e a vida. Hoje, a
vida acontece na tela, e a tela se tornou a forma plástica e simulada do
vivo, que, aliás, pode doravante ser compreendido por um código. Com
tudo, “não é mais pela confrontação com o retrato ou diante da figura do
duplo que apresenta o espelho que se entende o sujeito, mas pela
construção de uma forma de presença do sujeito mais próxima da xerox e
da sombra projetada12”.
Assim fica de fora parte do trabalho de subjetivação e de individuação
pelo qual ainda recentemente, todo ser humano se tornava uma pessoa
dotada de uma identidade mais ou menos indexável. Queiram ou não, o
momento seria então mais da plasticidade, da polinização, e dos enxertes
de todo tipo – plasticidade do cérebro, polinização do artificial e do
orgânico, manipulações genéticas e enxertes informáticos, aparelhagem
cada vez mais estreita do humano com a máquina. Todas essas mutações
não só permitem o livre curso do sonho de uma vida verdadeiramente
ilimitada. De agora em diante elas exercem poder sobre o vivente- ou
ainda nos tornam capazes de alterar voluntariamente a espécie humana –
sem dúvida, a forma absoluta de poder.
A articulação entre a capacidade de alterar voluntariamente a espécie
humana- e até outras espécies vivas e outros materiais

12 Claire Larsonneur (dir) le sujet digital, les presses du reel, paris, 2015, p.3

20
p.25
em aparência inertes - e o poder do capital constitui o quarto traço
marcante do mundo do nosso tempo. A potência do capital - ao mesmo
tempo força viva e criadora (quando se trata de estender mercados e
acumular lucros) e processo sangrento de devoração (quando se trata de
destruir sem volta a vida dos seres e das espécies) - se decuplou a partir
do momento em que os mercados da finança escolheram se apoiar nas
inteligências artificiais para otimizar o movimento das liquidezes. Porque a
maioria desses operadores de alta frequência usam algoritmos de ponta
para tratar a massa de informações trocadas nos mercados financeiros,
eles funcionam em escalas micro temporais inacessíveis para o homem.
Hoje, o tempo de transferência da informação entre a Bolsa e o operador
é calculada em milésimos de segundo. Acoplada a outros fatores, esta
extraordinária compressão do tempo levou ao paradoxo que é, de um
lado o espetacular aumento da fragilidade e da instabilidade dos
mercados, e do outro lado, seu poder quase ilimitado de destruição.
A questão que é colocada agora então é saber se ainda é possível impedir
que os modos de exploração do planeta caiam na destruição absoluta.
Esta questão é de uma atualidade tal que a simetria entre o mercado e a
guerra nunca foi tão manifesta como hoje. A guerra terá sido a matriz do
desenvolvimento tecnológico ao longo dos séculos precedentes. Todo tipo
de aparelhos militares continuam desempenhando esse papel hoje, além
do papel do mercado, que, por sua vez, funciona mais do que nunca no
modelo da guerra13-mas uma guerra que opõe doravante as espécies
entre elas, e a natureza aos seres humanos. Essa estreita imbricação do
capital, das tecnologias numéricas, da natureza e da guerra, e das novas
constelações de potência que elas tornam possíveis, é sem dúvida, o que
ameaça mais diretamente a ideia do político que, até então, servia de
pressuposto à essa forma de governo que é a democracia.

13 Pierre Caye, critique de la destruction créatrice, les belles lettres, paris, 2015 p20

21
P26

O corpo noturno da democracia


Esta ideia era relativamente simples: não há fundamento (ou base
imutável) para a comunidade dos homens que seria por princípio
subtraído ao debate. A comunidade é política na medida em que,
consciente da contingência de seus fundamentos e de sua violência
latente, ela está sempre disposta a voltar a pôr em causa suas origens. Ela
é democrática na medida em que, uma vez garantida esta abertura
permanente sobre o amplo, a vida do estado ganha um caráter público; os
poderes são colocados abaixo do controle dos cidadãos, e estes são livres
para procurar e cobrar, sem parar e toda vez que for necessário, a
verdade, a razão, a justiça e o bem comum. Ao ideal da força, aos estados
de fato (o arbitrário político) e ao gosto pelo segredo se opõem de agora
em diante as noções de igualdade, do estado de direito e da publicidade.
De fato, não basta mais invocar os próprios mitos de origem para legitimar
a ordem democrática nas sociedades contemporâneas.
Porém, se a força das democracias modernas sempre decorreu de sua
capacidade em se reinventar e em inventar constantemente não só a sua
forma, mas também sua ideia ou conceito, isto só era possível com a
dissimulação e a ocultação de suas origens na violência. A história deste
empreendimento simultâneo de invenção e reinvenção, de dissimulação e
de ocultação é completamente paradoxal, quiçá caótico. Mostra, em
todos os casos, a que ponto a ordem democrática, na diversidade de suas
trajetórias, é notoriamente equivoca.
Segundo a narrativa consagrada, as sociedades democráticas seriam
sociedades pacificadas. É o que as distingue das sociedades guerreiras. No
seu âmbito, a brutalidade e a violência física seriam senão banidas, pelo
menos, controladas. Por haver o monopólio da força pelo estado e a
interiorização do controle pelos indivíduos, o corpo a corpo pelo qual se
expressava a violência física na sociedade medieval até o renascimento
teria dado lugar ao autocontrole, à moderação e à civilidade. Esta nova
forma de governo dos corpos, das condutas e dos afetos teria conduzido à
pacificação dos espaços sociais.

22
P27
A força das formas teria substituído a violência dos corpos. A regulação
dos comportamentos, o governo das condutas, a prevenção da desordem
e da violência se efetuariam agora pelo víeis de rituais plenamente
aceitos14. Impondo uma distância entre os indivíduos, formas e rituais
contribuiriam para uma civilização dos costumes pelos costumes. Daí, as
sociedades democráticas não se embasariam como os regimes
monárquicos ou tirânicos sobre o princípio da obediência para com um
homem forte, único capaz de conferir à sociedade a possibilidade de se
disciplinar. Em larga medida, a sua força estaria no força de suas formas 15.
A ideia segundo a qual a vida em democracia seria fundamentalmente
pacífica, policiada e despida de violência (inclusive na forma de guerra e
de devastação) não suporta a leitura. É verdade, a emergência e a
consolidação da democracia vieram junto com várias tentativas visando
conter a violência individual, regulamenta-la, reduzi-la, quiçá acabar com
as suas manifestações mais espetaculares e abjetas com golpes de
reprovação moral ou sanções jurídicas.
Mas o máximo que se conseguiu foi apenas velar a brutalidade das
democracias. Desde sua origem, as democracias modernas sempre se
mostraram tolerantes para com uma certa violência política, inclusive
ilegal. Elas integraram na sua cultura formas de brutalidade sustentadas
por um leque de instituições privadas que agem por cima do estado, que
se trate de tropas de elite, de milícias e outras formações paramilitares ou
corporativistas.
Durante muito tempo, os Estados Unidos foram um estado e uma
democracia com escravos. W.E.B Dubois lembra, no seu Black
Reconstruction, o paradoxo no coração desta nação que, desde o seu
nascimento, proclama a igualdade dos homens; cujo governo se
pressupõe que consegue seu poder graças ao consentimento dos
governados; mas que; pela pratica da escravidão, se acomoda

14 Norbert Elias, la societé de cour, Calmann levy, paris, 1969; la civilisation des moeurs, Calmann-Levy,
paris 1973; la dynamique de l´occident, Calmann-Levy, Paris 1975

15 Erving Goffman, les rites d´interaction, minuit, paris 1974.

23
P28
de uma disjunção moral absoluta16. No início dos anos 1830, os Estados
Unidos tem quase dois milhões de negros. Os negros representam 11,6%
da população em 1900. A sua sorte é estreitamente ligada à dos Brancos
sem que as condições respectivas de uns como dos outros, muito menos
seu futuro, se confundam. Como o observaram vários historiadores, é tão
difícil para os dois grupos se separar completamente como se unir. Do
ponto de vista do direito, os escravos estão na posição do estrangeiro no
seio de uma sociedade de semelhantes. Ter nascido nos Estados Unidos
(caso de 90% deles em 1860) ou ser oriundo de uma descendência mista
(13% deles no mesmo período) não muda nada no estado de baixeza ao
qual são reduzidos, nem na ignomínia que os acomete, e que é
transmitida de geração em geração, na forma de uma herança
envenenada.
A democracia com escravos se caracteriza então pela sua bifurcação. Em
seu seio, coexistam duas ordens - uma comunidade dos semelhantes,
regida, pelo menos teoricamente, pela lei de igualdade e uma categoria
de não-semelhantes, ou ainda de sem-parte que também é instituída pela
lei. A priori, os sem-parte não têm nenhum direito a ter direitos. Eles são
regidos pela lei da desigualdade. Essa desigualdade e a lei que a constitui e
é seu embasamento são fundadas sobre o preconceito de raça. Tanto o
próprio preconceito como a lei que o fundamenta permitem manter uma
distância quase que insuperável entre a comunidade dos semelhantes e
seus outros. Se for admitido que ela é uma comunidade, a democracia
com escravos só pode ser uma comunidade de separação.
“em quase todos os estados onde a escravidão foi abolida”, anota assim
Alexis de Tocqueville em 1848, deram ao Negro direitos eleitorais; mas se
ele se apresentar para votar, ele corre risco de vida. Oprimido, ele pode
dar queixa, mas só encontrará Brancos entre seus juízes. Todavia, a lei lhe
abre os bancos dos jurados, mas o preconceito o rechaça dos mesmos.
Seu filho é excluído da escola onde vem se instruir o descendente de
Europeus.

16 WEB Dubois, black reconstruction in America, 1860-1880, free press editions, new York, 1998 (1935)

24
P29
Nos teatros, ele não conseguiria, a preço de ouro, comprar o direito de um
ingresso numa poltrona ao lado daquele que foi seu mestre; nos hospitais,
ele jaz de escanteio. Permitem ao Negro implorar o mesmo deus que os
Brancos, mas não rezar no mesmo altar. Ele tem seus pastores e seus
templos. As portas do céu não lhe são fechadas: mas praticamente a
desigualdade continua na beira do outro mundo. Quando o Negro se vai,
jogam seus ossos ao longe, e a diferença das condições se perpetua até na
igualdade da morte17. “
Na democracia com escravos, os não-semelhantes não podem exigir “a
posse de nenhum lugar no chão18”. Aliás, a obsessão das democracias com
escravos não é só mantê-los cuidadosamente afastados. É principalmente
saber como se livrar deles, fazê-los deixar voluntariamente o pais, ou se
for preciso, deportá-los em massa19. E se por ventura lhes é feita a
concessão de elevá-los entre os semelhantes, ou até em mistura-los, é
precisamente para depois poder “rejeita-los na poeira20”, esse estado
natural das raças aviltadas. Porque o escravo não é um sujeito de direito,
mas uma mercadoria como todas as outras. A cena mais dramática dessa
rejeição na poeira é o linchamento. Este representa uma forma grandiosa,
grotesca e até exibicionista da crueldade racista. Ele não acontece atrás
dos muros que circundam uma prisão, mas sim no espaço publico 21.
Através da publicidade das execuções, a democracia racista encena uma
insustentável brutalidade e inflama as emoções de execução pública.
Como técnica do poder racista, o ritual de execução tem como objetivo
semear o terror na mente de suas vítimas e
17 alexis de Tocqueville, de la democratie em amerique, I, gf flamarion, paris, 1981, p457.

18 ibid, p466

19 Kenneth C Barnes, journey of hope. The back to africa movementin kansas in the late 1800´s, the
university of north carolina press, chapel hill, 2004.

20 ibid, p 457

21 mais ou menos na mesma época, na frança por exemplo, uma tendência inversa aparece. A
democracia, senão procura obter a obediência sem recorrer necessariamente à violência direta, pelo
menos procura relegar as suas manifestações mais desumanas em espaços cada vez mais invisíveis. Ver
Emmanuel Taieb, la guillotine au secret. Les executions publiques em France, 1870-1939, belin, paris,
2011.

25
P 30
de revivificar as pulsões mortíferas que formam o embasamento da
supremacia branca22.
Grande proprietário de escravos Thomas Jefferson era particularmente
consciente do dilema encontrado num regime da plantação e no estatuto
servil numa sociedade que se diz livre. Ele sempre lastimou essa
“influência infeliz que essa instituição [o escravagismo] exerce sobre as
maneiras do nosso povo”. A pratica escravagista era de fato, aos olhos
dele, o equivalente da licença absoluta. Ela levava ao exercício perpétuo
das paixões mais indomáveis. Parte maldita da democracia americana, a
escravidão era a manifestação do despotismo corrompido e impenitente,
despotismo que era possível graças à abjeta degradação daqueles que
eram escravizados23. A plantação de fato é o local improvável onde as
formas mais espetaculares da crueldade têm livre curso, que se trate de
violências corporais, de torturas ou de execuções sumárias.
Graças ao dinheiro acumulado pelos plantadores das Índias ocidentais, a
Inglaterra do século 18 pôde financiar o nascimento de uma cultura do
gosto, as galerias de arte e os cafés, lugares por excelência de
aprendizagem da civilidade. Barões coloniais como William Beckford,
plantocratas como Joseph Addison, Richard Steele ou Christopher
Carrington garantem o apadrinhamento das instituições culturais. Passam
comissões para os artistas, arquitetos e compositores. Civilidade e
consumo de produtos de luxo caminhando junto, o café, o açúcar e os
condimentos se tornam ingredientes necessários à vida do homem
educado. Enquanto isso, barões coloniais e ricaços indianos reciclam suas
fortunas suspeitas com o objetivo de se fazer uma identidade de
aristocrata24.

22 ler Ida B Wells-Barnett, on lynchings, arno press, new York, 1969; Robyn Wiegman, the anatomyof
lynching, jornal of the history of sexuality, vol3, n3, 1993, p445-467; David Garland, penal excess and
surplus meaning. Public torture lynchings in twentieth century américa, law and society review, vol.39,
n4, 2005, p 793-834; e Dora Apel, on looking lynchings photographs and legacies of lynching after 9/11,
americanquarterly, vol55, n3, 2003, p457-478

23 Thomas Jefferson, notes of the state of virginia, Penguin Classic, Londres, 1999 (1775)

24 Simon Gikandi, slavery and the culture of taste, Princeton university press, Princeton, 2015 p149

26
P31.
Enfim, a “civilização dos bons costumes” se torna possível graças às novas
formas de enriquecimento e de consumo inauguradas pelas aventuras
coloniais. De fato, a partir do século 17, o comercio externo é considerado
o melhor caminho para garantir a riqueza dos estados. Enquanto o
controle dos fluxos de trocas internacionais passa doravante pelo domínio
dos mares, a capacidade em criar relações de troca desiguais se torna, por
sua parte, um elemento decisivo de potência. Se o ouro e a prata do além
mar são almejados por todos os estados e pelas diversas cortes
principescas da Europa, é o caso também da pimenta do reino, da canela,
do cravo, da noz moscada e outras espeçarias. E ainda do algodão, da
seda, do índigo, do café, do tabaco, do açúcar, dos bálsamos, dos licores
de todo tipo, das gomas e das madeiras medicinais que são compradas ao
longe por preços irrisórios e que são revendidos por preços exorbitantes
nos mercados europeus.
Para pacificar os costumes, a questão de fato é tomar de assalto as
colônias, estabelecer companhias concessionarias, e consumir cada vez
mais produtos em proveniência de lugares distantes do mundo. A paz civil
no Ocidente depende então em grande parte das violências distantes, dos
focos de atrocidades que são acesos, das guerras de território e outros
massacres que acompanham o estabelecimento de quarteis e de balcões
de comercio nos quatro cantos do planeta. Ela depende do abastecimento
em telas para os barcos a vela, em mastros, em madeira de carpintaria,
em bréu, em linho e cordas, mas também em artigos de luxo como a seda,
os tecidos pintados e tingidos, o sal para a conservação do peixe, o
potássio e os corantes para a indústria têxtil, sem falar do açucar 25. Em
outras palavras, o desejo, o amor pelo luxo e outras paixões não são mais
motivo para intempestivas condenações. Mas a satisfação desses novos
desejos depende da institucionalização de um regime de desigualdades
em escala planetária. A colonização é a roda principal

25 ver Sidney W Mintz, sweetness and power. The place of sugar in modern History, penguin books,
new York, 1986; K. N Chauduri, the trading world of asia and the english east índia company, 1660-1760,
Cambridge university press, Cambridge, 1978

27
p32
desse regime26. A respeito disso, o historiador Romain Bertrand sugere
que o estado colonial “permanece um estado em pé de guerra 27”. Ao dizer
isso, ele não se refere só às exações cometidas durante as guerras de
conquista, nem mesmo ao exercício de uma justiça privada e cruel ou à
repressão feroz dos movimentos nacionalistas. Ele está pensando no que
é preciso chamar de “a política colonial do terror”, ou seja, a
ultrapassagem deliberada de um limiar de violência e de crueldade que se
abate sobre aqueles que anteriormente, foram privados de qualquer
direito. O desejo de reduzi-los à ruina se traduz pela generalização de
práticas como incêndios de aldeias e de plantações de arroz, execuções de
simples aldeões para dar exemplo, pilhagem das reservas coletivas de
comida e dos celeiros, arrastões de uma extrema brutalidade entre os civis
ou a sistematização da tortura.
Sistema colonial e sistema escravagista representam por consequência o
deposito amargo da democracia, aquele mesmo que, segundo uma
intuição jeffersoniana, corrompe o corpo da liberdade e leva
inexoravelmente à decomposição. Uma após a outra, essas três ordens – a
ordem da plantação, a ordem da colônia e a ordem da democracia - nunca
se desquitam, do mesmo modo que Georges Washington e seu escravo e
companheiro William Lee; ou ainda Thomas Jefferson e seu escravo
Júpiter. Um acrescenta sua aura ao outro, numa relação estrita de
distância aparente e de proximidade e intimidade recalcadas.

Mitológicas
A crítica da violência das democracias não é novidade. Ela pode ser lida
diretamente nos contra discursos e práticas da luta que acompanharam
sua emergência,

26 ver Klaus Knorr, British colonial theories, 1570-1850, Toronto university press, Toronto, 1944, p54; e
Joyce Oldham Appleby, economic thought and ideology in the seventeenth century england, Princeton,
prindeton university press, 1978; William Letwin, the origino f scientific economics. The english
economic thought 1660-1776, methuen, Londres, 1963

27 Romain Bertrand, norbert elias et la question des violences imperiales, jalons pour une histoire de la
mauvaise conscience occidentale, vingtieme siecle, n106, 2010, p127-140.

28
p33
e depois seu triunfo no século 19. É o caso por exemplo das diversas
variantes do socialismo, outra ideia nova do século 19; ou ainda do
anarquismo do final do século 19 e das tradições do sindicalismo
revolucionário na França de antes da primeira guerra mundial e nos dias
que seguiram a crise de 1929.
Uma das questões fundamentais que aparecem na época é saber se a
política pode ser outra coisa do que uma atividade que beneficia o estado
e na qual o estado é utilizado para garantir os privilégios de uma minoria.
Uma outra questão é saber em que condições as forças radicais visando
precipitar o advento da sociedade do futuro podem se prevalecer de um
direito em usar a violência para garantir a realização de suas utopias. No
plano filosófico, a pergunta é se a humanidade é capaz de alcançar por si
mesma, sem recorrer à transcendência, um desenvolvimento de suas
capacidades, um crescimento na sua potência de agir, único meio para a
história humana se auto produzir.
Em torno do final do século 19, a noção de ação direta aparece. A ação
direta é concebida como uma ação violenta realizada independentemente
de qualquer mediação do estado, ela tem como objetivo se libertar das
correntes que impedem os humanos de comunicar com suas próprias
reservas de energia e assim, se autoproduzir. A revolução é o exemplo
realizado disto. Forma de eliminar violentamente qualquer contra força
objetiva que se opõe à uma mudança radical das bases da sociedade, a
revolução tem por objetivo a abolição dos antagonismos de classe e o
advento de uma sociedade igualitária.
A greve geral expropriadora é outro exemplo, cujo alvo é instalar um
outro modo de produção. Esse tipo de conflitualidade sem mediação
proíbe, por definição, o compromisso. Ela recusa, também, qualquer
conciliação. A revolução é pensada como um evento violento. Essa
violência é planejada. Na ocasião de eventos revolucionários, ela pode ter
como alvo pessoas que incarnam a ordem a ser derrubada. Apesar de
inevitável, ela precisa ser contida e direcionada contra as estruturas e as
instituições. A violência

29
P34
revolucionaria tem de fato algo de irredutível. Ela almeja a destruição e o
aniquilamento de uma ordem estabelecida – aniquilamento que não se
pode obter pacificamente. Ela investe contra a ordem das coisas mais do
que contra a ordem das pessoas28.
O anarquismo, sob suas diferentes formas, se apresenta como uma
superação da democracia notadamente parlamentar29. As principais
correntes anarquistas se esforçam em pensar o político além da
dominação burguesa. Seu projeto é acabar com qualquer dominação
política – a democracia parlamentar sendo uma de suas modalidades. Para
Mikhail Bakounine por exemplo, a superação da democracia burguesa
passa pela superação do estado, essa instituição cuja característica é antes
de tudo cuidar de sua própria manutenção assim como das classes que
tendo o capturado, agora o colonizam. A superação do estado inaugura o
advento da “comuna”, figura por excelência de auto organização do social
mais ainda do que simples entidade econômica ou política.
Outra crítica da brutalidade das democracias é obra dos sindicalistas
revolucionários para os quais não se trata tanto de pesar sobre o sistema
existente quanto destrui-lo pela violência. A violência se distingue da
força. A força, escreve Georges Sorel, “tem como objetivo impor a
organização de certa ordem social que uma minoria governa”. Ela procura
“realizar uma obediência automática”. A violência, pelo contrário, “tende
à destruição dessa ordem” e “a quebrar essa autoridade” 30. De 1919 até o
início dos anos 1930 na França, várias manifestações operarias almejam
em particular esse objetivo. A maioria sofre morte de homens, ocupação
da rua, ereção de barricadas. O ciclo provocação/repressão/mobilização
contribui para a afirmação de uma identidade de classe tanto quanto os
longos movimentos de greve e os enfrentamentos sucessivos com as
forças da ordem.

28 Mikhail Bakounine, federalisme, socialisme et antitheologisme, in oeuvres, vol1, stock, paris 1980 et
vol 8.

29 para uma crítica de direita, ver Car Schimitt, parlementarisme et democratie, seuil, paris, 1988

30 Georges Sorel, reflexions sur la violence, marcel riviere, paris 1921, p 257 e p 263.

30
P35
A ideia é que a violência proletária é moral enquanto que a do aparelho
do estado é reacionária. Quase que duas décadas depois da repressão da
Comuna e a dissolução da 1ra Internacional em 1876, o anarquismo
desabrocha na França. A destruição da propriedade e a desapropriação
dos possuidores formam um dos objetivos assumidos e o terror dos
oprimidos uma de suas armas. Nos anos de 1890, ele toma a forma de
ações surpresa, no âmbito de uma economia do sacrifício – sacrifício para
a causa proletária31.
Essas críticas da democracia – articuladas do ponto de vista das classes
sociais que originariamente sofreram a brutalidade dentro do próprio
Ocidente – são relativamente conhecidas. Porém não se insistiu o
suficiente sobre suas múltiplas genealogias e seu emaranhado. Fizeram
como se a história das democracias modernas se resumisse a uma história
interna das sociedades do Ocidente e como se, fechadas em si e para o
mundo, essas sociedades estivessem contidas dentro dos limites estreitos
de seu ambiente imediato. Porém, isso nunca foi o caso. O triunfo da
democracia moderna no Ocidente coincide com o período de sua história
ao longo do qual essa região do mundo está engajada num movimento
duplo de consolidação interna e expansão além mar. A história da
democracia moderna é, no fundo, uma história de dois rostos, quiçá de
dois corpos – o corpo solar, de um lado, e o corpo noturno, de outro lado.
O império colonial e o estado com escravos – e mais precisamente a
plantação e o trabalho forçado – constituem os emblemas maiores desse
corpo noturno.
A prisão com trabalho forçado em particular é um lugar onde são
purgadas as penas de exclusão. Essas penas procuram tanto afastar
quanto eliminar aqueles e aquelas que as sofrem. Esse era o caso, na
origem, dos oponentes políticos, dos condenados do direito comum ao
trabalho forçado, até dos delinquentes recidivistas32. Na França, a lei

31 ver Romain Ducolombier, ni dieu, ni maitre, ni organisation? Contribution à l´histoire des reseaux
sous la troisieme republique (1880-1914), presses universitaires de rennes, rennes, 2009; e Miguel
Chueca (dir) déposséder les possedants, la greve generale aux temps heroiques du sindicalisme
revolutionnaire. (1895-1906) agone, marseille, 2008

32 odile Krakovich, les femmes bagnardes, O. Orban, paris 1990.

31
P36
do 26 de agosto de 1792, institui, de fato, a deportação política. Entre
1852 e 1854, as prisões coloniais conhecem um grande crescimento.
Envios massivos acontecem ao longo do século 19 na Guiana em especial,
onde penas as vezes leves de cadeia são transformadas em penas
perpétuas33. Em vários aspectos, a prisão colonial prefigura a massificação
do encarceramento típico do momento contemporâneo – aquele da
coerção extrema e generalizada e do confinamento solitario 34. A violência
do tratamento dos prisioneiros e as formas de privação pelas quais eles
são obrigados a passar misturam duas logicas, a da neutralização e a do
exilo35.
No fundo, desde suas origens, para dissimular a contingência de seus
fundamentos e a violência que constitui seus reversos, a democracia
moderna precisa se envolver numa estrutura quase que mitológica. Como
acabou de ser lembrado, a ordem democrática, a ordem da plantação e a
ordem colonial mantiveram durante muito tempo relações de gêmeos.
Essas relações estão longe de serem acidentais. Democracia, plantação e
império colonial fazem parte objetivamente de uma mesma matriz
histórica. Esse fato originário e estruturante está no coração de qualquer
compreensão histórica da violência da ordem mundial contemporânea.
Para apreender melhor a natureza das relações entre, de um lado, a
ordem democrática e do outro lado, a ordem imperial-colonial, e em
seguida a forma com que essa relação determina a violência das
democracias, é importante levar em consideração vários fatores (políticos,
tecnológicos, demográficos, epidemiológicos,

33 Odile Krakovich estima em 102100 o numero de presos de 1852 a 1938 in ibid, p260. Ver também
Danielle Donet Vincent, les bagnes des indochinois en Guyane (1931- 1963) <criminocorpus.revues.org>,
janeiro 2006.

34 Ruth Gilmore, Golden gulag. Prisons, surplus, crisis and opposition in globalizing california, university
of california press, Berkeley, 2007.

35 sobre esses debates, ler Marie Gottschalk, the prison and the gallows. The politics of mass
incarceration in américa, Cambridge university press, Cambridge, 2006; Michelle Alexander, the new jim
crow. Mass incarceration in the age os colorblindedness, new York inuversity press, new York, 2010 e
Lorna A. Rhodes, total confinement. Madness and reason in the maximum security prison, university of
california press, Berkeley, 2004.

32
p37
quiçá botânicos)36. De todas as ferramentas técnicas que contribuíram
para a construção dos impérios coloniais a partir do século 18, os mais
decisivos foram sem dúvida as técnicas de armamento, a medicina e os
meios de locomoção. Não bastava adquirir impérios, as vezes por um
precinho de barganha, como podem testemunhar a magreza dos créditos
e dos efetivos engajados nas conquistas. Aproveitando a decadência do
império mongol, do reino javanês e do emirado otomano, é, por exemplo,
o que fizeram a grã Bretanha, os Países Baixos e a França na Índia, na
Indonésia e na Argélia, as vezes com técnicas pré-industriais37.
Nunca se insistirá o suficiente sobre o impacto que teve a quinina na
tomada do mundo pelo Ocidente. A generalização do uso da casca de
quinquina, sua cultura nas plantações da Índia e de Java ou sua colheita na
montanha andina permitiram um salto na capacidade de aclimatação do
homem branco nos trópicos. Do mesmo modo, nunca se ressaltará
suficientemente o caráter fora da lei das guerras coloniais empreendidas
fora da Europa pelas democracias. No caso da África em particular, o
crescimento colonial coincidiu com uma das primeiras revoluções militares
da era industrial. É a partir dos anos 1850 que a técnica, os armamentos e
a velocidade dos projetis começaram a transformar o confronto militar
num “processo verdadeiramente desumano 38”. Além dos canhões,
espingardas, baluartes fortificados e frotas de guerra dos períodos
anteriores, pode se acrescentar, junto e misturado, a artilharia de tiro de
longo alcance,

36 Daniel R. Headrick, the tools of empire. Technology and european imperialism in the nineteeth
century, Oxford university press, new York, 1981; Philip D. Curtin, disease of empire. The health os
european troops in the conquest of africa, Cambridge university press, Cambridge, 1998; e Marie Noelle
Bourquet e Christophe Bonneuil (dir), de l´inventaire du monde a la mise em valeur du globe. Botanique
et colonisation (fin xvii siecle- debut xx siecle), revue française d´histoire d´outre mer, vol. 86, n322-323,
1999.

37 Bouda Etemad, la possesion du monde. Poix et mesure de la colonisation, complexe, bruxelles, 2000.

38 Laurent Henninger, industrialisation et macanisation de la guerre, sources majeures du totalitarisme


(xix-xx siecles), Asterion, n2, 2004, p1.

33
P38
as armas de apoio da infantaria de tiro rápido como a metralhadora, até
os veículos automóveis e aviões.
Também é a época durante a qual as democracias se esforçam para
transferir tanto quanto possível os princípios industriais da produção de
massa na arte da guerra e ao serviço da destruição em massa. Graças aos
novos armamentos industriais entre os quais alguns foram
experimentados durante a guerra de Secessão americana (1861-1865) e
na ocasião do conflito russo-japonês de 1904-1905, a ideia é multiplicar a
potência de fogo num ambiente de aceitação mais ou menos fatalista da
morte e de submissão à técnica. As conquistas coloniais constituíram, por
esse ângulo, um campo privilegiado de experimentação. Abriram espaço
para a emergência de um pensamento da potência e da técnica que,
levado até as últimas consequências desembocou nos campos de
concentração e nas ideologias genocidas modernas39.
É ao passar pelas conquistas coloniais que se assiste à uma aceleração do
confronto entre o homem e a máquina, premissa da “guerra industrial” e
das carnificinas cuja guerra de 1914-1918 será o emblema. Também é na
ocasião das conquistas coloniais que o costume das perdas humanas em
grande escala notadamente entre as tropas inimigas, é cultivado. Aliás, as
guerras de conquista são, de cabo a rabo, guerras raciais assimétricas 40.
Ao longo de um século e meio de guerras coloniais, os exércitos coloniais
perderam poucos homens. Historiadores estimam essas perdas entre
280000 e 300000 – números relativamente baixos se considerar que a
guerra na Criméia sozinha ocasionou perto de 250000 mortos. Durante as
três das principais “guerras sujas” da descolonização (Indochina, Argélia,
Angola e Moçambique), contaram 75000 mortos do lado colonial e
850000 do lado indígena41.

39 Iain R Smith e Andreas Stucki, the colonial development of concentration camps (1868-1902), the
journal of imperial and commonwealth history, vol 39 n3, 2011, p417-437.

40 Olivier Le Cour Grandmaison, coloniser, exterminer. Sur la guerre et l´etat colonial, fayard, paris,
2005

41 para a questão dos Camaroes, ver Thomas Deltombe, Manuel Domergue, Jacob Tatsitsa, Kamerun!
Une guerre cachée aux origines de la Françafrique (1948-1971), la decouverte, paris 2011.

34
p39
A tradição das “guerras sujas” encontra suas origens nesses conflitos
coloniais cujo saldo geralmente é de cortes sombrios no seio das
populações autóctones e profundas mutações da ecologia patológica das
regiões assim devastadas.
Conduzidas por regimes que se proclamam de direito, a maioria das
guerras coloniais, em especial no momento da conquista propriamente
dita, não são guerras de autodefesa. Elas não são levadas com o objetivo
de recuperar bens ou restabelecer alguma justiça onde quer que teria sido
desrespeitada. Não tem, no início, nenhum delito do qual se poderia
medir a gravidade. A violência engendrada por essas guerras não obedece
à nenhuma regra de proporcionalidade. Não tem praticamente nenhum
limite formal para a devastação que golpeia as entidades declaradas
inimigas. Muitos inocentes são mortos, a maioria não em consequência de
faltas comprovadas mas sim por faltas futuras. Portanto a guerra de
conquista não é uma execução do direito. Se ela criminaliza o inimigo, não
é na medida que ela visa restabelecer qualquer justiça que seja. Portador
de arma ou não, o inimigo que se trata de castigar é um inimigo
intrínseco, um inimigo por natureza. Enfim, a conquista colonial abre o
caminho para uma esfera da guerra não regulamentada, a guerra fora da
lei levada pela democracia que, assim fazendo, externaliza a violência num
lugar outro, regido por convenções e costumes fora da norma.
Paradoxalmente, essa esfera da guerra fora da lei floresce no momento
em que numerosos esforços são feitos no Ocidente, que visam
transformar tanto o ius in bello (o direito na guerra) quanto o ius ad
bellum (o direito de fazer a guerra). Esses esforços que começam desde os
séculos 17 e 18, tratam, entre outras coisas, da natureza do antagonismo
(que tipo de guerra se elabora?); da qualificação do inimigo (de que tipo
de inimigo se trata? Contra quem lutamos e como?); da maneira de
conduzir a guerra; das regras gerais a serem respeitadas em função de
estatuto dos combatentes, dos não combatentes e de todos aqueles que
são expostos à violência e à devastação. É no final do século 19 que
aparecem as bases de um direito internacional humanitário.

35
p40
Esse direito procura entre outras coisas, “humanizar” a guerra. Ele emerge
enquanto a guerra de brutalização está no seu auge na África. As leis
modernas da guerra são formuladas pela primeira vez durante as
conferencias de Bruxelas em 1874 e depois em La Haye em 1899 e 1907.
Mas o desenvolvimento de princípios internacionais no assunto não muda
necessariamente a conduta das potencias europeias no local. Assim
aconteceu ontem, assim acontece hoje.
Rapidamente a violência das democracias apresenta uma externalização
nas colônias onde ela toma a forma de atos brutos de opressão. O poder
na colônia não sendo autorizado de fato por nenhuma legitimidade
anterior, ele procura então se impor à maneira de um destino. Na
imaginação como na pratica, a vida dos indígenas conquistados e
submetidos é representada como uma sequência de eventos
predestinados. Pensam que essa vida está condenada a permanecer
assim, e a cada vez, a violência exercida pelo estado se embasa em
medidas não só necessárias mas também inocentes. O motivo para isso é
que o poder colonial praticamente não se estrutura na oposição do legal e
do ilegal. O direito colonial é incondicionalmente submetido à
imperativos políticos. Tal concepção da instrumentalidade do direito
resulta na isenção dos detentores do poder de qualquer limite verdadeiro,
seja em matéria de pratica da guerra, de criminalização das resistências,
ou na governança diária. Seu momento constitutivo era aquele da força
vazia porque sem reserva.
Quase sempre obcecada pelo desejo de extermínio (eliminacionismo), a
própria guerra colonial é, por definição, uma guerra fora das fronteiras,
fora da lei42. Uma vez a ocupação garantida, a população submetida
nunca está livre de um massacre 43. Aliás, não é de se espantar que os
principais genocídios coloniais aconteceram em colônias de povoamento.

42 ver, por exemplo, Kevin Kenny Peacable Kingdom lost. The paxton boys and the destruction of
william penn´s holy experimente, Oxford university press, new York, 2009.

43 A. Dirk Moses (dir) empire, colony, genocide, conquest, occupation, and subalterne resistance in
world history, berghahn, new York, 2008; Martin Shaw, britain and genocide. Historical and
contemporary parameters of national responsability, review of international studies, vol 37, n5, 2011,
p2417-2438.

36
p41
Aqui, de fato, prevalece um jogo de soma zero. Para legitimar a ocupação
europeia, pretende se desautorizar primeiro qualquer presença
autóctone e apagar seus rastros. Ao lado de grandes episódios
sangrentos, uma violência molecular castiga, raramente contida – uma
força ativa e primitiva, de natureza quase que sedimentaria e
miniaturizada, e que satura o conjunto do campo social44. A lei aplicada
aos indígenas nunca é a mesma do que aquela aplicada aos colonos. Os
crimes cometidos pelos indígenas são punidos num quadro normativo no
qual eles não aparecem como sujeitos jurídicos de direito pleno. Ao
contrário, para qualquer colono acusado de ter cometido um crime
(inclusive assassinato), basta invocar a legitima defesa e apelar para as
represálias para escapar de qualquer condenação 45.
Muitos historiadores observaram que o império colonial era tudo exceto
um sistema dotado de uma coerência absoluta. Improvisação, reações ad
hoc diante do imprevisto das situações e, muitas vezes, informalidade e
fraca institucionalização eram a regra46. Mas, longe de atenuar a
brutalidade e as atrocidades, essa porosidade e essa segmentaridade só
as tornavam mais perniciosas. Onde o véu espesso do segredo vinha
cobrir os atos faltosos, a invocação do imperativo de segurança bastava
para estender além do razoável zonas de imunidade, e a
impenetrabilidade as transformava em máquinas quase que naturais de
inercia47. Pouco importava se o mundo criado pelas representações não
coincidia exatamente com o mundo fenomenal. Para não precisar de
provas, bastava invocar segredo e segurança.

44 ver os detalhes em Elisabeth Kolsky, colonial justice in British índia. White violence and the rules of
law, Cambridge university press, Cambridge, 2010.

45 Lisa Ford, settler sovereignty. Juridiction and indigenous people in américa and australia, 1788-
1836, havard university press, Cambridge, M A, 2010.

46 ver, em particular, Martin Thomas, intelligence providers and the fabrico f the late colonial state, in
Josh Dulfer e Mark Frey, elites and decolonization in the twentieth century, palgrave macmillian,
basingstoke, 2011, p11-35.

47 Priya Satia, spies in arabia. The great war and the cultural foundations of britain´s covert empire in
the middle east, Oxford university press, Oxford 2008, e Martin Thomas, empires of intelligence,
security services and colonial disorder after 1914, university of california press, Berkeley, ca, 2008.

37
p42.
Progenitura da democracia, o mundo colonial não era a antítese da
ordem democrática. Sempre foi seu duplo, ou ainda sua face noturna.
Não há democracia sem seu duplo, sua colônia, pouco importa o nome e
a estrutura. Esta não é externa à democracia, ela não é necessariamente
situada fora de seus muros. A democracia carrega a colônia no seu seio,
assim como a colônia carrega a democracia, muitas vezes por baixo da
máscara.
Como o indicava Frantz Fanon, essa face noturna esconde, de fato, um
vazio primordial e fundador- a lei que encontra sua origem no não-direito
e que se institui como lei fora da lei. Além desse vazio fundador,
acrescenta-se outro vazio, dessa vez da conservação, esses dois vazios
são estreitamente encaixados um no outro. Paradoxalmente, a ordem
política democrática metropolitana precisa desse duplo vazio primeiro
para acreditar na existência de um contraste irredutível entre ela e seus
inversos aparentes; depois para alimentar seus recursos mitológicos e
esconder melhor suas baixezas tanto no interior quanto no exterior. Em
outras palavras, as lógicas mitológicas necessárias para o funcionamento
e a sobrevivência das democracias modernas se pagam pelo preço da
externalização de sua violência originaria em lugares outros, os não-
lugares cuja plantação, a colônia ou, hoje, os acampamentos e a prisão
são as figuras emblemáticas.
Apesar de externalizada nas colônias em particular, essa violência
permanece latente na metrópole. Uma parte do trabalho das
democracias é desgastar o máximo possível a consciência dessa presença
latente; de tornar quase que impossível qualquer interrogação
verdadeira sobre seus fundamentos, seus revessos, e as mitologias sem
as quais a ordem que garante sua reprodução vacila de repente. O
grande pavor das democracias é que essa violência latente interior e
externalizada nas colônias e em lugares outros de repente venha a tona e
ameace a ideia que a ordem política se fez dela mesma (como que
instituída de uma vez e para sempre) e que tinha mais ou menos
conseguido empurrar como se fosse o senso comum.

38
P43
A consumação do divino
No mais, as disposições paranóicas da época se cristalizam em
volta de grandes narrativas, aquela do (re)começo e aquela do fim – o
Apocalipse. Bem poucas coisas parecem distinguir o tempo do
(re)começo e o tempo do fim, até porque o que torna possível ambos os
eventos é a destruição, a catástrofe e a devastação. Nessa perspectiva, a
dominação se exerce pelo víeis da modulação dos limiares catastróficos.
Se algumas formas de controle passam pelo confinamento e o
cerceamento, outros operam pela indiferença e o abandono pura e
simplesmente. Qualquer que seja o caso, acontece que existe, na herança
judeu-grega da filosofia que tanto marcou as humanidades europeias,
uma relação estrutural entre, de um lado, o futuro do mundo e o destino
do Ser e, do outro lado, a catástrofe como categoria ao mesmo tempo
política e teológica.
Para atingir seu apogeu, o Ser deve, assim pensam, passar por uma fase
de purificação pelo fogo. Esse evento singular prefigura o último ato,
aquele durante o qual, segundo os termos de Heidegger, a terra se
plastificara por si. Essa autoplastificagem representa, aos seus olhos, o
“supremo advento” da técnica, termo que, para o filósofo alemão,
remete tanto à ciência quanto ao capital. Que a terra se plastifique ela
mesma e a “humanidade atual” desaparecera com ela, assim ele estima.
Pois, para parte da tradição judeu-cristã, o desaparecimento da
“humanidade atual” não representa perda irremediável, a perda que
desemboca no vazio. Ela só é o fim do primeiro começo, e
potencialmente, o início de “outro começo” e de “outra história”, a outra
história de outra humanidade e de outro mundo.
Porém não é certo que a humanidade no seu todo conceda tal lugar à
história do Ser na sua relação com a teologia da catástrofe. Nas tradições
africanas antigas por exemplo, o ponto de partida da interrogação sobre
a existência humana não é a questão de ser, mas a da relação e do
reconhecimento de uma outra carne que a minha. É a questão de saber
como a cada vez me transportar em lugares distantes,

39
P44
ao mesmo tempo diferentes do meu lugar e implicados nele. Nessa
perspectiva, a identidade é questão não de substancia mas de
plasticidade. É um assunto de co-composição, de abertura sobre o ali de
outra carne, de reciprocidade entre múltiplas carnes e seus múltiplos
nomes e lugares.
Nessa perspectiva, produzir história consiste em desatar e reatar os nós e
os potenciais de situações. A história é uma sequência de situações
paradoxais de transformação sem ruptura, de transformações na
continuidade, de assimilações reciprocas de múltiplos segmentos do
vivente. Daí a importância concedida ao trabalho de colocar em relação
contrários, de absorção e de assemblagem de singularidades. Tais
tradições concedem pouquíssima importância à ideia de um fim do
mundo ou à ideia de outra humanidade. No fim das contas, seria bem
possível que essa obsessão seja própria da metafisica ocidental. Para
numerosas culturas humanas, o mundo simplesmente não acaba; a ideia
de uma recapitulação dos tempos não corresponde a nada preciso. Isso
não significa que tudo seja eterno; que tudo é repetição ou que tudo é
cíclico. Simplesmente isso quer dizer que, por definição, o mundo é
abertura e que só há tempo dentro e pelo inesperado, o imprevisto.
Então, o evento é justamente o que ninguém pode prever, medir ou
calcular com exatidão. Assim, o “próprio do homem” é de estar
constantemente em estado de vigia, disposto a acolher o desconhecido e
a abraçar o inesperado já que a surpresa está na origem dos processos de
encantamento sem os quais o mundo não é mundo.
Em outro plano, e para grande parte da humanidade, o fim do mundo já
aconteceu. A questão não é mais saber como viver à sua espera, mas
como viver no dia depois do fim, ou seja com a perda, na separação.
Como refazer mundo no amanhã da destruição do mundo? Para essa
parte da humanidade, a perda do mundo impõe de se desfazer do que,
antes, tinha constituído o essencial dos investimentos materiais,
psíquicos e simbólicos; impõe de desenvolver uma ética da renúncia em
relação ao que ontem estava aqui, hoje desapareceu, e que agora tem
que esquecer

40
P45
já que de qualquer maneira, sempre tem uma vida depois do fim. O fim
não corresponde ao último limite da vida. Tem algo no princípio da vida
que desafia qualquer ideia de fim. A perda e seu corolário a separação
representam, elas sim, uma travessia decisiva. Mas, se toda separação é
de algum modo, uma perda, toda perda não equivale necessariamente a
um fim do mundo. Tem perdas que liberam porque elas abrem para
outros registros da vida e da relação. Tem perdas, que, porque elas
garantem a sobrevivência, participam da necessidade. Tem objetos e
investimentos dos quais precisamos separar para precisamente garantir a
perenidade. Da mesma forma, o apego a certos objetos e investimentos
só pode, no fim das contas, se soldar pela destruição do eu e dos objetos
em questão.
Dito isso, a época decididamente é de um movimento duplo: o
entusiasmo pelas origens e o recomeço, por um lado, e a saída do
mundo, o fim dos tempos, o limite do existente e a chegada de um outro
mundo, por outro lado. Essas duas formas de entusiasmo tomam
naturalmente formas específicas a depender do local. Na pós colônia,
onde impera uma forma particular do poder cujo próprio é atar
dominantes e sujeitados num mesmo feixe do desejo, o entusiasmo pelo
fim se expressa com frequência na linguagem do religioso. Uma das
razões para isso é que a pós colônia é uma forma relativamente
especifica de captação e de emasculação do desejo de revolta e da
vontade de luta. As energias da sociedade são reinvestidas não
necessariamente no trabalho, na procura do lucro ou na recapitulação do
mundo e sua renovação, mas num tipo de gozo sem mediação, imediato,
que ao mesmo tempo é vazio de gozo e predação do tipo libidinal –coisas
essas que explicam tanto a ausência de transformação revolucionaria e o
defeito de hegemonia dos regimes instalados.
O entusiasmo pelas origens se alimenta com um afeto do medo
provocado pelo encontro – nem sempre material, na verdade sempre
fantasmagórico e em geral traumático – com outrem. Numerosos são
aqueles que estimam ter, durante muito tempo, preferido os outros à
eles mesmos.

41
P46
Não tem mais como, eles pensam, preferir os outros à si próprio.
Doravante, a questão é se preferir aos outros, que, de qualquer maneira,
não nos valem; e finalmente fazer as escolhas por objetos que tratam
daqueles que nos são semelhantes. Estamos então num momento de
fortes apegos narcísicos. A fixação imaginaria no estrangeiro, no
muçulmano, na mulher de véu, no refugiado, no judeu ou no Negro toca,
nesse contexto, funções defensivas. Recusamos reconhecer que na
verdade, nosso eu sempre se constituiu por oposição à outrem- um
Negro, um judeu, um Árabe, um estrangeiro que interiorizamos mas num
modo regressivo. No fundo, somos feitos de diversos empréstimos de
sujeitos estrangeiros e por consequência sempre fomos seres de fronteira
- isto é exatamente o que muitos hoje recusam admitir.
Além disso, a generalização do afeto de temor e a democratização do
medo acontecem sobre um leito de profundas mutações, começando
pelos regimes do crer e por consequência as histórias que uns e outros se
contam. Essas histórias não precisam ser fundadas na verdade. Hoje, é
verdade não o que aconteceu de fato, mas o que se crê. Histórias de
ameaças. Homens com cabeça de serpente, meio vacas e meio touros.
Inimigos que nos querem mal e que procuram nos matar gratuitamente,
de surpresa. Homens-de-terror cuja força reside no fato que eles
venceram dentro deles o instinto de vida e podem então morrer, de
preferência matando outros. Na verdade, uma guerra de um tipo novo,
completamente planetária, já teria disparado. Ela aconteceria em todas
as frentes. Ela nos seria totalmente imposta por fora. Não teríamos
nenhuma responsabilidade nela, nem nas suas causas e no seu
desenrolar nem nas situações extremas que ela gera ao longe, fora daqui.
O seu custo no tesouro, em sangue e corpos seria incalculável. Por não
conseguir jugular ou aniquilar nossos inimigos, essa guerra nos levaria
inexoravelmente à morte das ideias que considerávamos ainda há pouco,
como insacrificáveis. Porque estamos na exata posição daquele que é
vítima de uma agressão externa, estaríamos no direito de revidar, tal
revida apenas constituindo no fim das contas, uma forma honorável de
legítima defesa.

42
p47
Si, durante a revida, nossos inimigos ou os povos e estados que lhes
oferecem um santuário ou os protegem forem devastados, seria apenas
uma justa volta das coisas. Afinal, não é verdade que eles são, no fundo,
portadores da sua própria destruição?
Todas essas histórias tem algo em comum: viver pela espada se tornou a
norma. Inclusive nas democracias, a luta política consiste cada vez mais
em uma luta para saber quem conseguira instalar as medidas mais
repressivas diante da ameaça inimiga. Não é só a guerra contemporânea
que mudou de rosto. Durante operações especiais realizadas por forças
armadas constituídas, não vacilam em matar supostos inimigos
friamente, a queima roupa, sem somação, sem escapatória e sem risco
de revida. O assassinato não traz mais a oportunidade de uma descarga
passageira. Ele assina a volta de um modo de funcionamento arcaico no
qual não existe mais distinção entre as pulsões libidinais propriamente
ditas e as pulsões de morte como tais. Para que o encontro sem volta do
isso com a mortalidade aconteça, é preciso de fato que o outro saia
irremediavelmente de minha vida48. Matar civis inocentes com a ajuda de
um drone ou na oportunidade de ataques aéreos e com alvo seria um ato
menos cego, mais moral ou mais clinico do que um degolamento ou uma
decapitação? O homem-de-terror mata seus inimigos pelo que eles são e
só por isso? ele lhes recusa o direito de viver pelo que eles pensam? Ele
tem realmente vontade de saber o que dizem e o que fazem ou basta
que estejam aqui, armados ou desarmados, muçulmanos ou ímpios, do
lugar ou não, no momento errado e no lugar errado?
A generalização do medo se alimenta também da ideia segunda a qual o
fim do homem – e portanto do mundo - está próximo. Porém, o fim do
homem não implica necessariamente no fim do mundo. A história do
homem e a história do mundo, apesar de emaranhadas, certamente não
terão um fim simultâneo.

48 ver Simon Frankel Pratt, crossing off names. The logic os military assassination, small wars and
insurgencies, vol.26, n1, 2015, p 3-24; e de forma geral, Nils Melzer, targeted killling in international
law, Oxford university press, new York, 2008; e Gregoire Chamayou, theorie du drone, la fabrique,
paris 2013.

43
p48
O fim do homem não acarretara necessariamente o fim do mundo. Ao
contrário, o fim do mundo material acarretara certamente o fim do
homem. O fim do homem abrira sobre uma outra sequência da vida,
talvez uma “vida sem história” de tanto que o conceito de história terá
sido inseparável daquele do homem, a ponto que se terá pensado que
não há história além da história do homem. Manifestamente, isso não é
mais o caso hoje. E seria possível que o fim do homem só abra o caminho
no fim das contas para uma história do mundo sem os homens; uma
história depois dos homens, mas com outros viventes, com todos os
rastros que o homem terá deixado atrás dele; mas decididamente, uma
história na sua ausência.
Estritamente falando, talvez a humanidade terminara numa inanição
universal, mas o fim do homem não significara o fim do todo fim
imaginável. A idade do homem não cobre a idade do mundo. O mundo é
mais velho que o homem, e não se pode confundir um com o outro. Não
terá homem sem mundo. Mas é bem possível que certa figura do mundo
sobreviva ao homem – o mundo sem homens. Sobre a questão de saber
se esse mundo sem homens será inaugurado por um anjo cheio de força
descendo do céu, vestido de nuvem, com um arco íris na cabeça, um
rosto como o sol, pés como colunas de fogo, ninguém pode dizer. Se ele
posara o pé direito sobre o mar, o pé esquerdo sobre a terra? Ninguém
sabe. De pé sobre o mar e sobre a terra, ele levantara a mão para o céu e
jurara por Aquele que vive nos séculos dos séculos? Muito são os que
acreditam. Acreditam de fato que não haverá mais tempo mas que no dia
da trombeta do sétimo anjo, o mistério de Deus se consumira.
Se entrevê um fim que será o equivalente a uma interrupção final do
tempo, ou ainda uma entrada num novo regime de historicidade
caracterizado pela consumação do divino. Deus terá deixado de ser um
mistério. Daí em diante, será possível acessar a sua verdade, sem
mediação, na mais absoluta das transparências. Acabamento, finitude e
revelação, por muito tempo separados, serão enfim reunidos. Um tempo
cuja natureza é de terminar terminará,

44
P49
justamente para que se possa finalmente alcançar um outro tempo,
aquele que não termina. Finalmente será possível passar do outro lado.
Finalmente será possível abandonar, deste lado daqui, o tempo da
finitude e da mortalidade. A ideia segundo a qual existe uma potência
essencialmente libertadora que jorraria quase que do nada uma vez o fim
realmente consumado está no coração das violências políticas com
conotação tecno-teológica da nossa época49.
Necropolitica e relação sem desejo
Por outro lado, e o que quer que colocamos sob esse nome, o terrorismo
não é uma ficção, assim como as guerras de ocupação, o contra terror e
as guerras contra insurrecionais que constituem sua pretensa resposta.
Terror e contra terror são as duas faces de uma mesma realidade, a
relação sem desejo. O ativismo terrorista e a mobilização antiterrorista
tem mais de uma coisa em comum. Os dois atacam o direito e os direitos.
De um lado, o projeto terrorista é conduzir para o desabamento da
sociedade de direito cujas bases mais profundas ele ameaça
objetivamente. Do outro, a mobilização antiterrorista se fundamenta na
ideia segundo a qual só medidas excepcionais podem dar conta de
inimigos sobre os quais a violência do estado deveria se abater com
força. Nesse contexto, a suspensão dos direitos e a retirada das garantias
que protegem os indivíduos são apresentadas como as condição de
sobrevivência destes mesmos direitos. Em outras palavras, o direito não
pode ser protegido pelo direito. Só pode ser protegido pelo não direito.
Proteger o estado de direito contra o terror exigiria violentar o próprio
direito, ou ainda institucionalizar o que, até então era do teor ou de
exceção, ou do não direito simples. Correndo risco que os meios se
tornam um fim em si, todo empreendimento de defesa do estado de
direito e de nosso modo de existência implicaria então num uso absoluto
da soberania.

49 Arthur kroker e Michael A Weinstein, maidan, caliphate, and code. Theorizing power and resistance
in the 21th century, www.ctheory.net 3 de março de 2015.

45
P50.
Mas a partir de que momento a “legítima defesa” (ou ainda a revida)
chega a fazer sua mutação, no seu princípio como no seu funcionamento,
num vulgar redobramento da instituição e da mecânica terrorista? Não
seria na presença de um regime político completamente diferente a
partir do momento em que a suspensão do direito e das liberdades não é
mais uma exceção, mesmo se por outro lado também não é a regra?
Onde termina a justiça e onde começa a vingança quando as leis,
decretos, perquisições, controles, tribunais especiais e outros dispositivos
de urgência visam antes de tudo produzir uma categoria de suspeitos a
priori - suspeição que a injunção de abjuração (no caso do islã) só
multiplica? Como se pode exigir dos muçulmanos comuns e inocentes
que eles prestem contas em nome daqueles que, de qualquer maneira,
não se preocupam com a sua vida e quiçá querem a sua morte? Na era da
grande brutalidade, quando todos matam com serra elétrica, é
necessário estigmatizar aqueles e aquelas que fogem da morte porque
procuram refúgio nos nossos países em vez de aceitar estoicamente
morrer onde nasceram?
Não há nenhuma resposta plausível para essas perguntas que não tenha
como ponto de partida a aparente generalização de formas de poder e
modos de soberania com a característica de produzir a morte em grande
escala. Essa produção se realiza a partir de um cálculo puramente
instrumental da vida e do político. É verdade, sempre vivemos num
mundo profundamente marcado por diversas formas de terror, ou seja
de desperdício da vida humana. Viver no terror, e portanto no regime do
desperdício, não é novidade. Historicamente, as estratégias dos estados
dominantes sempre foram de espacializar e descarregar esse terror
confinando as suas manifestações mais extremas num outro lugar
estigmatizado racialmente – a plantação durante a escravidão, a colônia,
o acampamento, o compound (bairros separatistas) durante o apartheid,
o gueto ou, como nos Estados Unidos contemporâneos, a cadeia. As
vezes, essas formas de confinamento e de ocupação e esse poder de
segmentarização e de destruição puderam ser exercidos por autoridades
privadas, geralmente sem controle – o que levou à emergência de modos
de dominação sem responsabilidade,

46
P51
o capital confiscando por conta própria o direito de vida e de morte
sobre aqueles e aquelas que lhe eram sujeitados. Foi, por exemplo, o
caso na época das companhias concessionarias, no início do período
colonial.
Em várias regiões do mundo pós-colonial, a virada que foi a generalização
de relação belicosa frequentemente foi a última consequência do curso
autoritário que seguiram numerosos regimes políticos confrontados à
intensos protestos. Na África em particular, o próprio terror revestiu
várias formas. A primeira foi o terror do estado, notadamente quando se
tratou de conter o empuxo protestatório, quando necessário com uma
repressão por vezes dissimulada, outras vezes expeditiva, brutal e sem
limite (encarceramento, fuzilamento, instauração de medidas de
urgência, formas diversas de coerção econômica). Para facilitar a
repressão, os regimes no poder procuraram despolitizar o protesto
social. As vezes se esforçaram em dar contornos étnicos ao confronto,
em alguns casos, regiões inteiras foram colocadas sob dupla
administração civil e militar. Onde os regimes estabelecidos se sentiram
mais ameaçados, levaram a cabo a lógica da radicalização, suscitando ou
apoiando a emergência de gangues ou milícias controladas ou por
mercenários e outros empreendedores da violência operando na sombra,
ou por responsáveis militares ou políticos com postos de poder dentro
das estruturas formais do estado. Em alguns casos, as milícias ganharam
em autonomia e se transformaram em verdadeiras formações armadas,
dentro de estruturas de comando paralelos aos exércitos regulares. Em
outros ainda, as estruturas militares formais serviram de cobertura para
atividades fora da lei, a multiplicação dos tráficos caminhando junto com
a repressão política propriamente dita.
Uma segunda forma de terror se instalou aonde um fracionamento do
monopólio da força aconteceu, seguido de uma redistribuição desigual
dos meios de terror no seio da sociedade. Em tais contextos, a dinâmica
de desinstitucionalização e de informalização acelerou.

47
P52
Uma nova divisão social separando os que estão protegidos (porque
estão armados) daqueles que não estão apareceu. Enfim, mais do que no
passado, a tendência das lutas políticas foi se resolver pela força, a
circulação de armas no seio da sociedade se tornando um dos principais
fatores de divisão e um elemento central nas dinâmicas de insegurança,
de proteção da vida e de acesso à propriedade. A perda progressiva do
monopólio da violência pelo estado resultou numa devolução gradual da
mesma para uma multiplicidade de instancias operando seja de fora do
estado, seja de dentro mas com relativa autonomia. A explosão desse
monopólio consagra também a aparição de operadores privados dentre
os quais alguns adquiriram aos poucos a capacidade de empreender
guerras como manda o figurino.
Em outro plano, as formas de apropriação violenta dos recursos
ganharam em complexidade e laços apareceram entre as forças armadas,
a polícia, a justiça e as máfias. Onde a repressão e os tráficos de todo tipo
se revezam, uma configuração político-cultural apareceu, que concede
grande espaço à possibilidade que qualquer um possa ser morto por
qualquer um outro, a qualquer momento e por qualquer pretexto.
Estabelecendo uma relação de igualdade relativa entre a capacidade de
matar e seu corolário (a possibilidade de ser morto) – igualdade relativa
que só consegue suspender a posse ou a não posse de armas -, essa
configuração acentua o caráter funcional do terror e torna possível a
destruição de qualquer laço social que não seja o laço da inimizade. É
esse tipo de laço que permite instituir e normalizar a ideia segundo a qual
o poder só pode ser adquirido e exercido pelo custo da vida de outrem.
No governo pelo terror, não se trata mais tanto de reprimir e disciplinar
do que de matar seja em massa, seja em pequenas doses. A guerra não
opõe mais necessariamente os exércitos a outros ou estados soberanos a
outros. Os atores da guerra são, junto e misturado, os estados
propriamente constituídos, as formações armadas agindo ou não atrás da
máscara do estado, os exércitos sem estado mas controlando territórios
bem distintos,

48
p53
os estados sem exército, as corporações ou companhias concessionarias
encarregadas da extração dos recursos naturais mas que, além disso, se
deram o direito de guerra. A regulação das populações passa por guerras
que, elas próprias, consistam cada vez mais em processos de apropriação
dos recursos econômicos. Em tais contextos, a ligação entre guerra,
terror e economia é tamanha que não se trata mais só de uma economia
de guerra. Criando novos mercados militares, guerra e terror se
transformaram em puros modos de produção.
Terror e atrocidades são justificados pela vontade de erradicar a
corrupção, cuja culpa seria das tiranias existentes. Aparentemente, fazem
parte de uma imensa liturgia terapêutica onde se misturam o desejo de
sacrifício, escatologias messiânicas, restos de saber ligados ou às
imaginações autóctones do oculto, ou aos discursos modernos do
utilitarismo, do materialismo e do consumismo. Qualquer que sejam seus
fundamentos discursivos, sua tradução política passa por guerras
extenuantes ao longo das quais milhares, e até centenas de milhares de
vítimas são massacradas e centenas de milhares de sobreviventes são ou
deslocados, ou confinados e internados em acampamentos. Nessas
condições, o poder é infinitamente mais brutal do que sob o período
autoritário. Ele é mais físico, mais corporal, e mais pesado. Ele não visa
mais domar as populações como tal. Se ele ainda faz questão do
rastreamento apertado dos corpos (ou da sua aglomeração dentro de
perímetros que ele controla), não é tanto para disciplina-los do que para
extrair deles o máximo de utilidade, e as vezes, de gozo (como é
notadamente o caso para a escravidão sexual).
As próprias formas de matar são variadas. No caso dos massacres em
particular, os corpos desfeitos de ser, rapidamente são trazidos ao estado
de simples esqueletos, simples relíquias de uma dor não enterrada;
corporeidades esvaziadas e insignificantes; estranhos depósitos
mergulhados num cruel estopor50.

50 Thomas Gregory, dismebering the dead. Violence, vulnerability and the body in war. European
jornal of international relations, vol21, n4, dezembro de 2015.

49
P54
Muitas vezes, o mais marcante é a tensão entre a petrificação dos ossos e
sua estranha frieza de um lado, e de outro lado sua obstinação em querer
significar alguma coisa a todo custo. Em outras circunstancias não parece
haver, nesses pedaços de osso marcados pela impassibilidade, nenhuma
serenidade; apenas a recusa ilusória de uma morte que já aconteceu. Em
outros casos, quando a amputação física substitui a morte direta, tirar
certos membros abre o caminho para um desdobramento de técnicas da
incisão, da ablação e da excisão, que têm também como alvo privilegiado
os ossos. Os rastros dessa cirurgia demiúrgica persistam muito tempo
depois do evento, sob formas de figuras humanas sim vivas, mas cuja
totalidade corporal foi substituída por pedaços, fragmentos, dobras, e até
imensas feridas e cicatrizes que tem como função colocar
constantemente debaixo do olho da vítima e daqueles que convivem com
ela o espetáculo mórbido de seu seccionamento.
No mais, e sem cair no naturalismo geográfico ou climático, as formas
que o terror reveste na idade do antropoceno dependem
necessariamente dos contextos climáticos e dos estilos de vida próprios a
diferentes ambientes ecológicos. É o caso em particular no espaço
sahelo-saariano africano onde dinâmicas da violência tendem a casar
com as da mobilidade espacial e da circulação típicas dos mundos
nômades desérticos ou semidesérticos. Aqui, enquanto a estratégia dos
estados se fundamenta no domínio dos territórios, a estratégia das
diversas formações da violência (inclusive terrorista) se apoia no domínio
das redes sociais e mercantes. Uma das características do deserto é ser
flutuante. Se o deserto é flutuante, suas beiras também o são, já que elas
mudam junto com os eventos climáticos.
Típico também dos espaços desérticos saarianos é a importância das
feiras e das estradas que ligam as florestas do sul às cidades do Maghreb.
O terrorismo aqui é um terrorismo de camadas, na interface entre os
regimes de caravanas nômades e sedentários. É assim porque espaço e
populações se movem constantemente. O espaço não é só atravessado
pelo movimento. Ele próprio é movimento.

50
P55
Segundo Denis Retaillé e Olivier Walther, “essa capacidade de
movimento dos lugares é possível pelo fato de que não são
prioritariamente determinados pela existência de infraestruturas
rígidas51”. O que é mais importante, acrescentam, é ”uma forma de
organização mais sutil do que o modelo zonal fundado sobre uma divisão
do espaço em vários domínios bioclimáticos52”. A capacidade de se
deslocar sobre distancias consideráveis, de entreter alianças cambiantes,
de privilegiar os fluxos em detrimento dos territórios, e de negociar a
incerteza faz parte dos recursos necessários para verdadeiramente pesar
sobre os mercados regionais do terror.
Nessas formas mais ou menos móveis e segmentarias de administração
do terror, a soberania consiste no poder de manufaturar um monte de
gente cujo próprio é viver na margem da vida, ou ainda na borda externa
da vida – pessoas para quem viver, é se explicar constantemente com a
morte, em condições em que a própria morte tende cada vez mais a se
tornar algo espectral tanto pela forma que ela é vivida quanto pela forma
que ela é dada. Vida supérflua então, e cujo preço é tão pequeno que
essa vida não tem nenhuma equivalência de mercado, e muito menos
humana, própria; essa espécie de vida cujo valor está fora da economia, e
que só equivale ao tipo de morte que lhe podem infligir.
Em regra geral, se trata de uma morte para a qual ninguém se sente na
obrigação de responder. Ninguém sente, em relação a esse tipo de vida
ou a esse tipo de morte, nenhum sentimento de responsabilidade ou de
justiça. O poder necropolitico opera com um tipo de reversão entre a
vida e a morte, como se a vida só fosse o meio para a morte. Ele sempre
procura abolir a distinção entre os meios e os fins. É por esse motivo que
é indiferente aos sinais objetivos de crueldade. Aos seus olhos, o crime
constitui uma parte fundamental da revelação, e a morte de seus
inimigos é, por prinicipio, desprovida de

51 Denis Retaillé e Olivier Walther, terrorisme au sahel, de quoi parle t on? L´information
geographique, vol 75, n3, 2011, p4.

52 ibid.

51
P56
simbolismo. Tal morte não tem nada de trágico. É por isso que o poder
necropolítico pode multiplica-la infinitamente, em pequenas doses (o
modo celular e molecular), ou com empurrões espasmódicos – a
estratégia dos “pequenos massacres” surpresa, seguindo uma implacável
logica de separação, de estrangulamento e de vivissecção, como se pode
ver em todos os terrenos contemporâneos do terror e do contra-terror53.
E grande medida, o racismo é o motor do princípio necropolitico no
sentido em que ele é o nome da destruição organizada, o nome de uma
economia sacrificial cujo funcionamento exige o rebaixamento
generalizado do preço de uma vida de um lado, e do outro, a banalização
crescente. Este princípio está presente no processo pelo qual, hoje, a
simulação permanente do estado de exceção justifica a “guerra contra o
terror” – uma guerra de erradicação, indefinida, absoluta, que reclama o
direito à crueldade, à tortura e à detenção ilimitada - e então, uma guerra
que encontra suas armas bebendo na fonte do “mal” que ela pretende
erradicar, num contexto em que o direito e a justiça são exercidos na
forma de represálias sem fim, de vingança e de revide.
Talvez mais do que indiferente, o momento está mais para a fantasia da
separação, quiçá do extermínio. O tempo está para não colocar junto, não
reunir, não estar disposto a compartilhar. À proposta de igualdade
universal que até pouco tempo atrás permitia contestar as injustiças
substanciais, se substituiu gradualmente a projeção frequentemente
violenta de um “mundo sem” – o mundo do “já vai tarde”, aquele dos
muçulmanos que bagunçam o bairro, dos Negros e outros estrangeiros
que devem ser deportados, dos terroristas (ou supostos terroristas) que
são torturados pessoalmente ou por procuração, dos judeus de quem se
lastima que houve tantos a escaparem das câmaras de gás, dos migrantes
que afluem por todos os cantos, dos refugiados e de todos os
naufragados, destroços cujos corpos poderíamos confundir, de tanto que
se parecem, com um monte de lixo;

53 Achille Mbembe, necropolitics, public culture, vol15, n1, 2003, p11-40.

52
P57
tratamento em massa dessa carniça humana, na sua podridão, seu mofo e
seu fedor.
Mais ainda, a distinção clássica entre carrascos e vítimas – que servia
outrora de fundamento para a justiça mais elementar- se atenuou em
grande parte. Hoje vítima, amanhã carrasco, e de novo vítima – o ciclo de
ódio não para de se desenrolar e espalhar seus nós em todo canto. Poucos
males são agora julgados injustos. Não tem nem culpabilidade, nem
remorso, nem reparação. Tampouco tem injustiças que se devem
consertar, ou tragédias que se podem evitar. Para juntar, é necessário
dividir; e toda vez que dizemos “nós”, tem que excluir alguém a qualquer
custo, lhe tirar alguma coisa, confiscar algo.
Por uma estranha transmutação, as vítimas hoje são impelidas, além do
prejuízo que sofreram, a assumir a culpabilidade que deveria recair sobre
os seus carrascos. Eles tem que expiar - no lugar de seus atormentadores
dispensados de qualquer remorso e livres da necessidade de conserto de
seus maus atos. Em consequência, antigas vítimas que escaparam ou que
são sobreviventes, não vacilam em se transformar em carrascos e projetar
contra mais fracos do que elas o terror que antes sofreram, reproduzindo
na oportunidade e ao extremo as logicas que presidiram a sua
exterminação.
No mais, a tentação de exceção e seu corolário, a imunidade, rondam em
todos os lugares. Como dobrar a própria democracia, quiçá se despedir
dela, de forma que a violência social, econômica e simbólica,
transbordante, possa ser captada, até confiscada, ao menos
institucionalizada e direcionada contra um “grande inimigo” – qualquer
um, pouco importa - que é necessário destruir a qualquer custo?
Enquanto a fusão do capitalismo e do animismo não apresenta mais
nenhuma dúvida, enquanto o emaranhado do trágico e do político tende a
se tornar a norma, esta é a pergunta que nossa época - a da inversão da
democracia - faz incessantemente54.

54 Wendy Brown, undoing the demos. Neoliberaism´s stealth revolution, zone books, new York, 2015.

53
P58
Em quase todos os lugares, o discurso então é aquele da suspensão, da
restrição, e até da revogação ou da abolição pura e simples – da
constituição, da lei, dos direitos, das liberdades públicas, da
nacionalidade, todo tipo de proteções e de garantias consideradas até
pouco tempo atrás como coisas conquistadas. Tanto a maioria das guerras
contemporâneas quanto as formas de terror que lhes são associadas não
visam o reconhecimento mas sim a constituição de um mundo fora de
relacionamento. Colocado como provisório ou não, o processo de saída da
democracia e o movimento de suspensão dos direitos, das constituições
ou das liberdades são paradoxalmente justificados pela necessidade de
proteção dessas mesmas leis, liberdades e constituições. E com a saída e a
suspensão vem o fechamento – todo tipo de muros, de arames farpados,
de campos e tuneis, as portas trancadas, como se, no fundo, teria se
acabado de verdade com uma certa ordem das coisas, uma certa ordem
da vida, um certo imaginário do espaço comunitário na cidade futura.
Em vários aspectos, a pergunta que se fazia ontem, é exatamente a
mesma que precisa ser feita de novo hoje. É a pergunta de saber se já nos
foi, se nos é e se nos será algum dia possível encontrar outrem de maneira
diferente do que como um objeto simplesmente dado, aqui, na mão. Tem
alguma coisa, qualquer que seja, que possa nos ligar à outros de quem
possamos falar que estamos juntos? Que formas poderia tomar tal
solicitude? Uma outra política do mundo que não se baseia
necessariamente sobre a diferença ou a alteridade, mas sobre uma certa
ideia do semelhante e do comunitário é possível? Não estamos
condenados a viver expostos uns aos outros, as vezes no mesmo espaço?
Por causa dessa proximidade estrutural, não tem mais um “fora” ao qual
poderia se opor um “dentro”; um “além” que poderia se opor a um
“aqui”; um “próximo” que poderia se opor a um “distante”. Não será
possível santuarizar o próprio lar fomentando o caos e a morte ao longe,
na casa dos outros. Cedo ou tarde, se colhera em casa o que se semeou
no estrangeiro. Só poderá ter santuarização se ela for mútua. Para realizar
isso, será necessário então pensar a democracia além

54
P59
da justaposição das singularidades, como da ideologia simplória da
integração. E ainda, a democracia vindoura se construirá na base de uma
distinção nítida entre o “universal” e o “de todos”. O universal implica a
inclusão em alguma coisa ou alguma entidade já constituída. O de todos
pressupõe uma relação de co-pertencimento e de partilha - ideia de um
mundo que é o único que temos e que, para durar, deve ser partilhado
com o conjunto de todos que tem direito, colocando nisso todas as
espécies. Para que essa partilha se torne possível e para que advenha essa
democracia planetária, a democracia das espécies, a exigência de justiça e
de reparação é incontornável55.
Tem que compreender, ao evocar essas mutações de grande amplidão,
que elas afetam profundamente as relações entre a democracia, a
memória e a ideia de um futuro que poderia ser partilhado pela
humanidade no seu conjunto. Ora, tratando da “humanidade no seu
conjunto”, é preciso convir também que ela está hoje, na sua dispersão,
que nem uma máscara mortuária – alguma coisa, uma sobra, tudo exceto
uma figura, um rosto e um corpo perfeitamente reconhecíveis, nessa era
de apenhamento, de proliferação e de enxerte de tudo em quase tudo. De
fato, algo não está mais aqui. Mas esse “algo” meio carniça meio
agonizante já esteve verdadeiramente aqui, na nossa frente, a não ser na
forma de uma suntuosa carcaça - na melhor das hipóteses, uma luta ao
mesmo tempo elementar, originaria e sem reserva para escapar da
poeira?56. O tempo está realmente longe de ser razoável, e não está certo
que ele volte a sê-lo, pelo menos a curto prazo. A necessidade de
mistérios e a volta do espirito de cruzadas ajudando, o tempo está mais
para as disposições paranóicas, a violência histérica, os processos de
aniquilamento de todos aqueles que a democracia terá constituído em
inimigos do estado 57.

55 epilogue, il n´y a qu´um seul monde, in Achille Mbembe, critique de la raison negre, la decouverte,
paris 2013.

56 Aimé Cesaire, discours sur le colonialisme, presence africaine, paris, 1955; Frantz Fanon, les damnés
de la terre, in oeuvres, la decouverte, paris 2011.

57 Frederic Lordon, imperium. Structures et affects des corps politiques. La fabrique, paris, 2015, p16.

55
P(59, 60) 61

Capitulo 2
A sociedade de inimizade
Talvez sempre foi assim1. Talvez as democracias sempre foram
comunidades de semelhantes, e então - como foi mostrado no capítulo
anterior- círculos da separação. É bem possível que elas sempre tenham
possuído escravos, um conjunto de pessoas que, de uma forma ou de
outra, sempre terão sido percebidas como fazendo parte do exterior, das
populações excedentes, indesejáveis, que se sonha em se livrar e por
conta disso, “totalmente ou parcialmente privadas de direitos 2”. É
possível.
É possível também que “democracias universais da humanidade” não
existam “em nenhum lugar sobre a terra”; e que a Terra sendo dividida
em estados, é dentro deles que se tenta realizar a democracia, ou seja, em
última instancia, uma política de estado que, distinguindo claramente seus
cidadãos (aqueles que pertencem ao círculo dos semelhantes) de outras
pessoas, mantem firmemente afastados todos os nao-semelhantes3. Por
enquanto, basta repetir: a época, decididamente, está para a separação,
os movimentos de ódio, a hostilidade e sobretudo, a luta contra o inimigo,
e em consequência disso, as democracias liberais,

1 a historia é essencialmente “uma sequencia de crimes de povo em povo”, já afiramava Freud em 1915
(Sigmund Freud, notre relation a la mort, Payot, paris 2012 p 61). E Lacan reforçava nos anos 50: “já
somos significamente uma civilização do ódio” (Jacques Lacan, seminaire-livre 1, seuil, paris 1998 p306.)

2 Carl Schmidt, parlementarisme et democratie, seuil, paris 1998 p 107.

3 ibid p108-114.

56
P62
já bem desgastadas pelas forças do capital, da tecnologia e do militarismo,
são tragadas num vasto processo de inversao 4.

O objeto apavorante
Pois quem diz “movimento” necessariamente sugere pôr em marcha uma
pulsão senão pura ao menos dotada de uma energia fundamental. Essa
energia é empregada, conscientemente ou não, na ânsia de um desejo, de
preferência um desejo mor. Esse desejo mor, ao mesmo tempo campo de
imanência e força feita de multiplicidades tem como ponto de arrimo um
(ou vários) objetos. Ontem, esses objetos tinham como nomes
privilegiados o Negro e o judeu. Hoje, Negros e judeus tem outros
prenomes – o islã, o muçulmano, o Árabe, o estrangeiro, o imigrante, o
refugiado, o intruso, para citar apenas alguns.
Mor ou não, o desejo também é esse movimento pelo qual o sujeito,
envolto por todos os lados por uma fantasia singular (de onipotência, de
ablação, de destruição, de perseguição, pouco importa) procura ora se
recolher sobre si na esperança de assumir sua segurança frente ao perigo
externo, ora sair de si e enfrentar os moinhos de sua imaginação que
agora o assaltam. De fato, arrancado de sua estrutura, eis ele lançado à
conquista do objeto apavorante. E como esse objeto na verdade nunca
existiu, não existe e nunca existira, então, ele não cansa de inventa-lo.
Mas nem por inventa-lo o objeto advém à realidade, exceto no modo de
um lugar vazio mas enfeitiçador, círculo alucinatório, ao mesmo tempo
encantado e maléfico que agora ele habita como se fosse um sortilégio.
Desejo de inimigo, desejo de apartheid (separação e isolamento) e
fantasia de extermínio ocupam, hoje em dia, o lugar desse círculo
encantado. Em muitos casos, um muro basta para expressa-lo5. Existem
vários tipos de muros,

4 Wendy Brown, fala, quanto a ela, de “de-democratização”, in Wendy Brown, les habits neufs de la
politique mondiale, les prairies ordinaires, paris, 2007. Ver também Jean luc Nancy, verité de la
democratie, galilee, paris 2008.

5 Wendy Brown, walled states, waning sovereignty, zone books, new York, 2014.

57
P63
e todos não exercem as mesmas funções6. O muro de separação
supostamente deve resolver o excesso de presença, aquela que acreditam
ser a fonte de situações de sofrimento insustentáveis. Reencontrar o
sentimento de existir depende, a partir daí, da ruptura com aquele cuja
ausência e até o desaparecimento puro e simples, não será, assim se
pensa, vivido no modo da perda. Também é admitir que, entre ele e nós,
não tem nenhuma parte em comum. A ânsia de aniquilamento está
portanto no coração dos projetos contemporâneos de separação.
Em todos os lugares, a ereção de muros de concreto e grades e outras
“barreiras de segurança” está no auge. Paralelamente aos muros, outros
dispositivos de segurança aparecem: enquadramentos, cercas, torres de
vigia, trincheiras, todo tipo de demarcações que, em muitos casos, só
funcionam para intensificar o cerceamento, na falta de poder manter à
distância de uma vez por todas aqueles que são considerados portadores
de ameaça. Assim, por exemplo, as aglomerações palestinas literalmente
circundadas por zonas de controle israelense7.
Aliás, a ocupação israelense dos Territórios palestinos serve de laboratório
para muitas técnicas de controle, de vigia e de separação que agora se
disseminam em outros lugares, no planeta. Essas técnicas passam pelo
constante trancamento à limitação do número de entradas dos Palestinos
em Israel e nas colônias, pela imposição de toques de recolher repetitivos
dentro dos enclaves palestinos e pelo controle dos movimentos ao
encarceramento objetivo de cidades inteiras 8.
Checks points permanentes ou moveis, blocos de concreto e montes de
terra destinados a barrar as estradas, controle do espaço aéreo e
marítimo, dos fluxos de importação e exportação de todo tipo de produto,
frequentes incursões militares, derrubamento de casas, profanação dos
cemitérios, arrancamento dos pomares de oliveiras,

6 Eyal Weisman, walking through walls. Soldiers as architects in the israeli-palestinian conflict. Radical
philosophy, n136, mars-avril 2006, p8-22.

7 Eyal Weisman, Hollow land. Israel architecture of occupation, verso, Londres, 2012.

8 Amira Hass, israel closure policy. Na ineffective stategy of containment and repression, jornal of
palestinian studies, vol 31, n3, 2002, p5-20.

58
P64
obliteração e redução à poeira da infraestruturas, bombardeios de alta e
média altitude, assassinatos com alvo, artes da contra – insurreição
urbana, fichamento dos corpos e das mentes, assédios permanentes,
fragmentação territorial, violência celular e molecular, encampamento
generalizado, tudo é colocado em obra para impor um regime da
separação cujo funcionamento depende, paradoxalmente, da intimidade
da proximidade9.
Tais dispositivos lembram, em muitos aspectos, o modelo repudiado do
apartheid, com seus bantustans, vastos reservatórios de uma mão de obra
barata; suas zonas brancas; suas múltiplas jurisdições e sua violência bruta
e atônica. Mesmo assim, a metáfora do apartheid não é suficiente para
dar conta do projeto israelita de separação. Primeiro, esse projeto se
apoia numa base metafisica e existencial muito singular. Os recursos
apocalípticos e catastróficos que o sustentam são de longe mais
complexos e mais enraizados num tempo mais comprido do que todos
aqueles que tornavam possível o calvinismo sul-africano10.
Depois, com seu caráter hi-tech, os efeitos do projeto israelense sobre o
corpo palestino são nitidamente mais temíveis do que as expedições
relativamente primitivas empreendidas pelo regime do apartheid na África
do Sul entre 1948 e o início dos anos 80. É o caso da miniaturização da
violência, de sua celularização e de sua molecularização, ou ainda das
técnicas de apagamento ao mesmo tempo material e simbolico 11. É assim
também para os processos e técnicas de demolição de quase tudo –
infraestruturas, casas, estradas, paisagens - e da dinâmica de destruição
insistente cuja particularidade é transformar a vida dos Palestinos num
amontoado de ruinas e uma pilha de lixo

9 Cedric Parizot, apres le mur. Les representations israeliennes de la separation avec les palestiniens.
Cultures et conflits, n73, 2009, p53-72

10 Idith Zertal, Israel´s holocausto and the politics of nationhood, Cambridge university press,
Cambridge, 2010; Jacqueline Rose, the question of Zion, Princeton university press, Princeton, 2007; e
Judith Butler, parting ways. Jewishness and the critique of zionism, columbia university press, new York,
2012.

11 ver Saree Makdisi, the architecture of erasure, critical inquiry vol.36, n3, 2010, p519-559. Ver
também Mick Taussig, two weeks in Palestine. My first visit. http://criticalinquiry.uchicago.edu

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P65
que só falta limpar12. Na África do Sul, a acumulação de lixo nunca atingiu
tal dimensão.
Se toda forma de inclusão era necessariamente disjuntiva, a separação,
quanto a ela, nunca podia ser mais do que parcial. Se separar
radicalmente teria ariscado a própria sobrevivência do opressor. Por não
ter exterminado, desde as origens, as populações autóctones, era
impossível para a minoria branca empreender depois uma limpeza étnica
e racial sistemática, no modelo das outras colônias do povoamento.
Expulsões em massa e deportações não eram uma opção. Já que o
emaranhado dos diferentes segmentos raciais tinha se tornado a regra, a
dialética da proximidade, da distância e do controle nunca puderam
atingir os níveis paroxísticos observados no caso da Palestina.
Nos Territórios ocupados, essa proximidade é vista notadamente no
controle que continua exercendo Israel na gestão do registro das
populações e no monopólio de emissão de carteiras de identidade
palestinas. É a mesma coisa para quase todos os outros aspectos da vida
cotidiana dos territórios ocupados, que se trate dos deslocamentos
cotidianos, da obtenção de diversas permissões ou do controle dos
impostos. O próprio dessa ordem de separação não é só que ela se
acomoda facilmente da ocupação, e se for preciso, do abandono 13. Mais
ainda, ela pode, a qualquer momento, se transformar em
estrangulamento. A ocupação é, em todos os aspectos, um combate corpo
a corpo dentro de um túnel.
Do desejo de apartheid e da fantasia de exterminação em particular,
convém dizer que não são nada novos e não pararam de se
metamorfosear ao longo da história, em particular nas antigas colônias de
povoamento. Chineses, Mongóis, Africanos e Árabes, as vezes muito
tempo antes dos Europeus, estavam na origem da conquista de imensas
entidades territoriais.

12 ver em especial Ariella Azoulay, civil imagination. A political ontology of photography, verso, new
York, 2015, p125-173.

13 Adi Ophir, Michael Givoni e Sarl Hanafi (dir) the power of inclusive exclusion. Anatomy os Israel rules
in the occupied palestinian territories, zone books, new York, 2009; e Neve Gordon, Israel´s occupation,
university of california press, Berkeley, 2008.

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P66
Eles tinham estabelecido redes complexas de longa distância além dos
mares e dos desertos. Mas é a Europa que, talvez a primeira na era
moderna, inaugura uma nova era de povoamento em escala planetária 14.
O repovoamento do mundo do século 16 ao século 19 apresenta uma
característica dupla. É ao mesmo tempo um processo de excreção social
(para os emigrantes que deixam a Europa para fundar colônias além mar)
e de inversão e aceleração histórica. Para os povos colonizados, esse
povoamento é pago com novas servidões.
Durante esse longo período, o repovoamento do mundo ganhou
frequentemente contornos de inumeráveis atrocidades e massacres,
experiências inéditas de “limpeza étnica”, expulsões, transferências e
agrupamentos de populações inteiras nos campos, a até genocídios 15.
Mistura de sadismo e de masoquismo várias vezes aplicada no improviso
de situações geralmente inesperadas, o empreendimento colonial tinha
um tino para arrebentar todas as forças que se opunham à essas pulsões,
ainda procurava inibir seu curso com todo tipo de prazeres perversos. Os
limites do que ele considerava “normal” sempre eram empurrados e
poucos prazeres provocavam uma franca repulsa ou ainda embaraço ou
nojo. O mundo colonial era um mundo cuja aptidão em se acomodar da
destruição de seus objetos – indígenas inclusos- era alucinante. Se fosse
perdido, achavam que qualquer objeto podia ser substituído facilmente
por outro.
Mais ainda, no início do empreendimento colonial se encontrava o
princípio da separação. Em larga medida, colonizar significava um trabalho
permanente de separação – de um lado meu corpo vivo e, do outro lado,
todos esses corpos-coisas que o rodeiam; de um lado minha carne de
homem pela qual todas essas outras carnes-coisas e carnes-músculos
existem para mim; de um lado eu,

14 James Belich, replenishing the Earth. The settler revolution and the rise of the angloworld Oxford
university press, Oxford, 2009.

15 ver em especial, A. Dirk Moses (dir) empire, colony, genocide, conquest occupation and subalterne
resistance in world history, berghahn, new york, 2008; Patrick Wolfe, settler colonialismo and
elimination of the native, jornal of genocide research, vol8, n4, 2006, p387-409.

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P67
tecido por excelência e ponto zero de orientação do mundo e, do outro,
os outros com os quais nunca posso realmente me fundir; que posso
trazer para mim, mas com os quais nunca posso verdadeiramente manter
relações de reciprocidade ou de implicação mútua.
No contexto colonial, o trabalho permanente de separação – portanto de
diferenciação - era em parte a consequência da angustia de aniquilamento
que sentiam os colonos. Em inferioridade numérica, mas dotados de
poderosos meios de destruição, os colonos viviam no medo de serem
cercados por todo lado por objetos ruins que ameaçavam sua
sobrevivência e colocavam em risco sua existência – os indígenas, os
bichos selvagens, os répteis, os micróbios, as muriçocas, a natureza, o
clima, as doenças e até os feiticeiros.
O sistema do apartheid na África do Sul e, no modo paroxístico e num
contexto distinto, a destruição do judeus da Europa, constituíram duas
manifestações emblemáticas dessa fantasia de separação. O apartheid
particularmente recusava abertamente a própria possibilidade de um
corpo para vários. Ele pressupunha a existência de sujeitos originários
distintos, já constituídos, feitos cada um de uma carne-de-raça, de um
sangue-de-raça, capazes de evoluir no seu próprio ritmo. Pensavam que
bastava atribuir lhes espaços territoriais específicos para re-naturalizar sua
estranheza uns em relação aos outros. Esses sujeitos originários distintos
eram convocados a agir como se seu passado não tivesse sido um passado
de “prostituição”, de dependências paradoxais e de intrigas de todo tipo –
a fantasia da pureza16. O fracasso do apartheid histórico em estabelecer,
de uma vez por todas, fronteiras vedadas entre uma pluralidade de
carnes, demonstra a posteriori os limites do projeto colonial de separação.
Sem exterminação, o Outro não é mais externo em relação a nós. Ele está
em nós, na figura dupla do outro Eu e do Eu outro, cada um mortalmente
exposto ao outro e a si mesmo.

16 Cornelis W. De Kiewiet, na history of South africa. Social and economic, Oxford university press,
Oxford, 1957; Nigel Penn, the forgetten frontier. Colonist and khoisanon the cape´s northern frontierin
the 18th century, ohio university press, athens, 2006.

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P68
O empreendimento colonial conseguia grande parte de sua substancia e
do seu excesso de energia graças à sua ligação com todo tipo de fluxos de
pulsão, de desejos mais ou menos assumidos cuja maior parte se
encontrava aquém do eu consciente dos atores em questão. Para exercer
uma influência durável sobre os autóctones que estavam submetidos e
dos quais queriam se diferenciar a qualquer preço, os colonos precisaram
transforma-los sem vacilo em objetos psíquicos de todo tipo. Todo o jogo
das representações em situação colonial constituía em fazer dos indígenas
uma variedade de imagens-tipos.
Estas correspondiam mais ou menos aos escombros de suas biografias
verdadeiras, ao seu primeiro estatuto, aquele de antes de encontro.
Graças à matéria imagética assim produzida, um segundo estatuto
totalmente artificial, aquele de objetos psíquicos, vinha se enxertar sobre
o primeiro estatuto, aquele de pessoas humanas autênticas. Para os
indígenas, o dilema era saber como, na pratica cotidiana, separar o objeto
psíquico, que eram compelidos à interiorizar e muitas vezes obrigados a
assumir como próprio, da parte da pessoa humana real que tinham sido,
que eram apesar de tudo, mas que, nas circunstancias coloniais, eram
agora forçados a esquecer.
Acontece que uma vez inventadas, essas figuras psíquicas se tornavam
constitutivas do eu colonial. Sua posição de exterioridade em relação ao
eu colonial se tornava bem relativa. O investimento nesses objetos
sustentava a continuidade do funcionamento psíquico da ordem colonial.
Sem esses objetos e figuras, a vida afetiva, emotiva e psíquica na colônia
perdia o seu teor e a sua coerência. Ela gravitava em torno dessas figuras.
Ela dependia, para sua vitalidade, de um contato permanente com esses
objetos e se mostrava particularmente vulnerável quando separada deles.
Nas situações coloniais ou paracoloniais, o objeto ruim – aquele que
sobreviveu à uma destruição inicial - nunca pode ser pensado totalmente
externo a mim. Ele é logo desdobrado, ao mesmo tempo objeto e sujeito.
Porque ele é carregado por mim ao mesmo tempo que eu o carrego, não
posso me desfazer dele simplesmente pela perseguição e a insistência. No
fundo, por mais que destruo tudo que abomino, isso não me livra do laço
que mantenho com outrem destruído, ou outrem de quem me

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p69
separei. É assim, porque o objeto ruim e eu nunca nos separamos
totalmente. E ao mesmo tempo, nunca estamos verdadeiramente juntos.

O inimigo, esse Outro que sou.


Irrepressíveis, o desejo de inimigo, ou desejo de apartheid e a fantasia de
extermínio constituem a linha do fogo, melhor, a prova decisiva do início
deste século. Vetores por excelência do embrutecimento contemporâneo,
em todos os lugares, eles obrigam os regimes democráticos a feder da
boca e num delírio raivoso, a viver como bêbados. Estruturas psíquicas
difusas ao mesmo tempo que forças genéricas e passionais, eles marcam
com a sua pegada a tonalidade afetiva dominante de nosso tempo e
aguçam numerosas lutas e mobilizações contemporâneas. Essas lutas e
mobilizações se nutrem de uma visão ameaçadora e ansiolítica do mundo
que concede a primazia às logicas da suspeita, a tudo que é secreto, e a
tudo que participa do complô e do oculto 17. Levadas às últimas
consequências, desembocam quase que inexoravelmente na vontade de
destruir – o sangue derramado, o sangue faz a lei, numa continuidade
expressa com a lex talionis (a lei do talião) do Antigo Testamento.
Esse período depressivo da vida psíquica das nações, a necessidade de
inimigo, ou ainda a pulsão de inimigo, não é mais então apenas uma
necessidade social. É o equivalente a uma necessidade quase que anal de
ontologia. No contexto de rivalidade mimética exacerbada pela “guerra
contra o terror”, dispor- de preferência de maneira espetacular- do seu
inimigo se tornou a passagem obrigatória na constituição do sujeito e na
sua entrada na ordem simbólica do nosso tempo. Aliás, tudo se passa
como se a negação de inimigo fosse vivida, em si, como uma profunda
ferida narcísica. Ser privado de inimigo – ou não ter sofrido atentados e
outros atos sangrentos fomentados por aqueles que nos odeiam e odeiam
nosso modo de vida – se resume em estar privado do tipo

17 ver Peter L Geschiere, sorcellerie et politique em afrique. La viande des autres. Karthala, paris 1995.

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P70
de relação de ódio que autoriza que se possa dar livre curso a todo tipo de
desejos de outra forma proibidos. É estar privado do demônio sem o qual
nem tudo é permitido, enquanto que o momento, urgentemente, parece
apelar para a licença absoluta, a soltura, e a desinibição generalizada.
Também é se frustrar na compulsão em se assustar sozinho, na faculdade
de diabolizar, no tipo de prazer e satisfação sentidos quando o inimigo
pressuposto é abatido pelas forças especiais ou, quando, capturado vivo,
ele é submetido a intermináveis interrogatórios e torturado em algum dos
lugares secretos que mancham nosso planeta 18.
Época eminentemente política então, já que o próprio da política,
segundo Carl Schmitt, seria a “descriminação do amigo e do inimigo 19”. No
mundo de Schmitt que se tornou o nosso, o conceito de inimigo deveria
ser entendido na sua acepção concreta e existencial e não como uma
metáfora ou uma abstração vazia e sem vida. O inimigo ao qual se refere
Schmitt não é nem um simples concorrente ou adversário nem um rival
pessoal que se poderia odiar ou por quem sentimos antipatia. Ele remete
a um antagonismo supremo. Ele é, no seu corpo como na sua carne
aquele cuja morte física pode ser provocada, porque ele nega, de forma
existencial, nosso ser.
Discriminar o amigo do inimigo sim, mas ainda é preciso identificar o
inimigo com alguma certeza. Figura desconcertante da ubiquidade,
doravante, ele é mais perigoso na medida em que ele está em todo canto:
sem rosto, sem nome e sem lugar. Ou se tiver um rosto, só pode ser um
rosto com véu, um simulacro de rosto. E se tiver um nome, só pode ser um
nome emprestado – um nome falso cuja primeira função é a dissimulação.
Circulando ora mascarado, ora descoberto, ele está entre nós, ao nosso
redor, e até em nós, capaz de surgir em plena luz do dia como no meio da
noite, e a cada uma de suas aparições, é o osso modo de existência que
ele ameaça aniquilar.

18 ver Mohamedou Ould Slahi, les carnets de guantanamo, Michel lafon, paris 2015.

19 Carl Schmitt, la notion de politique. Théorie du partisan, flammarion, paris, 1992, p64.

65
P71
Com Schmitt ontem como conosco hoje, o político deve então sua carga
vulcânica ao fato seguinte: porque estreitamente ligado à uma vontade
existencial de projeção de potência, ele abre necessariamente e por
definição sobre essa eventualidade extrema que é o infinito
desenvolvimento de meios puros e sem fim – a realização do assassinato.
Sustentado pela lei da espada, ele é o antagonismo “em nome do qual
seria possível pedir a seres humanos sacrificar a própria vida” (a morte
para os outros); aquele em nome do qual o estado poderia “dar a alguns o
poder de derramar o sangue e matar outros homens” (dar a morte) por
pertencerem supostamente ou realmente ao campo dos inimigos 20. A
política é, nesse ponto de vista, uma forma particular de agrupamento em
vista de um combate ao mesmo tempo decisivo e profundamente
obscuro. Mas não é só um assunto de Estado e de morte delegada já que
aí se joga não só a possibilidade do sacrifício e do dom de si mas também,
e literalmente, do suicídio.
Porque, finalmente, o suicídio interrompe brutalmente toda dinâmica de
sujeição e toda eventualidade de reconhecimento. Dar voluntariamente
adeus para a própria existência se dando a morte, não é obrigatoriamente
desaparecer de si. É botar voluntariamente um fim no risco de ser atingido
por Outrem e pelo mundo. É proceder a um tempo de desinvestimento
que obriga o inimigo a enfrentar seu próprio vazio. O suicidado não deseja
mais comunicar, nem pela palavra nem pelo gesto violento, exceto talvez
no momento em que, colocando um fim na própria vida, ele coloca
também um fim na vida de seus alvos. O matador se mata e mata se
matando, ou depois de ter matado. Pelo menos, ele não procura mais
participar do mundo como tal. Ele se desfaz de si próprio, toma férias do
que ele foi e se desprende das responsabilidades que eram suas enquanto
vivo21.
O suicidado que mata seus inimigos no ato pelo qual ele se mata mostra a
que ponto, se tratando do político, a verdadeira fratura contemporânea é
aquela que opõe aqueles que se agarram

20 ibid, p73

21 Talal Asad, on suicide bombing, columbia university press, new York, 2007.

66
P72
ao seu corpo e que tomam o corpo pela vida e aqueles para quem o corpo
só abre o caminho para uma vida feliz se for expurgado. O proponente ao
martírio se engaja em busca de uma vida alegre. Esta reside, assim se
acredita, em Deus. Ela nasce de uma vontade de verdade que é assimilada
à uma vontade de pureza. E só tem relação autentica com deus através da
conversão, esse ato pelo qual se torna outro que si mesmo, e assim
fazendo, se escapa da vida factícia, ou seja, impura. Aceitar o martírio, é
fazer o desejo de destruição de vida corporal, de vida impura. Do corpo do
crente zeloso, de fato, em geral só sobram restos no meio de outros
objetos, de rastros mais ou menos ricos (sangue) entre vários outros, de
pegadas, enfim pedaços de enigma (de balas, de armas, de telefones), e as
vezes ranhuras e marcas. Mas, hoje em dia, é raro um suicidado sem seus
aparelhos, na confluência do balístico e do eletrônico - chips que tem que
tirar a solda, componentes de memória que tem que interrogar. No estrito
sentido da palavra, colocar um termo à própria vida ou abolir a si próprio,
então, é empreender a dissolução dessa entidade aparentemente simples
que é o corpo.
O ódio do inimigo e a necessidade de neutraliza-lo assim como o desejo de
evitar o perigo e a contaminação dos quais ele seria o vetor constituem as
últimas palavras do político no espirito contemporâneo, isso se explica. De
um lado, e de tanto se convencer que estão diante de uma ameaça
permanente, as sociedades contemporâneas foram mais ou menos
compelidas a viver seu cotidiano sob a forma de “pequenos traumas”
repetitivos – um atentado ali, uma tomada de refém ali, um pouco mais
longe um tiroteio, e o alerta permanente. O uso de novos instrumentos
tecnológicos permite acessar a vida privada dos indivíduos. Técnicas
insidiosas de vigia de massa, secretas e as vezes abusivas, tem por alvo
seus pensamentos, suas opiniões, seus deslocamentos, e até sua
intimidade. A reprodução ampliada do afeto do temor ajudando, as
democracias liberais nunca pararam de manufaturar espantalhos para dar
medo – hoje a moça de véu, amanhã o aprendiz terrorista de volta dos
campos de batalha do Próximo e Médio Oriente, e de maneira geral lobos

67
P73
solitários ou células adormecidas escondidos nos interstícios da sociedade
que eles espiam, esperando o momento propicio para agir.
O que dizer do “muçulmano”, do estrangeiro ou do imigrante a respeito
dos quais não se parou, além de qualquer instancia razoável, de tecer
imagens que, pouco a pouco, chamam umas às outras por associação?
Pouco importa que não exista nenhuma concordância entre essas imagens
e a realidade, as fantasias primarias não conhecem nem a dúvida, nem a
incerteza. A massa, diz Freud, só “se excita com estímulos excessivos.
Aquele que quer agir sobre ela não precisa compor logicamente seus
argumentos, ele tem que usar as imagens mais fortes para pintar,
exagerar e repetir sempre a mesma coisa22”.
A era está para o triunfo de uma moralidade de massa 23. Os regimes
psíquicos contemporâneos levaram ao seu nível máximo de exacerbação a
exaltação da afetividade e, paradoxalmente, nesse momento tecnotrônico
e digital, o desejo de mitologia, e até a sede de mistérios. A expansão
acelerada da razão algorítmica (da qual se sabe que serve de suporte
decisivo à finançarização da economia) anda junto com o aumento de
raciocínios do tipo mito-religioso24. A crença zelosa não é mais
considerada como a antítese do saber racional. Pelo contrário, uma serve
de suporte ao outro, e os dois são colocados ao serviço de experiências
viscerais cuja “comunhão dos martírios” representa um dos cumes.
Convicções e certezas íntimas adquiridas no fim de uma lenta caminhada
“espiritual” ritmada pela revolta e conversão não são do registro de
fanatismos idiotas nem da loucura bárbara ou do delírio, mas da
“experiência interior” que só podem compartilhar aqueles que, confessos
da mesma fé, obedecem à mesma lei, às mesmas autoridades e aos
mesmos comandos. Em larga medida, pertencem à mesma comunidade.

22 Sigmund Freud, psychologie de masse et analyse du moi, seuil, coll. Points, paris 2014, p62-63

23 Gustave Le Bon Psychologie des foules, puf, paris 2013 (1895)

24 ver Jean Comaroff, the politics of conviction. Faith on the neo-liberal frontier, social analysys, vol53,
n1, 2009, p17-38.

68
P74
Essa se compõe dos mesmos comungantes, dos “condenados da fé”
condenados a testemunhar, pela palavra e pelos atos, até o fim se for
preciso, do caráter extremista da própria verdade divina.
Na logica mito-religiosa própria do nosso tempo, o divino (assim como o
mercado, o capital e o político) é quase sempre percebido como uma
força imanente e imediata, vital, visceral e energética. Se supõe que os
caminhos da fé levam à estados ou à atos julgados escandalosos do ponto
de vida da simples razão humana; ou ainda à riscos, rupturas
aparentemente absurdas, e até à enrijecimentos sangrentos – o terror e a
catástrofe em nome de Deus. Um dos efeitos da fé e do zelo é suscitar
grande entusiasmo, o tipo de entusiasmo que abre a porta à grande
decisão.
De fato, muitos são aqueles que, de agora em diante, só vivem na espera
desse evento. O martírio é um dos meios usados pelo condenado da fé
para botar um fim nessa espera. Homens de fé e homens do entusiasmo
são aqueles que, hoje, procuram fazer a história pela mediação da grande
decisão, ou seja, a comissão de atos vertiginosos, de natureza imediata e
sacrificial. Pelo víeis de tais atos, o condenado da fé enfrenta, de olhos
abertos, o gasto e a perda. Animado pela vontade de totalidade, ele
procura se tornar um sujeito singular, mergulhando nas fontes disjuntivas,
quiçá demoníacas do sagrado. Abraçar a perda consagrada, aquela que
destrói tanto a linguagem quanto o sujeito do discurso, permite inscrever
o divino na carne de um mundo que se tornou dom e graça. Então não se
trata mais de suplicio, mas de aniquilamento, de travessia de si para Deus.
O objetivo último desses atos sacrificais é de dominar a vida, não mais
pelo lado de fora, mas pelo lado de dentro; produzir uma nova moral e,
por meio de uma batalha decisiva, se preciso sangrenta, e em todos os
casos definitiva, fazer um dia a experiência da exultação e da afirmação de
êxtase e de soberania.

Os condenados da fé
O raciocínio mito-religioso não é privilegio das formações terroristas. Nos
seus esforços para jugular o terrorismo e realizar a própria transformação
em estados de segurança,

69
P75
as democracias liberais não vacilam mais em lançar mão dos grandes
conjuntos mitológicos. Não há quase nenhuma que hoje, não apele ao
entusiasmo guerreiro, muitas vezes com o objetivo de remendar o velho
tecido nacionalista. Cada atentado que resulta na morte de alguns
homens provoca imediatamente um luto sob encomenda. A nação é
obrigada a verter publicamente lagrimas de rancor e a se erguer diante do
inimigo. E das lagrimas para as armas, o caminho sempre está traçado.
Vestida das roupagens do direito internacional, dos direitos do homem, da
democracia, ou simplesmente da “civilização”, o militarismo não precisa
mais andar mascarado25. Para reavivar o ódio, os cumplices de ontem se
transformaram de repente nos “inimigos da humanidade em geral” e a
violência bruta se torna um direito.
Porque, assim como precisaram, não tem muito tempo, da cisão da
humanidade em mestres e escravos, as democracias liberais dependem
hoje em dia e para a sua sobrevivência da cisão entre os círculo dos
semelhantes e os não-semelhantes, ou ainda dos amigos e “aliados” e dos
inimigos da civilização. Sem inimigos, é difícil para elas se manter de pé
sozinhas. Que tais inimigos existam nos fatos ou não, pouco importa.
Basta cria-los, encontra-los, desmascara-los e leva-los à luz do dia.
Pois esse trabalho se revelou cada vez mais oneroso a partir do momento
em que se convenceram de que os inimigos mais ariscos e mais intrépidos
se instalaram nos poros mais internos da nação. Eles formam doravante
um tipo de quisto que destrói de dentro as promessas mais fecundas da
nação. Como, a partir daí, separar esta nação do que a rói, sem atentar o
próprio corpo – a guerra civil. Baculejos, perquisições, controles diversos,
prisão domiciliar, instalação de dispositivos que são da relevância de
estado de urgência na lei, multiplicação de práticas derrogatórias, poderes
ampliados para a polícia e os serviços de informação e, se for preciso,
perda da nacionalidade –

25 Nicola Perugini e Neve Gordon, the human right to dominate, Oxford university press, oxfrod, 2015.

70
P76
tudo é feito para devolver, com golpes cada vez mais duros, aqueles
golpes que nos foram dados, não necessariamente para os autores dos
nossos males, mas sim, para aqueles que se parecem com eles. E assim,
fazemos outra coisa além de repetir e perpetuar aquilo ao que
pretendemos nos opor? Apelando à morte de tudo o que não é
incondicionalmente para nós, não trabalhamos em reproduzir sempre
aquilo que faz a tragédia do homem vítima do ódio e incapaz de se livrar
dele?
Assim como ontem, a guerra contra inimigos existenciais é de novo
compreendida em termos metafísicos. Grande provação, ela apela para
todo o ser, para a sua verdade. Esses inimigos com os quais nenhum
entendimento é possível ou desejável, aparecem em geral sob os traços
de caricaturas, clichés e estereótipos. Caricaturas, clichés e estereótipos
lhes concedem uma presença figural, essa forma de presença que, por sua
vez, só faz confirmar o tipo de ameaça (ontológica) com a qual eles nos
assombram. Pois então figura espectral e presença figural, nesse tempo
do reencantamento do chão e do sangue tanto quanto da abstração
crescente, enquanto os elementos culturais e os elementos biológicos da
inimizade se revezam para formar no fim um só feixe.
A imaginação chicoteada pelo ódio, as democracias liberais não param de
alimentar todo tipo de obsessões a respeito da identidade verdadeira do
inimigo. Mas quem é ele de fato? Se trata de uma nação, de uma religião,
de uma civilização, de uma cultura ou de uma ideia?
Estado de insegurança
Colocados juntos, movimentos de ódio, formações investidas na economia
da hostilidade, da inimizade e das lutas multiformes contra o inimigo
contribuíram, ao sair do século 20, a um aumento significativo das formas
e níveis aceitáveis da violência que se pode (ou se deveria) infligir aos
fracos, aos inimigos e aos intrusos (todos aqueles e aquelas que foram
considerados como não sendo dos nossos); a uma intensificação das
relações de instrumentalização na sociedade; a profundas mutações nos
regimes contemporâneos do desejo e dos afetos coletivos. Mais ainda,
71
P77
favoreceram a emergência e a consolidação de uma forma-estado que
chamaram de estado de segurança e de vigilância.
O estado de segurança se nutre de um estado de insegurança que ele
participa em fomentar e do qual pretende ser a resposta. Se o estado de
segurança é uma estrutura, o estado de insegurança é uma paixão, ou
ainda um afeto, uma condição, quiçá uma força de desejo. Em outros
termos, o estado de insegurança é aquilo para o que funciona o estado de
segurança no sentido que este último é, no fundo, uma estrutura
encarregada de investir, organizar e desviar as pulsões constitutivas da
vida humana contemporânea. Quanto a guerra encarregada de vencer o
medo, ela não é nem local, nem nacional, nem regional. Sua superfície é
planetária e a vida cotidiana seu teatro privilegiado de ação. Já que o
estado de segurança pressupõe a impossibilidade de “cessação das
hostilidades” entre aqueles que ameaçam nosso modo de existência e nós
– e então a existência de um inimigo irredutível que não para de se
metamorfosear-, essa guerra de agora em diante é permanente.
Responder às ameaças internas – ou vindas de fora e revezadas de dentro
- exige agora a mobilização de um conjunto de atividades extramilitares e
enormes recursos psicológicos. Enfim, animado abertamente por uma
mitologia da liberdade que é da ordem, no fundo, de uma metafísica da
força, o estado de segurança está menos preocupado pela distribuição dos
lugares e dos benefícios do que pelo projeto de dispor da vida dos seres
humanos, que se trate de seus sujeitos ou daqueles que ele designou
como inimigos.
Essa liberação de energia psicógena se manifesta através de um aumento
de apego ao que outrora chamavam de ilusão. No entendimento clássico,
a ilusão se opõe à realidade. Trocando os efeitos com as causas, a ilusão
consagrava o triunfo das imagens e do mundo das aparências, dos reflexos
e do simulacro. Ela participava do mundo da ficção, por oposição ao
mundo real vindo do tecido íntimo das coisas e da vida. A demanda de um
excedente imaginário necessário à vida de todos os dias não só acelerou.
Se tornou irrepressível. Esse excedente imaginário não é percebido como
um complemento para uma existência que seria mais “real” porque
supostamente mais adequada com o ser e sua essência. É vivido, para
vários, como o motor do real,

72
P78
a própria condição de sua plenitude e brilho. Outrora assumida pelas
religiões da salvação, a produção desse excedente hoje está cada vez mais
delegada ao capital e a todo tipo de objetos e de tecnologias.
Tanto o mundo dos objetos e das maquinas como o próprio capital se
apresentam cada vez mais como uma espece de religião animista. Não é
só o estatuto da verdade que está sendo questionado. Certezas e
convicções são tidas como a verdade. Não precisa raciocinar. Basta crer e
se abandonar. Assim, a deliberação publica (uma das características
essenciais da democracia) não consiste mais em discutir e procurar juntos
e sob os olhos de todos os cidadãos, a verdade, e no fim das contas a
justiça. A grande oposição não sendo mais o que separa o verdadeiro do
falso, o pior, agora, é a dúvida. Porque, no combate que nos opõe aos
nossos inimigos, a dúvida bloqueia a liberação total das energias
voluntaristas, emocionais e vitais necessárias para empregar a violência e,
se preciso, derramar o sangue.
As reservas de credulidade também aumentaram. Paradoxalmente, esse
crescimento veio junto com uma aceleração exponencial dos
desenvolvimentos tecnológicos e das inovações industriais, a numerização
ininterrupta dos fatos e da coisas, e a relativa generalização do que
convém chamar de a vida eletrônica e seu duplo, a vida roboticamente
ajustada26. Uma fase inédita da história da humanidade está engatando
de fato, ao longo da qual será cada vez mais difícil, senão impossível,
dissociar os organismos humanos dos fluxos eletrônicos, a vida dos
humanos daquela dos processadores. Essa fase se tornou possível graças
ao know-how acumulado em matéria de estocagem de massas colossais
de fluxos, à potência extrema e velocidade de seu tratamento, aos
progressos realizados na composição algorítmica. O ponto terminal dessa
virada numérico-cognitiva provavelmente será a infiltração generalizada
de chips dentro de tecidos biológicos. O casamento humano-maquínico, já
em curso, não só desembocou na gênese de novas mitologias do objeto
técnico.

26 a respeito desses desenvolvimentos, ver Eric Sadin, l´humanité augmentée. L´administration


numerique du monde, l´échappée, paris 2013.

73
P79
Também teve como consequência imediata a volta sobre a mesa da
questão do estatuto do sujeito moderno oriundo da tradição humanista.
Outro fator decisivo no processo de liberação de energia psicógena é a
suspensão das inibições das pulsões (a volta da parte excluída, as
estruturas de acolhimento do rejeitado) e a multiplicação dos ganhos de
prazer decorrentes dessa suspensão e do fato que a consciência moral foi
despedida, quando não foi simplesmente colocada fora de uso. Que tipos
de ganho de prazer é suscetível de obter hoje aquele ou aquela que
suspende ou suprime suas inibições pulsionais ou ainda deleta a sua
consciência moral? O que explica a atração contemporânea exercida sobre
as multidões pela ideia da potência absoluta e irresponsável? E a
disposição para as ações mais extremas, a receptividade aos argumentos
mais simplórios e imperfeitos? E a prontidão em alinhar se com os outros,
ou, para as potencias do mundo, em se deixar levar à todas as mazelas
pela simples consciência de sua força?
Responder a essas perguntas exige que se diga uma palavra a respeito dos
mecanismos fundamentais da vida passional nas condições atuais 27. A
interconexão quase integral, pela via das novas tecnologias, não só induziu
novos processos de formação das massas. Hoje em dia, formar uma massa
é praticamente a mesma coisa do que formar uma horda. Na verdade, os
tempos não estão mais para as massas. Estão para as hordas virtuais.
Aonde, apesar de tudo, a massa sobrevive, ela só “se excita com estímulos
excessivos28”. “Ela respeita a força”, dizia Freud, e só se deixa influenciar
moderadamente pela bondade que é para ela um tipo de fraqueza. O que
ela exige de seus heróis, é força, quiçá violência. Ela quer ser dominada e
reprimida e temer seu mestre29”.
Então, em praticamente todos os cantos, o campo tradicional dos
antagonismos estourou. Dentro das fronteiras nacionais se assiste ao
desenvolvimento de novas formas de agrupamento e de luta.
27 as considerações que seguem se inspiram em grande parte no ensaio de Frederic Lordon,
capitalisme, desir et servitude. Marx et Spinoza. La fabrique, paris 2010.

28 Sigmund Freud, op.cit. p62-63

29 ibid, p63

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P80
Não são mais conduzidas tanto na base do pertencimento de classe do
que em função dos laços de parentesco e portanto de sangue. A velha
distinção amigo-inimigo se superpõe agora à outra, entre parentes e não -
parentes, ou seja, entre aqueles e aquelas que são ligados pelo mesmo
sangue ou pela mesma origem e aqueles dos quais se pensa que eles vem
de outro sangue, outra cultura e outra religião. Vindos de fora, esses
últimos são, no fundo, pessoas que não são tidas como nossos
concidadãos e com os quais não teríamos quase nada em comum.
Vivendo entre nós, mas não sendo verdadeiramente dos nossos,
deveriam, pelo contrário, serem rechaçados, colocados no seu lugar ou
simplesmente reconduzidos fora de nossas fronteiras, no quadro do novo
estado de segurança que de agora em diante marca as nossas vidas. A
pacificação interna, a “guerra civil silenciosa” ou molecular, os
encarceramentos massivos, o desquite da nacionalidade e da cidadania, as
execuções extrajudiciárias no quadro da política penal e criminal
contribuem para embaçar a velha distinção entre a segurança interna e a
segurança externa, sobre um fundo de exacerbação dos afetos racistas.
Nanoracismo e narcoterapia
A primeira vista, pode se dizer que a causa está compreendida. Nossa
época parece finalmente ter descoberta a sua verdade. Só lhe faltava a
coragem de proclama-la30. Agora que ela se reconciliou com seu
verdadeiro rosto, ela pode finalmente se permitir passear nua, livre de
qualquer inibição, livre de todas aquelas velhas mascaras e todas essas
fantasias obrigatórias que lhe serviam de tapa sexo. Ao grande recalque
(supondo que realmente houve um algum dia) sucede se a grande catarse
- mas a que preço, para quem, e até quando?
Realmente, nos pântanos desse início de século, não há estritamente mais
nada a esconder. O nível zero atingido, todos os tabus arrebentados com
base nas tentativas de morte do segredo e da proibição como tais,

30 as considerações que seguem retomam em parte meu texto Nanoracisme et puissance du vide, in
Nicolas Bancel, pascal Blanchard Ahmed Boubeker (dir) le grand repli, la decouverte, paris 2015, p5-11.

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P81
tudo, agora, está devolvido à sua transparência e portanto, também à sua
última realização. A cisterna está quase cheia e o crepúsculo não deveria
mais tardar. Se esse desenlace vai acontecer num diluvio do fogo ou não,
logo saberemos.
Enquanto isso, a maré não para de encher. O racismo – na Europa, na
África do Sul e no Brasil, nos Estados Unidos, nos Caribes e no resto do
mundo- continuará nosso, num futuro previsível31. Não será só no caso da
cultura de massa, mas também – e seria bom não esquecer isso- no seio
da boa sociedade. Não será só o caso nas antigas colônias de povoamento,
mas também nessas outras zonas do planeta que os judeus desertaram faz
tempo, e onde nem o Negro, nem o Árabe nunca tiveram raízes.
Aliás, de agora em diante, será preciso acostumar com a ideia: ontem, se
divertiam com jogos, circos, intrigas, cabalas e fofocas. Nesse tedioso
pedaço de gelo que tende a se tornar a Europa, mas também em outros
lugares, a diversão doravante será pelo intermédio do nanoracismo, essa
forma de narcoterapia ríspida, remendada, do bico potente, arqueado e
pontudo- naftalina por excelência dos tempos de dormência e paralisia
flácida, quando, com toda a elasticidade perdida parece que tudo
repentinamente se contraiu. Contração e tétano – é disso que precisa falar
de fato, com seu lote de câimbras, espasmos, encurtamento da mente - o
nanoracismo passou por essas bandas.
Mas o que se entende por nanoracismo senão essa forma narcótica de
preconceito de cor que se expressa nos gestos aparentemente inócuos de
todos os dias, por nada, por uma palavra aparentemente inconsciente,
uma brincadeira, uma alusão ou uma insinuação, um lapso, uma piada, um
sob entendido e, é preciso falar, uma maldade intencional, uma intenção
maldosa, uma pisada ou um empurrão deliberados, um obscuro desejo de
estigmatizar, e principalmente

31 ver David Theo Goldberg e Susan Giroux, sites of race, polity, Londres, 2014; e David Theo Goldberg,
are we all postracial yet? Polity, Londres, 2015.

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P82
fazer violência, ferir e humilhar, sujar aquele que não é considerado dos
nossos?
Evidentemente, na era do nanoracismo descarado, quando só se trata dos
nossos, ninguém mais quer ouvir falar do outro, com maiúscula ou
minúscula, pouco importa. Que fiquem na casa deles, pode se escutar. Ou
se eles teimam em querer viver ao nosso lado, na nossa casa, vai ter que
ser de rosto descoberto e cueca baixada. A era do nanoracismo de fato é
aquela do racismo emporcalhado, o racismo da faca que marca, do
espetáculo dos suínos que se comprazam na sujeira.
Sua função é fazer de cada um de nós vândalos acovardados. Consiste em
colocar o maior número daqueles e daquelas que consideramos
indesejáveis em condições intoleráveis, cerceá-los no dia a dia, lhes infligir
repetidamente um número incalculável de golpes e feridas racistas, lhes
arrancar qualquer direito conquistado, enfumaçar a colmeia e desonra-los
a tal ponto que eles não tenham mais escolha a não ser a autodeportação.
E já que se evoca as feridas racistas, ainda é preciso saber que se trata
geralmente de lesões e cortes sentidos por um sujeito humano que sofreu
um ou vários golpes de caraterísticas particulares - golpes penosos e
difíceis de esquecer porque atacam o corpo e sua materialidade, mas
também e sobretudo o intangível (dignidade, estima de si). Seus rastros
são, a maior parte do tempo, invisíveis e difíceis de cicatrizar.
E já que evocamos lesões e cortes, ainda é preciso saber que nesse pedaço
de gelo que tende a se tornar a Europa, na América, na África do Sul e no
Brasil, nos Caribes e em outros lugares, de agora em diante, é preciso
contar em centenas de milhares aqueles e aquelas, que, todos os dias,
sofrem feridas racistas. Correm permanentemente o risco de ser atingidos
em carne viva por alguém, por uma instituição, uma voz, uma autoridade
pública ou privada que lhes exige justificar quem são, porque estão aqui,
de onde vem, para onde vão, porque não voltam para casa, uma voz ou
autoridade que, de forma deliberada, procura causar lhes um pequeno e
um grande trauma, irrita-los, injuria-los e provoca-los para precisamente

77
P83
dispor do pretexto requerido para viola-los, para atingir brutalmente o
que lhe é mais privado, mais íntimo, e os mais vulneráveis.
Se tratando do estupro repetitivo, ainda é preciso acrescentar que o
nanoracismo não é o apanágio do “pequeno Branco”, esse subalterno
roído pelo ressentimento e o rancor, que odeia profundamente a sua
condição mas não se suicidaria por nada nesse mundo, e cujo derradeiro
pesadelo é de acordar um dia nas roupas do Negro ou na pele bronzeada
do Árabe, e não ali, longe, na colônia como outrora mas – e é o cúmulo -
aqui mesmo, em casa, no seu próprio pais.
O nanoracismo se tornou o complemento obrigatório do racismo
hidráulico, aquele dos micro e macro dispositivos jurídico-burocráticos e
institucionais, da máquina do estado que produz a perder de vista
clandestinos e ilegais, que não para de encampar a ralé na beira das
cidades, como se fosse um amontoado de objetos desfeitos, que
multiplica os “sem documentos” aos montes, que pratica as vezes o
afastamento do território e a eletrocussão nas fronteiras, quando não se
acomoda pura e simplesmente do naufrágio em alto mar, que a qualquer
hora pratica o baculejo pela aparência nos ônibus, nos aeroportos, no
metro, na rua, que desvenda as muçulmanas e faz sem parar o fichamento
dos seus, que multiplica os centros de detenção e os campos de transito,
que investe sem contar nas técnicas de deportação, que descrimina e
pratica a segregação em plena luz do dia ao mesmo tempo que jura pela
neutralidade e imparcialidade do estado laico republicano indiferente à
diferença, que invoca a torto e a direito essa putrefação a céu aberto que
não enrijece mais o seu falo mas que continua chamando, a despeito do
bom senso, de “direitos do homem e do cidadão”.
O nanoracismo é o racismo feito cultura e respiração, na sua banalidade e
sua capacidade em se infiltrar nos poros e nas veias da sociedade, a hora
de abestalhamento generalizado, da descerebração maquínica e do
encantamento de massa. O grande medo, visceral, é o medo das
saturnais, quando os djinns de hoje que são a cara dos de ontem, esses
excrementos do pé de cabra, ou seja os Negros, os Árabes, os
muçulmanos – e

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P84
já que nunca estão muito longe, os Judeus -, terão tomado de assalto o
lugar dos mestres e transformarão a nação num imenso lixão, o lixão de
Maomé.
Aliás, entre a fobia do lixão e os campos, a distância sempre foi das mais
curtas. Campos de refugiados, campos de deslocados, campos de
migrantes, campos de estrangeiros, zonas de espera para pessoas em
instancia, zonas de transito, centros de retenção ou de detenção
administrativa, centros de identificação e de expulsão, pontos de
passagem de fronteiras, centros de acolhimento para pedido de asilo,
centros de acolhimento temporário, aldeias de refugiados, aldeias de
inserção de migrantes, guetos, selvas, casa de migrantes, a lista se
encomprida sem parar, observa Michel Agir num recente estudo32. Essa
interminável lista remete constantemente a uma realidade sempre
presente mesmo se bastante invisível, para não dizer familiar, finalmente
banal. Os campos, seria melhor dizer, não só se tornaram uma parte
estruturante da condição planetária. Eles deixaram de escandalizar. Mais,
o encampamento não é só o nosso presente. Ele é nosso futuro, nossa
solução para “manter afastado o que incomoda, para conter ou rejeitar o
que, humano, matéria orgânica ou dejeto industrial, está sobrando33”, em
suma, uma das formas da governança do mundo.
No mais, e por não olhar bem nos olhos o que não releva mais da exceção
mas sim da norma (o fato que as democracias liberais são, elas também,
capazes de respirar o crime), estamos mergulhados num interminável
trafico de palavras e de gestos, de símbolos e linguagens, com golpes de
coices e rabadas, cada um sempre mais brutal que o outro, com golpes de
mimetismo também, o laicismo e seu espelho invertido, o
fundamentalismo, tudo num cinismo perfeito, pois justamente, todos os
sobrenomes tendo perdido seus nomes, não tem mais nenhum nome para
nomear o escândalo, nenhuma língua para dizer o imundo, porque quase
nada se mantem de pé agora, exceto o catarro que sai das narinas, viscoso
e purulento, sem nem precisar assoar,

32 Michel Agier (dir) um monde de camps, la decouverte paris 2014.

33 ibid, p11

79
P85
o apelo ao bom senso, à boa velha republica e suas costas curvadas e
desmoronadas, o apelo ao bom velho humanismo cagão, o apelo à um
certo feminismo avariado aos olhos do qual igualdade rima doravante com
o dever de impor-o-biquini-à-muçulmana-velada-enquanto-depila-o-
barbudo34.
Como na época colonial, a interpretação desvalorizante da maneira com
que o Negro ou o Árabe muçulmano trata “suas mulheres” participa de
uma mistura de voyeurismo e de inveja - a inveja do harém. A
manipulação das questões de gênero para fins racistas, pelo víeis do
realce dado à dominação masculina, no Outro, visa quase sempre ocultar
a realidade da falocracia própria. O super investimento na virilidade como
recurso simbólico e político não é próprio dos “novos bárbaros”. Ele é a
linha setentrional que norteia toda forma de poder, o que lhe da sua
velocidade, inclusive nas nossas democracias. O poder, em todo lugar,
sempre é, de alguma forma, uma maneira de confronto com a estatua, a
investida na feminidade e na maternidade situando de uma vez o gozo
sexual no rastro de uma política do rapto, seja essa política secular ou
laica. Além disso, para ser levado a sério, por pouco que seja, é preciso
alguma hora mostrar que “se tem culhão”. É que nessa cultura hedonista,
nunca deixaram de atribuir ao pai o papel de primeiro plantador. Nessa
cultura assombrada pela figura incestuosa do pai habitado pelo desejo de
consumir a própria filha virgem ou seu rapazinho, anexar a mulher ao
próprio corpo no objetivo de usa- lá, como complemento para a estátua
desfalecente do homem, se tornou banal. Consequentemente, é preciso
esquecer tudo isso, todas essas mitologias chamuscadas e sem músculo e
passar decididamente para outra coisa, mas o que exatamente?
Apesar dos horrores do tráfico dos Negros, do colonialismo, do fascismo,
do nazismo, do Holocausto e outros massacres e genocídios, as nações
ocidentais em particular, os intestinos distendidos por todo tipo de gazes,
continuam mobilizando o racismo,

34 Nacira Guenif-Souilamas e Eric Macé, les feministes et le garçon árabe, editions de l´aube, paris 2004;
Joan Wallach Scott, the politics of the veil, Princeton university press, Princeton, 2009.

80
P86
servindo a todo tipo de histórias mais ou menos críveis e mais ou menos
assassinas – histórias de estrangeiros e de hordas de migrantes na cara de
quem tem que se fechar as portas, de arame farpado que tem que montar
o quanto antes senão uma maré de selvagens vira nos levar, histórias de
fronteiras que tem que restabelecer como se algum dia tivessem sumido,
histórias de nacionais inclusive oriundos de colônias muito antigas para os
quais continua-se dando característica de imigrante, de intruso que tem
que rechaçar, de inimigos que tem que erradicar, de terroristas que nos
querem mal por causa do nosso modo de existência e que tem que
explodir em alta altitude com maquinas que voam a distância, histórias de
escudos humanos transformados em vítimas colaterais de nossos
bombardeios, histórias de sangue, de degolamentos, de chão, de pátria,
de tradições, de identidade, de pseudo-civilizações assaltadas por hordas
bárbaras, de segurança nacional, todo tipo de história com título,
arranhadas, historias para se assustar e que terminam em sujeira,
historias sem fim que são sempre recicladas na esperança de enrolar os
mais crédulos.
É verdade que tendo fomentado miséria e agonia ao longe, longe do olhar
de seus cidadãos, as nações ocidentais temem agora a volta da espada,
num desses atos piedosos recomendados pela lei do talião. Para se
prevenir contra essas pulsões vingadoras, elas usam o racismo como se
fosse uma lamina arqueada, suplemento venenoso de um nacionalismo
em trapos reduzido aos seus últimos farrapos na hora da
desnacionalização dos verdadeiros centros de decisão, do offshoring das
riquezas, do isolamento dos poderes reais, da massificação da dívida e do
zoneamento de territórios e de populações inteiras repentinamente
supérfluos.
Mas se o racismo se tornou tão insidioso, é porque ele faz doravante parte
dos dispositivos pulsionais e da subjetividade econômica de nosso tempo.
Não se tornou só um produto de consumo da mesma forma que os outros
bens, objetos e mercadorias. Nesses tempos dissolutos, também é o
recurso sem o qual a “sociedade do espetáculo” que denunciava Guy
Debord simplesmente não existe. Em muitos casos, ganhou um estatuto
suntuário. É algo que se autorizam não porque se trata de algo

81
P87
inusitado, mas como resposta ao apelo generalizado para a lubricidade
lançado pelo neoliberalismo. Esquecida a greve geral. No palco, a
brutalidade e a sensualidade. Nessa época dominada pela paixão pelo
lucro, essa mistura de lubricidade, de brutalidade e de sensualidade
favorece o processo de assimilação do racismo pela ”sociedade do
espetáculo” e sua molecularização pelos dispositivos do consumo
contemporâneo.
O racismo é praticado sem consciência. Então se espantam quando o
outro faz uma observação ou chama a atenção. Ele alimenta a
necessidade de divertimento e permite fugir do tedio ambiente e da
monotonia. Fingem que acreditam que se trata de atos inofensivos que
não tem o significado que lhe emprestam. Se ofuscam com uma polícia de
outra ordem que lhes tira o direito de dar risada, o direito a um humor
que nunca se dirige contra si (autoderisão) ou contra os poderosos (a
sátira em particular), mas sempre contra mais fraco que si – o direito de
rir de quem se procura estigmatizar. O nanoracismo hilário e descabelado,
totalmente idiota, que tem prazer em se rolar na ignorância e reivindica o
direito à cretinice e à violência que ela fundamenta – esse então é o
espirito que está no ar.
E há de temer que a passagem já tenha acontecido. Que já seja tarde
demais. E que, no fundo, o sonho de uma sociedade decente hoje não seja
mais do que uma miragem. Há de temer uma volta violenta para uma
época durante a qual o racismo não pertencia às “partes vergonhosas” de
nossas sociedades, aquelas que, já que não eram erradicadas, se
esforçavam em esconder. O racismo bravo e valente será doravante nossa
vestimenta, e por causa dele, a surda rebelião contra a sociedade se fara
cada vez mais aberta e cada vez mais veementemente, ao menos por
parte dos reclusos.
A questão do pertencimento permanece inteira. Quem é daqui e quem
não é? O que fazem na nossa casa aqueles e aquelas que não deveriam se
encontrar aqui? Como se livrar deles? Mas o que significa “aqui” e “ali” na
era do entrelaçamento dos mundos, e também de sua rebalkanizaçaõ? Se
o desejo de apartheid é realmente uma das características do nosso
tempo, a Europa real, por sua parte, nunca mais será como antes, ou seja
monocolorida.

82
P88
Nunca mais terá – se é que algum dia foi o caso - um centro único do
mundo. De agora em diante, o mundo será conjugado no plural. Ele se
vivera no plural e não tem absolutamente nada que se possa fazer para
reverter essa nova condição tão irreversível quanto irrevocável. Uma das
consequências dessa nova condição é a reativação, para muitos, da
fantasia de aniquilação.
Essa fantasia está presente em todo contexto onde as forças sociais
tendem a conceber o político como uma luta de morte contra inimigos
incondicionais. Tal luta então é qualificada de existencial. Ela é uma luta
sem possibilidade de reconhecimento mútuo e ainda menos, de
reconciliação. Ela opõe essências distintas dotadas cada uma de uma
substancia quase impenetrável, ou que só possuem aqueles e aquelas,
que, pela lei do sangue e do chão combinados, pertencem à mesma
espécie. Ora, tanto a história política quanto a história do pensamento e
da metafisica no ocidente estão saturadas por essa problemática. Os
Judeus, como sabemos, pagaram o preço disso no coração mesmo da
Europa. Antes, os Negros e os Índios tinham inaugurado o caminho de
cruz, no novo Mundo em especial.
Essa concepção do político é a realização quase natural da obsessão que a
metafisica ocidental manteve por muito tempo com, de um lado, a
questão do ser e sua suposta verdade, e, do outro, a ontologia da vida. De
acordo com esse mito, a história é a extensão da essência de ser. Na
terminologia de Heidegger, o ser se opõe ao nada. O ocidente seria o local
decisivo do ser, porque, só ali teria desenvolvido a capacidade de fazer a
experiência do recomeço. O resto não é, apenas está. Só o ocidente teria
desenvolvido essa capacidade de fazer a experiência do recomeço já que
seria o local decisivo do ser. O que o tornaria universal, seus significados
sendo validados de maneira incondicional, além de qualquer topografia,
ou seja em todos os lugares, em todos os tempos, independentemente de
toda língua, de toda história e de toda condição. Para a história do ser e a
política do ser, pode se dizer que o ocidente nunca pensou
verdadeiramente na própria finitude. Ele sempre colocou como inevitável
e absoluto seu horizonte próprio de ação,

83
P89
e esse horizonte sempre se quis, por definição, planetário e universal. O
universal de que se trata aqui não é necessariamente o equivalente do
que seria valido para todo homem tal como homem. Também não é
sinônimo de ampliação de meu horizonte próprio ou de assumir as
condições de minha própria finitude. O universal aqui, é o nome que se dá
à violência dos vencedores de guerras que são naturalmente conflitos de
predação. Mas esses conflitos de predação são também e antes de tudo
conflitos onto-históricos já que dentro deles se joga uma história de
verdade destinatária.
Empurrada até suas últimas trincheiras, a fantasia de aniquilamento ou de
desaparecimento não só considera a explosão do planeta, como também
o desaparecimento do homem, sua extinção. Não se trata de Apocalipse
tal como é, nem que seja porque o Apocalipse, de alguma forma, supõe a
existência de um sobrevivente, uma testemunha cuja tarefa é contar o
que terá visto. Se trata de um aniquilamento concebido não como
catástrofe que se teme, mas como uma purificação pelo fogo. Mas a
purificação é a mesma coisa que o aniquilamento da humanidade atual.
Esse aniquilamento supostamente abre o caminho para outro começo, o
começo de uma outra história sem a humanidade atual. Fantasia de
ablação então.
No momento ansiogênico que é o nosso, os indícios de uma volta às
temáticas da diferença ontológica estão aqui. Com os repentes da “guerra
contra o terror” e a mercê dos bombardeios aéreos, das execuções
extrajudiciárias (de preferência com drones), massacres, atentados e
outras formas de carnificinas que constituem sua cadência, a ideia
segundo a qual o Ocidente é a única província do mundo em condição de
compreender e de instituir o universal volta à tona. A cisão da
humanidade em autóctones e em estrangeiros está bem avançada. Se,
com Schmitt ou Heidegger, a exigência fundamental era, ontem, encontrar
o inimigo e leva-lo à luz do dia, hoje basta cria-lo para depois se erguer
diante dele, opor lhe a perspectiva de um aniquilamento e de um
desaparecimento total. Porque, de fato, existem inimigos com os quais a
comunicação não é nem possível, nem desejável. Situados fora da
humanidade, nenhum entendimento é possível com eles.

84
P90
Será possível marcar verdadeiramente presença no mundo, morar no
mundo, ou atravessá-lo, nessa base, a de uma partilha impossível, de uma
distância insuperável? Será suficiente abater o inimigo ou se livrar do
estrangeiro para estar quite com ele ou para abandoná-lo para a
eternidade do que queremos esquecer? Tal atitude exige que seja
apagado, ainda em vida, na sua morte assim como na sua relegação, o que
no seu rosto representava humanidade. Esse empreendimento de
desfiguração e de apagamento é quase que um preâmbulo para qualquer
execução em toda a lógica contemporânea do ódio. No seio das
sociedades que não param de multiplicar os dispositivos de separação e
de discriminação, a relação de cuidado foi substituída pela relação sem
desejo. Explicar e compreender, conhecer e reconhecer não são mais
indispensáveis. Hospitalidade e hostilidade nunca foram tão antitéticas.
Por isso o interesse que há em se voltar na direção dessas figuras para as
quais a infelicidade dos homens e o sofrimento dos inimigos nunca se
tornaram “restos mudos da politica35”. Sempre, foram conjugados com o
pedido de reconhecimento, notadamente onde a experiência de ser mal
conhecido, humilhado, alienado e maltratado era a norma.

35 Michel Foucault, face aux gouvernements, les droits de l´homme. Dits e ecrits, tome4, gallimard,
paris 1994, p708.

85
Capitulo 3
A farmácia de Fanon
Os dois primeiros capítulos mostraram como a inimizade constitui
doravante o nervo das democracias liberais, e como o ódio é aquilo pelo
qual elas tem a impressão de fazer a experiência de um momento puro, de
uma política pura, via meios também puros. Também foi colocado que, de
um ponto de vista histórico, nem a república com escravos nem o regime
colonial e imperial eram corpos estranhos à democracia. Pelo contrário,
eram a sua matéria fosforescente, aquilo mesmo que permitia à
democracia sair de si mesma, se colocar deliberadamente ao serviço de
outra coisa do que ela proclamava em teoria, e de exercer, quando
necessário, a ditadura contra ela mesma, contra seus inimigos e contra os
não-semelhantes. Os corpos expedicionários no momento das conquistas
coloniais e as campanhas militares na ocasião das guerras de contra-
insurreição da descolonização foram os emblemas mais significativos
dessa longa estagnação repressiva.
Pode se considerar então que só há democracia liberal graças a esse
suplemento do servil e do racial, do colonial e do imperial. Esse
desdobramento inaugural é típico da democracia liberal. O risco e a
ameaça que esse desdobramento coloca na democracia não são tanto de
obliterar a mensagem, ou até de erradicar o nome, do que de fazê-la virar
contra si repatriando para dentro o que se teima em descarregar do lado
de fora. Na medida em que, hoje em dia, é praticamente impossível
delimitar o interior do exterior, o perigo que o terror e o

86
P92
contra-terror fazem pesar sobre as democracias é o de uma guerra civil.
No longo capitulo que segue, se aborda diretamente a tensão entre o
princípio de destruição – que serve de pedra inaugural das políticas
contemporâneas da inimizade – e o princípio de vida. No coração dessa
reflexão, Frantz Fanon será a referência particular, ele cujas considerações
sobre a destruição e a violência de uma parte, e o processo de cura e o
desejo de vida ilimitada, por outra parte, constituem a base de sua teoria
da descolonização radical. Para Fanon, de fato, a descolonização radical é
considerada sob o ângulo de um movimento e de um trabalho violento.
Esse trabalho tem como objetivo abrir sobre o princípio de vida; tornar
possível a criação do novo. Mas toda violência é criadora de algo novo?
Enquanto às violências que não fundam nada, sobre as quais nada pode se
fundar, e cuja única função é instituir a desordem, o caos e a perda?
O princípio de destruição
Para entender a importância que Frantz Fanon concede à violência
criadora e ao seu poder de cura, duas lembranças são necessárias. A obra
de Frantz Fanon se inscreve diretamente nos três debates e controversas
mais determinantes do século 20 – o debate sobre os gêneros do humano
(racismo); sobre a partição do mundo e as condições da dominação
planetária (imperialismo e direito dos povos em dispor deles mesmos) e
aquele sobre o estatuto da máquina e o destino da guerra (nossa relação
para com a destruição e a morte). Essas três questões terão azucrinado a
consciência europeia desde o século 16 e terão aberto o caminho, na
véspera do século 20, para um profundo pessimismo cultural.
Em vários aspectos, o século 20 começa verdadeiramente com a Grande
Guerra. Dela, Freud dirá: “nunca ainda um evento tinha destruído tantos
bens preciosos comuns à humanidade1.” O motivo disso, ele acrescenta,
não é só o aperfeiçoamento das armas ofensivas e defensivas que tornou
essa guerra

1 Sigmund Freud, notre relation à la mort, petite biblioteque Payot, paris, 1981, p13.

87
P93
“mais sangrenta e mais assassina do que nenhuma das guerras do
passado”, mas ela é também “ao menos tão cruel, teimosa, impiedosa do
que todas aquelas que a precederam. Ela rejeita todos os limites aos quais
nos submetemos em tempo de paz e que tinham chamado de direito das
pessoas, ela não reconhece as prerrogativas do ferido e do médico, não
faz distinção entre a parte não beligerante e a parte combatente da
população e nega os direitos da propriedade privada. Tomada por uma
raiva cega, ela derruba tudo o que está no seu caminho, como se depois
não devesse ter para os homens nem futuro nem paz.”2
“Minha primeira impressão ao penetrar na sala do hospital inteiramente
ocupado por neuróticos de guerra foi um profundo espanto” conta por
sua vez Sándor Ferenczi. Ali, tinha uns cinquenta pacientes, que quase
todos, davam a impressão de estar gravemente atingidos ou, até
inválidos”, acrescenta. Alguns eram “incapazes de se mover” enquanto
que, para outros, a menor tentativa de deslocamento provocava “uma
tremedeira tão violenta dos joelhos e dos pés” que suas vozes cobriam
“dificilmente o barulho das solas de sapato batendo no chão”. Na opinião
dele, é o andar “desses tremedores” que mais espantava. Ele dava a
impressão de uma paralisia espasmódica, enquanto que as diferentes
combinações de tremedeira, de rigidez e de fraqueza produziam “tipos de
andar totalmente distintos que só o cinematógrafo poderia
eventualmente reproduzir”3.
Cena sobre a qual vinha tropeçar qualquer linguagem outra que a palavra
espelhada, a Grande Guerra arrebentou em mil pedaços - ou ao menos
questionou profundamente – vários séculos de tentativas de definição de
um “direito da guerra”, ou seja essa lei fundamental que prescreve o que,
numa guerra entre Europeus, podia ser permitido e o que não podia. Essa
lei era resultado de um longo processo de maturação, inumeráveis
tateamentos e intensos debates tendo por objeto a própria natureza da

2 ibid, p23-24

3 Sandor Ferenczi, deux types de nevrose de guerre (hystérie) in Sigmund Freud, Sandor Ferenczi, Karl
Abraham, sur les nevroses de la guerre, petite bibliotheque Payot, paris, 1965 (1916), p 64

88
P94
guerra, o que ela era e quais eram suas relações com o direito natural e a
justiça.
Em relação à problemática estudada aqui, a do terror das democracias em
situação colonial e pós-colonial em especial, é útil guardar na mente que
originariamente, o pensamento europeu distinguia várias formas de
direito. Considerado como atributo da ação, o direito era dividido em
direito de superioridade e em direito de igual para igual; em direito
natural e em direito dito humano (que por sua vez incluía o direito civil, o
direito das pessoas), em direito universal e em direito particular. O direito
se esforçava em regular questões tão complexas como aquela de saber
como distinguir a guerra chamada solene, ou ainda publica, de todas as
outras formas de guerra, em especial a guerra privada.
Porque toda guerra deixava pairar, por definição, o risco do estado
periclitar, a guerra publica só podia ser empreendida por ordem daquele
que possuía o poder soberano no estado 4. Se reconhecia uma guerra
publica pelo fato que aqueles que a faziam eram investidos de um poder
soberano e tinham que observar algumas formalidades. No mais, era
acordado que se o sangue se pagava pelo sangue, o emprego das armas
nunca era isento de perigo, e se defender não era a mesma coisa que se
vingar. No plano filosófico, as tentativas para instituir um direito da guerra
culminaram no século 17 com Grotius e seu direito da guerra e da paz.
O pessimismo cultural que engolia a Europa nos dias seguintes à Grande
Guerra resultou numa fusão relativamente inédita do nacionalismo e do
militarismo5. Na Alemanha em especial, a derrota foi considerada como o
resultado de uma traição. A guerra estava perdida, mas não tinha
terminado. Os traidores Judeus eram culpados pela derrota e a revanche
do pais só seria consumida o dia que eles fossem exterminados 6.

4 Hugo Grotius, le droit de la guerre et de la paix, puf, paris, coll quadrige, 2005, p94.

5 Ernst Junger, orages d´acier, Payot, paris, 1930 (1920)

6 Gerd Krumeich, la place de la guerre de 1914-1918 dans l´histoire culturelle de l´allemagne, vingtieme
siecle, n41, janvier-mars 1994, p 9-17.

89
P95
O novo nacionalismo militar nascia de um imaginário sem precedentes da
devastação e da catástrofe. O soldado que voltava do inferno das
trincheiras era a figura emblemática disso. Ele tinha feito a experiência
insustentável da lama. Ele tinha sido testemunha de um mundo em
migalhas. Ele tinha vivido, de perto, a morte em todas as suas formas.
Os ataques com gás tinham transformado a própria atmosfera em arma
fatal. Respirar tinha se tornado um perigo já que o próprio ar estava
envenenado. Milhares de cilindros tinham descarregado milhares de
toneladas do gás a base de cloro nas trincheiras. Numerosos soldados
tinham morrido sufocados e afogados nos seus fluidos, numa espessa
nuvem verde amarelado se espalhando sobre vários quilômetros e levada
pelo vento7. O mesmo soldado já tinha passado pela ameaça quase que
permanente de desabamento nervoso. Tomado pelo pavor, ele tinha
escutado os gritos de morte de seus camaradas e tinha testemunhado do
incomunicável desamparo deles. Mesmo ameaçado pela loucura, ele tinha
se sentido totalmente a mercê do acaso e da predestinação 8.
A “grande desilusão” (Freud) causada pela guerra não se devia à
persistência do fato belicoso em si. Pouquíssimos, naquela época,
acreditavam num cessar definitivo das guerras ou na utopia de uma paz
perpetua. As guerras, afirmava Freud, não terminarão “enquanto os povos
terão condições de existência tão diferentes, enquanto para eles, a
apreciação dos valores relativos à vida do indivíduo será tão divergente,
enquanto os ódios que os separam representarão forças tão poderosas de
pulsão para o psiquismo9.”
A desilusão não se devia tampouco à realidade de guerras “entre os povos
primitivos e civilizados, entre as raças de cor diferentes, e até guerras
entre os indivíduos-povos de Europa pouco desenvolvidos ou de volta ao
estado selvagem10”. “Grandes nações
7 ver Sarah Everts, when chemicals became weapons of war, http://chemicalweapons.cenmag.org 23
fevereiro 2015

8 Modris Eksteins, le sacre du printemps. La grande guerre et la naissance de la modernité, plon, paris,
1991.

9 Sigmund Freud, notre relation à la mort, op.cit, p 15-16.

10 ibid, p 16.

90
P96
de raça branca reinando sobre o mundo, e responsáveis pela direção do
gênero humano11”, e que por outro lado gozam de “uma comunidade de
civilização12” acabavam de passar por uma prova de brutalidade de
comportamento “da qual não teriam acredito que, participando da mais
alta civilização humana, seriam capazes 13” - esse era o escândalo da
Grande Guerra. Em outras palavras, o homem das origens, o homem dos
primeiros tempos, aquele mesmo que se conformava facilmente com a
morte do outro, que não tinha nenhum escrúpulo em provoca-la, que
praticava tranquilamente o assassinato e aos olhos do qual a morte do
inimigo não significava nada além do aniquilamento do que ele odiava,
esse homem primitivo ainda “permanecia em cada um de nós”, mas se
escondia, “invisível para nossa consciência, nas camadas mais profundas
de nossa vida psíquica”14. O vasto remanejamento da vida pulsional que
supunham estar na base do processo civilizatório não tinha apagado as
capacidades especificas da volta para trás - o que Freud chamava de
regressão.
A revelação da Grande Guerra era, então, de um lado, que os “estados
primitivos sempre podem ser reinstaurados”, o psiquismo primitivo
sendo, “no sentido mais pleno, indestrutível”15. Por outro lado, se a
pulsão de morte ou de destruição pode de fato ser desviada em grande
parte para o exterior ou direcionada para os objetos do mundo exterior,
muitas outras partes dessa mesma pulsão conseguem sempre escapar de
serem domados (o próprio objetivo do processo civilizatório). Mais ainda,
a pulsão de destruição (com tudo o que ela comporta de sádico e de
masoquista) direcionada para o exterior ou projetada pode se voltar outra
vez para dentro e ser introjetada.
Ela começa tomando o Outro de dentro como alvo. Assim, do imperativo
de exterminação do povo judeu (ausrottung), parcela de putrefação que
se supunha habitar o corpo do povo alemão sob o regime nazista. Mas,
muito rapidamente, ela investe o próprio sujeito como o seu objeto.
11 ibid.
12 ibid, p 21

13 ibid, p 28

14 ibid, p 59-60

15 ibid p 43.

91
P97
Nesse caso, a destruição retorna do mundo exterior na direção do
sujeito”, e o leva a “fazer o que é inoportuno, a agir contra seus próprios
interesses, a destruir as perspectivas que se abrem para ele no mundo
real, e eventualmente a aniquilar a própria existência real.” 16
Colonialismo, fascismo, e nazismo constituem três formas as vezes
extremas, as vezes patológicas, desse retorno do mundo supostamente
exterior em direção ao sujeito.
Nos dias que se sucederam à guerra, movimentos e partidos fascistas
apareceram na Europa notadamente. A subida do fascismo, depois do
nazismo, se efetuou paralelamente à do colonialismo, e hoje está
estabelecido que colonialismo, fascismo e nazismo mantiveram mais do
que relações circunstanciais17. Apesar de muito distintas, essas três
formações compartilhavam um mesmo mito, aquele da superioridade
absoluta da cultura chamada ocidental, ela mesma compreendida como
cultura de uma raça – a raça branca. O pensamento faustiano, este seria a
sua essência, reconhecível alias pela sua potência técnica. Que se trate do
passado ou do presente, essa potência teria permitido erguer a cultura
ocidental numa “cultura diferenciada”. No entendimento da época,
“diferenciada” tinha significado duplo.
Primeiro, remetia a uma essência. A cultura ocidental, afirmavam, não
seria um componente ordinário das culturas da humanidade. No conjunto
das criações humanas, ela gozaria de um estatuto preeminente que a
livraria de qualquer dependência para com as outras culturas e lhe
ofereceria uma imunidade, graças à qual ela não poderia ser “atingida”.
Ela era “intocável” porque se distinguia de todas as outras. Ela também
era “intocável” porque, só ela tinha a capacidade de remeter todas as
outras à ela mesma. Ela nunca podia se fundir totalmente na rede das
outras culturas do mundo porque era só por ela que as outras culturas
existiam, e elas só existiam em relação a ela.

16 Simund Freud, du masochisme, petite biblioteque Payot, paris, 2011, p 183

17 Hannah Arendt, les origines du totalitarisme, gallimard coll quarto, paris, 2002.

92
P98
Assim supervalorizada e colocada num pedestal, a cultura ou a civilização
ocidental se tornava o ponto xis de orientação para todas as
humanidades. Aliás, este era o lugar e o trono que ela mesma se
designava, o seu “aqui”, seu ponto metafísico, o que a tornava capaz de
abstrair a existência, a vontade e os desejos de outros corpos e outras
carnes, lugares distantes, ao mesmo tempo diferentes do seu local e
implicados nela, mas na direção dos quais, ela não podia se transportar de
volta. No pensamento da época, “cultura diferenciada” significava
também a única que tinha superado simbolicamente a morte. Essa
domesticação da morte passava pela dominação da natureza, pelo culto
do espaço ilimitado, e pela invenção do conceito de força. Não que essa
cultura não seja capaz de contemplação. Mas o seu projeto era de dirigir o
mundo de acordo com a sua vontade. Amplo programa de Prometeu, a
originalidade do Ocidente era de ter arrancado da divindade o seu
segredo e de ter tornado o próprio homem um deus.
Colonialismo, fascismo e nazismo compartilhavam um segundo mito. Para
cada uma dessas formações históricas, o Ocidente era um corpo natural
vivo. Ele tinha um tutano e uma alma. “As outras partes do mundo
tiveram civilizações admiráveis, proclamava Paul Valery. Mas nenhuma
outra parte do mundo possuiu essa singular propriedade física: o mais
intenso poder emissivo unido ao mais intenso poder absorvente. Tudo
veio para a Europa, e tudo veio dela18.”
Essa singular propriedade física, esse “intenso poder emissivo” unido ao
“mais intenso poder absorvente”, tinha tomado uma forma concreta em
volta da repressão das guerras de resistência contra o colonialismo: a
forma-campo19.
Durante mais de meio século, a interpretação da forma-campo foi
dominada pelo que tem que chamar sim de “políticas do extremo”, ou
seja, para retomar a expressão de Aimé Cesaire, as políticas de des-
civilização que, baseadas em mecanismos ora espetaculares e ora

18 Paul Valery, la crise de l´esprit, in oeuvres, vol.1 gallimard, paris, 1962, p 995

19 ver Federico Rahola, la forme camp. Pour une genealogie des lieux de transit et d´internement du
presente, cultures et conflits, n68, 2007, p 31-50.

93
P99
invisíveis e mais ou menos subterrâneos, terão sido consubstanciais à
condição colonial. Consequência da destruição dos judeus da Europa, o
campo foi, logo depois do Holocausto, encarado como o lugar de uma
radical desumanização; o espaço onde o homem faz a experiência do seu
devir-animal no gesto pelo qual ele reduz outras existências humanas ao
estado de pó. O campo também foi interpretado como sintomático do
processo de expulsão de suas vítimas da humanidade comum; o palco de
um crime tão secreto quanto irrepresentável e indizível,
indissoluvelmente destinado, pelo menos para aqueles que o
perpetuaram, ao esquecimento já que tudo conspirava, desde o início,
para apagar seus rastros.
É possível que o intenso poder emissivo e absorvente que evocava Valery
tenha estado na origem não de um crime único que, recapitulando todos
os outros, gozaria mesmo assim de um estatuto eletivo e seria portador
de significados “fora humanidade”, mas sim de uma sequência de crimes e
de terrores a respeito da qual é preciso pensar as complexas genealogias.
De fato, no lado diurno das políticas da des-civilização (ou do extremo, ou
do terror) que Cesaire denuncia, se situavam os processos coloniais, com
seu cortejo de guerras de conquista, de guerras de ocupação e de
extermínio, genocídios e outros massacres, e suas inevitáveis
decorrências, as guerras de libertação e as guerras contra-insurrecionais
das quais só agora começa a se medir o tamanho 20. No lado noturno se
situavam os processos concentracionários e exterminadores a respeito
dos quais testemunharam muitos sobreviventes, entre eles Jean Amery,
leitor de Fanon em quem ele encontrou mais do que um interlocutor,
quase um parente21. E, como já o tinham observado Hannah Arendt e
mais tarde Michel Foucault, ligando o lado diurno e o noturno, a raça, ou,
para ser mais exato, o racismo.22.
Num estrito ponto de vista histórico, a forma-campo aparece no alvorecer
do século 20 (entre 1896 e 1907),
20 Caroline Elkins, imperial reckoning. The untold story os britain´s gulag in kenya, Henri holt, new York,
2005.

21 Paul Gilroy, fanon and amery. Theory, torture and the prospecto f humanism, theory, culture &
society, vol27, n7-8, 2007, p 16-32.

22 Hannah Arendt, op cit, michel Foucault, il faut defendre la societe. Cours au college de france, 1976,
seuil, paris, 1997.

94
P100
no contexto da guerra colonial em Cuba, nas Filipinas, na África do Sul e
no Sudoeste africano então controlado pela Alemanha. O campo na sua
acepção moderna não é a mesma coisa que as políticas de deslocamento
de população praticadas pelos Ingleses na Índia ao longo do século 18, no
México em 1811 ou nos Estados Unidos ao longo do século 19. Nesse
contexto, o campo é um dispositivo de guerra que é usado pelo governo
colonial para reprimir em massa as populações julgadas hostis. Se trata, de
forma geral, de mulheres, de crianças e de velhos que são expostos
sistematicamente à fome, tortura, trabalhos forçados e epidemias 23.
Na América do Sul, as primeiras experiências de encampamento
aconteceram em Cuba durante a guerra de Dez Anos (1868-1878). Mais
tarde, essas categorias da população foram concentradas das províncias
da Santiago e de Puerto Príncipe em 1896 pelo general espanhol Valeriano
Weyler. As taxas de mortalidade atingiram 38% em algumas regiões, como
Santa Clara24. Os Americanos, quanto a eles, criaram múltiplos campos de
concentração nas Filipinas entre 1899 e 1902, quando os insurgidos
nacionalistas filipinos recorreram à guerrilha para fazer valer seus direitos.
Os campos de concentração nas Filipinas herdavam em linha direita do
estilo da “hard war” (guerra suja) – palavra cujas origens remontam à
guerra civil americana. Um monte de medidas punitivas foram então
adotadas. Elas entravam no quadro do código Lieber de 1863. Este último
operava observando muitas distinções entre as diversas categorias de
populações contra as quais as guerras contra-insurrecionais eram levadas,
a mais importante sendo aquela que separava os cidadãos leais dos
desleais ou traidores.
Os cidadãos desleais eram por sua vez divididos entre os cidadãos dos
quais se sabia pertinazmente que eles simpatizavam

23 Jonathan Hyslop, the invention of the concentration camps. Cuba, Southern africa and philippines,
1896-1907, South african historical jornal, vol63, n2, 2011, p251-276.

24 John Lawrence Tone, war and genocide in cuba, 1895-1898, university of north carolina press, chapel
hill, nc, 2006.

95
P101
com a rebelião sem todavia lhe trazer qualquer ajuda objetiva e os
cidadãos que, sem necessariamente tomar as armas, dedicavam um apoio
objetivo ao inimigo rebelde ser serem obrigados a isso. Pelo código Lieber,
os comandos das forças armadas podiam responsabilizar cidadãos desleais
pela guerra, nas províncias rebeldes. Era normal que os traidores
sofressem, na ocasião, medidas punitivas excepcionais, que não pesavam
sobre os inimigos não combatentes, principalmente em período de guerra
regular. O governador militar podia expulsar esses cidadãos que, além de
tudo, podiam sofrer transferências, encarceramentos ou multas
pesadas25.
Tais medidas, de fato, foram aplicadas a partir de dezembro 1900 pelo
brigadeiro geral Arthur McArthur, e, a partir de novembro de 1911 pelo
brigadeiro geral J. Franklin Bell. Elas diziam respeito em grande parte à
província de Batangas onde a resistência filipina era particularmente viva.
Transferências massivas de populações aconteceram nas zonas rurais.
Campos de concentração foram abertos e a tortura ampliada. Os mesmos
métodos foram aplicados na província de Samar pelo brigadeiro Jacob H.
Smith. Ao conjunto de atrocidades já instaladas, esse último acrescentou
uma verdadeira política da terra queimada combinada com execuções em
massa26.
A lógica concentracionária existia então de fato bem antes de sua
sistematização e sua radicalização sob o Terceiro Reich. No caso sul-
africano (de 1889 a 1902), a coroa britânica enfrentava uma lógica de
guerrilha. Entre 1899 e 1900, uma guerra principalmente convencional
opôs dois inimigos. Submetidos a uma insuportável pressão por parte das
tropas inglesas, os Boers retomavam suas roupas civis e se reinseriam na
população local.

25 a respeito desses detalhes, ver o estudo de Richard Shelley Hartigan, lieber´s code and the law of
war, transaction publishers, new York, 1983.

26 Brian McAllister Linn, the philippine war, 1899-1902, university of kansas press, Lawrence, ks, 2000.

96
P102
A partir dessa posição, eles podiam submeter as tropas inglesas a um
assedio intempestivo que, mesmo não conduzindo à vitorias militares
decisivas, tinha como efeito de derrubar consideravelmente o moral.
Sob a conduta de Horatio H. Kitchener a coroa respondeu intensificando o
estabelecimento de campos de concentração. Legalizados pelo governo
em dezembro de 1900, eles eram apresentados como medidas de exceção
visando separar as populações civis dos combatentes que as forças
coloniais procuravam isolar e matar. Populações civis notadamente
mulheres e crianças, foram a partir de então colocadas em parques em
lugares desolados cercados por arame farpado, onde as taxas de
mortalidade se revelaram excepcionalmente elevadas.
À esses modelos de origem colonial, o Terceiro Reich acrescentou uma
dimensão crucial, a planificação da morte em massa. A planificação da
morte em massa tinha, aliás, sido experimentada pelos Alemães no
Sudoeste africano em 1904, quando os Hereros fizeram, os primeiros, a
experiência do trabalho forçado em sistema concentracionário – o
primeiro genocídio do século 20. Fora das colônias, no território europeu,
a lógica concentracionária não revestiu só formas nazistas. Ela existiu
antes, durante e depois da Segunda Guerra mundial. Em 1942 por
exemplo, a França contava quase uma centena de campos. A maioria tinha
aparecido no final da terceira Republica, sob Edouard Daladier, antes do
regime de Vichy. Eles abrigavam todo tipo de indivíduos julgados
“perigosos para a defesa nacional e a segurança publica 27” –na maioria
dos casos, pessoas que tinham fugido do seu pais e tinham se refugiado na
França (Alemães e Austríacos, judeus a partir de 1933, e depois Espanhóis,
antigos combatentes de causa republicana a partir de 1939). Esses lugares
e outros, que apareceram sob Vichy (Compiegne, Risevaltes, les Milles,
Gurs, Pithiviers, Beaune, Drancy etc.), serviram de laboratórios onde
ocorreu certa radicalização dos dispositivos preventivos, repressivos e
punitivos.

27 Jean François Bossy, la philosophie à l´epreuve d´auschwitz. Les camps nazis, entre memoire et
histoire, elipses, paris, 2004, p 32.

97
P103
O momento era então de produção de figuras múltiplas do bode
expiatório. Numerosos estrangeiros eram percebidos senão como
inimigos, ao menos, como “bocas inúteis” das quais era preciso se livrar 28.
Eles eram acusados de “roubar os empregos e as mulheres dos
Franceses”. Sob Vichy, o lento obscurecimento da figura do estrangeiro
atinge seu ponto mor. O estrangeiro não era mais do que um elemento
biológico degradado cujas taras e patologias ameaçavam diretamente a
integridade do corpo nacional. A partir do outono de 1940, uma nova lei
permite rever todas as naturalizações deferidas desde 1927. Entre 1940 e
1944, perto de 15000 pessoas são destituídas da nacionalidade francesa e
“tornadas apátridas”29.
Voltando aos campos coloniais de concentração, é preciso dizer que não
eram, à primeira vista, campos destinados ao extermínio propriamente
dito. A respeito do caso europeu em especial, numerosos historiadores
sugerem que uma distinção seja feita entre o universo dos campos de
reagrupamento, dos campos de concentração destinados aos povos não
judeus, e dos campos de extermínio onde foi perpetrado o judeocídio; os
campos destinados a acolher os inimigos políticos e os centros de morte
como tal. De fato, todos os campos não foram campos da morte
programada. A distinção entre o dispositivo concentracionário no sentido
estrito da palavra e o aparelho exterminador propriamente dito então é
importante, mesmo se, por outro lado, todos os campos (campos coloniais
inclusos) eram espaços sobre os quais pairava o sofrimento e,
eventualmente, diversas formas de morte – a morte lenta, pelo
esgotamento, o trabalho ou o abandono e a indiferença; ou, como foi o
caso no coração mesmo da Europa, o puro e simples desparecimento pelo
gás – depois a fumaça, as cinzas e o pó. Num caso como no outro, os
campos abrigaram uma humanidade declarada ora inútil, ora nefasta, ora
percebida como inimiga, e de qualquer maneira parasitaria e em excesso.

28 ver Ralph Schor, l´opinion française et les etrangers, 1919-1939, publications de la sorbonne, paris,
1985.

29 ver Bernard Laguerre, les denaturalisés de vichy, 1940-1944, vingtieme siecle, vol20, n1, 1998, p3-15.
Ver também Robert Paxton, la france de vichy, 1940-1944, seuil, paris, 1974, p 168-169.

98
P104
É assim, que na filosofia moderna, o mundo dos campos se tornou
inseparável do mundo de um crime singular, perpetrado num aparente
segredo: o crime contra a humanidade.
Dessa problemática da humanidade contra a qual é perpetrado um crime
que não é necessariamente reconhecido como tal, o espaço colonial foi
uma das expressões modernas das mais manifestas. Hoje ainda, não está
claro aos olhos de todos, que a escravidão dos Negros e as atrocidades
coloniais fazem parte da memória do mundo, menos ainda que essa
memória, porque em comum, não é a propriedade apenas dos povos que
foram vítimas desses eventos, mas da humanidade no seu conjunto; ou
ainda, que enquanto formos incapazes de assumir as memorias de “Todo-
o-Mundo”, será impossível imaginar o que poderia ser um mundo
verdadeiramente comunitário, uma humanidade verdadeiramente
universal.
Sim, sob a colonização, todo espaço carcerário não participava
necessariamente do sistema concentracionário ou do dispositivo de
extermínio. Mas o campo foi um dispositivo central das guerras coloniais e
imperialistas. É preciso pois, tomar nota dessas origens do campo – no
caldeirão das guerras imperialistas e coloniais (guerras assimétricas por
definição), mais tarde nas guerras civis e suas sequencias, e finalmente, no
horizonte da guerra mundial. Essa genealogia sugere que na origem do
campo se encontra sempre o projeto de partição dos humanos. Partição e
ocupação caminham junto com expulsão e deportação, e muitas vezes,
com um programa confesso e não confesso de eliminação. Aliás, não é a
toa que a forma-campo terá acompanhado, aproximadamente em todos
os lugares, as logicas de povoamento de erradicação.
Dessa partição dos humanos e desse povoamento de erradicação, Frantz
Fanon, que dedicou grande parte de sua curta vida curando doentes, foi
testemunha. Ele foi testemunha direta de insondáveis sofrimentos, da
loucura, do desamparo humano e, sobretudo, da morte sem razão
aparente de numerosos inocentes, ou seja aqueles que se esperaria que
fossem poupados, inclusive em situações extremas.

99
P105
De fato, toda situação de sujeição estrutural constitui, ao menos para
aqueles e aquelas que passam por ela, uma situação potencialmente
extrema. Foi o caso da experiência colonial. Onde ele era movido por uma
vontade de extermínio, o empreendimento colonial só deixou atrás dele
os restos da população autóctone que aliás não demorou em confinar nos
enclaves. Restringindo as oportunidades de encontro e contato entre
colonos e submetidos, ele maximizava a distância entre os dois grupos,
condição preliminar para a banalização da indiferença. Por parte daqueles
que eram encarregados de realiza-las, conquista e ocupação coloniais não
só exigiam extraordinárias disposições para a indiferença, mas também
capacidades fora da norma para a execução de atos propriamente
repugnantes. Massacres, carnificinas e repressão das resistências exigiram
as vezes contatos corpo a corpo, a exibição de formas horríveis de
crueldade, o atentado aos corpos e aos bens empregado toda as vezes na
tradução da ignomínia na qual eram mantidas as raças ditas inferiores.
Onde era preciso, o abate aéreo vinha se sobrepor à destruição
terrestre30. Decapitações, desmembramentos, torturas e outras sevícias
sexuais vinham completar o conjunto31.
O habito do sadismo, a implacável vontade de não saber de nada, não
sentir nenhuma empatia para com as vítimas, de se persuadir da vilania
dos indígenas, acusa-los da responsabilidade das atrocidades que lhes
eram infligidas e das exações e desperdícios que eles sofriam – essa era a
lei. Assim como o explica Fanon, toda vez que se tratava de desculpar o
colonialismo, não se vacilava em recorrer aos mesmos subterfúgios: os
crimes eram gestos de indivíduos isolados, os próprios tomados de pavor
diante do comportamento animal e os atos de barbárie extrema de suas
vítimas e a ameaça que os selvagens faziam pairar sobre sua vida; os
horrores que os colonizados experimentavam não pesavam muito em
relação à miséria que eles teriam de aguentar se fossem deixados por
conta própria ; o que era realizado em nome da civilização
(desenvolvimento econômico, progresso técnico, escolarização, saúde,
cristianização e
30 Paul Armengaud, quelques enseignements des campagnes du rif em matiere d´aviation, Berger
levrault, paris 1928

31 Claude Juin, des soldats tortionnaires. Guerre d´algérie: des jeunes gens ordinaires confrontés à
l´intolerable, robert Laffont, paris 2012.

100
P106
assimilação) vinha contra balancear os efeitos negativos – e
pretensamente inevitáveis - do projeto colonial32.
Foi o caso em especial na Argélia. Da guerra colonial em geral, Fanon dizia
que ela era geradora de todo tipo de patologias e constituía um terreno
favorável para a eclosão de perturbações mentais. Essas patologias de
tempos de guerra propriamente ditos vinham se sobrepor a todo tipo de
feridas que a colonização tinha, antes, infligido aos colonizados no
momento da conquista e da ocupação. O colonizado que sofria a guerra
colonial, ou ainda que estava implicado nela como combatente carregava
dentro dele, nele e através dele as cicatrizes e outros cortes originários.
Da guerra da Argélia em particular, Fanon dizia que ela tinha tomado,
muitas vezes, a aparência de um “autentico genocídio”33. De fato, na sua
estrutura como no seu ornamento – principalmente quando ele se apoia
sobre pressupostos racistas e suprematistas -, o processo colonial se
constrói sempre em torno de uma pulsão genocida. Em muitos casos, essa
pulsão nunca se materializou. Mas sempre esteve ai, em estado latente.
Ela atingia seu ponto máximo de incandescência no momento da guerra,
fosse de conquista e de ocupação ou fosse contra-inserrecional. A pulsão
genocida operava de forma molecular. Cozinhando em fogo brando a
maior parte do tempo, ela se cristalizava de vez em quando em torno de
eventos sangrentos (matanças, massacres, repressões) que pouco a
pouco, se repetiam. A guerra era o paroxismo disso. Ela executava e
revelava a luz do dia a ameaça que todo sistema colonial está pronto a
erguer quando sua sobrevivência está em jogo – derramar o máximo de
sangue possível, quebrar pedaço por pedaço os mundos do colonizado e
transforma-los num amontoado indiferenciado de ruinas, corpos
destroçados, vidas para sempre arrebentadas, um local inabitável.
Dessa mesma guerra, Fanon dizia que ela tinha mergulhado as pessoas,
vítimas e carrascos, combatentes e civis, numa atmosfera sangrenta.

32 Joseph Simon Gallieni, rapport d´ensemble sur la pacification, l´organisation et la colonisation de


Madagascar, Charles Lavauzelle, paris 1900; Hubert Lyautey, du role colonial de l´armée, armand collin,
1900.

33 Frantz Fanon, les damnes de la terre, op.cit, p 627.

101
P107
Em graus diversos, ela ameaçava transformar todos em estatuas de ódio
e esvazia-los todos de todo sentimento humano, começando pela
piedade, a capacidade de se deixar tocar, de se lembrar da própria
vulnerabilidade ao olhar a infelicidade e o desamparo do Outro. A
erradicação de qualquer sentimento de piedade, esse grau zero de troca
entre semelhantes, tinha aberto o caminho para a generalização de
práticas desumanas, criando nas pessoas a impressão tenaz de “assistir a
um verdadeiro Apocalipse34”.
Diante desse trabalho de desmoralização e da destruição que tinha
decorrido do mesmo, Fanon acreditava que a violência era necessária. Tal
violência tinha um alvo duplo – o sistema colonial como tal, e os sistemas
de inibição de todos os tipos que mantinham os colonizados sob o jugo do
medo, das superstições e de vários complexos de perseguição e
inferioridade. Colocando a ordem opressiva no chão, a violência permitia
abrir o campo necessário para a criação do novo. Tornando a ordem
colonial caduca e inoperante, a violência agia como um instrumento de
ressureição.
No pensamento de Fanon, não se tratava tanto de conquistar o Estado do
que gerar uma outra formação de soberania. Momento privilegiado de
surgimento do novo, a violência regeneradora da descolonização visava a
produção de outras formas de vida. Ela tinha uma dimensão incalculável.
Por causa dessa incalculabilidade, ela era por essência imprevisível. Uma
vez engatada, ela era suscetível de se tornar incontrolável. Desse ponto de
vista, ela era ao mesmo tempo o que era suscetível de salvar e o pelo que
o perigo entrava na casa.
Sociedade de objetos e metafisica da destruição.
As sociedades coloniais eram entidades que o sentimento de piedade
tinha desertado. Já que elas não se imaginavam como sociedades de
semelhantes, eles eram, no direito como nos fatos, comunidades da
separação e do ódio. Esse último, paradoxalmente, os mantinha juntas. A
crueldade era tão corriqueira e o cinismo era tão agressivo e desprezante,
que as relações de inimizade tinham realizado uma internalização mais ou
menos irrevocável.
34 ibid.

102
P108
De fato, as relações de instrumentalização recíproca entre dominantes e
dominados eram tais que já não era mais possível distinguir, com toda
clareza, a parte do inimigo interno e a parte do inimigo de fora. Acima de
tudo, o racismo era o motor de tal sociedade, ao mesmo tempo que seu
princípio de destruição. E na medida em que de fato não existia si sem
Outro – o Outro não sendo nada além de outro eu, inclusive sob a figura
da negação -, dar a morte para Outrem não se distinguia mais da
autodoação da morte.
O racismo, segundo Fanon, não era quase nunca acidental. Todo racismo –
e em especial o racismo antinegro – era sustentado por uma estrutura.
Esta já estava ao serviço do que ele chamava de um gigantesco trabalho
de sujeição econômica e biológica. Em outras palavras, o racismo
precisava ser analisado em relação tanto à uma bio-economia quanto à
uma eco-biologia. Por um lado, a gesto racista consistia em uma
declaração arbitraria e originaria de superioridade – superioridade
destinada a consagrar a supremacia de um grupo, uma classe ou uma
espece de homens sobre outras. Por outro lado, era da natureza do
racismo de sempre procurar não esclerosar. Para manter sua virulência e
sua eficácia, ele precisava toda vez se renovar, mudar de fisionomia, se
metamorfosear.
Fanon distinguia em especial dois tipos de racismos. Se tratava, por um
lado, do racismo sem maquiagem, vulgar, primitivo e simplório, que,
julgava ele, corresponde ao “período de exploração brutal dos braços e
das pernas do homem35”. Era o racismo da época dos crânios que se
compara; da quantidade e da configuração das circunvalações do encéfalo
cuja identificação se esforçam em estabelecer; da labilidade emocional do
Negro do qual querem compreender a lógica; da integração sub cortical
do Árabe que querem definir, da culpabilidade genérica do judeu que
querem estabelecer, da dimensão das vertebres que são medidas; e dos
aspectos microscópicos da epiderme que procuram determinar. Apesar de
vulgar essa modalidade do racismo se queria racional, e até científica.

35 Frantz Fanon, racisme et culture, in oeuvres op. Cit. p 719

103
P109
Ela procurava tomar sua autoridade na ciência, especialmente na biologia
e na psicologia.
Por outro lado, imperava um tipo de racismo que Fanon chamava de
cultural. O racismo cultural nada mais era na verdade, do que uma
mutação do racismo vulgar. Ele não se assentava sobre uma equação de
ordem morfológica. Ele atacava formas particulares de existir que o
colonialismo em particular se esforçava em liquidar. Se não conseguia
destruí-las, procurava desvaloriza-las ou ainda fazer delas objetos
exóticos. As áreas mais expostas a esse tipo de trabalho insidioso eram a
forma de vestir, a linguagem, as técnicas, as maneiras de comer, de
sentar, de descansar, de se divertir, de rir, e principalmente, as relações
com a sexualidade.
Além dessas duas formas de racismo ligadas a uma bio-economia, Fanon
não cansou de insistir sobre a natureza das feridas causadas pelo racismo.
“O racismo desfigura e incha o rosto da cultura que o pratica” ele
afirmava36. De forma mais decisiva ainda, ele mostrava que o racismo
participava, no fundo, de uma forma elementar da neurose. Ele
apresentava sempre um elemento de envolvimento passional como se
encontra em certas psicoses. Ele tinha ligação com os delírios,
notadamente de ordem passional. Além dessa tripla estrutura neurótica,
psicótica e delirante, ele acrescentava uma dimensão que ficou
relativamente pouco explorada pela crítica: o racismo era uma maneira
para o sujeito de desviar em cima de Outrem a vergonha intima que ele
tinha de si próprio; de transferi-la num bode expiatório.
Esse mecanismo de projeção, Fanon o chamava de transitivismo, por
transitivismo, ele entendia não bem a maneira pela qual uma cultura nega
ou reprova suas instâncias inferiores e suas pulsões, mas sim o mecanismo
pelo qual ela as rejeita de preferência na conta de um gênio mau (o
Negro, o judeu, o Árabe) que ela terá fabricado pra si própria e que ela
erguera nos seus momentos de pânico ou de crueldade.
Graças a esse gênio mau, essa cultura cria para si um inimigo interior e,
com golpes de neurose social, ela se desmoraliza e destrói de dentro os
valores que ela defende por outro lado.
36 ibid, p721

104
P110
Ao racismo de superfície, grosseiro e primitivo, se opõe uma outra forma
mais insidiosa de racismo que consiste em se livrar permanentemente de
qualquer culpabilidade. É assim, porque, segundo Fanon, toda expressão
racista sempre é, de alguma forma, habitada por uma consciência pesada
que ela procura abafar. É um dos motivos pelos quais, ele afirma, de
forma geral, o racista se esconde ou tenta se dissimular.
Não está excluído que esse gosto pelo escondido e o dissimulado esteja
ligado a um aspecto fundamental das relações que o afeto racista cultiva
com a sexualidade em geral. Porque, dizia Fanon, uma sociedade racista é
uma sociedade que se preocupa a respeito da perda de seu potencial
sexual em geral. Também é uma sociedade habitada pela “nostalgia
irracional de épocas extraordinárias de licença sexual, de cenas orgíacas,
de estupros não sancionados, de incestos não reprimidos”37. Orgias,
estupros e incestos não cumprem exatamente as mesmas funções na
constituição das fantasias racistas. Porem tem em comum responder,
estima Fanon, ao instinto de vida. Esse instinto de vida tem um duplo – o
medo do Negro cuja potência sexual suposta, livre da moral e das
proibições, constitui um real perigo biológico.
Chegamos as formas de sofrimento que o racismo produz. A que tipo de
tormentos são expostos aqueles que são o alvo do racismo sob as
diferentes formas que acabaram de ser enumeradas. Como caracterizar as
feridas que lhes são infligidas, as chagas que os acometem, os
traumatismos que eles sofrem e o tipo de loucura que eles
experimentam? Responder a essas perguntas exige que se debruce de
perto sobre a maneira com que o racismo trabalha e constitui de lá de
dentro o sujeito exposto ao seu furor.
Primeiro, o sujeito racializado é o produto do desejo de uma força exterior
a si próprio, que não foi escolhida, mas que paradoxalmente inicia e
sustenta seu ser. Uma parte imensa do sofrimento descrito por Fanon é
devida à recepção que o sujeito concede a essa força externa, que, ao
mesmo tempo, se transforma em momento constitutivo de sua
inauguração.

37 Frantz Fanon, peau noire..., opcit, p196 e seguintes

105
P111
Essa constituição do sujeito no desejo de subordinação é uma das
modalidades especificas, interiorizadas, da dominação racial. Ainda é
preciso levar a sério o processo pelo qual o sujeito colonial se volta contra
ele mesmo e se emancipa das condições de sua emergência dentro e pela
sujeição. A vida psíquica é fortemente envolvida nesse processo de
emancipação que, para Fanon, procede naturalmente de uma pratica
absoluta da violência e de um arrancamento de si mesmo e, se for preciso,
pela insurreição.
E também, ser reduzido ao estado de sujeito de raça, é se encontrar logo
na posição do Outro. O Outro é aquele que deve, toda vez, provar a
outrem que ele é um ser humano, que ele merece ser considerado um
semelhante; que ele é, como não cansa de repetir Fanon, “um homem
igual aos outros”, “um homem como os outros”, que é como nós, que é
nós, que é dos nossos. Ser o Outro, é sempre se sentir em posição
instável. A tragédia de Outrem é que por causa dessa instabilidade,
Outrem está constantemente de prontidão. Ele vive na espera de um
repudio. Ele faz tudo para que não aconteça, sabendo que vai acontecer
necessariamente em algum momento que ele não controla.
Daí, ele tem medo de se mostrar tal qual ele é realmente, preferindo o
disfarce e a dissimulação à autenticidade, e convencido que de sua
existência, foi feito vergonha. Seu eu é um nó de conflitos. Clivado e
incapaz de enfrentar o mundo, como poderia empreender planeja-lo?
Como poderia empreender morar nele? “Eu só queria simplesmente ser
um homem entre outros homens. [...] eu queria ser homem, apenas
homem.38”. E eis que “me descobri objeto no meio de outros objetos 39”.
O desejo de ser um homem entre outros homens é contrariado pelo
decreto da diferença. Do sujeito de raça, ou seja, definido pela diferença,
o racismo exige uma “conduta de Negro”, ou seja, de homem à parte já
que o Negro representa essa parte dos homens que são mantidos à parte
– a parte à parte.

38 ibid, p155

39 ibid, p 154

106
P112
Eles constituem um tipo de resto condenado à desonra e à desgraça.
Corpo-objeto, sujeito dentro do objeto, de que tipo de objeto se fala? Se
trata de um objeto real e material, como um móvel? Se trata de imagens
objeto – o Negro como uma máscara? Ou se trata de um objeto espectral
e fantasmático, no limite entre o desejo e o pavor – a fantasia do Negro
que me estupra, me chicoteia e me faz gritar sem que eu saiba
exatamente se se trata de um grito de prazer ou de pavor? Provavelmente
tudo isso ao mesmo tempo, e mais ainda, objetos parciais, membros
disjuntos que, em vez de fazer corpo, surgem não se sabe de onde: “meu
corpo me foi trazido de volta, esticado, disjunto, desgastado, todo
enlutado nesse dia branco de inverno 40.”
Luto de inverno nesse dia branco, branco de inverno nesse dia de luto,
nesse lugar vazio, o tempo de um esvaziamento, e a cortina se fecha. A
pessoa humana essencial, testemunha de sua dissolução na coisa, de
repente esta despida de qualquer substancia humana e trancada numa
arrebatadora objetalidade. Outrem me “fixou” “no sentido em que se fixa
um preparo com um corante41”. O “sangue coalhado”, aqui estou de
agora em diante prisioneiro desse círculo infernal42. Uma instancia
representativa do “Branco” tomou meu lugar e fez de minha consciência
seu objeto. De agora em diante, uma instancia respira no meu lugar,
pensa no meu lugar, fala no meu lugar, me vigia, age no meu lugar. Ao
mesmo tempo, essa instancia-mestre tem medo de mim. Dentro dela, eu
faço vir à tona todos os sentimentos obscuros enterrados nas penumbras
da cultura - terror e horror, ódio, desprezo e injuria. A instancia–mestre
imagina que eu poderia submetê-la a todo tipo de sevícias desonrantes,
mais ou menos as mesmas que aquelas que ela me inflige. Eu nutro,
dentro dela, um temor ansioso que decorre não do meu desejo de
revanche, muito menos da ira e da impotente raiva que me habitam, mas
sim do estatuto de objeto fobógeno com o qual ela me fantasiou. A
instancia-mestre tem medo de mim, não por causa do que eu lhe fiz, ou
do que lhe mostrei,
40 ibid, p156

41 ibid, p164

43 ibid, p159

107
P 113
mas sim por causa do que ela me fez e que pensa que eu poderia lhe fazer
de volta.
As formações racistas portanto, são, por definição, produtoras e
redistribuidoras de todo tipo de loucuras miniaturizadas. Elas guardam
dentro delas núcleos incandescentes de uma loucura que elas se esforçam
em liberar em doses celulares no modo da neurose, da psicose, do delírio,
quiçá do erotismo. Ao mesmo tempo, elas secretam situações objetivas de
loucura. Essas situações de loucura envolvem e estruturam o conjunto de
existência social. Todos presos nas redes dessa violência, nos seus diversos
espelhos, ou nas suas diferentes refrações, todos são, em graus diversos,
os sobreviventes dela. O fato de estar de um lado ou do outro não
significa, longe disso, que se está fora ou isento disso.
Medos racistas
Portanto, o racista não tem só uma queda para a dissimulação. Ele
também é habitado pelo medo – no que interessa aqui, o medo do Negro,
esse Outro que é obrigado a viver sua vida sob o signo da duplicidade, da
necessidade e do antagonismo. Essa necessidade é de maneira geral
pensada na linguagem da natureza e dos processos orgânicos e biológicos.
De fato, o Negro respira, bebe, come, dorme e evacua. Seu corpo é um
corpo natural, um corpo de necessidades, um corpo fisiológico. Ele não
sofre como um corpo humano expressivo. No fundo, ele nem pode ficar
doente, já que, de qualquer modo, a precariedade é seu atributo. Nunca
se tratou de um corpo são. A vida negra é deficiente, portando pobre.
Na situação colonial, o racista dispõe da força. Mas não basta dispor da
força para eliminar o medo. De fato, o racista tem medo do Negro apesar
de ter antes decretado a sua inferioridade. Como é possível ter medo
daquele que de fato foi desvalorizado; aquele do qual antes tiraram
qualquer atributo de força e de potência? Aliás, não se trata só de medo,
mas de uma mistura de medo, de ódio e de amor sem noção. Este é de
fato o traço característico do racismo antinegro –

108
P114
o fato de que, diante de um Negro, não conseguem se comportar e agir
“normalmente”. Isso diz respeito tanto ao próprio Negro do que àquele
que está na sua frente.
Da fobia, Fanon observa que “ela é uma neurose caracterizada pelo temor
ansioso de um objeto (no sentido mais amplo que é qualquer coisa
exterior ao indivíduo) ou, por extensão, de uma situação 43.” O Negro é um
objeto que desperta temor e nojo. O temor, a angustia, o medo do Negro
como objeto imanente tem um estrutura infantil. Em outras palavras,
existe uma estrutura infantil do racismo ligada a um acidente
desestabilizante e, para os homens em especial, à ausência da mãe. A
escolha do objeto fobógeno, sugere Fanon, é determinada. “Esse objeto
não surge na noite do Nada44.” Um acidente aconteceu. Esse acidente
provocou um afeto no sujeito. “A fobia é a presença latente desse afeto
num contexto de mundo do sujeito.” Tem organização, construção”. Pois
naturalmente, “o objeto não precisa estar presente, basta ele ser: é um
possível”. Esse objeto é “dotado de intenções maldosas e de todos os
atributos de uma força maléfica”. Portanto tem algo do pensamento
mágico no homem que tem medo45.
Aquele que odeia o Preto, que sente temor à respeito dele, aquele cujo
encontro real ou fantasmático com o Negro mergulha na angustia –
aquele reproduz um trauma desestabilizante. Ele não está agindo nem
racionalmente nem logicamente. Ele nem pensa. Ele é movido por um
afeto e obedece às leis desse afeto. O Negro é, na maioria dos casos, um
agressor mais ou menos imaginário. Objeto assustador, ele desperta o
terror. Fanon se debruça depois sobre o lugar que ocupa a sexualidade
nessa dinâmica do medo racista. Concordando para isso com Ângelo
Hesnard, ele evoca a hipótese segundo a qual o motivo do pavor decorre
do medo que o Negro possa “me fazer todo tipo de coisa, mas não sevícias
43 ver Angelo Hesnard, l´univers morbide de la faute, puf, paris 1949

44 Frantz Fanon, peau noire, masques blancs, in oeuvres op.cit, p189 (as citações que seguem foram
retiradas da mesma pagina).

45 ver Charles Odier, l´angoisse et la pensée magique, delachaux et niestlé, neuchatel, 1948.

109
P115
vulgares: sevícias sexuais, ou seja imorais, desonrantes46”.
No imaginário racista, o Negro como sujeito sexual é o equivalente a um
objeto assustador e agressivo, capaz de infligir sevícias e traumas na sua
vítima. Já que para ele tudo supostamente passa pelo plano genital, as
sevícias das quais ele poderia ser o autor podem se revelar
particularmente desonrantes. Por pouco que ele venha nos estuprar ou
simplesmente nos chicotear, essa desonra não decorreria só de nossa
implicação forçada numa existência feito vergonha. Seria também o
resultado da efração de um corpo supostamente de homem por um
corpo-objeto. Porém, o que há de mais encantador e de prazeroso, numa
perspectiva dionisíaca e sadomasoquista, que um gozo via o objeto em
vez e no lugar do gozo via um membro, o de outro sujeito?
Compreende-se logo o lugar privilegiado que ocupam as duas formas de
sexualidade dionisíaca e sadomasoquista na fantasmagoria racista. Na
sexualidade dionisíaca do tipo bacanal, o Negro é essencialmente um
membro – não qualquer um: um membro desmedido. Na sexualidade do
tipo sadomasoquista, ele é um estuprador. O sujeito racista, nesse ponto
de vista, é aquele que não para de gritar: “o Negro me estrupa! O Negro
me chicoteia! O Negro me estuprou!” mas, diz Fanon, se trata no fundo de
uma fantasia infantil. Dizer “o Negro me estupra” ou “me chicoteia”, não é
dizer: “Me machuque”, ou “o Negro me machuca”. É dizer: “Eu me
machuco como o Negro o faria se ele estivesse no meu lugar; se ele
tivesse essa oportunidade.”
No centro dessas duas formas da sexualidade, se encontra o falo. Esse não
é só um lugar abstrato, um simples significante ou um signo diferenciador
– o objeto destacável, seccionável e oferecido à transcrição simbólica da
qual falava Jacques Lacan. Claro, o falo não se reduz ao pênis
propriamente dito. Mas também não é o órgão sem corpo que tanto preza
certa tradição psicanalítica ocidental. Ao contrário,

46 Frantz Fanon, peau noire...p190.

110
P116
nas situações coloniais – e então racistas-, ele representa o que, na vida,
se manifesta da forma mais pura como turgescência, como empurrão e
como intrusão. Obviamente não se pode falar de empurrão, turgescência
e intrusão sem restituir ao falo senão sua fisicalidade, ao menos sua carne
viva, sua capacidade em testemunhar planos de sensível, sentir todo tipo
de sensações, de vibrações e de arrepios (uma cor, uma presença, um
toque, um peso, um cheiro). Nos contextos de dominação racial e então
de minorização social, o falo negro é percebido antes de tudo como uma
enorme potência de afirmação. Ele é o nome de uma força ao mesmo
tempo afirmativa e transgressiva, que não é reprimida por nenhuma
proibição.
Como tal, ele contradiz radicalmente o poder racial que, além de se definir
em prioridade como o poder do proibido se representa também como
dotado ele próprio de um falo que funciona como seu emblema e seu
adorno, assim como o dispositivo central de sua disciplina. Esse poder é
falo, e o falo é o último nome do proibido. Como último nome do
proibido, ou seja, além de qualquer proibição, ele pode alegremente
montar em todos aqueles que lhe são submetidos. Dessa forma, ele
pretende agir como fonte de movimento e energia. Ele pode agir como se
fosse dentro e pelo falo que tivesse evento; como se, na verdade, o falo
fosse o evento.
A crença segundo a qual, no fim das contas, o poder, é o esforço que
desenvolve o falo sobre ele mesmo para se tornar Figura – essa crença
está no fundamento de toda dominação colonial. Na verdade, ela continua
funcionando como o não-dito, o subsolo, quiçá o horizonte de nossa
modernidade mesmo se, a respeito disso, não queremos ouvir falar de
jeito nenhum. É a mesma coisa para a crença segundo a qual o falo só é
falo no movimento pelo qual ele procura escapar do corpo e se atribuir
uma autonomia própria. E é essa tentativa de escape, ou ainda de
empurrão, que produz os espasmos, o poder em situação colonial e racista
revela por outro lado a sua identidade justamente por esses empurrões
espasmódicos.
Os espasmos graças aos quais acreditam reconhecer e identificar o poder
e suas vibrações só acentuam o desenho oco e achatado desse mesmo

111
p117
poder. Por mais que o falo se dilate, essa dilatação sempre é seguida de
uma contração e de uma dissipação, uma detumescência. Ainda, nas
condições coloniais e racistas, o poder que faz urrar o Negro e que arranca
de seu peito gritos incessantes só poderia ser um poder acoplado de sua
besta – de seu espirito-cachorro, seu espirito-porco, seu espirito-canalha.
Só pode se tratar de um poder dotado de um material corporal, de uma
carcaça cujo falo é a manifestação mais estonteante ao mesmo tempo que
sua superfície mais escura. Um poder que é falos no sentido que sugere
Fanon só pode se apresentar aos seus sujeitos revestido de um crânio de
morte. É esse crânio que os faz dar tais gritos e que faz da vida do Negro
uma vida de negro - uma simples vida zoológica.
Historicamente, o linchamento dos homens pretos no Sul dos Estados
Unidos no tempo da escravidão e nos dias que seguiram a Proclamação da
emancipação tem sua origem em parte no desejo de castra-los. Tomados
de angustia a respeito de seu próprio potencial sexual, o “pequeno
Branco” racista e o plantador estão aterrorizados com a ideia da “espada
preta”, da qual temem não só o volume suposto, como também a essência
penetrante e assaltante. O escritor Michel Cournot dizia mais ou menos a
mesma coisa com palavras mais luxuriantes; “a espada do Preto é uma
espada. Quando ela cortou a sua mulher, esta sentiu algo” que é da ordem
da revelação. Mas a espada também deixou atrás dela um abismo. E nesse
abismo, ele explicava, “seu balangandã fica perdido.” E continua
comparando o pênis do Preto à palmeira e ao pé de fruta-pão que não
broxaria nem por um império.
No gesto obsceno que é o linchamento, procuram então proteger a
suposta pureza da mulher branca mantendo o Preto a altura de sua
morte. Querem leva-lo a contemplar a extinção e o escurecimento do que,
na fantasmagoria racista, chamam de seu “sol sublime”, seu falos. O rasgo
de sua masculinidade tem que passar pela transformação de seus órgãos
genitais em campo de ruinas – sua separação das potencias da vida. É
porque, como bem diz Fanon, nessa configuração, o Negro não existe. Ou
melhor, o Negro é antes de tudo um membro.

112
P118
Ter medo daquele de quem antes, se tirou qualquer atributo de força não
significa não ser capaz de violenta-lo. A violência exercida contra ele se
endossa numa mitologia – aquela que sempre, acompanha a violência dos
dominantes. Estes, Fanon não para de lembrar, têm uma relação com sua
própria violência, da qual eles são os autores, que passa geralmente pela
mitologização, ou seja a construção de um discurso fora da realidade,
cortado da história. A função do mito então é de tornar as vítimas
responsáveis pela violência da qual são precisamente as vítimas. No
fundamento desse mito não se encontra apenas uma separação originaria
entre “eles” e “nós”. O verdadeiro problema é o seguinte: que não sejam
como nós, não é bom. Mas que se tornam como nós, também não é. Para
o dominante, as duas opções são tão absurdas quanto insuportáveis.
Consequentemente, se cria uma loucura de situação que para sua
perpetuidade, precisa sempre da violência, mas uma violência que tem
uma função mítica na medida em que ela é sempre colocada fora do real.
Ela não é reconhecida pelo dominante que, aliás, não para de nega-la ou
de eufemiza-la. Ela existe, mas aqueles que a produzam permanecem
invisíveis e anônimos. E até quando sua existência é provada, ela não tem
sujeito. O dominante não sendo responsável da violência, esta só pode ter
sido provocada pela própria vítima. Assim, por exemplo, se são mortos, é
por causa do que eles são. Para evitar serem mortos, é só eles não serem
quem eles são. Ou ainda, se eles são mortos, só pode ser por acaso, danos
colaterais. Para evitar serem mortos, é só eles não estarem onde estão e
naquele momento. Ou ainda, se eles são mortos, é porque eles
pretendem ser como nos, nosso duplo. E matando o duplo, garantimos
nossa sobrevivência. Então é só eles darem um jeito de serem diferentes
de nós. Essa recondução permanente da partilha entre “eles” e “nós” é
uma das condições de reprodução numa escala molecular da violência de
tipo colonial e racial. Mas, como pode ser constatado hoje em dia, é da
natureza da violência racial sobreviver às condições históricas de seu
nascimento.

113
P119
Se debruçando em especial sobre a violência racial, Fanon parte de uma
pergunta aparentemente inofensiva: o que acontece na ocasião do
encontro entre Preto e Branco? Segundo Fanon, o encontro acontece sob
o signo de um mito partilhado – o mito do Negro. De fato, explica Fanon, a
cultura europeia possui uma imago do Negro que os próprios Negros
interiorizaram e reproduzem fielmente, inclusive nas circunstancias mais
corriqueiras da vida. O que é essa imago? Nessa economia imaginaria, o
negro não é um homem, mas sim um objeto. Mais exatamente, ele é um
objeto fóbico que, como tal, suscita medo e pavor. Esse objeto fóbico
aparece em primeiro lugar através do olhar.
Descolonização radical e festa da imaginação.
Paramos um pouco nesse momento fundador que, para Fanon, tem um
nome: a descolonização radical. Na sua obra, ela se aparenta com uma
força de recusa e se opõe diretamente à paixão pela dependência. Essa
força de recusa constitui o primeiro momento do político e do sujeito. De
fato, o sujeito do político – ou simplesmente o sujeito fanonanio – nasce
no mundo e para si graças a esse gesto inaugural que é a capacidade de
dizer não. Recusa de que senão de se submeter, e primeiro a uma
representação. Porque, nos contextos racistas, “representar “é a mesma
coisa que “desfigurar”. No fundo, a vontade de representação é uma
vontade de destruição. Se trata de transformar violentamente algo em
nada. Representar participa portanto ao mesmo tempo de um jogo de
sombras e de uma devastação, mesmo se, depois dessa devastação,
alguma coisa ainda exista, que pertence à ordem anterior.
Como operação simbólica, a representação não abre necessariamente o
caminho para a possibilidade de reconhecimento recíproco. Primeiro, na
consciência do sujeito que representa, o sujeito representado sempre
corre o risco de ser transformado em objeto ou brinquedo. Ao se deixar
representar, ele se priva da capacidade de criar, para ele mesmo e para o
mundo, uma imagem de si. Ele é o homem se debatendo com uma
imagem que enfiaram nele; da qual ele custa se desfazer; da qual ele não

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P120
é o autor, e na qual ele nem se reconhece. Depois, e em vez de ser
“plenamente o que [ele é]47”, se tanto é que seja possível, ele está
condenado a viver a sua consciência como uma falta. Na história do
encontro entre o ocidente e os mundos distantes, tem realmente uma
forma de representar Outrem que o esvazia de toda substancia e o deixa
sem vida, “no corpo a corpo com a morte, uma morte aquém da morte,
uma morte na vida48”.
Assim é a teoria negativa de representação que sustenta a ideia que
Fanon tem da violência racial. Essa não opera apenas pelo olhar. Ela se
apoia em todo tipo de dispositivos que incluem por exemplo a divisão
espacial e a segregação do mesmo nome, uma divisão racial do “trabalho
sujo”, (nome do trabalho pelo qual, como exemplo, os “atiradores
senegaleses” tem que reprimir no sangue a ressureição malgaxe), e de
tecnologias como a língua, o rádio, e até a medicina dotadas na ocasião de
um poder mortífero. Ela produz uma serie de sobreviventes. São, em sua
maioria, homens e mulheres trancados num corpo a corpo com a sombra
na qual eles foram mergulhados; e que se debatem para rasgar e advir à
clareza de si.
Se Fanon demora tanto na face sombria da vida em situação de loucura (o
racismo sendo considerado, desse ponto de vista, como uma instancia
particular do desregulamento psíquico), é sempre para esboçar um
momento afirmativo e quase solar, aquele do reconhecimento reciproco
que anuncia o advento do “homem como todos os outros”. O homem
“como os outros homens” tem um corpo. Ele tem pés, ele tem mãos, um
peito, um coração. Não é um amontoado de órgãos. Ele respira. Ele anda.
Assim como só tem corpo se for animado e em movimento – um corpo
respirando e andando -, também só tem corpo se for um corpo que usa
um nome. O nome é diferente do apelido: o apelidado, pouco importa
quem seja; será sistematicamente chamado de Mohamed ou Mamadu. O
apelido, sugere Fanon, é o resultado

47 ibid, p172

48 Frantz Fanon, pour la revolution africaine, in oeuvres, op.cit, p700.

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P121
da falsificação de um nome original, a partir de uma ideia que se sabe
“escrota 49”. O nome se conjuga com a face. Não há reconhecimento
recíproco sem a reivindicação da face de Outrem como sendo semelhante
à minha, pelo menos próxima à minha. Esse gesto de reivindicação da face
de Outrem como rosto do qual sou a priori o guardião se opõe
diretamente ao gesto de apagamento que é por exemplo a caça pelo
fácies.
Enfim, o Outro só é Outro como alguém que tem um lugar entre nós;
como alguém que encontra um lugar entre nós; como alguém para quem
damos lugar entre nós50. O reconhecimento do humano que sou no rosto
do homem ou da mulher que está na minha frente, essa é a condição para
que “o homem que está sobre essa terra “- essa terra como lar de todos -
seja mais do que um amontoado de órgãos e mais do que um Mohamed. E
se for verdade que essa terra é o lar de todos, então não se pode exigir de
quem quer que seja que volte para casa.
Não se reconhece só o paciente de Fanon pela sua capacidade de recusa.
Ele se distingue também pela luta. Para dizer a luta, Fanon emprega uma
serie de palavras: a liberação, a descolonização, a desordem absoluta,
mudar a ordem do mundo, o aparecimento, a saída da grande noite, a
vinda ao mundo. A luta não é espontânea. Ela é organizada e consciente.
Ela é, ele diz, o fruto de uma “decisão radical51”. Ela tem ritmo próprio.
Obra de novos homens, seu ator privilegiado é o povo, sujeito coletivo por
excelência. Ela está na origem de novas linguagens. Ela almeja a
emergência de uma nova humanidade. Ela envolve tudo: os músculos, os
punhos nus, a inteligência, os sofrimentos que não se poupam, o sangue.
Gesto novo, ela suscita novos ritmos respiratórios. O lutador fanoniano é
um homem que respira novo em folha, cujas tensões musculares relaxam
e cuja imaginação está em festa.
A festa da imaginação produzida pela luta, esse é o nome que ele dá à
cultura. Ela é ritmada pela transmutação das figuras ultrajantes, pela
ressurgência dos contos épicos, um imenso
49 ibid, p702

50 ibid, p 701.

51 Frantz Fanon, les damnés....op.cit, p459.

116
P122
trabalho sobre os objetos e as formas. Esse é o caso da madeira, e
principalmente das máscaras que passam do esmagamento à animação,
em especial dos rostos. Também é o caso da cerâmica (potes, jarros,
coloridos e bandejas). Através da dança do canto melódico, o colonizado
estrutura sua percepção. O mundo perde seu caráter maldito e as
condições são reunidas para o inevitável confronto. Portanto não tem luta
que não leve, necessariamente, à rachaduras nas velhas sedimentações
culturais. Esse tipo de luta é um trabalho coletivo organizado. Ele almeja
claramente derrubar a história. O paciente fanoniano procura voltar a ser
a origem do futuro.
A relação de cuidado
Dos diferentes doentes que a sociedade da inimizade produziu, Fanon
cuidou em especial de pessoas atingidas de impotência, de mulheres
estupradas, de vítimas da tortura, de pessoas tomadas pela ansiedade,
pelo estupor ou pela depressão, de muitas pessoas (inclusive crianças) que
tinham matado ou torturado, pessoas que perderam seus parentes;
pessoas que sofriam de todo tipo de fobias; combatentes e civis;
Franceses e Argelinos; refugiados atingidos por todo tipo de psicoses
puerperais; de outras pessoas na beira do desespero e que, não
aguentando mais, tinham tentado o suicídio; pessoas profundamente
deslocadas, que perderam a voz, que começavam a urrar, e cujas
agitações, ele contava, podiam as vezes tomar o aspecto de fúrias, de
delírios (notadamente de persecução).
E tem mais. Ele cuidou de homens e mulheres de todas as idades e
profissões; de doentes apresentando distúrbios mentais graves, distúrbios
do comportamento; habitados por ideias delirantes de persecução;
emitindo gritos roucos e berros a qualquer momento e em qualquer lugar;
tomados por uma agitação psicomotora intermitente, diurna ou noturna;
doentes as vezes agressivos, totalmente inconscientes de sua doença,
doentes astênicos e reticentes; loucos que, além de tudo, podiam ser
racistas; pessoas, inclusive missionários, de volta da África onde tinham se

117
P123
destacado por uma conduta violenta e desprezante para com os
indígenas, principalmente as crianças; hipocondríacos; seres humanos
cujo eu e suas relações com o resto do mundo tinham sofrido uma
alteração tal que eles não encontravam mais o seu “lugar entre os
homens52.”
Mas se tratava principalmente de pessoas humanas mergulhadas em
estados depressivos quase que contínuos, excitadas, irritáveis, tomadas de
raiva e as vezes de rancor, expostos ao choro, aos gritos, aos lamentos,
confrontados a uma impressão de morte iminente, frente a frente com
carrascos (visíveis e invisíveis) que não paravam de implorar. Esse mundo
do ódio, da infelicidade e da guerra, tecido por apelos sem resposta à
misericórdia; apelos para poupar os inocentes - esse é o mundo para o
qual Fanon deu a sua atenção e sobre tudo, à escuta do qual ele se
prestou. É o mundo que ele se esforçou, pacientemente, em reconstituir o
relato, e para o qual ele quis devolver voz e rosto, longe de qualquer
miserabilismo.
O doente, dizia Fanon, é “primeiro aquele que sofre e que pede alivio 53”.
Porque “o sofrimento provoca a compaixão, a ternura”, o estabelecimento
hospitalar que é antes de tudo “estabelecimento de cura, estabelecimento
terapêutico”, não poderia ser transformado “em um quartel” 54. A perda
de liberdade, a perda do sentido do tempo, a perda da capacidade de
cuidar de si e preocupar-se consigo, a perda de relação e a perda de
mundo, ele achava, constituíam o verdadeiro drama do homem doente e
do homem alienado. Era assim porque “o homem saudável é um homem
social55”. A doença “o subtrai” dos outros seres sociais “e o isola deles”.
Ela o separa do mundo, “o deixando impotente, sozinho, com um mal que
é rigorosamente dele mesmo56”. O desabamento total ou parcial da
integridade biofísica, psíquica ou mental do doente ameaça
52 Frantz Fanon ecrits sur l´allienation et la liberte, la découverte, paris 2015, p 187.

53 ibid p290

54 ibid p 291

55 ibid p 181

56 ibid p 322.

118
P124
o sistema de relações sem o qual o paciente é rejeitado fora do mundo e
preso em cubículos. Porque, aonde outrem, ou mais especificamente meu
“próximo” ou meu “semelhante” não me remete mais à mim mesmo e
aonde eu me sinto incapaz de “encontrar o rosto de outrem”, de “estar
com outros homens”, meus semelhantes, ali está a doença57.
Porque a doença me coloca num estado que nem me permite encontrar
meu próximo, meu semelhante, outras pessoas humanas, qualquer ato de
cura autêntica supõe a reconstituição desse laço, e então de alguma coisa
que tenhamos em comum. A reconstituição do comum começa pela troca
da palavra e a ruptura do silencio: “é a linguagem que rompe o silencio e
os silêncios. Então é possível comunicar ou comungar. O próximo no
sentido cristão sempre é um cumplice [...]. Comungar, é comungar diante
de algo. [...] é a partir do comum que poderão surgir as intenções
criativas58.”
Se, para o doente, comunicar, comungar e tecer cumplicidades com seus
semelhantes são todos meios de manter contato com o mundo e
participar do mundo, lembrar e se projetar no futuro também é
necessário para a volta à vida, e portanto crucial em qualquer aventura
terapêutica. Essa relação com o tempo que passa - a data que tem que
lembrar, um calendário que permite estabelecer um programa, ontem,
amanhã, os dias que passam e não se parecem, o Aid-el-Kebir que é
celebrado, o Angelus que os sinos tocam, os sinos da Pascoa que são
ouvidos- é um ponto chave de todo gesto curativo. Porque, depois de
hospitalizados, alguns doentes “erguem entre o mundo e eles uma tela
muito opaca atrás da qual eles se imobilizam59”.
Tomados pela inercia, eles se entregam. Assim, na atmosfera “pesada e
irrespirável” do hospital, a vida de asilo é feita de intermináveis brigas
entre doentes que os enfermeiros tem que separar o tempo todo

57 ibid p 181

58 ibid p 234-235

59 ibid p 267

119
P125
“correndo o risco de eles mesmos receberem golpes 60”. A exiguidade dos
locais e a propensão dos doentes “em jogar comida na mesa ou no chão,
amassar seus pratos de alumínio ou quebrar suas colheres” é tão grande
que “os cuidados com a limpeza absorvem uma parte importante da
atividade do pessoal61”. O medo se instala. O enfermeiro teme o doente.
O cabelereiro, por sua vez, exige que ele seja amarrado para poder
barbeá-lo. “Por medo do doente ou para castiga-lo”, ele é deixado “numa
cela, as vezes sem camisa, sem colchão e sem lençol”, quando,
preventivamente, ele não é pura e simplesmente “cinturado”62.
Agachado, esticado, deitado ou sentado, o doente não só se deixa levar.
Suas marcas temporais são profundamente afetadas. O que, antes, fazia o
seu mundo de repente desaba sobre ele mesmo. Ao nivelamento
temporal se acrescenta a degenerescência da linguagem. A bifurcação
entre as funções de expressão e as funções de significados se acentua. A
referência é neutralizada e o significante destruído. A capacidade de se
juntar à realidade do mundo e efetuar o encontro com o outro pelo
truncamento do discurso diminuí. O ato da palavra não é mais
necessariamente o sinal manifesto de uma atividade consciente. Ao se
destacar da consciência, a linguagem não é mais que a estatua reificada da
doença. Semi deitado, olhos fechados, o paciente penetra na zona da
inacessibilidade e do esquecimento – esquecimento do vasto mundo.
Nessas condições, a relação de cura consiste sim em interromper o curso
inexorável de degenerescência. Mas ela almeja sobretudo restabelecer o
doente dentro do seu ser e nas suas relações com o mundo. Para que a
doença e eventualmente a morte não se apoderem do futuro e da vida no
seu conjunto, a relação de cura tem que se colocar no reconhecimento do
doente e acompanhamento do paciente nos seus esforços para nascer
outra vez no mundo. Tem que impedi-lo de morrer antes da hora; de
pensar e agir como se já estivesse morto, como se o tempo da vida
cotidiana não contasse mais. Tem que incita-lo

60 ibid p 304

61 ibid p 301

62 Ibid p 304

120
P126
a cultivar seu interesse pela vida. Daí, pensa Fanon, “a preocupação
constante de remeter cada palavra e cada gesto, cada expressão do rosto”
do doente à doença que o atinge63.
Policial, um dos pacientes de Fanon pratica seu trabalho – a tortura. É o
trabalho dele. Então ele tortura serenamente. A tortura, é cansativo, é
verdade. Mas, no fim das contas, é normal, logico e racional, até o dia em
que ele começa a fazer em casa a mesma coisa que ele faz no trabalho.
Apesar de não ter sido assim anteriormente, agora ele é. Na clínica, ele
encontra um desses homens que ele torturou. Esse encontro é
insuportável para ambos. Mas como fazer para que escutem, a começar
por ele mesmo, que ele não ficou louco? A violência que ele foi levado a
produzir o tranca de agora em diante no personagem do louco. Será que
ele vai precisar, para sair dessa, tocar fogo no próprio corpo?
Outro paciente de Fanon está tomado pela raiva e o rancor. Mas ele não
está habitado pelo complexo da imolação pelo fogo. Seus testículos foram
praticamente espremidos durante uma sessão horrorosa de tortura. Ele
está tomado de impotência, e sua masculinidade está atingida. Ele não
sabe o que fazer dessa violência que está dentro dele e que decorre da
violência que ele sofreu. A própria mulher dele provavelmente foi
estuprada. Duas instancias de violência portanto – uma, dada
exteriormente, mas que produz a outra, a que mora no interior do sujeito
e suscita nele raiva, rancor, e ocasionalmente desespero.
Essa raiva e esse rancor sofridos constituem as formas primordiais do
sofrimento. Mas ele se estende bem longe. Ele ataca os próprios quadros
da memória. O poder da lembrança está gasto. A memória só funciona por
fragmentos e resíduos, e no modo patógeno. Um monte de desejos
recalcados só aparecem à luz do dia disfarçados – tudo ou quase se tornou
irreconhecível. Uma corrente de eventos traumatizantes aperta o sujeito,
suscitando nele detestação, ressentimento, raiva, ódio e rancor
impotente. Para sair disso, sugere Fanon, tem que seguir os rastros

63 ibid p236

121
P127
daquele que foi vencido e se refazer uma genealogia. Tem que sair do
mito e escrever a história – vivê-la não no modo da histeria, mas sobre a
base do princípio segundo o qual “eu sou meu próprio fundamento”.
O espantoso duplo
Esse policial não quer mais ouvir gritos. Eles o impedem de dormir. Para se
livrar desse clamor noturno, ele sempre ter que fechar as persianas antes
de deitar; vedar as janelas inclusive durante o grande calor do verão, e
encher os ouvidos de algodão.
Esse inspetor não para de fumar. Ele perdeu o apetite e seu sono é
perturbado por intermináveis pesadelos. “Assim que encontro alguma
oposição, tenho vontade de bater. Até fora do trampo, tenho vontade de
trabalhar no cara que me embarreira o caminho. Por nada. Olha, por
exemplo, eu vou buscar os jornais na banca. Tem muita gente. Claro tem
que esperar. Estendo a mão para pegar meu jornais. Alguém na fila me diz
com uma cara afrontosa: “espere sua vez.” Pronto estou com vontade de
bater, e penso comigo mesmo: “oh amiguinho, se eu pegasse você por
algumas horas, depois você não ia estar tirando essa onda toda”64. De fato
ele tem vontade de bater. Tudo. Todo mundo. Em qualquer lugar,
inclusive em casa. Ninguém escapa, nem as crianças “nem mesmo o
pequeno de vinte meses” e, com uma “rara selvageria” muito menos sua
própria mulher que tem o defeito de interpela-lo e de nomear o mal que o
corroí: “meu deus, você está ficando louco65...” como resposta, “ele se
jogou em cima dela, bateu nela e amarrou ela numa cadeira lhe dizendo:
“eu vou te mostrar de uma vez por todas quem é que manda nessa casa”.
Uma jovem Francesa de vinte e um anos está com nojo por causa do
enterro do seu pai. Ela escutou oficiais pintar um retrato dele que não
correspondia em nada com a experiência que ela tinha dele. O morto que
choravam de repente era enfeitado de qualidades morais fora do comum
(abnegação, sacrifício, amor

64 ibid p 639

65 ibid

122
P128
da pátria). Ela tinha ficado com nojo. Porque sempre que ela estava em
casa, ela ficava noites a fio acordada. De fato, vindo do andar de baixo até
o quarto dela, gritos a incomodavam o tempo todo: “no porão e nas salas
vazias, torturavam Argelinos para obter informações66.” “Eu me pergunto
como um ser humano pode suportar [...] ouvir gritos de dor.”
Durante quase três anos, Fanon escreveu na sua carta de demissão
endereçada ao ministro residente em 1956: “me coloquei totalmente a
disposição desse pais e dos homens que moram nele. Mas, ele logo
observa, do que valem “as intenções se a sua encarnação se torna
impossível por conta da indigência do coração, da esterilidade da mente,
do ódio pelos autóctones desse pais?67” Os três termos, - indigência do
coração, esterilidade da mente, ódio pelos autóctones – descrevem de
forma lapidar o que, aos seus olhos, sempre caracterizou o sistema
colonial. Várias vezes, e sempre partindo de fatos que ele tinha observado
diretamente, ele fez disso uma descrição detalhada e multiforme. E mais
ele teve experiência direta, mais esse sistema lhe pareceu uma lepra que
não poupava o corpo de ninguém, colonizados e colonizadores, “essa
lepra toda no teu corpo68”.
Realmente tem que ler a sua “carta para um Francês”, junto com a carta
que lhe é anterior, a sua “Carta para o Ministro Residente” 69. Que tenham
sido escritas no mesmo momento ou não, uma explica a outra. Uma serve
de justificativa para a outra. Como forma da lepra, a colonização ataca os
corpos que ela deforma. Mas ela tem por principal alvo o cérebro, e
acessoriamente, o sistema nervoso. Desmiolar, eis o objetivo.
Desmiolar consiste sim em operar senão uma amputação do cérebro, ao
menos uma esterilização. O ato de desmiolar almeja também tornar o
sujeito “alienado ao seu ambiente”. Esse processo de “ruptura organizada
com o real” resulta em muitos casos na loucura. Frequentemente, essa se
expressa no modo
66 ibid p 646

67 Frantz Fanon, pour la revolution.... op.cit, p 734

68 ibid p 730

69 in ibid, p 729-732 e p 733-735. Todas as citações a seguir vêm destes dois textos.

123
P129
da mentira. Uma das funções da mentira colonial é de alimentar o silencio
e induzir condutas de cumplicidade com o pretexto que “não tem nada
mais para se fazer “a não ser, talvez, ir embora.
Mas porque ir embora? A partir de que momento o colono começa a
pensar na ideia segundo a qual talvez seria melhor partir? No momento
em que ele compreende que as coisas não estão indo bem: “a atmosfera
fica pesada”; “o pais está em pé de guerra”; as estradas “não estão mais
seguras”. Os campos de trigo foram “transformados em braseiros”. Os
Árabes “estão ficando malvados”. Daqui a pouco vão estuprar nossas
mulheres. Nossos próprios testículos serão “cortados e plantados” entre
nossos dentes. Mas se as coisas ficam realmente ruim, é porque a lepra
colonial se espalha por todo lado e, com ela, “essa enorme ferida”
enterrada na “mortalha de silencio”, o silencio conjugado por todos, o
silencio pretensamente leigo, e que por consequente clama sua inocência
na base de uma mentira.
Porque, como é possível que ninguém enxergue esse pais e as pessoas que
moram nele? Que nem se queira compreender o que acontece em volta
dia após dia? Que se proclame em alto e bom tom uma preocupação pelo
Homem, “mas singularmente não pelo Árabe” cotidianamente negado e
transformado “em cenário saariano”? como é possível que nunca se tenha
“apertado a mão de um Árabe”, nunca “tomado um café” juntos, nunca
“proseado sobre o tempo com um Árabe“? Porque, no fundo, não tem um
só Europeu “que não fique revoltado, indignado, alarmado com tudo,
exceto com o que se faz com o Árabe”.
Pois o direito à indiferença ou a ignorância não existe para Fanon. Aliás, se
revoltar, se indignar, se alarmar do que se faz com o homem cujas costas
estão curvadas e a “vida parada”; cujo rosto carrega as marcas de
desespero; na barriga do qual se lê a resignação; no sangue do qual se
diagnostica “o esgotamento prosternado de uma vida inteira”, essa era
para ele, e além de seus aspectos puramente técnicos, a tarefa do médico
no contexto colonial. O ato medical tinha por objetivo fazer emergir o que
ele chamava de um mundo que o valha. O médico devia poder responder
à pergunta: “o que está acontecendo?”; “o que aconteceu?”

124
P130
Essa exigência de responder implicava um dever similar de ver (recusa da
auto cegueira), de não ignorar, de não manter no silencio, de não
dissimular o real. Ela implicava que se misturasse àqueles que tinham sido
espremidos, à esse mundo de pessoas sem sonho, e que se contasse, com
voz clara e distinta, aquilo em que ao mesmo tempo se atuava e se que se
testemunhava. “Eu quero, afirmava por sua vez Fanon, a minha voz brutal,
não quero ela bonita, não quero ela pura, não quero ela de todas as
dimensões.” Pelo contrário, ele a queria “rasgada de cabo a rabo”. “Quero
que ela se divirta porque enfim, eu falo do homem e de sua recusa, da
diária podridão do homem, de sua horrenda demissão.”
Porque, só uma voz “rasgada de cabo a rabo” teria conseguido dar conta
do caráter trágico, rasgante e paradoxal da instituição medical em
situação colonial. Se a finalidade do ato medical é de fato calar a dor
lutando contra a doença, como é possível que o colonizado perceba
“numa confusão quase orgânica o médico, o engenheiro, o professor, o
policial, o guarda florestal70”? “Mas a guerra continua e ainda
precisaremos curar por anos as feridas múltiplas e as vezes inapagáveis
feitas aos nossos povos pela onda colonialista 71.”
Essas duas frases estabelecem logo uma relação de causalidade entre a
colonização e o fato das feridas. Também sugerem o tamanho da
dificuldade em curar de uma vez por todas as vítimas da colonização. Essa
dificuldade não é só devida ao tempo quase que interminável que toma o
esforço para a cura. Na realidade, algumas feridas, cortes e lesões, por
conta de sua profundidade, nunca serão curadas; suas cicatrizes nunca
serão apagadas; suas vítimas carregarão suas marcas para sempre.
Quanto à guerra colonial, ela é abordada aqui pelo ângulo dos distúrbios
mentais que ele gera tanto do lado dos agentes do poder ocupante
quanto que do lado da população autóctone.
Assim é o caso desse jovem Argelino de vinte e seis anos. A primeira vista,
ele sofre de enxaquecas rebeldes e de insônia mas,

70 Frantz Fanon, l´an V de la revolution algerienne, in oeuvres op. Cit, p 355

71 Frantz Fanon, les damnés.... op.cit, p 625

125
P131
no fundo, se trata de impotência sexual. Depois de ter escapado de uma
blitz, ele abandonou o taxi que ele usava no início para o transporte dos
panfletos e dos responsáveis políticos e depois, pouco a pouco, para ações
de comando argelinos engajados na guerra de libertação. No taxi, tinha
dois carregadores de metralhadora. Ao se esconder no mato
precipitadamente, ele está sem notícias de sua mulher e de sua filha de
vinte meses até o dia em que a sua esposa lhe manda uma mensagem na
qual ela pede para ser esquecida.
O pedido de esquecimento se explica pelo fato dela ter sofrido um duplo
estupro, primeiro um militar francês, sozinho; depois outro, este na frente
de mais alguns, a palavra seria testemunhas? Desonra dupla portanto, que
logo coloca o problema da vergonha e da culpabilidade. Enquanto que a
primeira cena do estupro acontece no privado, num frente a frente da
mulher com seu carrasco, a segunda se transforma em cena pública.
Nesse palco da vergonha, um só militar faz o trabalho, mas sob o olhar
quase pornográfico de vários outros que vivem o castigo no modo de um
gozo delegado. Sobre a cena paira uma figura fisicamente ausente, mas
cuja presença espectral convida o militar estuprador a redobrar o furor. É
o marido. Estuprando a mulher, é o falo dele que os soldados franceses
tem como alvo e procuram simbolicamente castrar.
Nesse conflito de homem com homem, a mulher serve primeiro de
substituto, e subsidiariamente, de objeto de satisfação das pulsões sádicas
do oficial. Para este, talvez nem se trate de uma questão de gozo. Se trata,
por um lado, de humilhar profundamente a mulher (e através dela seu
marido); de questionar irremediavelmente os sentimentos respectivos de
orgulho e dignidade e a representação que eles têm de si e de sua relação.
Se trata, por outro lado, de colocar, através do ato do estupro, alguma
coisa como uma relação de ódio. O ódio é tudo exceto uma relação de
gratidão. Ele é antes de tudo uma relação de execração. Um falo execra
outro falo: “se um dia você ver o escroto do seu marido, não vá esquecer
de contar

126
P132
para ele tudo que a gente te fez72.” Aliás, depois da injunção a pobre
esposa obedece.
Pedindo ao marido que ele a esqueça, a mulher coloca o dedo no nojo e
na humilhação que deve ter sentido. Seu ser íntimo e secreto foi
desvendado ao olhar do outro, desses desconhecidos, do ocupante. Seu
desejo, seu pudor e seu prazer escondido, tanto quanto sua forma
corporal, foram senão profanados, ao menos expostos, possuídos contra a
sua vontade, amassados e tornados vulgares. Nunca mais ela poderá exibi-
los na sua integridade.
E já que tudo aconteceu diante de testemunhas ou de qualquer forma de
voyeur, ela não pode mais, sozinha, esconder o que quer que seja. Tudo o
que ela pode fazer, é confessar. E já que ela nem pode apagar essa
afronta, só lhe resta uma opção, pedir ao seu marido para esquecê-la –
puro efeito de corte. A mulher sendo feita para o homem e não para o seu
próprio gozo, a ofensa da honra do homem é uma mancha que se paga
geralmente por um sacrifício: a perda desse mesmo homem.
Quanto ao homem, ele é tomado de impotência. Sua dignidade de marido
é ultrajada. Não é verdade que ela se baseia no princípio de gozo exclusivo
de sua mulher? Não é verdade que sua potência fálica se alimenta dessa
exclusividade? Sua mulher “tendo experimentado o Francês” contra a sua
vontade, o laço de exclusividade é rompido. Ela arrasta, agora, uma carne
vivida como uma mancha que não se pode nem limpar, nem apagar, nem
expulsar. Ele saiu disso profundamente mexido. Esse trauma agora o
habita: “antes da qualquer tentativa sexual ele pensa na sua mulher.” Sua
mulher, é essa menina com quem ele teve que casar enquanto ele amava
outra, sua prima, que, resultado dos arranjos familiares, casou com outro
homem. Sua mulher, é essa menina com quem ele acabou casando
porque seus pais o propuseram. Sua mulher era legal, mas ele nem a
amava verdadeiramente.
O fato dela ter sido estuprada lhe da raiva. A sua raiva é direcionada para
“esses miseraveis73”. Mas, quem sabe, também seja direcionada para sua
mulher. Pouco a pouco, à raiva, sucede o alivio: “oh, não é grave; ela não
morreu.
72 ibid p 630 73 ibid p 631

127
P133
Ela poderá recomeçar sua vida74.” Viver na desonra é melhor do que não
viver. As coisas ficam complicadas. Não seria ele, afinal, responsável pelo
estupro da própria mulher? Ele mesmo não foi testemunha, nos distritos,
de estupros sádicos, as vezes consequência do tedio? E se a sua mulher foi
estuprada porque ela não queria “vender seu marido”? E se o estupro foi
o resultado da vontade de sua mulher em “proteger a rede”: “ela foi
estuprada porque estavam me procurando. Na verdade, é para punir ela
pelo seu silencio que ela foi estuprada 75.”
Então ele é responsável pelo estupro da própria mulher. É por causa dele
que ela foi desonrada. Ser “desonrada”, é ser “podre”. E tudo o que vem
do que está podre só pode ser podre, sua filha de vinte meses inclusive, e
de quem ele quer rasgar a foto antes de cada ato sexual. Pegar de volta a
sua mulher depois da independência, significa viver com a podridão para o
resto da vida. Porque, “essa coisa, dá para esquecer?”. De fato, ele nunca
esquecera que sua mulher foi estuprada. De mesma forma, nunca terá um
momento em que ele não se perguntara o seguinte: “Ela tinha que me
contar tudo isso? Não dizer nada então. Carregar sozinha o peso da
desonra, mesmo se esta é o resultado de desejo de proteger o homem
com quem ela foi casada.
O segundo caso trata das pulsões de homicídio indiferenciado que tinha o
sobrevivente de uma liquidação coletiva que aconteceu em um distrito na
região de Constantina. Ele viu, com seus próprios olhos, mortos e feridos.
Ele não era daqueles que não são mais mexidos pela ideia da morte de um
homem. O forma humana, na sua morte, ainda conseguia emociona-lo.
Aqui como no primeiro caso, na origem se encontra a recusa de trair.
Houve uma emboscada. Todos os moradores do distrito foram reunidos e
interrogados. Ninguém respondeu. Na ausência de resposta, um oficial
deu a ordem de destruir o distrito, botar fogo nas casas, juntar o resto dos
homens e leva-los perto de um rio, e massacra-los. Vinte e nove homens
foram mortos a queima roupa. O paciente de quem se trata tinha
escapado da morte com duas balas no corpo e uma fratura do úmero.

74 ibid

75 ibid

128
P134
Um sobrevivente portanto. Mas um sobrevivente praticamente deficiente,
que não para de pedir uma arma. Ele se recusa a “andar na frente de
quem quer que seja. Uma noite, ele toma a arma de um combatente e
desajeitadamente atira nos soldados que dormem76” ele é brutalmente
desarmado. Agora ele tem as mãos amarradas. Ele se agita e berra. Ele
quer matar todo mundo, sem distinção. Num gesto mimético e repetitivo,
ele quer realizar o seu massacrezinho pessoal.
Porque, “na vida, tem que matar para não ser morto”, ele explica. E, para
matar, não pode ter sido morto antes. Minha vida ou minha sobrevida
passa então pelo assassinato de outrem, e principalmente aquele que
suspeito de ser um corpo externo que, disfarçado, apresenta agora as
aparências do semelhante e do congênere: “tem Franceses entre nos. Eles
se disfarçam de Árabes. Tem que matar todos. Me dê uma metralhadora.
Todos esses que se dizem Argelinos na verdade são Franceses...e não me
deixam em paz. Sempre que quero dormir, eles entram no meu quarto.
Mas agora, eu sei quem são. Vou matar todos, sem exceção. Vou degola
eles um após o outro e você tambem77. “
Esse que escapou do massacre – ou o sobrevivente - está consumado
então pelo desejo violento de assassinato. Ele abre mão de qualquer
distinção e ataca tanto o mundo das mulheres que o das crianças; o
mundo das aves e o mundo dos animais de criação: “vocês querem me
liquidar mas terão de fazer isso de outra forma. Não vou me importar em
matar todos vocês. Os baixos, os altos, as mulheres, as crianças, os
cachorros, as aves, as mulas...todo mundo vai ser morto...Depois, vou
poder dormir tranquilo78...” uma vez o desejo de assassinato coletivo
satisfeito, o sobrevivente poderá finalmente gozar do sono que ele almeja.
A vida que se vai
E também, tem esse jovem militar do exército da liberação nacional com
idade de dezanove anos que, ele, de fato, matou um mulher cujo espectro

76 ibid p 633

77 ibid p 634

78 ibid

129
P135
não para de habita-lo. Fanon anota todos os detalhes do encontro. Diante
dele está um doente “fortemente deprimido, as lábios secos, as mãos
constantemente suadas”79. Ele se interessa pela sua respiração, uma serie
de” incessantes suspiros” que levantam seu peito. O paciente que já
cometeu um assassinato não expressa nenhum desejo de cometer outro.
Pelo contrário, é a própria vida que ele atacou dessa vez – se dar a morte,
depois de antes, ter dado ela a outrem. Assim como o sobrevivente
evocado mais cedo, ele está atormentado pela ausência de sono.
Fanon observa seu olhar, a maneira como ele fita “durante alguns
instantes um ponto do espaço enquanto seu rosto se mexe, dando a
impressão para o observador que ele está assistindo um espetaculo80”.
Então ele descreve o que ele diz:” o doente fala de seu sangue derramado,
de suas artérias que se esvaziam, de seu coração que dá sinais de querer
parar. Ele nos suplica de parar a hemorragia, de não admitir mais que
venham “vampiriza” -lo até no hospital. Às vezes, ele não consegue mais
falar e pede um lápis. Escreve: “não tenho mais voz, toda minha vida se
vai”81.”
O doente ainda está dotado de um corpo. Mas esse corpo e tudo o que ele
carrega é assaltado por forças ativas que derrubam as suas energias vitais.
Agarrado num sofrimento intolerável, esse corpo à deriva não constitui
mais um signo. Aliás, se ainda conserva as marcas de um signo, se trata de
um signo que não é mais símbolo. O que deveria estar contido nele agora
escapa, derrama e se espalha. O corpo do sujeito que sofre não é mais um
lar. Se ainda tem um lar, não é mais inviolável. Ele não consegue mais
preservar o que quer que seja. Seus órgãos o largam e suas substancias
escapolem. Doravante, ele só poderia se dizer sob o signo do vazio e do
mutismo – o temor do desabamento, a dificuldade em morar de novo na
linguagem, de voltar à palavra, se se fazer voz, e por consequência, vida. O
sujeito que sofre entendeu isso muito bem. Deve ser por isso que, por
duas vezes, tentou

79 ibid

80 ibid p 635

81 ibid

130
P136
se suicidar, se encarregar de sua morte sozinho, se apropria-la à maneira
de uma auto oferenda.
Atrás do sentimento de expropriação corporal, jaz uma história de
assassinato. O contexto é aquele de uma guerra colonial. A guerra
colonial, como as outras formas de guerra, se baseia numa economia
funerária – dar a morte e receber a morte. Homens, mulheres e crianças,
o gado, as aves, as plantas, os animais, as montanhas e as colinas e os
vales, os rios e os riachos, todo um mundo é colocado numa situação
atmosférica tal que viram a morte. Eles estavam lá na hora em que ela foi
dada a outros. Eles são testemunhas do assassinato de pessoas
presumidas inocentes. Como resposta, se envolveram na luta.
Uma das funções da luta é converter a economia do ódio e o desejo de
vingança numa economia política. O objetivo da luta de liberação não é
erradicar a pulsão de assassinato, o desejo de matar ou a sede de
revanche, mas sim dobrar essa pulsão, esse desejo e essa sede aos
comandos de um super eu de natureza política, ou seja, o advento de uma
nação.
A luta consiste em canalizar essa energia (a vontade de matar) para que
ela não se torne uma repetição estéril. O gesto que consiste em matar, o
corpo que se mata (aquele do inimigo) ou o corpo para o qual se dá a
morte (aquele do combatente ou do mártir) precisam encontrar um lugar
na ordem desse significante. A pulsão de matar não deve mais se ancorar
na força primitiva dos instintos. Transformada em uma energética da luta
política, ela agora precisa ser estruturada simbolicamente.
No caso que nos chama a atenção aqui, aquele do homem habitado pelo
vampiro e ameaçado de perder seu sangue, sua voz e sua vida, esse
arranjo está instável. A sua mãe “foi morta a queima roupa por um
soldado francês”. Duas de suas irmãs foram “levadas por militares”, e ele
não sabe o que aconteceu com elas, ou ainda que tratamento elas
sofreram, num contexto em que interrogatórios, torturas, e,
eventualmente detenções e estupros são o cotidiano. Como o pai dele “já
tinha morrido há vários anos”, ele era o “único homem” de sua família, e
sua “única ambição” era melhorar a existência de sua mãe e de suas
irmãs.

131
P137
O drama da luta atinge seu ponto de incandescência quando uma trama
individual se articula, em dado momento, com um traçado político. A
partir daí, fica difícil desembaraçar as linhas. Tudo se mistura, como indica
muito bem a narrativa que segue. Um colono fortemente envolvido contra
o movimento de liberação de fato matou dois civis argelinos. Uma
operação foi montada contra ele.
Aconteceu durante a noite. “Só a mulher dele estava em casa. Quando ela
nos viu, ela suplicou para não matar ela [...] Decidimos esperar o marido.
Mas eu, olhava para a mulher e lembrava de minha mãe. Ela estava
sentada numa poltrona e parecia ausente [aos olhos dele, ela não está
mais lá]. Eu me perguntava porque a gente não matava ela82. “Porque
matá-la? Não é verdade que antes, na sua suplica, ela deu a entender
claramente que várias vezes, pediu ao seu marido para não mexer com
política? E que ela, numa segunda suplica, pediu pela sua vida no nome
dos seus filhos? (“por favor...não me mate...tenho filhos”). Mas nem o
argumento de responsabilidade nem o argumento humanitário
conseguem mexer com seu interlocutor que, aliás, nem responde.
Fanon sempre chamou a atenção, nas suas obras, sobre um dos traços
mais importantes entre mestres e sujeitos na colônia, que é a sua pobreza
de mundo. Nesse ponto de vista, a vida no mundo colonial poderia ser
comparado com a vida animal. O laço que os mestres coloniais e seus
sujeitos mantêm nunca leva à uma comunidade afetiva animada. Nunca
leva à constituição de um lar em comum. O mestre colonial praticamente
nunca se deixa tocar pela palavra de seu sujeito.
A pobreza de relação que o mestre mantem com o indígena (seu sujeito
do ponto de vista jurídico-legal ao mesmo tempo que sua coisa do ponto
de vista racial e ontológico) está reproduzida aqui, mas ao avesso. Na
ausência do marido, o cerco se fechou sobre sua mulher agora
confrontada à força pulsional daquele que, logo, se tornará seu assassino:
“logo depois ela estava morta.” Logo depois da suplica.

82 ibid p 636 (as citações que seguem vêm da mesma pagina)

132
P137
Apesar do último apelo por certa humanidade e compaixão, por
sentimentos supostamente compartilháveis por todos. Nenhuma
detonação. Nenhuma distancia também não. O jogo estreito da
proximidade, quase que num corpo a corpo, circuito fechado, a relação de
um objeto com outro objeto: “matei ela com minha própria faca.”
Mas o que ele acabou de matar? Essa mulher que implora que poupem a
sua vida e que acaba a perdendo? Ou essa mulher que, no fundo, não é
mais do que a efigia de outra, o espelho de sua mãe de quem lembra no
mesmo instante em que ele olha a sua vítima eventual: “mas eu, olhava a
mulher e lembrava de minha mãe.”
Vamos recapitular parafraseando. “Ela começou a suplicar para que não
matem ela. Logo depois, ela estava morta. Eu a tinha matado com minha
faca. Me desarmaram. Passei alguns dias sob interrogatório. Achava que ia
ser morto. Mas não me importava nem um pouco.” Era de se esperar que
tudo terminasse ali. Alguém derramou o sangue da mãe dele. Um soldado
francês, o nome genérico de um inimigo sem rosto próprio, de rostos
múltiplos.
Para esse sangue que grita por vingança, ele responde derramando o de
outra mulher, que, ela, não derramou o sangue de ninguém, mas que
estava implicada indiretamente no círculo infernal da guerra contra a sua
vontade, por causa do seu marido, que, ele sim era efetivamente
responsável pelo assassinato de dois Argelinos, e que escapa da
retribuição, mas contudo perde sua mulher. Perda de uma mãe de um
lado como do outro, e, para o homem ausente no momento do crime,
perda de uma mulher. De um lado como do outro, órfãos, e do lado do
homem ausente mas para o qual a morte estava destinada no início, um
viúvo. As mulheres não pagam só o preço de atos feitos pelos homens. Ela
constituem a moeda de troca dessa economia funerária.
Por causa da super-presença da mulher, seja na figura da mãe, da esposa
ou da irmã, não é mais possível perceber com toda clareza para quem se
dá a morte exatamente. Quem supostamente deve recebê-la? Como ter
certeza que, estripando a mulher, não é a própria mãe que se está
matando? O vampiro que ameaça esvaziar nosso corpo de todo o sangue,
esse símbolo de interminável hemorragia,

133
P139
não seria, no fundo, o nome desse duplo estripamento, um espectral (o da
mãe) e o outro real (o da mulher do meu inimigo)? o clamor dessas
mulheres que, todas, tem um “buraco aberto na barriga”; as suplicas de
todas essas mulheres “exangues, pálidas e horrorosamente magras” que
pedem para serem poupadas da morte na falta de serem protegidas – não
é o que agora, perturba de terror o assassino, o impede de dormir, o
obriga a vomitar depois das refeições? Não seria o motivo pelo qual, de
noite, quando ele deita, o quarto é invadido por mulheres, todas as
mesmas, exigindo que seu sangue derramado lhe seja devolvido?
“Nesse momento, observa Fanon, um barulho de agua corrente invade o
quarto, se amplifica até evocar o trovão de uma cachoeira, e o jovem
doente vê o assoalho da quarto se impregnando de sangue, seu sangue,
enquanto as mulheres se tornam cada vez mais coradas, e que sua ferida
vai fechando. Banhado de suor e terrivelmente angustiado, o doente
acorda e permanece agitado até o amanhecer. “

134
P141 (140)
Capitulo 4

Esse meio dia maçante

Quando Fanon morre, ele está com os olhos voltados para a África, ou
melhor, o que ele chama de “essa África em devir”. Ele nasceu na
Martinica, passou pela França, ligou a sua sorte à da Argélia. É pelo víeis
da Argélia que ele cumpriu, finalmente, como que do avesso, a volta do
Triangulo. “Participar do movimento ordenado de um continente, é o que,
no fim das contas, eu tinha escolhido como trabalho”, ele afirma 1. A África
que ele descobre nos dias que se seguem à descolonização é um
emaranhado de contradições. O Congo está estagnado. As grandes
“cidadelas colonialistas” da África austral (Angola, Moçambique, África do
Sul, Rodésia) ainda estão de pé. O espectro do Ocidente paira em todo
canto. As novas burguesias nacionais já tomaram o caminho das
predações. E se escutassem “o ouvido colado no chão vermelho, ouviriam
muito bem o barulho de correntes enferrujadas, os “ai “de desamparo, e o
desanimo e o estupor lhes assaltariam pela carne machucada e ainda tão
presente nesse meio dia maçante 2”. Mesmo assim, romper as amarras,
abrir novas frentes, possibilitar o movimento da África e parir um mundo
novo, esse é o projeto. Esse novo mundo é indissociável do advento de um
novo homem. Trabalho difícil? “Felizmente, em todo canto, braços
acenam, vozes respondem, mãos se juntam3”.

1 Frantz Fanon, cette afrique à venir, in pour la revolution... op.cit, p860

2 ibid, p 861

3 ibid p 860

135
P142
Iniciada essencialmente no meio do século dezoito, a reflexão africana e
diaspórica moderna sobre a possibilidade de um “novo mundo” aconteceu
em grande parte no quadro do pensamento humanista que prevaleceu no
ocidente durante os últimos três séculos. O fato de que entre os primeiros
escritos afro americanos se encontram numerosas autobiografias é, nesse
ponto de vista, revelador4. Não é verdade que dizer “eu” é a primeira
palavra de uma fala pela qual o humano procura se fazer existir como tal?
Significativo é, por outro lado, o lugar que ocupa a fala religiosa na
narrativa e interpretação de sua história. Nas condições de terror, de
empobrecimento e de morte social que foi a escravidão, recorrer ao
discurso teológico para se dizer e dizer seu passado tem que ser
entendido, por parte de uma comunidade aviltada e marcada pelo selo da
mancha, como uma tentativa de cobrança de uma identidade moral5.
Desde então, por entroncamentos sucessivos, essa reflexão continuou se
interrogando sobre as condições de formação de um mundo
propriamente humano que o sujeito bancaria para si, a partir de um ideal
de onde a vida puxaria a sua resiliencia6.
Impasses do humanismo
Esse esforço de auto explicação e de auto compreensão terá ressaltado
duas coisas. Primeiro – e não é inútil lembrar- a história dos Negros não é
uma história a parte. Ela faz parte integrante da história do mundo.

4 Andrews William, to tell a free story. The first century of african american autobiography, 1760-1865,
university of Illinois press, urbana, 1986

5 Jonh Ernest, liberation historiography. African american writers and the challenge of history, 1794-
1861, university of north carolina press, chapel hill, 2004

6 ver, nessa perspectiva, Alexander Crummell, destiny and race. Selected writings, 1840-1898, the
university of massachusetts press, amherst, 1992; Edward W Blyden, christianity, islam and the negro
race, black classic press, Baltimore, 1978 (1887). Ver também Leopold Sédar Senghor, liberte I.
negritude et humanisme, seuil, paris, 1964; Paul Gilroy, against race. Imagining political culture beyond
the color line, Harvard university press, Cambridge, ma, 1998; Fabien Eboussi-Boulaga, la crise du
muntu.authenticité africaine et philosophie, presence africaine, paris 1981.

136
P143
Dessa história do mundo, os Negros são herdeiros ao mesmo título que o
resto do gênero humano7. Por outro lado, se ao seguir o rastro de suas
origens longínquas, somos levados quase que inevitavelmente para a
África, sua estadia no mundo, ao contrário, se deu no modo do
deslocamento, da circulação e da dispersão 8. Porque o movimento e a
mobilidade constituíram fatores estruturantes de sua experiência
histórica, os Negros hoje estão disseminados na superfície da Terra. Pois
então, não há mais passado do mundo (ou de uma região do mundo) que
não deva responder também do passado dos Negros assim como não há
mais passado dos Negros que não deva tomar conta da história do mundo
no seu conjunto. Assim os Negros fazem parte do passado do Ocidente,
mesmo se a sua presença na consciência que este tem de si
frequentemente só é tomada no modo do pavor, da negação e do
apagamento9. Ao tratar da América, James Baldwin afirma a respeito disso
que os Negros não são estranhos à história do Novo Mundo, que
contribuíram a construir, e que acompanharam durante toda sua
trajetória. Eles são sujeitos constituintes dela, mesmo se, no Negro, figura
do fora absoluto, o Novo Mundo não reconhece seu “proprio”10. Ao se
apoiar no trabalho de numerosos historiadores, Paul Giroy por sua vez
mostra a sua implicação na emergência do mundo moderno que termina
de se estruturar em torno do Atlântico no início do século 18.11.
Junto com numerosos rejeitos da humanidade (expropriados do
fechamento das comunidades, piões e criminosos deportados,
marinheiros apressados a bordo de marinhas mercantes ou militares,
reprovados de seitas religiosas radicais, piratas e aventureiros,
insubmissos e desertores de todos os nomes), eles são encontrados ao
longo das novas rotas comerciais, dos portos, nos navios, em todo canto

7 Frantz Fanon, oeuvres op.cit

8 no lado atlântico, ver Jonh Thornton, africa and africans in the making of the atlantic world 1400-1680,
Cambridge university press, Cambridge, 1992

9 Ralph Ellison, invisible man, random house, new York, 1952

10 James Baldwin, the fire next time, vintage books, new York, 1963

11 Paul Gilroy, l´atlantique noir..., op.cit

137
P144
em que tem que fazer as florestas recuar, produzir tabaco, cultivar
algodão, cortar cana, fabricar aguardente, transportar lingotes, peles,
peixe, açúcar e outros produtos manufaturados 12.
Verdadeiros “sustentos” da modernidade, em conjugação com a multidão
do outros anônimos, os escravos africanos estão no coração das forças
praticamente cósmicas liberadas pela expansão colonial europeia no
alvorecer do século 17 e pela industrialização das metrópoles atlânticas do
início do século 19. 13. Se a sua inscrição no curso moderno da história
humana se efetua sob o véu do anonimato e do apagamento, ela guarda
mesmo assim uma tripla dimensão planetária, heteróclita e poliglota que
vai marcar profundamente as suas produções culturais14.
Se a dimensão planetária do fato negro está mais ou menos admitida,
colocar a “questão negra” no quadro e nos termos do pensamento
humanista ocidental continua suscitando numerosas críticas – algumas
internas, outras externas. Seja Cesaire ou Fanon, a crítica interna tende a
colocar o dedo sobre a pulsão de morte e a vontade de destruição que
obram até no interior do projeto humanista ocidental notadamente
quando este é sufocado pelos meandros da paixão colonialista e racista15.
De forma geral, para eles como para Senghor ou Glissant, nunca se trata
de repudiar de uma vez por todas a ideia do “homem” como tal.
Frequentemente, se trata de

12 ver por exemplo Sidney mintz, op.cit; Seymour Shapiro, capital and the cotton industry in the
industrial revolution, cornell university press, ithaca, 1967; Jonh Hebron Moore, the emergence of the
cotton kingdom in the old southwest. Mississipi, 1770-1860, university of louisiana press, baton rouge,
1988

13 Markus Rediker e Peter Linebaugh, l´hydre aux mille tetes. L´histoire cachée de l´atlantique
revolutionnaire, editions Amsterdam, paris, 2009

14 ver Peter Mark, portuguese style and luso-african identity. Precolonial senegambia, sixteenth-
nineteenth centuries, indiana university press, bloomington, 2002; J. Lorand Matory, black atlantic
religion.tradition, transnacionalism and matriarchy in the afro brasilian candomblé, Princeton university
press, Princeton, 2005; e David Northrup, africa´s Discovery of europeu, 1450-1850, Oxford university
press, Oxford, 2009.

15 Aimé Césaire, discours sur le colonialisme, op.cit

138
P145
colocar o dedo sobre os impasses do discurso ocidental sobre o “homem”
no objetivo de responsabiliza-lo no intuito de uma reparação16. O discurso
consiste então, ou em insistir sobre o fato que o humano é menos um
nome do que uma práxis e um devir (Winter)17; ou em apelar para uma
nova humanidade mais “planetária” (Gilroy), para uma poética da Terra e
para um mundo feito da carne de Todos (Glissant) e no seio do qual cada
sujeito humano poderia novamente ser portador de sua palavra, de seu
nome, de seus atos e se seu desejo.
A crítica externa se apresenta, por sua vez, sob duas versões. A primeira,
afrocentrista, procura desmistificar as pretensões universalistas do
humanismo ocidental e colocar os fundamentos de um saber que
encontraria na própria história da África a suas categorias e conceitos.
Nessa perspectiva, a noção de humanismo só constituiria, em última
análise, numa estrutura de apagamento da profundidade histórica e da
originalidade negra. Sua função seria de se arrogar o poder de falar e
definir, no lugar dos outros, de onde vêm, o que eles são, e para onde
devem ir. O humanismo seria um mito que não quer dizer o próprio
nome18. Como mitologia, ele seria completamente indiferente à falsidade
de seus próprios conteúdos. Daí, para Cheik Anta Diop em particular, a
vontade de barrar as mitologias europeias por outras supostamente mais
verídicas e suscetíveis de abrir caminhos para outras genealogias do
mundo19. Mas se o afrocentrismo formula a questão do humanismo a
partir de uma dívida eventual de civilização que o mundo deveria à África,
essa corrente não deixa de preconizar o que Diop chama de “progresso
geral da humanidade”,

16 ver desse ponto de vista Leopold Sedar Senghor, op.cit; Edouard Glissant, traité du Tout-Monde,
gallimard, paris1997; et Paul Gilroy, against race, op.cit

17 David Scott, the re-enchantment of humanism. Na interview of Sylvia Wynter, smaal axe, n8,
septembre 2000, p119-207; e Sylvia Wynter, humanbeing as noun? Or beings human as práxis? Towards
the poetic turn/overturn. A manifesto, 25 aout 2007 (disponível em http://fr.slideshare.net)

18 Cheikh Anta Diop, nations negres et cultures, presence africaine, paris 1954

19 Cheikh Anta Diop, anteriorité des civilisations negres. Mythe ou verité historique? Presence africaine
paris 1967.

139
P146
de “triunfo da noção de especie humana” e de “eclosão de uma era de
entendimento universal”20.
O Outro do humano e genealogias do objeto
A segunda objeção – aquela que observaremos em especial – emana da
corrente chamada afrofuturista. O afrofuturismo é um movimento
literário, estético e cultural que emerge na diáspora durante a segunda
metade do século 20. Ele combina ficção-científica, reflexões sobre a
tecnologia em suas relações com as culturas pretas, realismo mágico e
cosmologias não europeias no objetivo de interrogar o passado dos povos
ditos de cor e sua condição no presente21. Ele rejeita de uma vez o
postulado humanista na medida em que o humanismo só pode se
constituir por uma relegação de qualquer outro sujeito ou entidade (viva
ou inerte) ao estatuto mecânico de objeto ou acidente.
O afrofuturismo não se contenta em denunciar as ilusões do
“propriamente humano”. Para ele, é a ideia de especie humana que é
posta em cheque pela experiência negra. Produto de uma história da
predação, o Negro de fato, é esse humano que foi forçado a vestir as
roupas da coisa e partilhar o destino do objeto e da ferramenta. Dessa
forma, ele carregaria dentro dele o túmulo do humano. Ele seria o
fantasma que habita o delírio humanista ocidental. O humanismo
ocidental seria então um tipo de cova habitada pelo fantasma daquele
que foi forçado a partilhar o destino do objeto.
Graças à essa releitura, a corrente afrofuturista declara que o humanismo
de agora em diante é uma categoria obsoleta. Se a questão é nomear de
forma adequada a condição contemporânea, sugerem seus porta-vozes,

20 ibid, ver também civilisation ou barbárie, presence africaine, paris 1981

21 ver, por exemplo, a produção fantástica de Samuel R Delany e Octavia Butler. Ver também as telas de
Jean Michel Basquiat, as fotografias de Renée Cox e ouvir as traduções musicais de mitos extraterrestres
nas produções de Parliament- Funkadelic, Jonzun Crew e Sun Ra. Para uma introdução geral, ver Alondra
Nelson (dir.) Afrofuturism. A special issue, social text, n71, 2002.

140
P147
será preciso fazê-lo a partir de todas as assemblagens de objetos-
humanos e de humanos-objetos dos quais o Negro é, desde o advento dos
Tempos Modernos, o protótipo ou a prefiguração22. Pois, desde a irrupção
dos Negros no palco do mundo moderno, não há mais “humano” que não
participe de cara do “não-humano”, do “mais-que-humano”, do “além-do-
humano” ou do “fora-do-humano”.
Em outras palavras, do humano, só se poderia falar no futuro e sempre
acoplado ao objeto, doravante seu duplo, ou ainda seu sarcófago. Desse
futuro, o Negro seria a prefiguração no sentido em que ele remete, pela
sua história, à ideia de um potencial de transformação e de plasticidade
quase infinito23. Se apoiando na literatura fantástica, na ficção-científica,
na tecnologia, na música e nas artes performáticas, o afrofuturismo
procura reescrever essa experiência negra do mundo em termos de
metamorfoses mais ou menos contínuas, de inversões múltiplas, de
plasticidade inclusive anatômica, de corporeidade se for preciso
maquinica24.
A Terra sozinha não poderia ser o lugar de moradia único dessa forma
futura do vivo da qual o Negro é a prefiguração. No fundo, a Terra na sua
configuração histórica não terá sido mais do que uma vasta prisão para
esse homem-metal, esse homem-prata, esse homem-madeira e esse
homem-liquido destinado à uma transfiguração infinita. Nave ao mesmo
tempo metamórfica e plástica, seu lar só poderia ser, em última instancia,
o Universo inteiro. À condição terrestre se substituiria, assim, a condição
cósmica, o palco da reconciliação entre o humano, o animal,

22 Kodwo Eshun, more brilliant than the sun. Adventures in sonic fiction, quartet books, Londres, 1999.

23 ver os trabalhos de autores tao diversos como Alexander Welehiye, phonographies. Grooves in sonic
afro-modernity, duke university press, durham, 2005; Fred Moten, in the break. The aesthetics of the
black radical tradition, university of minnesota press, minneapolis, 2003; Kodwo Eshun, op.cit.

24 ver em especial Alondra Nelson, op.cit; Ytasha L. Womack, afrofuturism, the world of black Science
fiction and fantasy culture, chicago review press, chicago 2013; Bill Campbell e Edward Austin hall,
mothership, tales for afrofuturism and beyind, rosarium, publishing, 2013; Sheree R Thomas, Dark
Matter. A century of speculative fiction from the african diáspora, warner books, new York, 2000.

141
P148
o vegetal, o orgânico, o mineral e todas as outras forças do vivo, sejam
solares, noturnas ou astrais.
O repudio afrofuturista da ideia do “homem” que decorre da
modernidade pode surpreender. Não confortaria, no fim das contas, as
tradições de pensamento que prosperaram sobre a ideia da negação
flagrante da humanidade negra? Seria esquecer que, desde o advento dos
Tempos modernos, somos habitados pelo sonho de nos tornarmos
mestres e possuidores de nós mesmos e da natureza. Era necessário, para
realizar essa façanha, conhecermo-nos, conhecer a natureza e conhecer o
mundo. A partir do final do século 17, começaram a pensar que, para um
bom conhecimento de nós mesmos, da natureza e do mundo, tinha que
unificar a integralidade das áreas do saber e desenvolver uma ciência da
ordem, do cálculo e da medida que permitisse traduzir os processos
naturais e sociais em formulas aritméticas 25.
Como tornaram a álgebra o meio pelo qual modelizavam a natureza e a
vida, gradualmente, uma modalidade do conhecimento se impôs que
consistia essencialmente em tornar o mundo plano, ou seja homogeneizar
o conjunto do vivo, tornar seus objetos intercambiáveis e manipuláveis ao
bel prazer 26. Achatar o mundo terá sido portanto, durante vários séculos,
o movimento que terá governado boa parte do saber e do conhecimento
modernos.
Esse movimento de achatamento terá acompanhado, em graus diversos e
com consequências incalculáveis, o outro processo histórico típico dos
Tempos modernos, ou seja, a constituição de espaços-mundos sob a égide
do capitalismo. A partir do século 15, o hemisfério ocidental age como o
motor privilegiado dessa nova aventura planetária. Ela é propulsada pelo
sistema mercantilista escravagista.

25 ver Earl Gammon, nature as adversery. The rise of modern conceptions of nature economic thought,
economy & society, vol 38, n 2, 2010, p 218-246.

26 Marie Noelle Bourguet e Christophe Bonneuil, de l´inventaire du globe à la mise em valeur du


monde: botanique et colonisation (fin xviii siecle, debut xx siecle) revue française d´histoire d´outre mer,
vol 86, n 322-323, 1999.

142
P149
Sobre a base do comercio triangular, o conjunto do mundo atlântico é
reestruturado; os grandes impérios coloniais das Américas nascem ou se
consolidam e uma nova época da história da humanidade começa.
Duas figuras emblemáticas marcam esse novo ciclo histórico: primeiro, a
figura sombria, a do escravo negro (durante o período mercantilista que
chamamos de “primeiro capitalismo”); depois a figura solar e em brasa do
operário e, por extensão, o proletariado (durante a fase industrial cujo
nascimento temos que situar entre 1750 e 1820). Os estudos que
mostram os metabolismos ecológicos (matéria, energia) implicados nas
“caças ao homem” sem as quais o tráfico transatlântico teria sido
impossível ainda estão engatinhando 27.
De maneira mais precisa, os escravos são o produto de uma dinâmica de
predação no seio de uma economia onde a formação do lucro em uma das
costas do Atlântico depende estreitamente de um sistema combinando
arrastões, guerras de captura e diversas formas de “caça ao homem” na
outra costa28. Na época do tráfico dos Negros, o capitalismo funciona na
base de extração e do consumo do que poderia ser chamado de um bio-
estoque ao mesmo tempo humano e vegetal.
Os desregulamentos ecológicos consequentes da vasta punção humana e
seu cortejo de violências não foram, até agora, objeto de nenhum estudo
sistemático. Mesmo assim, as plantações do Novo Mundo não poderiam
ter funcionado sem o uso massivo dos “sois ambulantes” que eram os
escravos africanos. Inclusive depois da revolução industrial, esses
verdadeiros fosseis humanos continuaram servindo de carvão para a
produção da energia e do dinamismo necessários à transformação
econômica do Sistema Terra29.

27 para o período colonial, ver por exemplo Richard H. Grove, green imperialism, colonial expansion,
tropical islands and the origins of environmentalism, 1660-1860, Cambridge university press, Cambridge,
1995

28 ver Randy J. Sparks where the negroes are másters. an african port in the era of the slave trade,
Harvard university press, Cambridge, ma, 2014

29 Richard H. Steckel, a peculiar population. The nutrition, health and mortality of US slaves from
childhood to maturity. Jornal of economic history, vol 46, n 3, 1986, p 721-741.

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P150
Essas predações multiformes exigiam naturalmente a mobilização e a
despesa de enormes capitais. Por sua vez, os proprietários de escravos
podiam extrair deles um trabalho por um custo relativamente reduzido já
que se tratava de um trabalho não remunerado. Eles podiam também,
quando a ocasião se apresentava, revendê-los para terceiros. O caráter
separável e transferível do escravo fazia dele um bem privado suscetível
de uma avaliação monetária ou de uma troca mercante 30.
Os mundos dos escravos no seio da economia atlântica se caracterizam
contudo por inúmeros paradoxos. Por um lado, apesar de úteis no
processo de captação dos lucros, os escravos, por causa de seu
aviltamento são alvo de uma profunda desvalorização simbólica e social.
Forçados a partilhar o destino do objeto, nem por isso deixam de ser seres
humanos em sua natureza. Eles tem um corpo. Eles respiram. Eles andam.
Eles falam, cantam e rezam. Alguns aprendem, as vezes em segredo, a ler
e escrever31. Eles ficam doentes e em torno das práticas de cura, se
esforçam em refundar, apesar das forças de fragmentação, uma
comunidade de restabelecimento da saude 32. Eles fazem a experiência da
falta, da dor e da tristeza. Eles se revoltam quando não aguentam mais, e
a insurreição dos escravos é um motivo de terror absoluto para seus
mestres.
Por outro lado, apesar de profundamente manchados e estigmatizados,
esses seres humanos naturais constituem reservas de valor aos olhos de
seus proprietários. Assim como o dinheiro ou as mercadorias, eles servem
de médium para todo tipo de transações econômicas e sociais. Objetos
moveis e matéria estendida, eles têm o estatuto daquilo que circula, em
que se investe, e que

30 Michael Tadman, speculetors and slaves. Másters, traders, and slaves in the old South, university of
wisconsin press, Madison, 1989; Laurence J. Kotlikoff, quantitative description of the new orleans slave
Market, in william fogel e Stanley L. Engerman (dir), without consent or contract. The rise and fall of
american slavery, W.W. Norton &cie, new York, 1989; e Maurie McInnis, slaves waiting for sale.
Abolitionist art and the american slave trade, chicago university press, chicago, 2011.

31 Christopher Hager, word by word. Emancipation and the act of writing, Harvard university press,
Cambridge, ma, 2013.

32 Sharla M Fett, working cures, health, and power in Southern slave plantations, university od north
carolina press, chapel hill, 2002.

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P151
se gasta33. Os mundos escravagistas são por esse ângulo, mundos onde a
produção da matéria se efetua por meio da carne viva e do suor dos dias.
Essa carne viva tem valor econômico que pode ser, ocasionalmente,
medido e quantificado34. Um preço pode lhe ser atribuído. A matéria
produzida com o suor da fronte dos escravos também tem um valor ativo
na medida em que o escravo transforma a natureza; converte a energia
em matéria; é, ele próprio, ao mesmo tempo uma figura material e uma
figura energética. Os escravos são, desse ponto de vista, mais do que
simples bens naturais para o gozo do mestre, dos quais ele tira proveito
ou que ele pode revender sem restrição no mercado. Ao mesmo tempo, o
que os distingue de todos os outros, é a sua alienabilidade natural. Essa
alienabilidade natural, é no princípio de raça que tem que procurar sua
justificativa35.
O mundo zero
Por outro lado, a vida sob o signo da raça sempre foi como o equivalente
de uma vida num zoológico. Nas pratica, dois ou três procedimentos estão
na base da constituição de um zoológico. Primeiro capturar, prender e
engaiolar animais. Eles são subtraídos do seu ambiente natural por
homens, que ao pega-los, não os matam, mas lhes designam um vasto
cercado subdividido, se necessário, em vários miniecossistemas. Nesse
espaço de trancamento, os animais são privadas de uma parte importante
dos recursos que ofereciam à sua vida suas qualidades naturais e sua
fluidez. Eles não podem mais circular livremente. Para se alimentar, eles
dependem agora inteiramente daqueles que são prepostos aos seus
cuidados cotidianos.
Segundo, os animais assim cativos são objeto de uma proibição implícita.
Só poderiam ser mortos em circunstancias excepcionais e quase nunca
para fins de consumo direto.

33 Edward E Baptist, the half has never been told. Slavery and the making of american capitalismo, basic
books, new York, 2014.

34 Caroline Oudin Bastide e Philippe Steiner, calcul et morale. Couts de l´esclavage et valeur de
l´emancipation (xviii-xix siecles), albin michel, paris 2014.

35 Achille Mbembe, critique de la raison negre, op.cit.

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Seu corpo perde assim os atributos da carne. Nem por isso é transformado
em pura carne humana. Terceiro, os animais cativos não são submetidos à
um regime estrito de domesticação. Um leão no zoológico não é tratado
como um gato. Ele não partilha da intimidade dos homens. Já que o
zoológico não releva da esfera doméstica, a distância entre homens e
animais é mantida. É essa distância que autoriza a exibição. Essa de fato só
faz sentido se for na separação que existe entre o espectador e o objeto
exibido. No mais, o animal vive um estado de suspensão. De agora em
diante, ele não é mais nem isso nem aquilo.
Os negros exibidos nos zoológicos humanos no Ocidente ao longo da
história não eram nem animais nem objetos. Durante a exibição, sua
humanidade era suspensa. Essa vida em suspensão entre o animal e seu
mundo, o mundo dos homens e o mundo dos objetos ainda é, em vários
aspectos, a lei de nosso tempo, a da economia. Ora, seria possível que a
economia – toda a economia- se resume finalmente à esses dois gestos, a
caça e a colheita, e que, apesar das aparências, nunca tenhamos saído
verdadeiramente disso.
Na economia antiga, caçar e colher não eram só duas categorias das
atividades cujo objetivo era satisfazer as necessidades dos seres humanos.
Se tratava também de dois modos de relação consigo e com os outros, e
também a natureza, os objetos e outras espécies, vivas ou não. Assim, em
particular, a relação com os mundos animal e vegetal. Esses eram
percebidos como entidades exteriores sujeitadas a vontade dos homens e
que eles se apropriavam na medida de sua disponibilidade. Iam compondo
com elas se fosse preciso, mas não se duvidava em lutar contra elas em
caso de necessidade, e até, na ocasião, em destruí-las pura e
simplesmente.
A destruição não acontecia de uma vez. Ela era uma cadeia com múltiplos
estágios. No caso dos animais pegos numa armadilha ou abatidos no
momento da caça, o esfolamento seguia a captura. Essa operação era
necessária para transformar o animal em carne que era consumida crua
ou ao sair da prova de fogo (cozimento). Devorar, digerir, excretar
acabavam o processo de consumo.

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P153
O paradigma da caça e da colheita não é próprio da economia primitiva.
No fundo, toda economia – a economia capitalista em particular -
conservou um quê de primitivismo que constitui a sua mola escondida, e,
as vezes, manifesta. A destruição ou o aniquilamento são alias seu
momento chave, a condição de possibilidade, tanto quanto a criação de
ferramentas, a invenção de novas técnicas e sistemas de organização, os
ciclos de acumulação. São o ultimo estagio no final da cadeia, antes que o
ciclo, eventualmente, recomece.
Diziam que sob o antigo regime da caça e da colheita como nos sistemas
econômicos modernos, destruir é incontornável – uma condição para a
reprodução da vida social e biológica. Mas dizer destruir ou aniquilar é
primeiro acenar para o confronto entre o homem e a matéria – a matéria
física e orgânica, a matéria biológica, liquida e fluida, a matéria humana e
animal, feito carne, osso e sangue, a matéria vegetal e mineral. Também é
pensar no confronto com a vida – a vida dos homens, a vida da natureza, a
vida dos animais e a vida da máquina. No trabalho necessário para a
produção da vida – trabalho que inclui igualmente a produção dos
símbolos, das linguagens e dos significados. Nos processos pelos quais,
capturados pela máquina, os seres humanos são transformados em
matéria – a matéria do homem e o homem da matéria. Nas condições de
seu desagregação também.

Esse desagregação da vida e da matéria não é o equivalente da morte. É


um desdobramento para um fora extremo que chamaremos de mundo
zero. Nesse mundo zero, nem a matéria nem a vida terminam como tais.
Elas não retornam a nada. Apenas seguem um movimento de saída na
direção de outra coisa. Já que a cada vez o fim é diferido e a própria
questão da finitude suspensa. O mundo zero é um mundo cujo advir é
difícil de desenhar justamente porque o tempo que o tece nem se deixa
captar pelas categorias tradicionais do presente, do passado e do futuro.
Nesse mundo de escombros e de tonalidade crepuscular, o tempo oscila
constantemente entre seus diferentes segmentos.

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P154
Diversos tipos de trocas ligam termos que somos acostumados a opor. O
passado está no presente. Não passa na frente necessariamente. Mas as
vezes, ele se retrai, as vezes se imiscui nos interstícios, quando
simplesmente não sobe à superfície do tempo que ele assalta com sua
atmosfera acinzentada, que ele tenta saturar, deixar ilegível. O carrasco
está na vítima. A imobilidade está no movimento. A palavra está no
silencio. O início está no fim, e o fim está no meio. E tudo, ou quase tudo,
é entrelaçamento, inacabamento, dilatação e contração.
É igualmente um mundo que carrega na sua carne e nas suas veias os
cortes da máquina. Fendas, abismos e tuneis. Lagos de cratera. A cor da
terra as vezes ocre, as vezes vermelho ferroso, as vezes acobreada. Os
cortes, os nivelamentos, a superposição, o jogo de profundidades. O azul
áspero das aguas imóveis onde não aflora nenhuma onda, como se já
estivessem mortas. A estrada que segue a trilha íngreme nessa paisagem
lunar. Homens-formigas, homens-cupins, homens vermelho ocre que
cavam de enxada a ribanceira; que se enfiam nesses tuneis da morte; que,
num gesto de auto sepultamento, se unem no corpo e na cor a esses
sepulcros de onde extraem o mineral. Vão e vem, que nem formigas e
cupins, carregando na cabeça ou nas costas o peso da carga, corpo e pés
na lama. E na superfície, altas fornalhas e chaminés, e depois túmulos, dos
quais não se sabe se são pirâmides ou mausoléus, ou um dentro do outro.
Algo, com toda certeza, foi extraído do solo e foi esmagado aqui, nas
tripas da máquina. Maquina-de-dente. Maquina-intestino-grosso.
Maquina-anus-que-engole-e-mastiga-e-digere-a-rocha, deixando atrás
dela os rastros de sua monumental defecação. Ao mesmo tempo, um
amontoado de ferro e de aço. Tijolos vermelhos, galpões desertados,
desmontados peça por peça e despidos por homens-formiga, homens-
cupim. Oficinas agora em pé, ornadas de suas ferragens e semelhantes à
um campo de esqueletos. Enormes maquinas cegas, enferrujadas pelas
intempéries, marcos de um passado ocioso,

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P155
que doravante é impossível repetir, mas da mesma forma parece difícil
esquecer.
Mas a máquina ficou velha e virou trapo, coto, esqueleto, estatua,
monumento, estela, quiçá espectro. Hoje, esse mundo da máquina que
corta, perfura e extrai desabou. Não existe mais, a não ser sob o signo da
vacuidade. Contudo, na sua verticalidade, a máquina decrepita continua
dominando o cenário, por cima dele com sua massa e seu selo, num tipo
de potência ao mesmo tempo fálica, xamánica e diabólica – o arqui-rastro
em sua pura facticidade. Para captar essa tripla potência fálica, xamanica e
diabólica, o artista torna a botar no palco diversas figuras da sombra,
testemunhas sem testemunha, figuras-epitáfios de uma época que tarda
em desaparecer.
Nesse teatro da aparição, homens acorrentados, cativos descalços,
serviçais, carregadores, pessoas quase nuas, o olhar vago, emergem da
noite das caravanas escravagistas e dos trabalhos forçados sob a colônia.
Eles nos convidam a reviver a cena traumática, como se o pesadelo de
ontem de repente se repetisse, se reproduzisse na realidade do presente.
Cabe a eles, nessa cena desertada apenas em aparência, dar a voz outra
vez à um som, à uma língua, à palavras que dão a impressão de ter se
calado, de terem sido reduzidas ao silencio, da mesma forma que a voz
dos escravos.
Antimuseu
Por “escravo”, se entende uma palavra genérica que cobre diversas
situações e contextos que historiadores e antropólogos descreveram bem.
O complexo escravagista atlântico, no coração do qual se encontra o
sistema da plantação nos Caribes, Brasil ou Estados Unidos, foi um elo
manifesto na constituição do capitalismo moderno. Esse complexo
atlântico não produziu nem o mesmo tipo de sociedades nem os mesmos
tipos de escravos que o complexo islamo-trans-saariano. E se tem uma
coisa que distingue os regimes de escravidão transatlântica das formas
autóctones da escravidão nas sociedades africanas pré-coloniais, essa
coisa é o fato

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dessas ultimas nunca terem conseguido extrair de seus cativos uma mais
valia comparável àquela que se obteve no Novo Mundo.
O interesse vai se dirigir então em especial para o escravo do Novo
Mundo, aquele cuja particularidade foi ser uma das engrenagens
essenciais de um processo de acúmulo em escala planetária.
Porém não é desejável que essa figura – ao mesmo tempo esterco e limo
da história – entre no museu. Aliás, não existe nenhum museu suscetível
de acolhê-lo. Até hoje, a maioria das tentativas cujo objetivo é encenar a
história da escravidão transatlântica nos museus existentes brilharam pela
sua vacuidade. Lá, o escravo aparece, na melhor das hipóteses, como um
apêndice da história de outro; uma citação no rodapé de uma página
dedicada a outra pessoa, outros lugares, outras coisas. Pois se o escravo
entrasse verdadeiramente no museu como ele existe hoje em dia, esse
museu deixaria automaticamente de ser um museu. Ele assinaria seu
próprio fim e seria preciso, então, transforma-lo em outra coisa, outro
lugar, outra cena, com outras disposições, outras designações, quiçá outro
nome.
Porque, apesar das aparências, o museu, historicamente, nem sempre foi
um local de acolhimento sem condições dos múltiplos rostos da
humanidade considerada em sua unidade. Pelo contrário, o museu terá
sido, desde a idade moderna, um poderoso dispositivo de segregação. A
exibição das humanidades sujeitadas ou humilhadas sempre obedeceu
algumas regras elementares da ferida e da violação. E alias, nesses
lugares, essas humanidades nunca tiveram direito ao mesmo tratamento,
estatuto e à mesma dignidade que as humanidades conquistadoras.
Sempre terão sido submetidas à outras regras de classificação e outras
lógicas de apresentação. Além dessa lógica de separação, ou de seleção,
sempre se acrescentaram aquelas da assinação. A convicção primeira é
que já que diferentes formas de humanidades produziram diferentes
objetos e diferentes formas de cultura, elas deveriam ser conservadas e
exibidas em lugares distintos dotados de estatutos simbólicos diferentes e
desiguais. A entrada do escravo em tal museu consagraria duplamente o
espirito de apartheid que está na fonte desse culto da diferença, da
hierarquia e da desigualdade.

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E ainda, umas das funções do museu terá sido também a produção de
estatuas, de múmias, de fetiches – justamente objetos privados de seu
sopro e devolvidos à inercia da matéria. Estatuaficação, momificação e
fetichização se situam em linha reta da lógica de segregação evocada mais
cedo. No caso, geralmente não se trata de oferecer paz e descanso ao
signo que abrigou a forma por muito tempo. Antes disso, terão expulsado
o espirito que há atrás da forma, como é o caso com os crânios colhidos
durante as guerras de conquista e de “pacificação”. Para conquistar o
direito de ser citado no museu como ele se apresenta hoje, o escravo
deveria, como todos os objetos primitivos que o precederam, ser
esvaziado de sua força e energia primaria.
A ameaça que essa figura-esterco e essa figura-limo poderiam
representar, ou ainda seu potencial escandaloso, seria domada, condição
preliminar à sua exibição. Desse ponto de vista, o museu é um espaço de
neutralização e domesticação de forças que, antes de sua museificação,
eram vivas – fluxos de potência. Isso ainda é o essencial de sua função
cultual notadamente nas sociedades descristianizadas do Ocidente. É
possível que essa função (que é também política e cultural) seja necessária
para a sobrevivência da mesma sociedade, assim como a função do
esquecimento na memória.
Ora, justamente, teria que conservar a potência de escândalo do escravo.
Essa potência se origina, paradoxalmente, no fato de que se trata de um
escândalo que se recusam em reconhecer como tal. Inclusive, na recusa
em reconhece-lo como tal, é esse escândalo que confere à essa
humanidade seu poder insurrecional. É para conservar o poder de
escândalo desse escravo que ele não deveria entrar no museu. O convite
da história da escravidão atlântica, é fundar uma nova instituição que
seria o antimuseu.
O escravo tem que continuar assombrando o museu, na sua forma atual,
pela sua ausência. Deveria estar em todo canto e lugar nenhum, suas
aparições acontecendo sempre no modo da efração e nunca da
instituição. É assim que conservarão a dimensão espectral do escravo.
Também é assim que impedirão que sejam tiradas conclusões fáceis a
respeito do evento abominável que foi o tráfico de escravos.

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Quanto ao antimuseu, ele não tem nada de uma instituição, mas é a figura
de outro lugar, o da hospitalidade radical. Local de refúgio, o antimuseu se
concebe também como um lugar de descanso e asilo incondicional para
todos os dejetos da humanidade e os ”famélicos da terra”, aqueles que
testemunham do sistema sacrificial que foi a história de nossa
modernidade – história que o conceito de arquivo tem dificuldade em
conter.
Autofagia
Porque ainda ligado ao passado e necessariamente envolvido numa
história de memória, todo arquivo de fato tem algo da fenda. É ao mesmo
tempo passagem, abertura e separação, estalo e fratura, rachadura e
disjunção, cratera e fissura, quiçá laceração. Mas o arquivo é sobretudo
uma matéria divisível cujo próprio é em sua essência, ser feito de cortes.
De fato só tem arquivo com suas fissuras. Sempre entram nele como que
por uma porta estreita, na esperança de penetrar profundamente na
espessura do evento e suas cavidades. Penetrar a matéria arquivista, é
revisitar rastros. Mas é principalmente cavar na própria ribanceira. Esforço
arriscado já que, no nosso caso, muitas vezes se tratou de fazer memoria
fitando obstinadamente sombras, mais do que eventos reais, ou melhor,
eventos históricos afogados na força da sombra. Frequentemente, foi
preciso desenhar, sobre rastros preexistentes, nossa própria silhueta;
capturar os contornos da sombra, e tentar nos enxergar a partir da
sombra, como sombra.
Por vezes, o resultado é surpreendente. Eis que estamos representados
num quadro, atirando uma bala na cabeça. Em seguida, somos
transformados em criança da Etiópia no zênite da fome que levou milhões
de vidas humanas. Estamos prestes e ser devorados por um carniceiro que
não é mais do que nós mesmos. Autofagia, seria a palavra. E não é tudo.
Negro no Sul dos Estados Unidos na época da segregação racial, a corda
no pescoço, eis que estamos pendurados na arvore, sozinho, sem
testemunha, a mercê dos urubus. Nos esforçamos para encenar uma
infigurabilidade que pretendemos apresentar como constitutiva, não de
nossa pessoa mas ao menos do nosso personagem.

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Através de todos esses gestos, passamos alegremente por cima do tempo
e das identidades, excisemos a história e nos colocamos firmemente dos
dois lados do espelho. Ao fazer isso, não procuramos apagar esses rastros
anteriores. Procuramos assaltar o arquivo prendendo sobre esses rastros
do passado nossas múltiplas silhuetas. Porque, por ele mesmo, o arquivo
não produz necessariamente visibilidade. O que o arquivo produz, é um
dispositivo especular, uma alucinação fundamental e geradora de
realidade. Ora, as duas fantasias originarias criadoras de realidade, são de
fato a raça e o sexo. E se trata fortemente dos dois nos processos que
levaram a nossa racialização.
É o caso, em especial, do corpo da Negra. Para entender seu significado,
talvez seja importante lembrar que ser preta, é ser colocada forçosamente
do lado daquelas que não são enxergadas, mas que, mesmo assim,
sempre se sentem autorizados em representar. Não enxergam os Negros,
e em particular as Negras, porque acham que não tem nada de
interessante para ver, e que, no fundo, não se tem nada a ver com eles.
Não são dos nossos. Contar histórias a respeito daqueles e daquelas que
não se enxerga, desenha-los, representa-los ou fotografa-los foi, ao longo
da história, um ato de autoridade suprema, a manifestação por excelência
da relação sem desejo.
Ao contrário dos corpos negros pegos no ciclone do racismo e tornados
invisíveis, nojentos, sangrentos e obscenos pelo olho colonial, nossos
corpos são pudicos sem sê-lo. É o caso na poesia de Senghor. Corpos
plásticos e estilizados, eles brilham pela sua beleza e o caráter gracioso de
suas linhas. Não precisa de metáfora, nem quando eles estão quase
desnudos, ou colocados sob o signo da sensualidade. Quase que maroto, o
poeta deliberadamente procura pegar o instante em que aqueles e
aquelas que se arriscam em olha-lo baixam a guarda.
As imagens de corpos, de corpos negros, convidam de fato à um fogo
cruzado de sentimentos. Para aquele que as olha, elas convidam as vezes
ao jogo da sedução, outras vezes à uma ambiguidade fundamental, e até

153
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à repulsa. Será que a pessoa que olham é exatamente a mesma, e sob
todos os ângulos? Olham ela, mas será que a vêm realmente? O que
significa essa pele preta da superfície escorregadia e reluzente? Esse corpo
oferecido ao olhar dos outros, observado por todos os lados, e que se
colocou no corpo dos outros, que hora será que ele passou do eu ao
estatuto de objeto? Em que esse objeto é o signo de um prazer proibido?
Por outro lado, e ao contrário de seus rastros anteriores, que elas se
esforçam em habitar ou até desviar, tem imagens de Negras que não
inspiram compaixão. Elas incarnam primeiro uma beleza extraordinária, o
que, como sugere Lacan, se situa nas bordas extremas do que ele
chamava de “zona proibida”. O próprio da beleza, é exercer, sobre aquele
ou aquela que a experimenta, efeitos pacificadores. A dor nessas imagens
aparece como segundaria. Nada nelas convida a desviar o olhar. Estão
longe das imagens horrorosas, sangrentas e repugnantes dos
linchamentos históricos. Nada de bocas grande abertas. Nada de careta
entortando rostos. É assim porque remetem a um movimento íntimo - o
trabalho do corpo sobre si mesmo. Ora são fotografias, ora imagens
especulares, ora efigias, e até reflexos. Mas sobretudo, se trata de ícones
indiciais cuja relação com o sujeito é ao mesmo tempo física (no sentido
que essas imagens são fiéis à aparência objetivo de seu autor) e analógicas
(no sentido em que não são mais do que imagens indiciais do sujeito). São
feitas para cativar aquele ou aquela que as olha, e obriga-lo à depor as
armas. Elas tem, nesse ponto de vista, alguma coisa a ver com o efeito
pacificador que Lacan atribuía à pintura. Longe de desativar o desejo, elas
o euforizam neutralizando e desligando as resistências daquele que as
olha e acendem suas fantasias. Do corpo cor da noite flui uma beleza
originaria. Se trata de uma beleza proibida, e, por isso, geradora de
desejos manifestos. Mas também de angustias masculinas. Tal beleza só
pode castrar. Não poderia ser objeto de consumação. Só poderia ser
objeto de cortesia casta e deleite.

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A força das imagens do corpo das Negras decorre de sua capacidade em
desarmar o arquivo. Através dessas imagens, as Negras aceitam se ver
como Outras. Mas será que elas realmente conseguem se expatriar delas
mesmas? Elas fazem o seu corpo trabalhar. Mas todo corpo, qualquer que
seja, nunca está inteiramente determinado por si mesmo. Sempre é,
também, determinado pelo Outro, aquele que o olha, o contempla, e
pelas partes do corpo que olham, ou que são oferecidas ao olhar ou
contemplação. É no olhar do Outro que o Eu sempre reencontra seu
próprio desejo, mesmo que de forma invertida.
Deixando assim aflorar o desejo, inclusive o desejo de si, mas o obrigando
a um prazer proibido, não se tira dessas imagens o seu poder de
significado histórico? O que, no início era destinado a destruir a coisa e a
criar um termo novo na ordem do arquivo - e portanto do significante-
não se transformaria em simples auto contemplação, em hipérbole do Eu?
Ao nos expor dessa maneira, nós olhamos como os outros nos olham? E
quando nos olham, o que veem? Será que nos veem como nos mesmos
nos vemos? Ou no fundo, apenas se fixam numa miragem?
Essas considerações feitas, compreende se melhor as premissas da crítica
afrofuturista. Agora se trata de saber se essa crítica pode ser radicalizada
e se essa radicalização pressupõe necessariamente o repudio de toda ideia
de humanismo. Para Fanon, tal repudio não é necessário. A humanidade
está permanentemente em criação. Seu fundo comum é a vulnerabilidade,
começando pela do corpo exposto ao sofrimento e a degeneração. Mas a
vulnerabilidade também é aquela do sujeito exposto à outras existências,
que, eventualmente, ameaçam a sua. Sem um reconhecimento reciproco
dessa vulnerabilidade, não há lugar para a solicitação, muito menos para o
cuidado.
Se deixar afetar por outrem - ou ser exposto sem armadura à outra
existência- constitui o primeiro passo para essa forma de reconhecimento
que não se deixa trancar nem no paradigma do mestre e do escravo, nem
na dialética da

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P162
impotência e da onipotência, ou do combate da vitória e da derrota. Pelo
contrário, o tipo de relação que resulta disso é uma relação de cuidado.
Daí, que reconhecer e aceitar a vulnerabilidade – ou ainda, admitir que
viver, é viver sempre exposto, inclusive à morte - é o ponto de partida de
toda elaboração ética cujo objeto, em última instancia, é a humanidade.
Segundo Fanon, essa humanidade em criação, é o produto do encontro
com “o rosto de outrem”, aquele próprio que, por outro lado, “me revela
a mim mesmo”36. Começa pelo que Fanon chama “o gesto”, ou seja, “o
que torna possível uma relação”37. De fato, só há humanidade onde o
gesto – e então a relação de cuidado - é possível; onde se deixam afetar
pelo rosto de outrem; onde o gesto é remetido à uma palavra, uma
linguagem que rompe um silêncio.
Mas nada garante um acesso direto à palavra. No lugar da palavra,
podem, ocasionalmente, sair só gritos roucos e berros – a alucinação. O
próprio da escravidão ou do colonialismo é fabricar seres de dor, seres
cuja existência está permanentemente invadida por um acúmulo de
Outrens ameaçadores. Uma parte da identidade desses seres é sofrer a
prova do aperto, de ser constantemente expostos ao querer de Outrem. A
sua palavra, a maior parte do tempo, é uma palavra alucinada.
É uma palavra que confere uma importância central ao jogo e à mimica. É
uma palavra proliferadora, que cresce à maneira de um furacão. Palavra
vertiginosa, veemente, ela é, na sua agressividade como seu protesto,
“percorrida por angustias ligadas à frustações infantis38”. Com o processo
alucinatório, explica Fanon, se assiste ao desabamento do mundo. “O
tempo alucinatório e o espaço alucinatório não postulam nenhuma
pretensão à realidade” já que se trata de um tempo e de um espaço “em
fuga perpetua”39.

36 Frantz Fanon, ecrits sur la liberte et l´allienation, op.cit, p 181.

37 ibid, p 182

38 ibid, p 373

39 ibid.

156
P163
Deixar falar essas pessoas lesadas consiste em ressuscitar suas
capacidades fragilizadas. Nas situações medicais que Fanon trata, a
ressureição das capacidades fragilizadas passa, se for preciso, pelo
aniquilamento40. Às sessões de narcose se substitui o confronto direto
com a parte do sujeito que esta latente, aquela que, velada, abre
passagem entre os interstícios da palavra, do grito ou do berro. Esse
confronto agressivo, no limite do estupro da personalidade, tem como
objetivo quebrar as defesas, expor a parte-dejeto e a parte-escoria do
sujeito dividido na sua nudez radical.
Depois vem o mergulho num sono profundo, via mor para o estágio
confusional amnésico. Ao se precipitar o sujeito no estágio confusional
amnésico, se procura devolvê-lo às suas origens, ao momento de “sua
chegada ao mundo”, o começo da consciência. Com administração de
eletrochoques e insulinoterapia, ele percorre o caminho inverso, ao
encontro de uma situação primitiva, aquela que todo humano
experimentou outrora – a volta para o estado de vulnerabilidade total, a
relação da criança com a mãe, os cuidados de limpeza, o recém-nascido,
as primeiras palavras, os primeiros rostos, os primeiros nomes, os
primeiros passos e os primeiros objetos. Assim compreendida, a
ressureição é um processo de “dissolução-reconstrução” da
personalidade. Seu objetivo último é a redescoberta de si e do mundo.
Capitalismo e animismo
No mais, só é possível aprofundar a crítica afrofuturista do humanismo se
ela for associada à uma crítica equivalente do capitalismo.
Três tipo de pulsão de fato animaram o capitalismo desde o início. A
primeira foi fabricar constantemente raças, espécies (no caso Negros); a
segunda foi procurar calcular tudo e procurar converter tudo em
mercadoria que pode ser trocada (lei da troca generalizada) e a terceira
foi procurar exercer um monopólio sobre a fabricação do vivo como tal.

40 Ver em particular os dois artigos “sobre alguns casos tratados com o método de Bini” e “indicações
da terapêutica de Bini no quadro das terapêuticas institucionais”. In ibid, p238-249.

157
P164
O “processo de civilização” terá constituído em amornar essas pulsões e
manter, com graus diversos de sucesso, um certo número de separações
fundamentais sem as quais o “fim da humanidade” se tornaria uma franca
possibilidade - um sujeito não é um objeto; tudo não pode ser calculado
aritmeticamente vendido e comprado; tudo não é explorável e
substituível; um certo número de fantasias perversas tem que
necessariamente ser objeto de sublimação para não levar à destruição
pura e simples do social.
O neoliberalismo é o momento durante o qual essas barragens desabam
umas após as outras. Não há mais certeza que a pessoa humana se
distingue seja do objeto, do animal ou da máquina. Talvez almeje, no
fundo, se tornar um objeto 41. Não há mais certeza que a fabricação de
espécies e de subespécies no seio da humanidade seja um tabu. A
abolição dos tabus e a liberação mais ou menos total de todo tipo de
pulsão e depois de sua transformação em materiais num processo de
acúmulo sem fim, constituem doravante os traços fundamentais de nossa
época. Esses eventos e vários outros de mesma natureza indicam de fato
que a fusão entre o capitalismo e o animismo está de vento em poupa.
Isso tanto é verdade que a matéria prima da economia, não são mais
verdadeiramente territórios; recursos naturais e pessoas humanas ainda
são indispensáveis, mas o meio natural da economia é agora o mundo dos
processadores e dos organismos biológicos e artificiais42. É o universo
astral das telas, dos deslizamentos fluidos, dos fulgores e da irradiação.
Também é o mundo dos cérebros humanos e das computações
automatizadas, do trabalho com instrumentos de tamanho cada vez mais
reduzido, mais e mais miniaturizados. Nessas condições, produzir Negros
não consiste mais exatamente em fabricar um laço social de sujeição ou
um corpo de extração, ou seja um corpo inteiramente exposto à vontade
de um

41 Hito Steyerl, a thing like you and me, e-flux n 15, 2010

42 Joseph Vogl, le spectre du capital, diaphanesm paris 2013.

158
P165
mestre, e do qual se esforçam em obter o máximo de rentabilidade. Além
disso, se ontem, o Negro era o ser humano de origem africana marcado
pelo sol de suas aparências e a cor de sua epiderme, hoje não é mais o
caso necessariamente. Agora, assistimos a uma universalização tendencial
da condição que outrora era reservada aos Negros, mas no modo da
inversão. Essa condição consistia na redução da pessoa humana em uma
coisa, um objeto, uma mercadoria que se podia vender, comprar ou
possuir.
A produção dos “sujeitos de raça” continua, sim, mas com novas
modalidades. O Negro de hoje não é mais a pessoa de origem africana,
aquela marcada pelo sol de sua cor (o “Negro de superfície”). O “Negro de
fundo” de hoje é uma categoria subalterne da humanidade, um gênero de
humanidade subalterne, essa parte supérflua e quase que excedente, da
qual o capital não precisa, e que parece ser destinada ao zoneamento e à
expulsão43.
Esse “Negro de fundo”, esse tipo de humanidade, faz sua primeira
aparição no palco do mundo enquanto, mais que nunca, o capitalismo se
institui no modo de uma religião animista, enquanto o homem de carne e
osso de outrora cede o lugar para um novo homem-fluxo, numérico,
infiltrado por todo lado de diversos tipos de órgãos sintéticos e de
próteses artificiais. O “Negro de fundo” é o Outro dessa humanidade
logicial, nova figura da espécie e tão típica da nova idade do capitalismo,
aquela durante a qual a auto-reificação constituí a melhor chance de
capitalização de si44.
Finalmente, se o desenvolvimento acelerado das técnicas de exploração
massiva dos recursos naturais participava do velho projeto de
matematização do mundo, esse mesmo projeto visava, em última
instancia, um único objetivo, que é a administração do vivo que, hoje,
tende a operar num modo essencialmente numérico 45. Na nossa época
tecnotrônica, o humano aparece cada vez mais
43 Saskia Sassen, expulsions, brutality and complexity in the global economy, Harvard university press,
Cambridge, 2014.

44 Achille Mbembe, critique de la traison negre, op.cit.

45 Eric Sadin, op.cit.

159
P166
sob forma de fluxo, de códigos cada vez mais abstratos, de entidades cada
vez mais fungíveis. A ideia sendo que tudo, de agora em diante, pode ser
fabricado, o vivo inclusive, se estima que a existência é um capital que se
gera e o indivíduo uma partícula num dispositivo; ou ainda uma
informação que tem que ser traduzida em código conectado a outros
códigos seguindo uma lógica de abstração sempre crescente.
Nesse universo de mega cálculos, um outro regime de intelecção está
surgindo, que provavelmente teria que ser chamado de antropo-
maquinico. Pois estamos passando para uma nova condição humana. A
humanidade está saindo da grande partilha entre o homem, o animal e a
máquina que tanto caracterizou o discurso sobre a modernidade e sobre o
humanismo. Agora, o humano de hoje está firmemente acoplado ao seu
animal e à sua máquina, à um conjunto de cérebros artificiais, de duplos e
triplos que formam a base para a numerização extensiva de sua vida.
Se esse é o caso, e ao contrario daqueles de ontem, os mestres de hoje
não precisam mais de escravos. Já que os escravos se tornaram um fardo
pesado demais para ser carregado, os mestres procuram sobretudo se
livrar deles. O grande paradoxo do século 21 então é a aparição de uma
classe sempre crescente de escravos sem mestres e de mestres sem
escravos. É verdade que tanto as pessoas humanas como os recursos
naturais continuam sendo espremidos para alimentar os lucros. Essa
reviravolta é logica, no fim das contas, já que o novo capitalismo é
sobretudo especular.
Os antigos mestres compreenderam isso, e procuram agora se livrar de
seus escravos. Acham que sem escravos, não há como ter revolta.
Estimam que para sufocar na raiz as potencialidades insurrecionais, basta
liberar o potencial mimético dos submetidos. Enquanto os novos
alforriados se desgastam querendo se tornar os mestres que nunca serão,
as coisas nunca poderão ser diferentes do que são. A repetição do mesmo,
sempre e em todo lugar, esta será a regra.

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P167
Emancipação do vivo
Falta se debruçar sobre os futuros do racismo dentro de tal configuração.
Historicamente, pelo menos nas colônias de povoamento ou nos estados
escravagistas, o racismo sempre serviu de subsidio para o capital. Ontem,
essa era a sua função. Classe e raça se constituíam mutuamente. Em geral,
se pertencia a determinada classe em virtude de sua raça e o
pertencimento a uma raça determinava por sua vez as possibilidades de
mobilidade social e o acesso a tal ou tal estatuto. A luta das classes era
inseparável da luta das raças mesmo se as duas formas de antagonismo
eram movidas por logicas as vezes autônomas 46. O processo de
racialização passava de fato inevitavelmente por práticas de
descriminação. A raça permitia naturalizar as diferenças sociais e trancar
as pessoas indesejadas em esquemas dos quais eram impedidas de sair,
seja por direito, seja até pela força.
Hoje aparecem novas variedades do racismo que não precisam mais
recorrer à biologia para se legitimar. Basta, por exemplo, apelar para a
caça aos estrangeiros; proclamar a incompatibilidade das “civilizações”;
mostrar que não pertencemos à mesma humanidade; que as culturas são
incomensuráveis; ou que qualquer Deus que não seja o deus da sua
religião é um falso deus, um ídolo que atrai o sarcasmo ou que podem,
por esse motivo, profanar sem reserva.
Nas condições atuais da crise no Ocidente, esse tipo de racismo constitui
um suplemento do nacionalismo, na hora em que, por outro lado, a
mundialização neoliberal esvazia o nacionalismo, e até a própria
democracia, de qualquer conteúdo verdadeiro, e desloca para longe os
verdadeiros centros de decisão. Além disso, os progressos recentes nas
áreas da genética e da biotecnologia confirmam a ideia segundo a qual o
conceito de raça é vazio de sentido. Paradoxalmente, longe de dar novo
impulso à ideia de um mundo sem raças, eles lançam outra vez de
maneira totalmente

46 Cedric J. Robinson, black marxism. The making of the black radical tradition, university of north
carolina press, chapel hill, 1983.

161
P168
inesperada o velho projeto de classificação e de diferenciação tão típico
dos séculos anteriores. Um processo complexo de unificação do mundo no
quadro de uma expansão sem fronteira (apesar de desigual) do
capitalismo esta portanto em curso. Esse processo anda junto com a
reinvenção das diferenças, uma rebalkanização desse mesmo mundo e
sua partição de acordo com a variedade de linhas de separação e de
inclusão disjuntivas. Essas linhas são ao mesmo tempo internas às
sociedades e aos estados e verticais, na medida e que desenham novas
linhas de partilha de dominação em escala planetária. A planetarização do
apartheid, esse então seria o futuro imediato do mundo, no momento
preciso em que a consciência da finitude do sistema Terra nunca foi tão
aguda, e a imbricação da espécie humana com as outras formas do vivo
nunca foi tão manifesta.
Como, sendo assim, colocar em palavras novas a questão da liberação do
potencial de alforria dos submetidos nas condições concretas de nosso
tempo? O que significa se construir, traçar o próprio destino, ou ainda se
moldar no momento em que ”o homem” não é mais que uma força entre
várias outras dotadas de poderes cognitivos que, quem sabe, breve
ultrapassarão os nossos? O que isso significa enquanto a figura humana,
partida em múltiplos fragmentos, tem que compor com um emaranhado
de forças artificiais, orgânicas, sintéticas, e até geológicas? Será suficiente
desqualificar o velho conceito de um humanismo abstrato e
indiferenciado, cego para sua própria violência e suas paixões racistas? E
quais são os limites da invocação de uma pretensa “espécie humana” que
apenas redescobriria a sua relação com ela mesma na hora em que está
exposta ao perigo da própria extinção?
E ainda, como, nas condições contemporâneas, contribuir para a
emergência de um pensamento capaz de contribuir para a consolidação
de uma política democrática na escala do mundo, um pensamento das
complementaridades mais do que das diferenças. Atravessamos de fato
um período estranho da história da humanidade. Um dos paradoxos do
capitalismo contemporâneo é criar tempo e simultaneamente anular ele.
Esse processo duplo de criação, da aceleração e da pulverização do tempo
tem

162
P169
efeitos devastadores quanto a nossa capacidade de “fazer memoria”, ou
seja, no fundo, construir juntos espaços de decisão coletiva, de fazer a
experiência de uma vida verdadeiramente democrática. No lugar da
memória, aumentamos nossas capacidades em contar histórias, todos os
tipos de histórias. Mas cada vez mais, se trata de histórias obsessivas cujo
objetivo é evitar tomar consciência de nossa condição.
O que é essa nova condição? A esperança de uma vitória eventual sobre o
Mestre não é mais o assunto. Não esperamos mas a morte do Mestre.
Não acreditamos mais que seja mortal. Como o mestre não é mais mortal,
só nos sobra uma única ilusão, que é nos mesmos participarmos do
Mestre. Só há mais um desejo, e que vivemos cada vez mais nas telas, a
partir das telas. O novo palco é a tela. A tela não procura só abolir a
distância entre a ficção e a realidade. Se tornou geradora de realidade. Faz
parte das condições do século.
Em quase todo canto, inclusive nos velhos países que reclamam disso há
muito tempo, a democracia está em crise. Ela tem, provavelmente mais
que ontem, imensas dificuldades em reconhecer o pleno e inteiro valor da
memória e da palavra, como fundamentos de um mundo humano que
teríamos em partilha, em comum, e cujo espaço público teríamos que
cuidar.
A palavra e a linguagem são evocados não só por causa de seu poder de
revelação e sua função simbólica, mas principalmente por causa de sua
materialidade. Pois tem em todo verdadeiro regime democrático uma
materialidade da palavra que decorre do fato que, no fundo, só temos a
palavra e a linguagem para nos dizer, para dizer o mundo e agir nele.
Portanto palavra e linguagem se tornaram ferramentas, que absorvidas
num ciclo de reprodução infinita, não param de se auto instrumentalizar.
Então, os fluxos incessantes de eventos que golpeiam nossas consciências
nem se inscrevem nas nossas memorias como história. Pois de fato os
eventos só podem se inscrever na memória como história depois de um
trabalho particular, psíquico tanto quanto social, em suma simbólico, e
esse trabalho

163
P170
não é mais assumido pela democracia nas condições tecnológicas,
econômicas e políticas de nossa civilização.
Essa crise das relações entre a democracia e a memória é agravada pela
dupla injunção sob o signo da qual vivemos nossas vidas - injunção da
matematização do mundo e de instrumentalização - injunção pela qual
querem que acreditemos que os seres humanos que somos, na verdade,
são unidades numéricas e não seres concretos; que o mundo é, no fundo,
um conjunto de situações-problemas à serem resolvidas; e que as
soluções para essas situações-problemas, precisamos encontra-las junto
aos especialistas de economia experimental e da teoria dos jogos que,
aliás, temos que deixar decidir no nosso lugar.
O que dizer finalmente de confluência entre o capitalismo e o animismo?
Como lembra o antropólogo Philippe Descola, o animismo foi definido no
final do século 19 como uma crença primitiva. Acreditavam que os
primitivos imputavam à coisas inanimadas uma força e uma potência
quase misteriosas. Eles achavam que as entidades naturais e sobre
naturais não humanas, como por exemplo os animais, as plantas ou os
objetos, possuíam uma alma e intenções semelhantes àquelas dos
humanos. Esses existentes não humanos eram dotados de um espirito
com o qual os humanos podiam entrar em comunicação ou ainda com os
quais podiam manter relações muito estreitas. Nisso, os primitivos eram
diferentes de nós. Porque, ao contrário dos primitivos, tínhamos
consciência da diferença entre nós e os animais. O que nos separava dos
animais e das plantas era o fato que, como sujeitos, possuíamos uma
interioridade, uma capacidade de auto representação, intenções que nos
eram próprias.
Essa confluência é mostrada na renovação contemporânea de uma
ideologia neoliberal que fabrica todo tipo de ficções. É o caso da ficção de
um homem neuro-economico - individuo estratégico, frio, calculador,
interiorizando as normas do mercado e regulando sua conduta como num
jogo de economia experimental, se auto instrumentalizando a aos outros
também, para otimizar suas partes de prazer, e cujas competências
emocionais seriam geneticamente predeterminadas.

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P171
Nascida no cruzamento das ciências econômicas e das neurociências, essa
ficção conduz à um apagamento do sujeito trágico da psicanalise e da
filosofia política – sujeito dividido, em conflito com ele mesmo e com os
outros, e mesmo assim ator de seu destino pela narrativa, pela luta e pela
história.

165
P173
Conclusão

A ética do passante.
O século 21 se abre com uma confissão, aquela da extrema fragilidade de
todos. E do Todo. Começando pela ideia do “Todo-Mundo” da qual
Edouard Glissant, recentemente, tinha se tornado o poeta.
A condição terrestre nunca foi a sina única dos humanos. Amanhã, muito
menos ainda do que ontem. Doravante, só haverá potência fissurada,
dividida em vários núcleos. Essa fissão da potência representa então uma
chance para a experiência humana da liberdade, ou então nos conduzira
para o limite da disjunção?
Sofrendo essa extrema vulnerabilidade, muitos são tentados pela
repetição do originário, outros são atraídos pelo vazio. Uns e outros
acreditam que a re-generação passara pela radicalização da diferença e a
salvação pela destruição.
Acreditam que preservar, conservar e salvaguardar é de agora em diante o
horizonte, a própria condição para existir, no momento em que tudo, de
novo, se acerta pela espada. Até o próprio termo do político está
ameaçado de abolição.
As democracias, quanto a elas, não param de se esgotar e de mudar de
regime. Como não tem mais como objeto nada além de fantasias e
acidentes, elas se tornaram imprevisíveis e paranoicas, potencias
anárquicas sem símbolos, sem significado nem destino. Privadas de
justificativas, só lhes sobra o ornamento.
Nada, agora, é inviolável; nada é inalienável e nada é imprescritível. Só
talvez – e olhe lá - a propriedade.

166
P174
Nessas condições, é possível que não sejamos, no fundo, o cidadão de
nenhum estado em especial.
Os países que nos viram nascer, carregamos eles no fundo da gente, seus
rostos, suas paisagens, suas multiplicidades caóticas, seus rios e suas
montanhas, suas florestas, suas savanas, as estações, o canto dos
pássaros, os insetos, o ar, o suor e a humidade, a lama, o barulho das
cidades, o riso, a desordem e a indisciplina. E a burrice.
Mas, ao longo da estrada, esses países perdem para nós também sua
familiaridade, e agora, é na contra luz que conseguimos as vezes olha-los.
Porém, alguns dias, voltamos a cantar seu nome em silencio, a querer
percorrer de novo as trilhas de nossas infâncias, nessas terras que nos
viram nascer e das quais acabamos nos afastando sem nunca esquecê-las,
sem nunca ter conseguido nos desligar delas de uma vez por todas, sem
que elas nunca tenham deixado de nos causar preocupação. Assim, Fanon,
que em plena guerra de Argélia, se lembra da Martinica, sua ilha natal.
Essa rememoração que ao mesmo tempo é distanciamento, esse auto
desnudamento, seria então o preço a se pagar para viver e pensar
livremente, ou seja, a partir de certo despojamento, um certo
desligamento, na posição daquele que não tem nada a perder, já que, em
certa medida, desde o início, renunciou possuir o que quer que seja para
si, ou ainda já perdeu tudo ou quase tudo?
Mas porque uma relação tão estreita deveria unir dessa maneira a
liberdade, a capacidade de pensar e a renúncia de toda forma de perda -
e portanto certa ideia do cálculo e da gratuidade?
Quanto a perder tudo ou quase – melhor, quanto a se desapegar de tudo
ou renunciar a tudo ou quase -, seria então a condição para ganhar em
serenidade nesse mundo e nessa época de turbulências onde,
frequentemente, o que temos está longe de valer o que somos, e o que
ganhamos só tem uma relação distante com o que perdemos?

167
P175
E também, se desligar de tudo ou quase tudo, renunciar a tudo ou quase
tudo, significaria que agora somos de “lugar nenhum”, que não
respondemos mais por nada e por nome nenhum?
E ainda, o que é a liberdade se não podemos romper de verdade com esse
acidente que é o fato de ter nascido em algum lugar – a relação de carne e
osso, a lei dupla do chão e do sangue?
Como é possível que esse acidente assine de forma tão irrevocável quem
somos, como somos percebidos e quem os outros acham que somos?
Porque determinaria de maneira tão decisiva aquilo ao que temos direito,
e todo o resto – a soma de provas, documentos e justificativas que temos
que apresentar para esperar conseguir o que quer que seja, começando
pelo direito de existir, o direito de estar onde a vida finalmente nos
conduz, passando pelo direito de circular livremente?
Atravessar o mundo, tomar consciência do acidente que representa o
lugar do nosso nascimento e seu peso de arbitrário e de restrição, se
juntar ao fluxo irreversível que é o tempo da vida e da existência,
aprender a assumir nosso estatuto de passante porque isso talvez seja em
última instância a condição de nossa humanidade, a base a partir da qual
criamos cultura – essas talvez sejam, finalmente, as questões mais
intratáveis de nossa época, aquelas que Fanon nos legou na sua farmácia,
a farmácia do passante.
De fato, poucas palavras são tão cheias de significados que essa de
“passante”.
E primeiro, essa palavra contém várias outras, começando pelo “pas” [em
francês, pode ter dois significados: o passo, e o auxiliar da negação. ] – ao
mesmo tempo instancia negativa (o que não é ou não existe ainda, ou só
existe pela sua ausência) e ritmo, cadencia, e até velocidade, durante uma
corrida ou uma andada, um deslocamento, o que está em movimento.
Depois tem, como que no reverso, “passado” - o passado não como rastro
do que já aconteceu, mas o passado que esta advindo, do jeito que pode
ser apreendido ali, no momento da efração, no próprio ato pelo qual
advém, no próprio instante em que, surgindo como que por uma fenda,
ele se esforça em nascer para o evento, se esforça em advir evento.

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Depois tem o “passante”, essa figura de “além”, já que o passante só
passa porque, precisamente, vindo de outro lugar, ele está a caminho em
direção à outras bandas.
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Ele está de “passagem” – e então nos convida a acolhê-lo, ao menos
momentaneamente.
Mas tem também “passador”, e mais ainda, “passagem” e “passageiro”. O
passante então seria tudo isso ao mesmo tempo, o veículo, a ponte ou a
passarela, as bordas que cobrem a fileira de vigas num navio, aquele, que,
com as raízes em outro lugar, está de passagem em algum outro lugar
onde reside temporariamente, mesmo que volte para casa quando chegar
a hora? Mas o que aconteceria se ele não voltasse, e se, por ventura, ele
continuasse seu caminho, indo de um lugar para outro, voltando os passos
se necessário, mas sempre na periferia de seu lugar natal, sem por conta
disso se declarar “refugiado” ou “migrante”, e menos ainda “cidadão” ou
autóctone – o homem nativo?
Ao evocar a figura do passante a respeito de nossa época, o caráter
fugitivo da vida, não se faz o elogio nem do exilio e do refúgio, nem da
fuga, nem do nomadismo.
Também não se celebra um mundo boêmio e sem raízes.
Nas condições atuais, esse mundo simplesmente não existe. Procura se
sim convocar, como se tentou fazer durante esse ensaio todo, a figura de
um homem que se esforçou em percorrer um caminho íngreme – que foi
embora, deixou seu pais, viveu em outro lugar, no estrangeiro, em lugares
que ele fez de autentica moradia, ligando assim a sua sorte à daqueles que
o acolheram, e reconheceram no seu rosto o deles, o de uma humanidade
em advir.
Advir-homem-no-mundo não é questão nem de nascimento nem uma
questão de origem ou raça. É assunto de trajeto, de circulação e de
transfiguração.
O projeto de transfiguração exige do sujeito que ele abrace
conscientemente a parte em pedaços de sua própria vida; que ele se
obrigue à desvios e aproximações por vezes improváveis; que ele opere
nos interstícios se quiser dar uma expressão comum para as coisas que

169
geralmente dissociamos. Fanon só se introduziu em cada um desses
lugares com uma reserva de distanciamento e de espanto no objetivo de
assumir plenamente a cartografia instável e movente na qual ele se
encontrou. Ele chamou

170
P177
“lugar” toda experiência de encontro com os outros que abra o caminho
para a tomada de consciência de si, não necessariamente como individuo
singular, mas como fragmento seminal de uma humanidade mais ampla,
envolvida na fatalidade de um tempo que nunca para, cujo atributo
principal é passar – a passagem por excelência.
Mas nem se pode morar num lugar sem se deixar habitar por ele. Morar
num lugar não é a mesma coisa que pertencer a ele. O nascimento no seu
pais de origem é uma questão de acidente que mesmo assim não livra o
sujeito de nenhuma responsabilidade. Aliás, o nascimento em si não
esconde nenhum segredo. Tudo o que ele oferece, é a ficção de um
mundo que passou apesar de todas nossas tentativas de atá-lo à tudo que
veneramos – o costume, a cultura, a tradição, os rituais, o conjunto de
máscaras que é colocado sobre cada um de nos.
Pode se dizer que não pertencer a nenhum lugar propriamente, isso é o
“próprio do homem”, já que o homem, composto de outros vivos e de
outras espécies, pertence a todos os lugares juntos.
Aprender a passar constantemente de um lugar a outro, isso deveria
então ser seu projeto já que é, de qualquer maneira, seu destino. Mas
passar de um lugar a outro, também é tecer com cada um deles uma
relação dupla de solidariedade e de desapego. Essa experiência de
presença e de afastamento, de solidariedade e de desapego, mas nunca
de indiferença – vamos chama-la da ética do passante.
É uma ética que diz que é só se afastando de um lugar que se pode melhor
nomeá-lo e melhor ocupa-lo.
Será que poder estadear e circular livremente não constitui as condições
sine qua non da partilha do mundo, ou ainda do que Edouard Glissant
tinha chamado da “relação mundial”? Com o que a pessoa humana
poderia se parecer, para além do acidente do nascimento, da
nacionalidade e da cidadania?
Era para responder de maneira exaustiva à todas essas interrogações. Mas
basta observar que o pensamento que está chegando será
necessariamente um pensamento da passagem, da travessia e da
circulação. Será um pensamento da vida que transcorre, da vida que passa

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P178
e que nos esforçamos em traduzir em eventos. Será um pensamento não
do excesso, mas do excedente, ou seja, daquilo que, porque sem preço,
precisa escapar do sacrifício, do desperdício e da perda.
Para articular tal pensamento, ainda será preciso reconhecer que a
Europa, que tanto deu para o mundo e tanto tomou em retorno, e muitas
vezes pela força e pela astucia, não é mais o centro de gravidade do
mundo. Não se trata mais de ir buscar ali soluções para as questões que
aqui são colocadas. A Europa não é mais a farmácia do mundo.
Mas será que dizer que ela não é mais o centro de gravidade do mundo
significa que o arquivo europeu está esgotado? Aliás, esse arquivo alguma
vez foi de verdade só o produto de uma história particular? Se a história
de Europa se confundiu por vários séculos com a história do mundo, e a
história do mundo se confundiu por sua vez com a da Europa, isso não
implica que esse arquivo não pertence apenas à Europa?
Como o mundo não tem mais farmácia única, se trata então,
verdadeiramente, se quisermos escapar da relação sem desejo e do perigo
da sociedade de inimizade, de ocupar todos os seus feixes possíveis.
Partindo de uma multiplicidade de lugares, se trata depois de atravessa-
los da maneira mais responsável possível, como os tendo-direitos que
somos, mas numa relação total de liberdade, e, onde for preciso, de
desapego. Nesse processo que implica a tradução, mas também o conflito
e os mal entendidos, algumas questões se dissolverão por si só. Vão
emergir então, numa clareza relativa, as exigências, senão de uma possível
universalidade, pelo menos de uma ideia de Terra como aquilo que nos é
comum, nossa condição comum.
Esse é um dos motivos pelos quais é praticamente impossível sair ileso de
uma leitura de Frantz Fanon. É difícil lê-lo sem se sentir interpelado pela
sua voz, pela sua escrita, seu ritmo, sua língua, suas sonoridades e
ressonâncias vocais, seus espasmos, suas contrações, e, principalmente,
seu sopro.
Na era da Terra, precisaremos realmente de uma língua que
constantemente fure, perfure e cave como uma broca, saiba se fazer

172
P178
projetil, um tipo de gás absoluto, de vontade, que sempre, fuça o real.
Sua função não será só estourar os cadeados como também salvar a vida
do desastre que está na espreita.
Cada um dos fragmentos dessa língua terrestre será enraizada nos
paradoxos do corpo, da carne, da pele e dos nervos. Para escapar da
ameaça de fixação, de fechamento e de estrangulamento, e da ameaça de
dissociação e de mutilação, a língua e a escrita precisarão sempre se
projetar na direção do infinito de fora, se erguer para folgar a prensa que
ameaça de sufocamento a pessoa sujeitada e seu corpo de músculos, de
pulmões, de coração, de pescoço, de fígado e de baço, o corpo desonrado,
feito de múltiplas incisões, corpo cortável, divisível, em luta com ele
mesmo, feito de vários corpos que se enfrentam no seio de um mesmo
corpo – de um lado o corpo de ódio, fardo horroroso, corpo falso de
abjeção, esmagado de indignidade, e do outro lado, o corpo originário
mas furtado por outrem, e depois desfigurado e abominado, que precisa
literalmente ser ressuscitado, num ato de gênese verdadeira.
De volta à vida, e por isso diferente do corpo caído da existência
colonizada, esse corpo novo será convidado a se tornar membro de uma
comunidade nova. Ao se desenvolver seguindo um mapa próprio, ele
caminhara doravante com outros corpos, e dessa forma, criara de novo o
mundo.
Por isso, junto com Fanon, nos dirigiremos a ele, nessa última prece:
“Oh corpo meu, faz de mim sempre um homem que interroga1!”

1 Frantz Fanon, peau noire, masques blancs, op.cit, p 251.

173
P 181

Indice
Introdução. A provação do mundo 7

Capitulo 1 A saída da democracia 17


Reviravolta, inversão e aceleração, 18
O corpo noturno da democracia, 26
Mitológicas, 32
A consumação do divino, 43
Necropolitica e relação sem desejo, 49

Capitulo 2 A sociedade de inimizade 61


O objeto apavorante, 62
O inimigo, este outro que sou, 69
Os condenados da fé, 74
Estado de insegurança, 76
Nanoracismo e narcoterapia, 80

Capitulo 3 A farmácia de Fanon 91


O princípio de destruição, 92
Sociedades de objetos e metafísica da destruição, 107
Medos racistas, 113
Descolonização radical e festa da imaginação, 119
A relação de cuidado, 122
O espantoso duplo, 127
A vida que se vai, 134

174
P 182
capitulo 4 Esse meio dia maçante 141
Impasses do humanismo, 142
O outro do humano e genealogias do objeto, 146
O mundo zero, 151
Antimuseu, 155
Autofagia, 158
Capitalismo e animismo, 163
Emancipação do vivo, 167

Conclusão. A ética do passante 173

175
176
177

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