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Prefácio

Como o título dissimuladamente sugere, este livro é uma introdução às questões centrais
da filosofia da linguagem contemporânea. A filosofia da linguagem tem estado muito em
voga desde o começo do séc. XX, mas só a partir dos anos sessenta desse século começa-
ram as questões a surgir em alta definição.
Um desenvolvimento crucial dos últimos quarenta anos é a atenção que os filósofos
da linguagem dão à gramática ou sintaxe formais, tal como estas são articuladas pelos
linguistas teóricos. Considero pessoalmente que esta atenção é vital para o bom sucesso
do filosofar sobre a linguagem, e na minha investigação dedico-lhe tanta atenção quanto
consigo. Com muita pena minha, contudo, não fiz disso um tema deste livro. Com restri-
ções implacáveis de espaço não poderia dedicar as páginas necessárias para explicar os
elementos básicos da sintaxe formal sem ter de omitir a apresentação de algumas ques-
tões filosóficas que considero essenciais para a competência na área.
Desde 1980, aproximadamente, alguns filósofos da linguagem viraram-se para a fi-
losofia da mente, e alguns entregaram-se à exploração metafísica da relação, ou ausência
de relação, entre a linguagem e a realidade. Estas viragens captaram o interesse de mui-
tos filósofos, e alguns excelentes manuais dedicaram-se a uma ou a ambas (por exemplo,
Blackburn 1984; Devitt e Sterelny 1987). Mas não foi isso que escolhi. Independentemente
dos méritos desses géneros de abordagens, não vi que nos ajude suficientemente a com-
preender os mecanismos especificamente linguísticos ou as questões nucleares da filosofia
da própria linguagem. Este livro concentrar-se-á nesses mecanismos e questões. (Os leito-
res interessados na metafísica ou na filosofia da mente devem consultar, respectivamente,
os livros de Michael J. Loux, Metaphysics e de John Heil, Filosofia da Mente,* ambos da
colecção Routledge Contemporary Introductions.)
Muitos dos meus capítulos e secções assumirão a forma de apresentar dados perti-
nentes para um fenómeno linguístico, expondo a teoria de alguém sobre tal fenómeno,
apresentando e avaliando depois as objecções a essa teoria. Sublinho aqui, pois nem sem-
pre terei espaço para o fazer no texto, que em cada caso o que apresento sumariamente
ao leitor são apenas os lances iniciais apresentados pelos proponentes das várias teorias e
seus oponentes e objectores. Em particular, duvido que qualquer das objecções a qualquer
das teorias seja fatal; os proponentes das teorias são extraordinariamente bons a evitar ou
refutar objecções. A verdadeira teorização começa onde este livro acaba.

*
Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
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Usei alguma notação da lógica formal, especificamente o cálculo de predicados,


pois quem a conhece verá alguns aspectos mais claramente. Mas expliquei sempre igual-
mente o seu significado em português.
Muitos dos escritos a discutir neste livro encontram-se nas seguintes antologias: T.
Olshewsky (org.), Problems in the Philosophy of Language (Austin, TX: Holt, Rinehart and
Winston, 1969); J. F. Rosenberg e C. Travis (orgs.), Readings in the Philosophy of Lan-
guage (Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1971); D. Davidson e G. Harman (orgs.), The
Logic of Grammar (Encino, CA: Dickenson, 1975); R. M. Harnish (org.), Basic Topics in the
Philosophy of Language (Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1994); A. Martinich (org.),
The Philosophy of Language, 5.ª ed. (Oxford: Oxford University Press, 2006), assim como
nas edições anteriores; P. Ludlow (org.), Readings in the Philosophy of Language (Cam-
bridge, MA: Bradford Books / MIT Press, 1997); A. Nye (org.), Philosophy of Language: The
Big Questions (Oxford: Basil Blackwell, 1998); M. Baghramian (org.), Modern Philosophy of
Language (Nova Iorque: Counterpoint Press, 1999).
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Agradecimentos

Agradeço à minha editora, Moira Taylor, o seu enérgico encorajamento e (especialmente)


a sua paciência. Esta última foi severamente posta à prova.
Mike Harnish, Greg McCulloch e Ed Mares leram muito generosamente uma versão
inicial e fizeram-me muitos comentários e sugestões bem pensados. Penso que o livro está
muito melhor por causa disso, e estou muito agradecido.
Pete Alward e Laura Morgan produziram grande parte da versão inicial transcreven-
do, de gravações áudio muito más, muitas horas de aulas. Agradeço-lhes calorosamente e
espero que tenham ambos uma boa convalescença.
Os meses de ajuda e aconselhamento editoriais de Sean McKeever foram inestimá-
veis. (Também sofreu com algumas transcrições do áudio.) Agradeço em especial a Sean
por sugerir alguns cortes necessários, e por organizar a bibliografia.
Os últimos capítulos deste livro foram completados na minha sabática como Fellow
do National Humanities Center, em 1998-99. Agradeço ao Centro e ao seu maravilhoso
pessoal o seu apoio generoso. Estou em dívida para com a National Endowment for the
Humanities (#RA-20169-95) quanto ao financiamento adicional que obtive.

Agradecimentos da segunda edição

Agradeço à editora Kate Ahl a sua ajuda paciente, e a Meg Wallace uma grande parte da
investigação, assim como da editoração e da compilação do índice analítico. Agradeço
também a muitos leitores de todo o mundo que ofereceram comentários e sugestões à
primeira edição. Agradeço em especial a Mike Harnish (uma vez mais!), Patrick Greenough
e Mark Phelan, que fizeram comentários muito pormenorizados, permitindo assim muitas
melhorias, incluindo a correcção de muitos erros.
Muitos dos comentários que recebi sugeriam-me que acrescentasse um capítulo ou
secção sobre este ou aquele tópico complementar. As ideias eram boas, mas as limitações
de espaço impediram-me de aceitar mais do que algumas dessas sugestões; ficam as mi-
nhas desculpas.
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1 Introdução: significado e referência

Sinopse

Que certos tipos de marcas e ruídos são dotados de significado, e que seres humanos como
nós os apreendem sem mesmo pensar sobre isso, são factos notáveis. Uma teoria filosófica
do significado deve explicar o que é isso de uma sequência de marcas ou ruídos ser dotada
de significado e, mais em particular, o que é isso em virtude do qual a sequência tem o
significado distinto que tem. A teoria deve também explicar como é possível que os seres
humanos produzam e compreendam elocuções dotadas de significado, fazendo-o sem
qualquer esforço.
Uma ideia comum sobre o significado é que as palavras e outras expressões linguís-
ticas mais complexas são dotadas de significado porque representam coisas no mundo.
Apesar de sensata e à primeira vista atraente, mostra-se muito facilmente que esta teoria
referencial do significado é inadequada. Para começar, comparativamente poucas palavras
representam efectivamente coisas no mundo. E depois, se todas as palavras fossem como
os nomes próprios, servindo apenas para seleccionar coisas individuais, não conseguiríamos
começar por formar frases gramaticais.

Sentido e compreensão

Não há muitas pessoas que saibam que, em 1931, Adolf Hitler foi aos EUA, visitou vários
pontos de interesse, teve em Keokuk, Iowa, um caso amoroso com uma senhora de nome
Maxine, experimentou peyote (o que o fez ter alucinações com hordas de rãs e sapos que
calçavam botinhas vermelhas e cantavam o Horst Wessel Lied), infiltrou-se numa fábrica
de munições perto de Detroit, encontrou-se secretamente com o vice-presidente Curtis
para tratar de futuros compromissos comerciais relativos às peles de foca e inventou o
abre-latas eléctrico.
Há uma boa razão para não haver muitas pessoas que saibam de tudo isso: nenhu-
ma daquelas coisas é verdade. Mas o que há de notável é que agora mesmo, à medida que
lia essa frase — chamemos-lhe frase 1 —, você compreendeu-a perfeitamente, indepen-
dentemente de estar disposto a aceitá-la ou não, e fê-lo sem qualquer esforço consciente.
Notável, afirmei. Provavelmente não lhe parece notável nem surpreendente, mes-
mo depois de se ter dado conta do facto. Você está tão habituado a ler palavras e frases e
a compreendê-las imediatamente que lhe parece quase tão natural quanto respirar ou
comer ou caminhar. Mas como compreendeu a frase 1? Não foi por tê-la visto antes; estou
certo que nunca na história do universo alguém escreveu ou proferiu aquela frase particu-
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lar, até eu o ter feito. Nem a compreendeu por ter visto outra frase muito semelhante,
pois duvido que alguém tenha alguma vez produzido uma frase remotamente parecida a 1.
Poderá dizer que compreendeu 1 porque fala português e porque 1 é uma frase
portuguesa. Isso é em certa medida verdade, mas limita-se a adiar o mistério um pouco
mais. Como consegue “falar português,” dado que falar português envolve conseguir pro-
duzir e compreender não apenas expressões elementares como “Tenho sede,” “Cala a bo-
ca” e “Mais molho,” mas frases novas como 1? Essa capacidade é verdadeiramente espan-
tosa, e muito mais difícil de explicar do que a capacidade para respirar, comer ou cami-
nhar, que os fisiólogos compreendem já razoavelmente bem.
Uma pista é perfeitamente óbvia depois de alguma reflexão: 1 é uma sequência de
palavras, palavras portuguesas, que você compreende individualmente. Assim, parece que
você compreende 1 porque compreende as palavras que ocorrem em 1 e compreende algo
sobre o modo como essas palavras estão ligadas entre si. Como veremos, esse é um facto
importante, mas para já é apenas sugestivo.
Falámos até agora da capacidade humana para produzir e compreender o discurso.
Mas considere-se as próprias expressões linguísticas, enquanto objectos de estudo por si
mesmas.

2) w gfjsdkhj jiobfglglf ud
3) É perigoso espalhar gasolina pela sua sala de estar.
4) Bom de fora pedante o um um porquê.

1-4 são, sem excepção, sequências de marcas (ou de ruídos, se forem ditas em voz
alta). Mas diferem radicalmente entre si: 1 e 3 são frases dotadas de significado, ao passo
que 2 e 4 são algaraviadas. 4 difere de 2 por conter palavras portuguesas individualmente
dotadas de significado, mas as palavras não estão ligadas de modo a constituir uma frase,
e colectivamente nada significam.
Certas sequências de ruídos ou marcas têm então uma característica simultanea-
mente de natureza rara e que precisa urgentemente de explicação: significam algo. E ca-
da uma destas sequências tem a propriedade mais específica de significar algo em particu-
lar. Por exemplo, 3 significa que é perigoso espalhar gasolina pela sua sala de estar.
Assim, o nosso estudo filosófico da linguagem começa com os dados seguintes:

• Algumas sequências de marcas ou ruídos são frases dotadas de significado.


• Cada frase dotada de significado tem partes que também são dotadas de significado.
• Cada frase dotada de significado significa algo em particular.
• Quem domina uma linguagem tem a capacidade de compreender muitas das frases des-
sa linguagem, sem esforço e quase instantaneamente; e produz também frases do mes-
mo modo.
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Todos estes dados precisam de explicação. Uma sequência de marcas ou ruídos é dotada
de significado em virtude de quê? O que é isso em virtude do qual uma sequência significa
o que distintamente significa? E, uma vez mais, como conseguem os seres humanos com-
preender e produzir um discurso apropriadamente dotado de significado?

A teoria referencial

Há uma explicação atraente e de senso comum de todos os factos anteriores — tão atraen-
te que as pessoas, na sua maior parte, pensam nela quando têm por volta de dez ou onze
anos. A ideia é que as expressões linguísticas têm os significados que têm porque estão em
lugar das coisas; o seu significado reduz-se a essas coisas. Deste ponto de vista, as pala-
vras são como etiquetas; são símbolos que representam, designam, nomeiam, denotam ou
referem itens no mundo: o nome “Adolf Hitler” denota (a pessoa) Hitler; o nome “cão”
refere cães, tal como a palavra francesa “chien” e a alemã “Hund.” A frase “O gato sen-
tou-se no tapete” representa o sentar-se de um dado gato num dado tapete, presumivel-
mente em virtude de “o gato” designar esse gato, “tapete” designar o tapete em questão
e “sentou-se no” denotar (se quisermos) a relação de se sentar. As frases espelham assim
os estados de coisas que descrevem, e é desse modo que significam essas coisas. Na sua
maior parte, é claro, as palavras estão arbitrariamente associadas às coisas que referem;
alguém decidiu simplesmente que Hitler se chamaria “Adolf,” e a inscrição, ou som, “cão”
poderia ter sido usada para significar qualquer coisa.
Esta teoria referencial do significado linguístico explicaria o significado de todas as
expressões em termos de terem sido convencionalmente associadas a coisas ou estados de
coisas do mundo, e explicaria a compreensão que um ser humano tem de uma frase em
termos de essa pessoa saber o que referem as palavras que a compõem. É uma perspectiva
natural e atraente. Na verdade, pode parecer obviamente correcta, pelo menos até ver. E
seria muito difícil negar que a referência ou nomeação é a relação mais clara e habitual
entre uma palavra e o mundo. Contudo, ao examiná-la, a teoria referencial enfrenta des-
de logo sérias objecções.

OBJECÇÃO 1

Nem todas as palavras nomeiam ou denotam um objecto efectivo.


Primeiro, temos os nomes de itens inexistentes, como Pégaso ou o Coelhinho da
Páscoa. “Pégaso” não denota coisa alguma porque na realidade não existe qualquer cavalo
alado que esse nome possa denotar. (Discutiremos no capítulo 3 estes nomes algo detida-
mente.) Ou considere-se pronomes de quantificação, como o seguinte:

5) Ninguém viu o João.


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Seria uma piada gasta tomar “ninguém” como um nome e responder: “E onde é que ele o
viu?” (Lewis Carroll: “Passaste por alguém na estrada?” […] “Ninguém” […] “Então é claro
que ninguém caminha mais devagar do que tu.”1 E o poema de e. e. cummings “anyone
lived in a pretty how town”2 faz pouco sentido até o leitor se aperceber que cummings
está a usar perversamente expressões como “anyone” e “noone” como nomes de pessoas
individuais.)
Segundo, considere-se uma frase simples sujeito-predicado:

6) O Raul é gordo.

Apesar de “Raul” poder nomear uma pessoa, o que nomeia ou denota “gordo”? Não é com
certeza um indivíduo. Não denota com certeza o Raul; ao invés, descreve-o ou caracteri-
za-o (injustamente ou não).
Poderíamos sugerir que “gordo” denota algo abstracto; por exemplo, este e outros
adjectivos poderiam referir qualidades de coisas (ou “propriedades,” “atributos,” “quali-
dades,” “características,” etc.). Poder-se-ia dizer que “gordo” nomeia a gordura em abs-
tracto ou, como Platão diria, O Gordo em Si. Talvez seja isso que 6 diz: que o Raul tem ou
exemplifica ou é um espécime da qualidade da gordura. Nessa interpretação, “é gordo”
significaria “tem gordura.” Mas então, se tentarmos pensar no significado sujeito-
predicado como uma questão de concatenar o nome de uma propriedade com o nome de
um indivíduo usando a cópula “é,” precisaríamos de uma segunda entidade abstracta que
o “é” representasse, digamos, a relação de “posse,” dado ser o indivíduo que tem a pro-
priedade. Mas isso faria por sua vez 6 significar algo como “O Raul exibe a relação de pos-
se em relação à gordura,” de modo que precisaríamos de uma terceira entidade abstracta
para relacionar a nova relação de “exibir” com o indivíduo original mais a relação e a pro-
priedade, e assim por diante — sem fim, para todo o sempre. (Foi Bradley 1930: 17-18
quem assinalou esta regressão infinita.)
Terceiro, há palavras que são gramaticalmente substantivos mas que intuitivamen-
te não nomeiam nem coisas individuais nem tipos de coisas — nem sequer “coisas” inexis-
tentes ou itens abstractos como qualidades. Quine (1960) dá os exemplos de “prol,” “bel”
e “mor.”* Por vezes fazemos algo em prol de algo ou a nosso bel-prazer, mas não como se
um prol ou um bel fosse um tipo de objecto que se possa levar a passear na rua por uma

1
Alice’s Adventures in Wonderland and Through the Looking Glass (Londres: Methuen,
1978), p. 180. [As Aventuras de Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho,
trad. Margarida Vale de Gato. Lisboa: Relógio d’Água, 2000.]
2
Complete Poems, 1913-1962 (Nova Iorque: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1972).
*
“Sake,” “behalf” e “dint,” no original de Quine, foram adaptados como indicado na edição
brasileira do seu Palavra e Objeto (trad. Sofia Stein e Desidério Murcho, Petrópolis: Vozes, 2009).
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trela. Ou faz-se algo por mor da liberdade; mas um mor não é uma coisa nem um tipo de
coisa. (Eu nunca soube com certeza o que é um “imo” ou um “conluio.”) Apesar de serem
substantivos, palavras como estas certamente não são dotadas de significado por referirem
tipos particulares de objectos. Parecem dotadas de significado apenas por mor de ocorre-
rem em construções mais longas. Por si, dificilmente se pode afirmar que signifiquem seja
o que for, apesar de serem palavras, e até palavras dotadas de significado.
Quarto, muitas partes do discurso além dos substantivos não parecem sequer refe-
rir coisas de qualquer género ou de qualquer modo: “muito,” “de,” “e,” “o,” “um,” “sim”
e, já agora, “hei” e “abrenúncio.” Contudo, claro que tais palavras são dotadas de signifi-
cado e ocorrem em frases que qualquer pessoa que fale competentemente português
compreende.
(Nem toda a gente está convencida de que a teoria referencial esteja assim tão de-
cisivamente refutada, mesmo com respeito ao último grupo das palavras mais claramente
não-referenciais. Na verdade, Richard Montague (1960) dedicou-se a construir uma teoria
sofisticadíssima e muito técnica na qual mesmo a palavras como estas se atribui efectiva-
mente referentes de um género muitíssimo abstracto, sendo essas palavras dotadas de
significado, pelo menos em parte, por referirem o que supostamente referem. Teremos
mais a dizer sobre o sistema de Montague no capítulo 10.)

OBJECÇÃO 2

Segundo a teoria referencial, uma frase é uma lista de nomes. Mas uma mera lista de no-
mes não diz coisa alguma. A sequência

7) Frederico Marta Elísio Filipe

não pode ser usada para asserir seja o que for, mesmo que a Marta ou o Elísio seja uma
entidade abstracta e não um objecto físico. Poder-se-ia supor que se o nome de um indiví-
duo for concatenado ao nome de uma qualidade, como em

8) O Raul gordura,

a sequência daí resultante teria um significado sujeito-predicado normal, afirmando que o


Raul é gordo. (No início da sua carreira, Bertrand Russell sugeriu que, ao escrever uma
lista de nomes dos géneros adequados de coisas e na ordem certa, formar-se-ia o nome
colectivo de um estado de coisas.) Mas na verdade 8 é agramatical. Para lhe dar um signi-
ficado sujeito-predicado normal seria necessário inserir um verbo,

9) O Raul {tem/exemplifica} gordura,

o que daria origem uma vez mais à regressão de Bradley.


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OBJECÇÃO 3

Como iremos ver e discutir nos próximos dois capítulos, há fenómenos linguísticos especí-
ficos que parecem mostrar haver mais aspectos quanto ao significado do que a referência.
Em particular, os termos co-referenciais muitas vezes não são sinónimos isto é, dois ter-
mos podem partilhar o seu referente mas ter diferentes significados — como “Joseph Rat-
zinger” e “o Papa”, por exemplo.
Parece que devemos concluir que tem de haver pelo menos uma maneira de uma
expressão ser dotada de significado que não em virtude de nomear algo, aplicando-se isto
até possivelmente a algumas expressões que realmente nomeiam coisas. Há várias teorias
do significado que vão além da teoria referencial, apesar de todas as teorias enfrentarem
as suas próprias dificuldades. Veremos algumas das teorias e respectivas dificuldades na
Parte II. Primeiro, nos próximos três capítulos, examinaremos melhor a natureza da nome-
ação, referência e noções semelhantes, em parte porque a referência continua a ser im-
portante em si, apesar das imperfeições da teoria referencial do significado, e em parte
porque uma discussão da referência ajudar-nos-á a introduzir alguns conceitos que serão
necessários para avaliar as teorias do significado.

Sumário

• Algumas sequências de marcas ou ruídos são frases dotadas de significado.


• É um facto espantoso que qualquer pessoa normal consiga apreender instantaneamente
até mesmo o significado de uma frase muito longa e nova.
• Cada frase dotada de significado tem partes que também são dotadas de significado.
• Apesar de ser inicialmente atraente, a teoria referencial do significado enfrenta objec-
ções poderosas.

Questões

1. Consegue pensar em objecções complementares à teoria referencial tal como foi formu-
lada?
2. Serão as objecções 1 e 2 inteiramente justas, ou haverá réplicas plausíveis que o defen-
sor da teoria referencial poderia apresentar?

Leitura complementar

• Provavelmente o crítico mais persistente da teoria referencial é Wittgenstein (1953:


Parte I). Uma ofensiva wittgensteiniana mais sistemática encontra-se em Waismann
(1965a: cap. 8).
• Argumentos do género que subjazem à objecção 3 encontram-se em Frege (1892a) e
(1892b).
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• A regressão de Bradley é discutida por Wolterstorff (1970: cap. 4) e Loux (1998: cap. 1).
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2 Descrições definidas

Sinopse

Ainda que a teoria referencial do significado não se aplique a todas as palavras, poder-se-ia pensar
que se aplicaria pelo menos a termos singulares (termos que intentam referir indivíduos singulares,
como os nomes próprios, pronomes e descrições definidas). Mas Gottlob Frege e Bertrand Russell
argumentaram energicamente que as descrições definidas, pelo menos, não significam o que signi-
ficam em virtude de denotar o que denotam. Ao invés, defendeu Bertrand Russell, uma frase que
contém uma descrição definida, como “A mulher que vive ali é bioquímica,” só superficialmente
tem uma forma de sujeito-predicado, sendo na verdade — logicamente — um trio de generaliza-
ções: é equivalente a “Pelo menos uma mulher vive ali, e no máximo uma mulher vive ali, e quem
vive ali é bioquímica.”
Russell argumenta a favor da sua análise quer directamente quer mostrando que permite
solucionar quatro ultrajantes quebra-cabeças lógicos: o problema da referência aparente de inexis-
tentes, o problema dos existenciais negativos, o quebra-cabeças de frege sobre a identidade e o
problema da substituibilidade.
Levantaram-se várias objecções à teoria das descrições de Russell. P. F. Strawson sublinhou
que não se coaduna com os nossos hábitos linguísticos habituais: apesar de uma frase que tenha “o
actual Rei de França” como sujeito pressuponha haver pelo menos um Rei de França, não é falsa se
não houver qualquer Rei; ao invés, nesse caso não pode sequer ser usada para fazer uma afirmação
apropriada, e por isso não tem valor de verdade. E a teoria de Russell ignora o facto de que a maior
parte das descrições estão ligadas a um dado contexto, denotando um só objecto apenas num cená-
rio local circunscrito (“Dá-me o livro que está em cima da mesa”). Strawson argumenta mais em
geral que Russell trata as frases e as suas propriedades lógicas de uma maneira demasiado abstrac-
ta e celeste, esquecendo-se de como são realmente usadas por pessoas de carne e osso na prática
conversacional concreta.
Keith Donnellan nota que mesmo tendo Russell razão quanto a alguns usos das descrições,
ignorou um género comum de caso no qual uma descrição é usada “referencialmente,” para indicar
apenas uma pessoa ou coisa particular, independentemente dos atributos desse referente.
Por fim, há outros usos das descrições, chamados “anafóricos,” que podem por em causa o
tratamento russelliano.

Termos singulares

Em português ou em qualquer outra linguagem natural, os dispositivos paradigmáticos de referência


são termos singulares, expressões que intentam denotar ou designar pessoas, lugares e outros
objectos particulares individuais (contrastando com os termos gerais como “cão” ou “castanho”
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que se podem aplicar a mais de uma coisa). Os termos singulares incluem os nomes próprios
(“Jane,” “Winston Churchill,” “Jacarta,” “7,” “15:17 horas”), descrições definidas (“a Rainha de
Inglaterra,” “o gato que está no tapete,” “a penúltima reunião do departamento”), pronomes pes-
soais singulares (“tu,” “ela”), pronomes demonstrativos (“isto,” “aquilo”) e alguns outros.
Mesmo que a teoria referencial do significado não seja inteiramente verdadeira, é razoável
ter a expectativa de que seja verdadeira com respeito aos termos singulares. Mas Gottlob Frege
(1892a, 1892b) e, na sua esteira, Bertrand Russell (1905, 1918, 1919) mostraram definitivamente
que a teoria não é verdadeira com respeito às descrições definidas, e levantaram sérias dúvidas se
seria verdadeira com respeito a outros termos singulares comuns.
Frege e Russell apresentaram quatro quebra-cabeças sobre termos singulares, sendo que os
primeiros três retomam objecções levantadas no capítulo 1 contra a teoria referencial do significa-
do.

O PROBLEMA DOS INEXISTENTES APARENTES

Considere-se o seguinte:

1) James Moriarty é calvo.

(O Professor Moriarty é o arqui-inimigo de Sherlock Holmes, sendo descrito de modo mais completo
na história “O Problema Final,” de Conan Doyle.1 O seguinte conjunto de afirmações é inconsistente
(isto é, sob pena de se entrar em contradição, as afirmações não podem ser todas verdadeiras):

J1. 1 é dotada de significado (significa algo, não é destituída de significado).


J2. 1 é uma frase sujeito-predicado.
J3. Uma frase sujeito-predicado é dotada de significado (apenas) em virtude de seleccionar uma coi-
sa individual e de lhe atribuir uma propriedade qualquer.
J4. O termo sujeito de 1 não selecciona ou denota algo existente.
J5. Se 1 é dotada de significado apenas em virtude de seleccionar uma coisa e de lhe atribuir uma
propriedade (J1, J2, J3) e se o termo sujeito de 1 não selecciona algo existente (J4), então ou 1
não é afinal dotada de significado (contrariamente ao que afirma J1) ou 1 selecciona uma coisa
que não existe. Mas:
J6. Uma “coisa inexistente” não existe.

O inconveniente é que todas as afirmações, de J1 a J6, parecem verdadeiras.

1
The Adventures of Sherlock Holmes, Vol. I, org. E. W. Smith, Nova Iorque: Heritage Press, 1950. Um
facto curioso sobre Moriarty é ter um irmão, um coronel do exército, também chamado James. (Se o leitor for
um fã de Holmes e não sabia ainda disto, terá gosto em verificá-lo.) [As Aventuras de Sherlock Holmes: Memó-
rias, trad. Maria Teresa Pinto Pereira, Mem Martins: Europa-América, 2001.]
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O PROBLEMA DAS EXISTENCIAIS NEGATIVAS

Este é um caso especial do quebra-cabeças anterior mas, como veremos, um caso exacerbado. Con-
sidere-se o seguinte:

2) Pégaso nunca existiu.

2 parece verdadeira e parece ser acerca da montada de Belerofonte, Pégaso. Mas se 2 é verdadei-
ra, não pode ser acerca de Pégaso, pois não existe tal entidade para que 2 possa ser sobre isso.
Analogamente, se 2 for acerca de Pégaso, então é falsa, pois Pégaso terá em algum sentido de exis-
tir.
Vale a pena atentar numa solução prévia para os problemas da referência aparente de ine-
xistentes e das existenciais negativas, rejeitada por Frege e mais tarde ainda mais veementemente
por Russell. J1 não é controversa; J2 parece óbvia; J4 é apenas um facto; e J5 é trivialmente ver-
dadeira. Alexius Meinong (1904) deu o salto corajoso de negar J6, insistindo à la S. Anselmo que
qualquer objecto possível de pensamento — até mesmo um objecto autocontraditório — tem um ser
de um certo género, apesar de só algumas coisas terem a sorte de existir também na realidade.
Moriarty tem um ser desse género e pode ser objecto de referência, apesar de — para sorte da
Inglaterra e do mundo — não ter a propriedade de existir.2
Na posse dessa distinção inexplicada, Meinong podia lidar airosamente com as existenciais
negativas em particular. Uma frase desse género diz, de uma entidade que (é claro) tem ser, que
essa entidade carece de existência. Secretariat, Seabiscuit e Smarty Jones foram cavalos que exis-
tiam mas careciam de asas; Pégaso tinha asas mas não existia. Acontece.
Menos implausivelmente, o próprio Frege lidou com a Referência Aparente de Inexistentes
rejeitando J3: postulou objectos abstractos a que chamou “sentidos” e argumentou que um termo
singular é dotado de significado em virtude de ter um desses objectos além do seu referente — ou,
no caso de um termo singular irreferencial, em vez de um referente.
As soluções de Frege para as Existenciais Negativas e para os outros dois problemas serão
brevemente examinadas no próximo capítulo.

OS QUEBRA-CABEÇAS DE FREGE SOBRE A IDENTIDADE

Uma afirmação de identidade como

3) Mark Twain é Samuel Langhorne Clemens

contém dois termos singulares, sendo que ambos (se a afirmação for verdadeira) seleccionam ou
denotam a mesma pessoa ou coisa. Parece, então, que a afirmação diz simplesmente que essa pes-

2
Foi ao argumentar que a existência é uma perfeição, em particular, que Anselmo pretendia provar a
existência de Deus.
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soa é idêntica a essa pessoa, que essa pessoa é idêntica a si mesma. Nesse caso, a afirmação é tri-
vial; 3 não diz mais do que “Mark Twain é Mark Twain.” Contudo, 3 parece não ser trivial, por duas
razões: primeiro, 3 é informativa, pois alguém pode aprender algo novo lendo-a (quer porque des-
cobre a verdadeira identidade de Twain, quer porque descobre que Clemens era o famoso autor);
segundo, 3 é contingente, como dizem os filósofos — o facto que 3 afirma poderia não ter ocorrido;
a realidade poderia ter sido diferente. Assim, parece pelo menos um dos termos singulares que
figuram em 3 tem de ter um tipo qualquer de significado para lá do seu referente, com o qual con-
tribui para o significado geral da frase.

O PROBLEMA DA SUBSTITUIBILIDADE

A função de um termo singular é seleccionar uma coisa individual e introduzir essa coisa no discur-
so. Ainda que não se vá tão longe quanto a teoria referencial do significado, poder-se-á pensar que
é em virtude desse papel denotativo que os termos singulares são de todo em todo dotados de sig-
nificado. Logo, seria de esperar que quaisquer dois termos singulares que denotem uma e a mesma
coisa fossem semanticamente equivalentes: poderíamos tomar qualquer frase que contenha um dos
termos e fazer substituir o outro por esse sem mudar o significado ou pelo menos sem mudar o
valor de verdade da frase. Mas considere-se o seguinte:

4) O Alberto acredita que Samuel Langhorne Clemens tinha menos de um metro e meio de altura.

Suponha-se que 4 é verdadeira. Ora, o Alberto não está ciente de que Clemens escreveu romances e
histórias sob o nome literário de “Twain.” Não podemos fazer “Mark Twain” substituir “Samuel Lan-
ghorne Clemens” em 4 sem mudar o seu valor de verdade; o resultado é uma frase falsa, dado que
(suponhamos) o Alberto viu uma fotografia de Twain e está convicto de que ele era de estatura
mediana. Na terminologia de W. V. Quine (1960), a posição frásica ocupada pelo nome em 4 é refe-
rencialmente opaca — ou “opaca” apenas, para abreviar — em vez de ser referencialmente transpa-
rente (“opaca” quer dizer apenas que inserir um termo singular diferente na posição em causa
pode mudar o valor de verdade dessa frase). O que causa a opacidade é a construção “acredita
que,” dado que a frase “Samuel Langhorne Clemens tinha menos de um metro e meio de altura,”
por si mesma, é transparente: se Clemens tinha menos de um metro e meio de altura, então é evi-
dente que também Twain tinha menos de um metro e meio de altura, dado tratar-se da mesma
pessoa.

A teoria das descrições de Russell

Russell formulou inicialmente os quatro quebra-cabeças em termos de descrições definidas e não de


nomes próprios, porque estava interessado na lógica da palavra “o.” (“Pode parecer excessivo
dedicar dois capítulos [de Introdução à Filosofia Matemática] a uma palavra, mas para o matemáti-
co filosófico é uma palavra de imensa importância: como o gramático de Browning com o enclítico
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, eu daria a doutrina desta palavra se estivesse “morto da cintura para baixo” e não apenas pre-
so”3 (1919: 167).)
Russell argumentou com base nos quebra-cabeças, o que não é surpreendente, que as des-
crições definidas são dotadas de significados que ultrapassam os seus referentes e que contribuem
para o significado geral da frase. A sua teoria das descrições, como tem desde então sido apelidada,
assume a forma de uma definição contextual da palavra “o” tal como ocorre nas descrições defini-
das típicas. Isto é, em vez de definir a palavra explicitamente (como se faria para completar a fór-
mula “o =def …”?), Russell oferece uma receita para parafrasear tipos canónicos de frases completas
que contêm “o,” de modo a exibir indirectamente o papel desempenhado por “o,” revelando aquilo
a que chamava as “formas lógicas” das frases. (Russell não aborda os usos plurais de “o,” nem os
seus usos genéricos, como “A baleia é um mamífero.” Note-se que se pode formar descrições defi-
nidas por meio de possessivos, por exemplo, como em “o meu irmão” ou “A sanduíche de salada de
ovo da Doris,” que em inglês se exprimem sem artigos definidos.)*
Eis a definição contextual de Russell de “o.” Tomemos uma frase paradigmática da forma
“O F é G”:

5) O autor de Waverley era escocês.4

5 parece uma simples frase sujeito-predicado, referindo-se a um indivíduo (Sir Walter Scott) e pre-
dicando-lhe algo (ser escocês). Mas as aparências são enganadoras, afirma Russell. Note-se que o
termo singular ostensivo, “O autor de Waverley,” contém a nossa problemática palavra “o” à frente
de uma expressão predicativa, e note-se também que o significado dessa expressão desempenha
um papel crucial na nossa capacidade para reconhecer ou seleccionar o seu referente; para encon-
trar o referente temos de procurar alguém que tenha realmente escrito Waverley. Russell sugere
que “o” abrevia uma construção mais complexa que envolve o que lógicos e linguistas chamam
quantificadores, palavras que quantificam termos gerais (“todos os adolescentes,” “algumas bana-
nas,” “seis gansos,” “a maior parte dos polícias,” “nenhumas lâmpadas,” etc.). Na verdade, Russell
pensa que, tomada no seu todo, 5 abrevia uma conjunção de três afirmações gerais quantificadas,
nenhuma das quais faz referência a Scott em particular:

5a) Pelo menos uma pessoa escreveu Waverley.


5b) No máximo uma pessoa escreveu Waverley.

3
Não, desculpe, terá de obter esta história das biografias de Russell.
*
Note-se também que em português se usa os termos “o” e “a” não para exprimir uma descrição
definida, mas apenas familiaridade, como quando dizemos que a Maria foi à praia, contrastando com a afirma-
ção de que Ruth Barcan Marcus é uma filósofa importante. N. do T.
4
Russell usou o termo Scotch em vez de Scotish. (Desde finais do séc. XX que Scotch é um tipo de
whisky, na verdade o único tipo que pode escrever-se dessa forma em vez de se escrever whiskey.)
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5c) Quem escreveu Waverley era escocês.

Cada uma das afirmações 5a-5c são intuitivamente necessárias para a verdade de 5. Se o
autor de Waverley era escocês, então tal autor existiu; se houve mais de um autor, o “o” não devia
ter sido usado; e se o autor era escocês, segue-se trivialmente que seja quem for que escreveu o
romance também era escocês. E, tomadas em conjunto, 5a-5c parecem certamente suficientes
para a verdade de 5. Assim, parece que estabelecemos um conjunto de condições individualmente
necessárias e separadamente suficientes para 5; e isso é em si um argumento poderoso a favor da
análise de Russell.
Na notação lógica canónica, faça-se W representar o predicado “… escreveu Waverley” e S
representar “… era escocês.” Então, as três condições de Russell são as seguintes:

a) ( x) Wx
b) (x)(Wx (y) (Wy y = x))
c) (x) Wx (Wx Sx)

a-c são conjuntamente equivalentes a

d) ( x) (Wx & ((y) (Wy y = x) & Sx))

A posição de Russell é que d expressa correctamente a forma lógica de 5, contrastando com


a sua forma gramatical. Já encontrámos um exemplo desta distinção, no capítulo 1, ilustrada pela
frase “Ninguém viu o João.” Superficialmente, essa frase tem a mesma forma que “Eu vi a Marta”
— sujeito + verbo transitivo + objecto. Contudo, as duas têm propriedades lógicas marcadamente
diferentes. “Eu vi a Marta” implica que uma dada pessoa foi avistada, ao passo que “Ninguém viu o
João” implica precisamente o oposto; é equivalente a “Não é verdade que o João foi avistado” e a
“Não há alguém que tenha avistado o João.” Apesar de uma pessoa que começou a aprender portu-
guês poder pensar o contrário, “ninguém” não é realmente um termo singular, mas antes um quan-
tificador. Em notação lógica, fazendo A representar “viu” e “j” representar “João”, “Ninguém viu o
João” exprime-se como ~( x)(Axj) ou, o que é equivalente, (x)~Axj, e as regras de inferência explí-
citas que regem esta notação formal explicam o comportamento lógico da frase portuguesa tradu-
zida.
O mesmo acontece em 5, sustentou Russell, com o termo singular aparente: “O autor de
Waverley” não é realmente (isto é, a nível da forma lógica) um termo singular de modo algum, mas
uma abreviatura conveniente (ainda que enganadora) da estrutura quantificacional mais complica-
da apresentada em a-c. Como Russell afirma, o termo singular aparente “desaparece por análise.”
Os nossos quebra-cabeças surgiram de facto de aplicar princípios sobre a referência singular a
expressões que não são realmente termos singulares de modo algum, disfarçando-se apenas como
tal.
Passemos agora aos quatro quebra-cabeças para mostrar as soluções de Russell uma a uma.
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REFERÊNCIA APARENTE A INEXISTENTES

Russell formulou o problema da referência aparente a inexistentes nos seguintes termos:

6) O actual rei de França é calvo.

Voltamo-nos, pois, para o conjunto inconsistente de afirmações que correspondem a J1-J6


acima, fazendo “6” substituir “1” e mudando as letras das afirmações para “K.” (Assim, a afirma-
ção K1 é “6 é dotada de significado (significa algo, não é destituída de significado),” K2 é “6 é uma
frase sujeito-predicado,” etc.)
Parafraseemos então 6 segundo o método anterior:

Pelo menos uma pessoa é actualmente rei de França [ou melhor, reina actualmente na França],

no máximo, uma pessoa é actualmente rei de França,

seja quem for presentemente rei de França é calvo.

Sem problemas. A primeira das três conjuntas anteriores é simplesmente falsa, dado nin-
guém reinar actualmente na França; assim, a própria 6 é falsa segundo a análise de Russell. Quando
formulámos pela primeira vez o quebra-cabeças, parecia que teríamos de rejeitar J3/K3 ou (um
ultraje) J6/K6, dado J2 parecer tão óbvia quanto as outras inegáveis afirmações J. Mas agora Rus-
sell nega engenhosamente a afirmação K2, “6 é uma frase sujeito-predicado,” dado negar que “O
actual rei de França” seja “realmente” um termo singular. Claro que 6 tem a forma sujeito-
predicado no modo gramatical superficial. Mas note-se uma vez mais que as nossas três conjuntas
são todas afirmações gerais, nenhuma mencionando qualquer indivíduo específico que corresponda
ao alegado rei; “o rei” não surge na forma lógica como sujeito.
(Alternativa e menos dramaticamente, poderíamos manter K2, entendendo que alude à
forma gramatical superficial, e rejeitar K3 com base na ideia de que uma frase que superficialmen-
te é do tipo sujeito-predicado pode ser dotada de significado sem seleccionar qualquer indivíduo
particular, pois abrevia um trio de afirmações puramente gerais.)

EXISTENCIAIS NEGATIVAS

Apliquemos a análise de Russell a 7:


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7) O actual rei de França não existe.

Ora, há uma paráfrase russelliana de 7 que a deixa tão anómala quanto parece ao ouvinte ingénuo.
Trata-se da paráfrase que toma “existe” como um predicado comum, como “era escocês” ou “é
calvo,” e entende que “não” modifica ou se aplica a esse predicado:

Pelo menos uma pessoa é actualmente rei de França,

no máximo uma pessoa é actualmente rei de França,

seja quem for presentemente rei de França não existe.

A anomalia é que a primeira conjunta assere a existência de um rei actual, ao passo que a
terceira conjunta a nega. Não admira que 7 nos pareça esquisita. Para dar sentido a 7, não pode-
mos pensar que “não” modifica o verbo “existe,” mas antes que se aplica ao resto de 7, deste
modo:

Não: (O presente rei de França existe). [Isto é, é falso que: o presente rei de França exista],

que é obviamente o que quereria dizer alguém que proferisse 7 seriamente. Depois aplicamos o
padrão de análise de Russell dentro do “não,” como se segue:

Não: (Pelo menos uma pessoa é actualmente rei de França, e no máximo uma pessoa é presentemente
rei de França e seja quem for presentemente rei de França existe).

Em símbolos:

~( x) (Rx & ((y) (Rx y = x) & Ex))

em que “E” representa “existe.” (Na verdade, “existe” é em si tratado como um quantificador na
teoria lógica, e por isso ( z) (z = x) de substituir apropriadamente a conjunta Ex, o que é redundan-
te.) O conteúdo intuitivo de 7 é apenas “Ninguém é sozinho rei de França,” ou “Ninguém sozinho
reina na França,” e a paráfrase de Russell tem a virtude de ser precisamente equivalente a isso. Em
lugar algum da análise de Russell seleccionamos um indivíduo para dizer que esse indivíduo não
existe, de modo que o problema das existenciais negativas desaparece, pelo menos no caso das
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descrições definidas.
Nesta compreensão preferencial de 7, a descrição ocorre no que Russell chama posição
“secundária”; isto é, interpretámos os seus quantificadores “pelo menos,” “no máximo” e “seja
quem for” de modo a ficarem dentro do “não.” A penúltima paráfrase, que preterimos, dava à des-
crição uma posição “primária,” colocando-a primeiro, na ordem lógica, com o “não” no seu interior
e por ela regida. A uma distinção de significado deste tipo chama-se distinção de âmbito: na termi-
nologia mais moderna, na leitura secundária os quantificadores têm um âmbito “curto,” ficando
sob o âmbito de “não,” que assim tem âmbito longo; na leitura primária os quantificadores não
ficam sob o âmbito de “não,” sendo o “não” que fica sob o âmbito dos quantificadores.

O QUEBRA-CABEÇAS DE FREGE

Eis um exemplo com uma descrição definida:

8) A actual rainha de Inglaterra é [um e o mesmo indivíduo que] Elisabete Windsor.

O termo da esquerda é uma descrição definida, por isso eliminemo-la por paráfrase à maneira de
Russell:

Pelo menos uma pessoa é actualmente rainha de Inglaterra [reina actualmente na Inglaterra],

no máximo uma pessoa é actualmente rainha de Inglaterra,

seja quem for que actualmente é rainha de Inglaterra é [um e o mesmo que] Elisabete Windsor.

Em símbolos:

( x) (Rx & ((y) (Ry y = x) & x = e)).

Agora vemos facilmente por que razão a nossa afirmação de identidade original não é tri-
vial. Claro que descobrimos algo quando ouvimos a paráfrase de Russell, algo de substancial sobre
Elisabete e também sobre a actual rainha. E é claro que a frase de identidade é contingente, dado
que outra pessoa qualquer poderia ter sido rainha (poderia até não haver rainha), Elisabete poderia
ter fugido de casa para formar uma banda de rock, ou para fazer qualquer outra coisa, em vez de
ser coroada. A teoria das descrições parece explicar correctamente o conteúdo intuitivo das afir-
mações de identidade. Note-se que, segundo a perspectiva de Russell, a afirmação só superficial-
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mente é uma afirmação de identidade; na verdade é uma predicação, atribuindo uma propriedade
relacional complexa a Elisabete. Isto deixa-nos com o problema de saber como uma afirmação de
identidade genuína poderia ser simultaneamente verdadeira e informativa, o que abordaremos no
capítulo 3.

SUBSTITUIBILIDADE

Regressemos ao Alberto. Ele tem estado a estudar filosofia e:

9) O Alberto acredita que o autor de O Nada e a Seridade é um pensador profundo.

Ora, o Alberto não está ciente de que o autor de O Nada e a Seridade tem um segundo emprego
clandestino no qual escreve pornografia barata e repugnante. Não podemos por isso fazer o termo
“o autor de Veterinárias Ardentes” substituir “o autor de O Nada e a Seridade” em 9 sem mudar o
seu valor de verdade; o resultado é uma frase falsa, dado que o Alberto acredita que o autor de
Veterinárias Ardentes é um palerma tarado. (Receio que isto prova que o Alberto leu Veterinárias
Ardentes.) A posição ocupada pela descrição definida em 9 é opaca.
Em 9, a descrição definida ocorre como parte do que o Alberto acredita, de modo que
começamos a nossa paráfrase russelliana com “o Alberto acredita” e depois aplicamos o padrão de
análise de Russell, dando à descrição uma ocorrência secundária ou âmbito curto:

O Alberto acredita no seguinte:


(pelo menos uma pessoa escreveu Nada e Seridade,

no máximo uma pessoa escreveu Nada e Seridade,

seja quem for que escreveu Nada e Seridade é um pensador profundo).

Esta é uma explicação bastante boa do que o Alberto acredita.5 E agora é óbvio por que não

5
Como é de esperar, há uma segunda maneira de aplicar a análise a 9, tal como houve duas maneiras
de a aplicar a 7, por podermos escolher onde pôr o “não.” A outra maneira é dar à descrição ocorrência primá-
ria ou âmbito longo com respeito a “O alberto acredita que.” A paráfrase russelliana seria então: “Pelo menos
uma pessoa escreveu O Nada e a Seridade, e no máximo uma pessoa escreveu O Nada e a Seridade, e seja
quem for que escreveu O Nada e a Seridade é tido pelo Alberto como um pensador profundo.” Nesta leitura, 9
assere uma relação de crença entre o Alberto e o nosso autor clandestino — a própria pessoa, independente-
mente de como o descrevemos — mas é excepcionalmente difícil de ouvir esta leitura, especialmente porque
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podemos em 9 usar “o autor de Veterinárias Ardentes” como substituto, pois a análise correspon-
dente da frase resultante é a seguinte:

O Alberto acredita no seguinte:


(Pelo menos uma pessoa escreveu Veterinárias Ardentes,

no máximo uma pessoa escreveu Veterinárias Ardentes,

seja quem for que escreveu Veterinárias Ardentes é um pensador profundo).

Dado que esta interpretação atribui uma crença completamente diferente ao Alberto, não é
de espantar que seja falsa, apesar de 9 ser verdadeira. (Claro que a nível da forma lógica nada
substituímos, pois os termos singulares “desapareceram por análise,” não estando já presentes para
poderem ser substituídos.)
Os quatro quebra-cabeças tornam claro que as descrições definidas não se conectam ao
mundo apenas por nomeação directa.6 Mas precisamos de uma teoria positiva de como as descrições
se conectam ao mundo. Russell forneceu uma teoria a favor da qual há belíssimos incentivos. Note-
se que apesar de não se atribuir referentes às descrições definidas do mesmo modo que aos nomes,
e apesar de não serem “realmente” termos singulares, de todo em todo, pretende-se mesmo assim
que tenham indivíduos singulares que lhes respondam; quando uma descrição tem de facto o indiví-
duo que se pretende que lhe corresponda — isto é, quando existe realmente um único tal e tal —
direi que a descrição tem denotatum semântico ou referente semântico. Mas a conexão entre uma
descrição definida e o seu referente semântico é (do ponto de vista de Russell) muito menos directo
do que a conexão entre um nome simples e o que seu titular.

quaisquer descrições com a mesma referência podem ser aí inseridas sem mudar o valor de verdade. O enten-
dimento “secundário” de 9 é muito mais comum e natural.
6
Russell acrescentou um quinto quebra-cabeças, a que podemos chamar o problema do terceiro
excluído: nem 1, “O actual rei de França é calvo,” nem a sua negação aparente, “O actual rei de França não é
calvo,” é verdadeira. Contudo, uma lei da lógica afirma que, dada uma frase e a sua negação, uma delas tem
de ser verdadeira. (Russell acrescentou: dado parecer que o rei não é calvo nem deixa de sê-lo, “os hegelia-
nos, que gostam muito de sínteses, concluirão provavelmente que usa peruca” (1905: 48).) Deixo ao leitor
como exercício a resolução deste quinto quebra-cabeças, à luz dos tratamentos de Russell dos outros quatro.
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Objecções à teoria de Russell

Por mais esplêndido que seja o feito de Russell, levantaram-se várias objecções contra a teoria das
descrições, principalmente formuladas por Strawson (1950). Antes de as examinarmos, note-se uma
crítica importante que se poderá fazer neste momento, apesar de Russell se lhe ter rapidamente
antecipado.
Quando formulei os quatro quebra-cabeças com que começámos, chamei-lhes quebra-
cabeças “sobre termos singulares.” Desde então expus cada um deles usando exemplos com descri-
ções definidas, usando a teoria das descrições de Russell para os anular. Mas os quebra-cabeças são
realmente sobre todos e quaisquer termos singulares, e não apenas sobre descrições. Já usámos
nomes próprios para referir aparentemente inexistentes, e poderíamos até usar pronomes (“tu,”
proferido por Scrooge ao fantasma de Marley); o quebra-cabeças de Frege e da substituibilidade
emergem é claro com nomes próprios. Estes parecem constituir os mesmíssimos problemas do que
os que Russell formulou em termos de descrições. Parece que Russell se perdeu pura e simplesmen-
te pelo caminho, pois fez uma teoria que pela sua natureza se aplica apenas a uma subclasse muito
especial de termos singulares, ao passo que uma solução adequada aos quebra-cabeças deveria
generalizar-se.
A solução de Russell para este problema foi ainda mais engenhosa do que a própria teoria
das descrições. Sinteticamente, consistiu em invocar outra distinção entre a aparência de superfí-
cie e a realidade lógica subjacente, e defender que aquilo a que comummente chamamos nomes
próprios não o são realmente, sendo antes abreviaturas de descrições definidas. Mas só no próximo
capítulo examinaremos esta tese.
A crítica de Strawson foi radical e penetrante. Na verdade, Russell e Strawson eram figuras
de proa de duas abordagens muito diferentes ao estudo da linguagem (e, menos acentuadamente,
de dois grandes sistemas rivais da filosofia do séc. XX), apesar de não entrarmos nessa questão até
ao capítulo 6. Para preparar as coisas para as objecções de Strawson, farei apenas notar que ao
passo que Russell pensava em termos de frases tomadas em abstracto como objectos em si, e das
suas relações lógicas em particular, Strawson salientava o modo como os seres humanos em situa-
ções conversacionais concretas usam e reagem às frases. O artigo mais famoso de Russell (1905)
chamava-se “On Denoting,” e nesse artigo a denotação é tomada como uma relação entre uma
expressão, considerada em abstracção, e a coisa que é o referente ou denotatum da expressão. O
título de Strawson era “On Referring,” que se pretendia irónico, pois Strawson não concebia a refe-
rência como uma relação abstracta entre uma expressão e uma coisa, mas como um acto executado
por uma pessoa num dado momento e numa ocasião. Esta maneira de ver as coisas deu a Strawson
uma perspectiva muitíssimo nova dos quatro problemas.
Strawson defende que as expressões não referem de todo em todo; as pessoas referem,
usando expressões com esse propósito. Isto faz lembrar o lema da Associação Nacional Norte-
Americana de Armas de Fogo: “São as pessoas que matam outras pessoas e não as armas.” Há cer-
tamente um sentido óbvio em que Strawson tem razão. Usando um dos seus exemplos, se eu escre-
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ver “Esta vermelha é muito boa,” “Esta” nada refere — e nenhuma afirmação determinada se pro-
duziu — até eu fazer algo que a faça referir. Uma expressão só acabará por referir se eu a usar num
contexto adequadamente preparado, de modo a referir uma coisa particular, ou uma pessoa. Mas
isto é uma questão de usar a expressão, e quando a uso sou eu que estou a fazer referir, e não a
expressão.

OBJECÇÃO 1

Segundo Russell, a frase 6 (“O actual rei de França é calvo”) é falsa em virtude da inexistência de
tal rei. Strawson faz notar que esse veredicto é implausível. Suponha-se que alguém chega ao pé de
nós e profere 6. Será que quem a ouvisse reagiria dizendo “Isso é falso” ou “Discordo”? Certamente
que não. Ao invés, sustenta Strawson, quem fala produziu apenas uma expressão ostensivamente
referencial que não funcionou; quem fala foi pura e simplesmente mal sucedido, nada referiu, e
por isso não fez uma afirmação completa. A sua elocução é certamente deficiente, mas não do
mesmo modo que “A actual rainha da Inglaterra não tem filhos.” Não é uma elocução incorrecta
mas antes abortiva; não tem sequer hipótese de ser falsa. Dado que nenhuma afirmação propria-
mente dita foi feita desde logo, segue-se que nada de verdadeiro nem de falso se disse. O interlo-
cutor ou pura e simplesmente não compreenderia ou diria “Espera aí,” passando então a questionar
a pressuposição da elocução (“Não compreendo o que estás a dizer; a França não tem qualquer
rei”).7 Consequentemente, Strawson resolve o problema da referência aparente de entidades ine-
xistentes negando K3: 6 é dotada de significado dado ter um uso legítimo na linguagem, podendo
ser usada para dizer coisas verdadeiras ou falsas se o mundo (ou os franceses) cooperar mais, mas
não por ser bem-sucedida ao seleccionar uma coisa individual.
Russell concebia uma frase dotada de significado como uma frase que tem significado ou,
usando as suas palavras, uma frase que exprime uma proposição. A forma lógica de uma frase, do
seu ponto de vista, é na verdade a forma lógica da proposição que a frase exprime. Mas as proposi-
ções são, pela sua própria natureza, verdadeiras ou falsas. Strawson evita falar de “proposições,” e
nega que as frases sejam coisas de um tipo que possam ser verdadeiras ou falsas. O que é dotado
das propriedades da verdade e da falsidade são ao invés as afirmações feitas quando quem fala
consegue dizer algo, e nem todo o acto de elocução é bem-sucedido desse modo, pois nem todas as
frases dotadas de significado são sempre usadas para fazer uma afirmação.
Os russellianos têm uma resposta comum à objecção 1, mas depende de algumas noções
que desenvolverei só no capítulo 13, de modo que vou protelar a discussão até então.

7
Strawson vê que há excepções; ocasionalmente, uma frase contendo uma descrição irreferencial é
inequivocamente falsa. Veja-se Neale (1990), Lasersohn (1993) e Yablo (2006).
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OBJECÇÃO 2

Strawson critica também a tese, que atribui a Russell, de que “parte do que [quem fala] estaria a
asserir [ao proferir 6] seria que presentemente existe um e um só rei de França” (1950: 330). Essa
tese é demasiado implausível, pois apesar de quem fala pressupor a existência de um e um só rei,
isso não faz certamente parte do que essa pessoa assere.
Mas isso é uma incompreensão: Russell não defendeu tal tese. Russell nada disse sobre actos
de asserção. Talvez Strawson esteja a pressupor em nome de Russell que seja o que for que é logi-
camente implicado por uma frase é necessariamente asserido por quem profere essa frase. Mas este
princípio é falso: se eu disser “O gordo do Toninho não consegue correr nem subir a uma árvore,”
não estarei a asserir que o Toninho é gordo, apesar de a minha frase o implicar logicamente; se eu
disser “O Toninho tem um metro e setenta,” não estarei a asserir que o Toninho mede mais de três
quilómetros ou menos de vinte e oito quilómetros.

OBJECÇÃO 3

Strawson faz notar que muitas descrições dependem do contexto. O exemplo de Strawson é o
seguinte:

10) A mesa está cheia de livros.

Presumivelmente, o termo sujeito é uma descrição definida, usada de um modo comum, e


não de um modo diferente ou pouco habitual. Mas se aplicarmos a análise de Russell obtemos “Pelo
menos uma coisa é uma mesa e no máximo uma coisa é uma mesa e seja o que for que é uma mesa
está cheia de livros” — o que implica, pela segunda conjunta, que no máximo há uma só mesa em
todo o universo. Isto não pode ser afastado com um encolher de ombros. Por mais que isso o con-
trarie, Russell terá de dar atenção ao contexto da elocução.
Russell tem várias opções. Afinal, Strawson não tem o monopólio do facto de que quando
alguém diz “A mesa,” os interlocutores sabem geralmente de que mesa se está a falar, pois algo no
contexto a realçou. Pode ser a única mesa à vista, ou a única na sala, ou a mesa de que acabámos
de falar. Russell pode dizer que ocorre aqui uma elipse; que, no contexto, “A mesa” abrevia uma
descrição mais elaborada que é satisfeita univocamente. (Como veremos no próximo capítulo, Rus-
sell não se opunha à hipótese da elipse.)
A perspectiva da elipse tem algumas implicações perturbadoras. Russell pensa que a forma
lógica é objectivamente real — que as frases têm mesmo as formas lógicas por si postuladas. Assim,
se “A mesa” é uma elipse, tem de haver uma resposta determinada à pergunta “É uma elipse do
quê?” E a resposta será importante porque 10 dirá coisas completamente diferentes em função do
candidato que se escolher. Se dissermos que “A mesa” quer dizer a mesa desta sala, então introdu-
zimos o conceito “sala,” e interpretámos 10 de um modo que é literalmente sobre uma sala, tendo,
na verdade, o predicado “sala” escondido na sua estrutura lógica subjacente.
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Talvez uma abordagem melhor seja apelar à quantificação restringida (como em Lycan 1984
e Neale 1990). Dizemos muitas vezes coisas como “Toda a gente gosta dela,” não querendo falar de
todas as pessoas do universo, mas de todas as pessoas num certo círculo social indicado contex-
tualmente. Ou “Já ninguém vai a esse restaurante,” que é improvável que queira dizer que nenhum
ser humano em absoluto vai lá; é mais comum que queira apenas falar de pessoas do nosso género
(seja ele qual for).8 O que os lógicos chamam os domínios que estão sob o âmbito dos quantificado-
res não têm de ser universais, sendo antes muitas vezes classes particulares aproximadamente
pressupostas no contexto. Na verdade (e isto é algo que o leitor pode verificar), praticamente toda
a quantificação que ocorre em português foi restringida: “Para mim a pizza pode ser com qualquer
coisa,” “Não há cerveja,” ou até “Não trocaria este carro por coisa alguma deste mundo.”
É claro que a análise russelliana habitual começa com um quantificador: “Pelo menos uma
coisa é uma mesa…” Consideremos simplesmente que o quantificador foi apropriadamente restrin-
gido. A mesma restrição aplicar-se-á a “no máximo uma coisa,” e por isso perde-se a implicação
indesejada de que há no máximo uma mesa no universo; 10 implicará agora apenas que há no
máximo uma mesa do género contextualmente indicado, o que não levanta problemas.
O apelo da quantificação restringida difere da hipótese da elipse por não exigir que em 10
se mencione clandestinamente materiais conceptuais explícitos. A restrição do quantificador é mais
parecido a um pronome demonstrativo silencioso: “No máximo uma mesa desse género,” em que o
contexto fixa a referência do termo “desse.” Assim, parece que resolvemos o problema da mesa
por Russell.
Mas há mais casos problemáticos exasperantes. Considere-se o seguinte:

11) Se um bispo encontra outro, o bispo abençoa esse outro. (Heim 1990)

Para mais exemplos veja-se Reimer (1992), Stanley e Szabó (2000), Ludlow e Segal (2004) e Lepore
(2004).
Além disso, há ainda um problema geral de como os quantificadores ficam restringidos pelo
contexto, o que determina exactamente os domínios restritos (que são quase sempre demasiado
vagos para serem úteis), e como raio os interlocutores identificam os domínios certos tão depressa
e sem esforço. Mas esse problema geral é algo que temos em qualquer caso; não é uma objecção
especial à teoria das descrições de Russell.
Faço uma pausa para oferecer uma refutação parcial da noção de Strawson de que são as
pessoas que referem e não as expressões. Relembre-se o lema da Associação Nacional Norte-
Americana de Armas de Fogo: “São as pessoas que matam outras pessoas e não as armas.” Uma
resposta apropriada é esta: “Sim, mas as pessoas matam muito mais fácil e eficientemente se usa-
rem armas,” e há um sentido perfeitamente bom em que a arma matou realmente a vítima. Assim,

8
G. K. Chesterton baseia inteiramente neste fenómeno uma das suas histórias de mistério do Padre
Brown, “O Homem Invisível.”
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há pelo menos um sentido secundário no qual as expressões referem. Nada absolutamente há de


errado em dizer que, num contexto particular, a expressão “A mesa” refere a peça de mobiliário
proeminente. Além disso, já introduzimos a noção de “referente semântico” de uma descrição: no
contexto, recorde-se, o referente semântico de uma descrição é o objecto (se houver algum), seja
ele qual for, que de facto satisfaz univocamente a descrição.
Note-se que também Russell objecta a que se fale do referente de uma descrição. Russell
quer insistir que as descrições não são na verdade, de modo algum, expressões referenciais; uma
frase que contenha uma descrição abrevia imenso material quantificacional inteiramente geral e
que não é sobre alguém em particular. Mas a minha noção de um referente semântico aplica-se
igualmente contra Russell neste aspecto. Há pelo menos esse sentido secundário no qual uma des-
crição pode ter um referente. E para um russelliano é perfeitamente inócuo conceder que as des-
crições definidas referem realmente, desde que tenha em conta que não o fazem directamente, do
modo como podemos pensar que os nomes próprios referem.
Volto-me agora para uma objecção apresentada por Keith Donnellan (1966).

OBJECÇÃO 4

Donnellan reparou em casos nos quais parece que realmente usamos descrições definidas como se
fossem apenas etiquetas ou nomes, unicamente para referir indivíduos. E em tais casos a análise
russelliana não capta o que parece estar a ser dito quando as frases relevantes são proferidas.
Apesar de Donnellan pretender que o seu artigo é modestamente um juízo sobre a disputa
Russell-Strawson, a sua ideia sagaz tem uma aplicação mais lata, e eu vou expô-la nos seus próprios
termos.

A DISTINÇÃO DE DONNELLAN

Donnellan chamou a atenção para o que chamou o uso referencial de uma descrição definida, em
contraste com o seu uso atributivo. O tipo mais óbvio de uso referencial é quando uma descrição
ganha letras maiúsculas e é na verdade usada como título. Um exemplo clássico é “O Santo Império
Romano,” cujo referente, como Voltaire observou, não era santo, nem romano, nem um império.
Ou “The Grateful Dead,” que é o nome de uma banda de rock; as frases que contenham este título
não querem dizer que pelo menos uma coisa é um morto grato e…
Russell poderia retorquir com toda a justiça que, como mostram as letras maiúsculas, estes
títulos não estão a ser usados de modo algum como descrições, mas (é claro) como títulos aglutina-
dos. “O Cisne” é o nome de uma peça instrumental de Saint-Saëns, e as frases que contêm esse
título são sobre música e não aves aquáticas. Mas Donnellan mostra que há casos menos formais nos
quais usamos descrições unicamente para dar atenção a um indivíduo particular independentemen-
te dos atributos dessa pessoa ou coisa.
Para efeitos de contraste, eis um exemplo russelliano comum. Descobrimos o corpo do Sil-
va, vítima de homicídio e eu digo
P á g i n a | 33

12) O homicida do Silva é louco

querendo dizer que quem cometeu este terrível crime é louco. Donnellan não se opõe neste caso a
Russell; este é o que Donnellan chama o uso atributivo da descrição.
Mas suponha-se em vez disso que não vimos o corpo e que não temos qualquer outro conhe-
cimento directo do caso; o Jonas foi preso e acusado de homicídio e estamos a assistir ao julgamen-
to. A argumentação da acusação é excelente, e estamos privadamente a pressupor que o Jonas é
culpado; além disso, o Jonas está a agitar os olhos e a salivar como um homicida. Neste contexto,
eu afirmo também 12, “O homicida do Silva é louco.” Mas neste contexto estou apenas a usar a
expressão “O homicida do Silva” para referir a pessoa que estamos a ver, o réu, independentemen-
te dos seus atributos. Além disso, o que eu afirmo é verdade se, e só se, o réu é louco, independen-
temente de ter ou não cometido o homicídio. É a isto que Donnellan chama o uso referencial.
A objecção de Donnellan à teoria das descrições é apenas que a teoria não deu atenção ao
uso referencial; Russell escreve como se todas as descrições fossem usadas atributivamente. Mas,
contra Strawson, Donnellan lamenta que também este filósofo não tenha visto o uso atributivo,
escrevendo como se todas as descrições fossem usadas referencialmente, num contexto, para cha-
mar a atenção de alguém para uma pessoa, lugar ou coisa particular. Assim, tanto Strawson como
Russell estavam enganados ao pensar que as descrições definidas funcionam sempre de uma dada
maneira, pois existe uma ambiguidade que nenhum deles reconhece. Donnellan não toma posição
quanto ao tipo de ambiguidade em causa; em particular, não tenta decidir se a frase 12 em si tem
dois significados diferentes que expliquem os “usos” evidentemente distintos da descrição.
Donnellan dá várias caracterizações informais do novo uso referencial: “Quem usa uma des-
crição definida referencialmente numa asserção […] usa a descrição para permitir que a sua
audiência estabeleça de quem está a falar, ou do quê” (p. 285). A descrição não “ocorre essencial-
mente,” sendo “meramente um instrumento para desempenhar uma dada tarefa — chamar a aten-
ção para uma pessoa ou coisa — e em geral poder-se-ia usar qualquer outro dispositivo que desem-
penhasse a mesma tarefa, outra descrição, ou um nome” (ibid.). “Temos a expectativa e a intenção
de que a nossa audiência fique ciente de quem temos em mente […] e, mais importante, que saiba
que é acerca dessa pessoa que vamos dizer algo” (pp. 285-286). Tudo isto parece claramente cor-
recto, no caso do “homicida do Silva.”9
Contudo, Donnellan acrescenta uma caracterização complementar: no uso atributivo de “O

9
Na verdade, as caracterizações de Donnellan não se ajustam perfeitamente entre si. Por exemplo,
mesmo no caso referencial que Donnellan tem em mente, nem sempre “temos a expectativa e a intenção de
que a nossa audiência fique ciente de quem temos em mente e, mais importante, que saiba que é acerca des-
sa pessoa que vamos dizer algo,” pois posso dizer apenas para mim mesmo “O homicida do Silva é louco,” sem
ter qualquer expectativa ou intenção de que alguém se dê conta de seja o que for. A “distinção de Donnellan”
parece uma família de distinções relacionadas mas distintas; os comentadores tentaram resolver este imbró-
glio (por exemplo, Searle 1989b; Bertolet 1980; Devitt 1981b).
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ϕ é Y,” “se nada é o ϕ, então de nada se disse que é Y,” ao passo que no uso referencial “o facto de
nada ser o ϕ não tem esta consequência” (p. 287). Donnellan toma este aspecto de Linsky (1963),
que oferece um exemplo de alguém (talvez numa festa) que observa uma mulher e o seu acompa-
nhante e diz: “O marido dela dá-lhe muita atenção.” Donnellan e Linsky concordam que mesmo que
a mulher não seja de facto casada, é o seu acompanhante que é referido, e que o que é dito é que
essa pessoa lhe dá muita atenção, independentemente de ser ou não o marido dela. Deste ponto de
vista, o referente real difere daquilo a que chamei o referente semântico, não havendo neste
exemplo de Linsky qualquer referente semântico.
Ou suponha-se que no caso do Silva, contra todos os indícios, o Jones está inocente; o Silva
cometeu suicídio e não há qualquer homicida. (Ou talvez o Silva não esteja sequer morto, tendo
permanecido num estado de animação suspensa profunda.) Intuitivamente, sustenta Donnellan, isso
não muda o que eu disse. E o que eu disse é verdadeiro se, e só se, o Jonas é louco, independente-
mente de não existir qualquer homicida. Donnellan dá o exemplo complementar de um conviva
numa festa que vê uma pessoa com um ar interessante a beberricar algo de um copo de martíni; o
conviva pergunta “Quem é o homem que está a beber um martíni?” Na verdade, o copo tem água
apenas mas, sustenta Donnellan, a pergunta do conviva é sobre o homem com um ar interessante, e
não (digamos) sobre Dino, que está na sala de bilhar, e que na verdade é o único homem na festa
que está a beber um martíni.
Exemplos como este, a que por vezes se chama casos de “quase insucesso,” são objecto de
disputa. Seguindo Grice (1957) e desprezando Strawson, Kripke (1979a) distingue entre o que uma
expressão linguística em si mesma significa ou refere e o que quem fala quer dizer ou refere ao
usar a expressão. Por exemplo, tomada literalmente, a frase “O Alberto é muito elegante” significa
que o Alberto é muito elegante, mas pode ser usada sarcasticamente para dizer que o Alberto é um
lorpa repugnante. (Teremos mais a dizer sobre as disparidades entre o significado de quem fala e o
significado literal da expressão nos capítulos 7 e 13.) Do mesmo modo, posso dizer “O homicida do
Silva,” expressão que, tomada literalmente, quer dizer seja quem for que matou o Silva, e querer
honestamente com isso falar do réu Jonas e ser correctamente entendido desse modo. No exemplo
de Linsky, quem fala quer dizer o acompanhante da senhora, mas a expressão “O marido dela,”
segundo as regras do português, significa seja quem for que está casado com ela (se houver
alguém); o conviva da festa de Donnellan quer obviamente falar do homem com um ar interessante,
apesar de a expressão “o homem que está a beber um martíni” significar literalmente o homem,
seja ele qual for, que está de facto a beber um martíni. Nos casos de “quase insucesso,” quem fala
quer dizer o que Donnellan diz que quer dizer, e quer dizer coisas verdadeiras, mas (como acontece
com “O Alberto é muito elegante”) fá-lo proferindo frases que são de facto falsas.
Definamos agora um pouco mais tecnicamente a noção de referência de quem fala, para a
contrastar com a referência semântica. O referente de quem fala ou profere uma descrição numa
ocasião do seu uso é o objecto, se algum houver, para o qual quem fala ou usou a descrição tencio-
na chamar a atenção da sua audiência. (O referente de quem fala é o objecto que quem profere
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algo tem em vista.)


Felizmente, a comunicação ocorre com o significado e a referência de quem fala: se eu
quero dizer (significado de quem fala) Jonas quando digo “O homicida do Silva” e o leitor pensa que
eu quero falar do Jonas e entende que eu afirmei que Jonas é louco, então o leitor compreendeu-
me correctamente e a comunicação foi bem-sucedida; não importa que a frase que proferi era falsa
segundo o seu significado literal, tal como não importa que “O Alberto é muito elegante” seja lite-
ralmente falsa.
Assim, segundo Kripke, Donnellan não mostrou que uma frase que contém uma descrição
definida pode ser verdadeira ainda que nada (ou algo sem relação) seja o referente semântico da
descrição.
Ainda que Kripke tenha razão quanto aos exemplos de quase insucesso, é importante man-
ter uma versão da distinção de Donnellan. A distinção é amplamente ilustrada pelo exemplo original
do homicida do Silva, entre outros, ainda que Donnellan não tenha razão quanto aos significados e
valores de verdade das frases de quase insucesso. O artigo de Donnellan levanta a questão de espe-
cificar as circunstâncias sob as quais se é bem-sucedido ao referir, usando uma descrição, a pessoa
ou coisa que se tem a intenção de referir, e mostrou que isto nem sempre acontece por força do
referente semântico. Além disso, a distinção é inequivocamente importante para o valor de verda-
de das frases que incluem descrições em orações de certos tipos. Suponha-se que eu dizia:

13) Sei que isso é verdade porque o ouvi da médica local.

O leitor poderia perguntar-me: “Porque ela é médica e isto é uma questão médica, ou antes porque
o ouviste dela e ela é também uma autoridade em criminologia?” O valor de verdade de 13 pode
depender de “a médica local” ser usada atributiva ou referencialmente. Considere-se alternativa-
mente outro exemplo:

14) Quem me dera que o marido dela não fosse o marido dela.

A leitura mais natural de 14 é tomar a primeira ocorrência da descrição referencialmente e


a segunda atributivamente; o desejo de quem fala é que o homem em questão não fosse casado
com a mulher em causa. Mas 14 tem várias outras leituras, dependendo do modo como as descri-
ções são tomadas, apesar de serem bastante tontas.
À luz da distinção de Kripke entre o referente de quem fala ou profere algo e o referente
semântico, poder-se-á ser tentado a excluir simplesmente a questão de Donnellan por ser mera-
mente verbal, defendendo-se que a teoria das descrições está mesmo assim correcta enquanto
explicação dos valores de verdade das frases tomadas literalmente, ao passo que Donnellan tem
muitas vezes razão quanto ao referente e ao significado de quem fala. Mas a ambiguidade de frases
como 13 e 14 parece continuar a escapar à análise de Russell.10

10
Um russelliano renitente poderá tentar explanar as ambiguidades em termos das ambiguidades de 7
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Além disso, ainda que tenhamos sido persuadidos por Kripke e tenhamos descontado os
exemplos de quase insucesso, continua a ser controverso se, no caso referencial, o referente efec-
tivo é sempre o referente de quem fala. Note-se que esta questão pressupõe uma terceira noção,
referente “efectivo,” que é conceptualmente distinta das outras duas. O que se tem em mente com
esta noção é que o referente efectivo é o objecto acerca do qual quem fala consegue fazer uma
afirmação (ou uma pergunta, ou dar uma ordem, etc.), deixando-se em aberto se isto tem ou não
correspondência com a interpretação semântica literal da frase proferida. (É claro, se a teoria das
descrições estiver correcta, ou o referente efectivo é sempre o referente semântico ou, dado que
segundo Russell as descrições definidas não referem de facto de modo algum, não há qualquer refe-
rente efectivo.)
MacKay (1968) argumenta que em alguns casos, mesmo que nos enganemos ao falar, o refe-
rente efectivo pode ser o semântico e não o de quem fala. Suponha-se que está uma pedra e um
livro em cima da mesa e, querendo que o leitor me traga o livro, atrapalho-me ao falar e digo “Dá-
me aí a pedra que está em cima da mesa,” usando “a pedra” referencialmente mas querendo com
isso referir o livro, pedi mesmo assim ao leitor que me dê a pedra, e o leitor não estaria a atender
ao meu pedido se me trouxesse o livro.
Ou suponha-se que lhe digo “Aposto cinco euros que o glorioso vencedor [de uma competi-
ção automóvel] tem mais de quarenta anos.” Estou a usar “o glorioso vencedor” referencialmente,
pensando em Dale Earnhart, plenamente confiante de que a corrida está ganha, e tenho-o perfei-
tamente em mente, incluindo até uma inequívoca imagem mental de Dale. Mas, apesar de ele ter
cortado a meta em primeiro lugar, na verdade não venceu a corrida; em virtude de uma questão
técnica pouco conhecida, fica em segundo lugar, atrás de Fat Freddy Phreak, que anda outra vez à
solta e entrou na competição à última da hora. Fat Freddy tem apenas vinte e dois anos. Eu devo-
lhe cinco euros.
MacKay faz notar a questão geral de que as intenções de quem fala podem ser arbitraria-
mente loucas. Suponha-se que formei a crença tresloucada de que Keith Donnellan é o filho ilegíti-
mo do Pai Natal e da Margaret Thatcher. Usando a descrição referencialmente, digo: “O bastardo
natalício da Thatcher escreveu um artigo clássico sobre as descrições.” Se o leitor conhecer as
minhas crenças bizarras suficientemente bem, conseguirá seleccionar o indivíduo certo e com-
preenderá o que quero dizer, mas ninguém pode descrever-me correctamente afirmando que Lycan
disse que Keith Donnellan escreveu o artigo clássico.
Deve questionar-se se há qualquer noção correctamente distinta de um “referente efecti-
vo.” O conceito de referente semântico é claro, e a teoria da comunicação exige o mesmo do refe-
rente de quem fala, mas talvez a ideia de um “referente efectivo” seja apenas uma confusão dos
dois baseada na nossa incapacidade para ver a diferença entre a semântica literal da frase e a teo-

e 9, resultando de se aplicar a análise de Russell dentro ou fora de “porque” e “quem me dera,” respectiva-
mente. Tente fazê-lo.
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ria da comunicação. Teríamos então de explicar de modo a eliminar o facto de termos intuições
sobre “referentes efectivos” em casos como alguns dos anteriores. Kripke segue aproximadamente
esta linha, usando uma ideia de Grice que discutiremos no capítulo 13.

ANÁFORA

Tem de se mencionar uma objecção final à teoria das descrições. Como fizemos notar, Russell ocu-
pa-se apenas do que considera o uso central de “o,” e dispensa a teoria de ter de explicar os usos
plurais ou o uso genérico. Poder-se-á pensar que não se deve estragar assim indefinidamente com
mimos uma teoria das descrições definidas. Mas em qualquer caso Russell não menciona os usos
anafóricos, e tem-se questionado por que não se deveria exigir à teoria que os abranja, dado que
ao contrário dos usos plurais e genéricos, as descrições anafóricas são ostensivamente expressões
singulares referenciais.
Em geral, uma expressão anafórica recebe o seu significado de outra expressão, a sua ante-
cedente, que habitualmente, mas nem sempre, ocorre na frase numa posição anterior, ou numa
frase anterior. Por exemplo, na frase

15) O homem que vivia ao voltar da esquina era excêntrico. Costumava lanchar alcaçuz.

o pronome elidido* da segunda frase refere-se ao homem que vivia ao voltar da esquina. Geach
(1962) chamou a tal termo “pronome preguiçoso” e sugeriu que se limita a abreviar uma repetição
ipsis verbis da expressão anterior, de modo que a segunda oração de 15 é precisamente equivalente
a “O homem que vivia ao voltar da esquina costumava lanchar alcaçuz.” A sugestão de Geach é
apenas uma de entre várias teorias dos pronomes anafóricos, mas a ideia geral é que o pronome
tem o referente que tem apenas em virtude da sua relação com a expressão antecedente.
Se Geach tiver razão, 15 não levanta qualquer problema à teoria das descrições; a sua
segunda oração seria analisada do modo habitual e essa análise parece pelo menos tão correcta
quanto outras paráfrases russellianas centrais. Mas, como Evans (1977) faz notar, um tratamento
paralelo é improcedente quando a antecedente é uma expressão quantificadora ou uma descrição
indefinida:

16) Só uma tartaruga descia a rua. Corria como se fosse perseguida por um maníaco.

17) Um coelho apareceu no nosso jardim depois do jantar. Parecia perfeitamente descontraído.

*
Ao contrário do inglês, em português é comum elidir o pronome em muitas circunstâncias, incluindo
quando usamos descrições, definidas ou indefinidas, em parte porque se trata de uma língua com mais decli-
nações do que o inglês. Por exemplo, em português podemos escrever ou dizer “Tens razão,” sem necessidade
de incluir o pronome, mas em inglês não tem sentido escrever ou dizer apenas “Are right,” elidindo o prono-
me. Nada de filosoficamente substancial parece estar associado a esta elisão estilística, contudo, pelo que não
forçámos o uso explícito dos pronomes, tal como ocorrem no original inglês. N. do T.
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A segunda oração de 16 não é equivalente a “Só uma tartaruga corria como se fosse perse-
guida…,” porque esta frase poderia ser falsa quando 16 é verdadeira (a nossa tartaruga de estima-
ção, que está na sala de jantar, tal como nós, poderia também ter estado a correr). E a segunda
oração de 17 não é equivalente a “Um coelho parecia perfeitamente descontraído,” pois essa pará-
frase não dá conta do facto de o pronome elidido original se referir a um coelho particular que
apareceu no jardim.
Russell pode com toda a justiça contrapor que ofereceu uma teoria das descrições defini-
das, e nem 16 nem 17 contêm tal coisa. Mas se os pronomes elididos de 16 e 17 não forem pregui-
çosos, por que havemos de pensar que o de 15 o é? Além disso, as próprias descrições definidas
podem ser anáforas:

18) Só uma tartaruga descia a rua. A tartaruga corria como se fosse perseguida por um maníaco.

19) Um coelho apareceu no nosso jardim depois do jantar. O coelho parecia perfeitamente descon-
traído.

É bastante plausível entender que “A tartaruga” em 18 abrevia “A tartaruga que descia a


rua,” caso em que 18 não ameaça a análise de Russell. Mas o mesmo não acontece com 19: se ten-
tamos supor que “O coelho” abrevia “O coelho que apareceu no nosso jardim depois do jantar,”
então pela cláusula habitual da univocidade, 19 implicaria que no máximo um coelho apareceu no
jardim e — repare-se — 19 em si não implica isso, mas (dado a sua expressão de abertura ser apenas
“Um coelho”) é logicamente consistente com a situação em que mais de um coelho apareceu no
jardim. É verdade que quem profere 19 sugere de algum modo que havia apenas um coelho. Mas
note-se que não seria contraditório proferir 19 e depois acrescentar: “Na verdade, apareceram
vários coelhos, e nenhum deles parecia muito preocupado.”
Neale (1990) tentou acomodar a anáfora numa teoria russelliana conservadora; Heim
(1990), Kamp e Reyle (1993) e outros argumentaram que é necessário um formato semântico mais
lato. Mas não persisto neste tema.

Nos últimos anos surgiram algumas questões novas. Por exemplo, questionou-se se o uso de uma
descrição definida realmente implica até mesmo a univocidade contextual (veja-se Szabó 2000,
2003; Abbott 2003).
Mais em geral, as relações entre as descrições definidas e as indefinidas têm sido objecto
de escrutínio (Szabó 2000 uma vez mais; Ludlow e Segal 2004).
As descrições plurais têm sido investigadas por Sharvy (1980), Neale (1990) e Brogaard
(2007), entre outros.

Sumário

Os termos singulares referem objectos individuais no mundo. Mas supor que só fazem isso conduz
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a quebra-cabeças lógicos.
Russell argumentou que as frases que contêm descrições definidas devem ser analisadas como
tríades de afirmações gerais.
Russell defendeu a sua teoria das descrições tanto directa quanto mostrando que permitia solu-
cionar os quatro quebra-cabeças lógicos.
Strawson argumenta que Russell vê as frases e as suas propriedades lógicas demasiado abstracta-
mente, ignorando os seus usos conversacionais comuns por parte de pessoas reais na vida real.
Em particular, Russell ignora o facto de as frases que contêm descrições indenotativas não serem
consideradas falsas, mas antes destituídas de valor de verdade por violarem uma pressuposição.
Além disso, Russell ignora as descrições que dependem de contextos.
Donnellan chama a atenção para o uso referencial das descrições, também ignorado por Russell, e
tenta, sem completo sucesso, distingui-lo do uso atributivo.
Não é óbvio que a teoria de Russell possa acomodar os usos anafóricos das descrições.

Questões

1. Dado (para efeitos de discussão) que a teoria das descrições é noutros aspectos plausível, está o
leitor convencido do bom sucesso das soluções de Russell para os quatro quebra-cabeças?
2. Será a crítica de Strawson mais persuasiva do que concedi? Desenvolva-a mais contra Russell.
3. Em que medida prevê e explica a teoria correctamente todo o uso de “o” em português?
4. O que pensa da distinção de Donnellan? Poderemos torná-la mais precisa? Tente aprimorar o con-
traste intuitivo que está na base dessa distinção.
5. Dispute ou defenda qualquer dos juízos intuitivos interessantes de Donnellan sobre os “referentes
efectivos” em hipotéticas situações discursivas particulares. Teça depois comentários sobre a
importância, para o programa de Donnellan, da posição do leitor em tal caso.
6. Donnellan encara o seu artigo como uma contribuição para a disputa Russell-Strawson. Mas não
diz grande coisa no artigo sobre os quatro quebra-cabeças com os quais todo problema começou.
Será que a teoria de Donnellan, tal como o leitor a entende, resolve algum dos quatro quebra-
cabeças?
7. Consegue alargar a teoria de Russell para abranger os nossos exemplos de anáfora? Haverá outros
exemplos anafóricos que lhe levantam mais problemas?

Leitura complementar

Kaplan (1972) é uma exposição excelente e pormenorizada da teoria das descrições. Veja-se tam-
bém Cartwright (1987) e Neale (1990). A revista Mind publicou um número especial inteiro (Vol.
144, Outubro de 1005) em honra dos cem anos de “On Denoting.”
Russell (1957) responde à crítica de Strawson.
Linsky (1967) passa muito bem em revista a disputa Russell-Strawson.
Apesar do desprezo que Russell sentia pela perspectiva de Meinong, esta tem sido intrepidamente
defendida por Routley et al. (1980) e Parsons (1980).
Donnellan (1968) respondeu a MacKay. Donnellan (1979) é uma abordagem mais abrangente e
inclui algumas questões da anáfora.
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Taylor (1998: cap. 2) passa em revista de modo mais completo mas ainda acessível os fenómenos
da anáfora.
Ostertag (1998) contém muitos artigos importantes sobre descrições definidas, tal como Bezuide-
nhout e Reimer (2004). Veja-se também Ludlow (2007), um excelente artigo de revisão.
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3 Nomes próprios: a teoria descritivista

Sinopse

Russell parece ter refutado a teoria referencial do significado das descrições definidas, mostrando
que as descrições não são genuinamente termos singulares. Talvez isto não seja assim tão surpreen-
dente, dado que as descrições são expressões complexas, pois têm partes com significado indepen-
dente. Mas seria natural continuar a pensar que os nomes próprios comuns são genuinamente ter-
mos singulares. Contudo, os quatro quebra-cabeças — sobre inexistentes, existenciais negativas,
etc. — surgem tão insistentemente no caso dos nomes próprios como no caso das descrições.
Frege ofereceu soluções para os quebra-cabeças propondo que um nome tem um sentido
além do seu referente, sendo o sentido um “modo de apresentar” o referente do termo. Mas disse
pouquíssimo sobre o que são os “sentidos” e como funcionam efectivamente.
Russell resolveu este problema argumentando, bastante persuasivamente, que os nomes
próprios comuns são na verdade descrições definidas disfarçadas. Esta hipótese permitiu-lhe resol-
ver os quatro quebra-cabeças dos nomes próprios alargando a sua teoria das descrições de modo a
abrangê-los.
Contudo, a tese de Russell de que os nomes próprios são semanticamente equivalentes a
descrições enfrenta fortes objecções: por exemplo, é difícil encontrar uma descrição específica que
seja equivalente a um dado nome, e as pessoas para as quais um mesmo nome exprime diferentes
descrições estariam a falar em dessintonia quando tentassem discutir a mesma pessoa ou coisa.
John Searle propôs uma teoria descritivista dos nomes próprios menos rígida, a teoria “dos agrega-
dos” que evita as objecções iniciais à perspectiva de Russell. Mas Saul Kripke, entre outros, reuni-
ram objecções complementares que se tanto se aplicam à teoria menos rígida de Searle quanto à
de Russell.

Frege e os quebra-cabeças

Podemos ter concordado com Russell que a teoria referencial do significado é falsa no que respeita
às descrições por as descrições não serem realmente termos (logicamente) singulares, mas podemos
continuar a sustentar a teoria referencial no que respeita aos nomes próprios em si. Certamente
que os nomes são apenas nomes; têm o significado que têm simplesmente porque designam as coi-
sas particulares que designam, e porque introduzem esses designata no discurso. (Chamemos a tal
expressão um nome milliano, pois John Stuart Mill (1843) parece ter defendido a perspectiva de
que os nomes próprios são meramente etiquetas de pessoas ou objectos individuais, não dando
outra contribuição para os significados das frases nas quais ocorrem senão a dos próprios indiví-
duos.) Mas recorde-se a nossa objecção inicial à teoria das descrições de Russell: apesar de esta
teoria ter tido como única motivação os quatro quebra-cabeças, estes não são específicos das des-
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crições definidas, pois surgem com igual insistência — para não dizer previamente — também no
caso dos nomes próprios.
Frege teve precedência sobre Russell na tentativa de solução dos quebra-cabeças. Já vimos
o que Frege disse sobre a referência aparente a inexistentes:

1) James Moriarty é calvo.

é dotada de significado porque o nome “James Moriarty” tem um “sentido” além do seu suposto
referente, ainda que não exista de facto qualquer referente. De facto, nada é referido ou denotado
pelo nome, mas o sentido é “expresso” pelo nome.
Para Frege, o “sentido” era, aproximadamente, um particular “modo de apresentar” o
suposto referente do termo. Apesar de o próprio sentido ser uma entidade abstracta e não mental
ou psicológica, reflecte a concepção ou maneira que uma pessoa tem de pensar no referente. Frege
exprimia por vezes os sentidos na forma de descrições definidas; por exemplo, o sentido do nome
“Aristóteles” poderia ser “O discípulo de Platão e professor de Alexandre Magno,” ou “O professor
estagirita de Alexandre” (Frege 1892b: 58n). Um sentido determina univocamente um referente,
mas múltiplos sentidos podem determinar o mesmo referente.
Vejamos agora como Frege atacou os outros três quebra-cabeças.

EXISTENCIAIS NEGATIVAS

2) Pégaso nunca existiu.

Como nos outros casos, 2 parece verdadeira e parece que é sobre Pégaso, mas se é verda-
deira, não pode ser sobre Pégaso… Note-se que há aqui uma complicação pior do que a que surgia
apenas com o problema da referência aparente a inexistentes: ao passo que 1 é dotada de signifi-
cado apesar da inexistência de James Moriarty, 2 não é apenas dotada de significado apesar da ine-
xistência de Pégaso: é efectivamente verdadeira e é uma verdade importante.
A ideia de sentidos como modos particulares de apresentação permite a Frege pelo menos
uma solução aparente do problema das existenciais negativas (apesar de não ser evidente nem que
esta tenha sido realmente a sua posição nem que possamos dar-lhe precisão): pode-se tomar 2
como querendo dizer aproximadamente que o sentido de “Pégaso,” a concepção de um cavalo ala-
do montado por Belerofonte não tem referente — nem sequer um referente “inexistente.” Nada na
realidade responde a esse sentido.1

1
Meinong (como mencionei no capítulo 2) teria insistido que existe um cavalo alado, chamado “Péga-
so,” e que a frase 2 predica realmente a inexistência desse cavalo particular. Deste ponto de vista, 2 é preci-
samente como “Pégaso nunca comeu alfafa”; existir é algo que o leitor e eu fazemos porque tivemos sorte,
mas que Pégaso não conseguiu fazer, independentemente de qualquer um de nós ter tido qualquer possibilida-
de de escolha.
Nem Frege nem Russell podiam aceitar esta perspectiva (apesar de Russell a ter levado uma vez muito
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A razão pela qual esta ideia não é evidente é que para Frege um nome só “expressa” o seu
sentido, mas não o denota. Assim, 2 não é literalmente sobre o sentido de “Pégaso,” e não diz sem
hesitação que esse sentido não tem referente, apesar de os filósofos saberem isso quando sabem
que 2 é verdadeira.

O QUEBRA-CABEÇAS DE FREGE

3) Mark Twain é Samuel Langhorne Clemens

contém dois nomes próprios que seleccionam ou denotam a mesma pessoa ou coisa e por isso 3
devia ser trivialmente verdadeira — se os nomes forem millianos. Contudo, como aconteceu ante-
riormente, 3 parece informativa e contingente. (Um exemplo ficcional é “O Super-Homem é o Clark
Kent”; segundo a saga de banda desenhada do Sr. Jerry Siegel, os milionários diletantes gastaram
tempo e dinheiro para tentar descobrir a identidade secreta do Super-Homem.)
Segundo a perspectiva de Frege, apesar de os dois nomes em 3 seleccionarem um referente
comum, “apresentam” esse indivíduo de modos diferentes; têm sentidos destacadamente diferen-
tes. E aquilo a que Frege chama “significado cognitivo” pertence ao sentido, e não há referência.
Eis o que escreve Frege:

Quando descobrimos que “a = a” e “a = b” têm valores cognitivos diferentes, a explicação é que para

fins cognitivos, o sentido da frase, viz., o pensamento por ela expresso, não é menos importante do
que a referência […] Ora, se a = b, então na verdade a referência de “b” é a mesma de “a,” e conse-
quentemente o valor de verdade de “a = b” é o mesmo de “a = a.” Apesar disto, o sentido de “b”
pode diferir do de “a,” e assim o pensamento expresso por “a = b” pode diferir do de “a = a.” Nesse

caso, as duas frases não têm o mesmo valor cognitivo.


(1892b: 78)

(Mas não nos diz como pode “a = b” ser contingente.)

SUBSTITUIBILIDADE

4) O Alberto acredita que Samuel Langhorne Clemens tinha menos de um metro e meio de altura.

Mas fazer “Mark Twain” substituir “Samuel Langhorne Clemens” em 4 produz uma falsidade;
como no capítulo anterior, a posição ocupada pelo termo singular regido por “acredita que” é refe-
rencialmente opaca. Se os nomes fossem millianos, e nenhuma contribuição dessem além da intro-
dução dos seus referentes no discurso, a substituição não deveria fazer qualquer diferença e a posi-

a sério); é muito mais plausível pensar que 2 significa, ao invés, que o mito era apenas um mito, que não exis-
tiu qualquer cavalo alado que Belerofonte tenha montado.
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ção seria transparente.


Aqui, Frege faz uma jogada engenhosa. O problema, recorde-se, era que a opacidade era
induzida pela construção “acredita que,” dado que o que se segue não é em si opaco. Dado a cren-
ça ser uma questão cognitiva, Frege supôs que seriam os sentidos das expressões que se seguem ao
operador de crença a determinar o valor de verdade de uma frase de crença, e não meramente os
referentes. Frege sugere consequentemente que o que o operador faz é mudar a referência do
nome em particular: no interior de “acredita que,” o nome não refere, como habitualmente, a
pessoa Clemens/Twain, mas o seu próprio sentido. É por isso que o resultado de fazer “Mark Twain”
substituir em 4 tem um valor de verdade diferente: no contexto da crença, “Mark Twain” refere o
seu sentido, que é diferente do de “Samuel Langhorne Clemens.”
Assim, a distinção de Frege entre referência e “sentido” permite-lhe responder a cada um
dos quebra-cabeças. E as suas soluções parecem boas, pelo menos em si mesmas: os nomes contri-
buem com um significado de um género qualquer, para lá dos seus referentes, e é isso evidente-
mente que faz as diferenças onde as vemos. Mas as soluções parecem boas, suspeito, em virtude da
sua natureza esquemática. Frege chama “sentido” ao significado acrescentado, mas pouco mais diz
sobre isso (nem sobre “expressar” por oposição a denotar, “importância cognitiva,” e outras). Em
particular, não diz que género de significado é nem que contribuição positiva tem. Isto parece-se
mais com pôr etiquetas do que resolver o problema. (Mas consideraremos uma efectivação da pers-
pectiva de Frege muito mais substancial e testável no capítulo 10.)
Talvez possamos aceitar a sugestão complementar de Frege de que os nomes podem ter os
sentidos de descrições. Foi isso mesmo que fez Russell, o que o conduziu a uma abordagem muito
rica dos quebra-cabeças.2

A TESE DOS NOMES DE RUSSELL

A resposta de Russell é tanto brilhante quanto objecto de forte defesa. Russell dá a volta e oferece
uma nova tese, a que chamo a tese dos nomes. A tese é que os nomes próprios quotidianos não são
realmente nomes, pelo menos não são nomes millianos genuínos. Parecem nomes e soam a nomes
quando os dizemos em voz alta, mas não são nomes a nível da forma lógica, onde as propriedades
lógicas das expressões são postas a nu. De facto, sustenta Russell, são equivalentes a descrições
definidas. Na verdade, afirma que “abreviam” descrições, e parece que quer dizer isso assaz lite-
ralmente.
Assim, Russell introduz uma segunda distinção semântica entre aparência e realidade; tal
como as descrições definidas são termos singulares apenas no sentido da gramática de superfície, o
mesmo ocorre — mais surpreendentemente — até com os nomes próprios comuns. Neste caso, é
claro, a diferença é mais dramática. Se olharmos para uma descrição definida sem sermos tenden-

2
Contudo, não se pense que a teoria de Russell é apenas uma variante da de Frege. Há várias diferen-
ças importantes entre as duas, e têm diferentes conjuntos de pontos fortes e fracos.
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ciosamente referencialistas, vemos que tem alguma estrutura conceptual, nela ocorrendo palavras
que têm significado por si mesmas e que parecem contribuir para o seu significado geral. Por isso
não é muito surpreendente que se diga que subjacente à aparência simples da palavra “o,” há
material quantificacional. Mas agora diz-se o mesmo sobre um tipo de expressão que parece con-
ceptualmente simples.
Se a tese dos nomes for verdadeira, a solução de Russell para os quatro quebra-cabeças é
afinal generalizável — porque nos limitamos a trocar os nomes pelas descrições definidas que eles
exprimem e depois procedemos como no capítulo 2; as soluções de Russell aplicam-se tal como
antes (pensemos ou não desde o início que são boas). Assim, os nomes têm realmente o que Frege
concebia como “sentidos,” que podem diferir apesar de terem o mesmo referente, mas Russell
analisa-os, em vez de os tomar como itens primitivos de um qualquer género abstracto.
É importante ver que a tese dos nomes é inteiramente independente da própria teoria das
descrições. (Usa-se muitas vezes a expressão “Teoria das descrições de Russell” aglomerando várias
coisas diferentes em que Russell acreditava, incluindo a tese dos nomes.) Mas pode-se aceitar qual-
quer das doutrinas ao mesmo tempo que se rejeita a outra: alguns teorizadores sustentam a teoria
das descrições como uma teoria das próprias descrições definidas, ao mesmo tempo que rejeitam
completamente a tese dos nomes; é menos comum, mas pode-se aceitar a tese dos nomes e susten-
tar uma teoria das descrições diferente da de Russell.
Para apoiar a teoria das descrições, Russell apresentou um argumento directo; e depois
exaltou o poder da teoria para resolver quebra-cabeças. Russell exalta analogamente o poder expli-
cativo da tese dos nomes, pois dá à sua teoria dos nomes próprios o mesmo poder para resolver
quebra-cabeças — quebra-cabeças que pareciam consideravelmente mais intratáveis no caso dos
nomes do que no caso das descrições. Mas também oferece pelo menos um argumento directo, e
um segundo extrai-se facilmente dos seus escritos.
Primeiro, recorde-se a defesa directa de Russell da sua teoria das descrições definidas: Rus-
sell sustenta que uma frase que contenha uma descrição definida implica mesmo intuitivamente
cada uma das três cláusulas que constituem a sua análise, e as três cláusulas conjuntamente impli-
cam a frase. Russell argumenta agora que o mesmo é verdade quanto às frases que contêm nomes
próprios.
Tome-se um dos casos mais difíceis, uma existencial negativa. 2 (“Pégaso nunca existiu”) é
efectivamente verdadeira. O que poderá então querer dizer? Não selecciona uma coisa existente e
assere falsamente que a coisa é inexistente; nem selecciona uma entidade meinongiana negando
depois a sua existência. Limita-se a assegurar-nos do facto de que tal cavalo alado não existiu. De
modo semelhante, “Sherlock Holmes nunca existiu” significa que nunca houve efectivamente um
detective inglês lendário que viveu no número 221B da Rua Baker, etc. Isto é muito plausível.
O segundo argumento directo (nunca formulado explicitamente, tanto quanto sei) chama a
atenção para um tipo de questão de clarificação. Suponha-se que o leitor ouve alguém dizendo um
nome, digamos “Lili Boulanger,” sem saber de quem se está a falar. O leitor pergunta de quem se
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está a falar, e dão-lhe a resposta “Oh, a primeira mulher a ganhar o Prémio de Roma, em 1913, com
a cantata Faust et Hélène”; e isto é uma resposta apropriada. O leitor perguntou porque, num cer-
to sentido, não compreendeu o nome que ouviu. Para o compreender, teve de fazer uma pergunta
de tipo “quem,” e a resposta teve de ser uma descrição. (Dar meramente um segundo nome próprio
de Boulanger não seria adequado, a menos que o leitor tivesse previamente associado esse nome à
descrição.)
Ou poderíamos usar as perguntas de tipo “quem” como uma espécie de teste, a que se
poderia chamar “teste de identificação.” Suponha-se que o leitor tinha usado o nome “Wilfrid Sel-
lars,” e eu volto-me subitamente e pergunto “Quem é Wilfrid Sellars?” Tudo o que o leitor pode
responder, tudo o que lhe ocorre, é “Hum, o famoso filósofo de Pittsburgh que escreveu aqueles
livros muitíssimo densos” ou algo do género. Em geral, quando se pergunta “De quem estás a falar
[ou do quê]?” depois de termos usado um nome, surge-nos imediata e instintivamente uma descri-
ção, oferecida como explicação do que queríamos dizer.
John Searle (1958) fez um apelo semelhante no que respeita à aprendizagem e ao ensino:
como se ensinar um nome próprio novo a uma criança, e como aprendemos a referência de um
nome particular usado por outra pessoa? No primeiro caso, apresentamos uma ou mais descrições;
no segundo, obtemo-las.
Estes são fenómenos muito robustos; assim, a tese dos nomes não é apenas uma medida
desesperada para resolver os quatro quebra-cabeças aplicáveis aos nomes próprios.
Russell diz agressivamente que os nomes “abreviam” descrições, como se fossem apenas
abreviaturas das descrições, como “EUA” e a abreviatura de “Estados Unidos da América.” Isto é
demasiado forte. Tudo o que Russell realmente precisa para os seus propósitos analíticos é a tese
mais fraca de que o significado dos nomes é de algum modo equivalente a descrições (chamemos à
tese mais fraca a teoria descritivista dos nomes próprios).
Contudo, mesmo a teoria descritivista menos ambiciosa têm sido desde então objecto de
críticas severas.

Primeiras objecções

OBJECÇÃO 1

Searle (1958) objectou que, se os nomes próprios são equivalentes a descrições, então para cada
nome tem de haver uma descrição particular que lhe é equivalente. Por exemplo, se eu cogitar
irreflectidamente

5) Wilfrid Sellars era um homem honesto,

o que estou a dizer, dado que conheço vários factos individuadores sobre Sellars? Searle testa uns
pares de tipos de descrições possíveis, e considera-as deficientes. Poderíamos supor que “Wilfrid
Sellars” é para mim equivalente a “A coisa x e a única coisa x que é F e G e…,” em que F, G e os
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restantes são todos os predicados que eu aplicaria (ou consideraria correctamente aplicáveis) ao
homem em questão. Mas isto teria a consequência nefasta de 5, tal como a uso, implicar

6) Há pelo menos um filósofo com quem tive uma discussão algo violenta na sala de George Pappas
em 1979

— e 5 não implica certamente 6, nem para mim nem para qualquer outra pessoa.
Ora, o teste deve fornecer uma resposta mais local para cada uso do nome e, como vimos,
é plausível pensar que quem fala pode normalmente desembuchar uma descrição razoavelmente
específica se for incitada a isso. Mas não é claro que isto ocorra sempre por essa descrição ser o
que essa pessoa tinha, de um modo definitivo, em mente. Se me perguntar “Quem é Sellars?,” pos-
so dar várias respostas que me vêem à mente, dependendo do género de informação que penso que
o leitor quer acerca de Sellars. Dificilmente se segue que a resposta que eu realmente apresentar é
a descrição precisa que o meu uso de “Sellars” exprimiu anteriormente.
Note-se: não se trata apenas de ser difícil descobrir que descrição quem falava “tinha em
mente” ao proferir um dado nome. A tese mais forte é que pelo menos em muitos casos não há uma
única descrição determinada que quem fala “tem em mente,” seja consciente seja inconsciente-
mente. Não vejo muitas razões (independentes dos quebra-cabeças semânticos) para pensar que há
um facto da questão quanto a “Wilfrid Sellars” ser usado como equivalente a “O autor de “Filosofia
e a Imagem Científica do Homem”,” ou “O mais famoso filósofo de Pittsburgh,” ou “O inventor da
teoria “Teoria” dos termos mentais,” ou “O homem sobre cujo artigo eu tive de fazer um comentá-
rio no Décimo Colóquio de Chapel Hill em 1976,” sem esquecer “O filósofo visitante com quem tive
uma discussão algo violenta na sala de George Pappas em 1979.” Quando irreflectidamente proferi
5 não tive de ter qualquer uma destas em particular em mente (ainda que tacitamente).

OBJECÇÃO 2

É inegável que pessoas diferentes sabem coisas diferentes sobre outras pessoas. Em alguns casos, o
conhecimento de X sobre Z e o conhecimento de Y sobre Z pode até nada ter em comum. Presumin-
do que o teste revela as descrições com as quais os nomes são supostamente sinónimos que quem
fala tem em mente, segue-se da tese dos nomes que o mesmo nome terá (muitos) sentidos diferen-
tes para diferentes pessoas; todo o nome é múltipla e insondavelmente ambíguo. Pois se os nomes
são equivalentes a descrições definidas, são equivalentes a descrições definidas diferentes nas
bocas de diferentes pessoas, ou, já agora, a descrições diferentes na boca da mesma pessoa em
momentos diferentes, tanto porque o nosso conhecimento varia incessantemente como porque o
que é psicologicamente proeminente sobre uma pessoa para outra não pára também de variar.
E as coisas são pioram. Suponha-se que estou a pensar em Wilfrid Sellars como “o autor de
“Filosofia e a Imagem Científica do Homem”,” e suponha-se que o leitor está a pensar em Sellars
como “O mais famoso filósofo de Pittsburgh.” Nesse caso, seríamos curiosamente incapazes de dis-
cordar sobre Sellars. Se eu dissesse “Sellars costumava apertar os sapatos só com uma mão” e o
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leitor dissesse “Isso é ridículo; Sellars não fazia isso,” não nos estaríamos a contradizer (do ponto
de vista de Russell). Pois a frase que proferi seria uma generalização:

7) Uma e uma só pessoa escreveu “Filosofia e a Imagem Científica do Homem,” e quem escreveu
“Filosofia e a Imagem Científica do Homem” costumava apertar os sapatos só com uma mão

Ao passo que a sua seria apenas uma generalização diferente:

8) Uma e uma só pessoa foi um filósofo mais famoso do que qualquer outro em Pittsburgh, e quem
for um filósofo mais famoso do que qualquer outro em Pittsburgh não fazia tal coisa (apertar os
sapatos só com uma mão).

E as duas afirmações seriam inteiramente compatíveis de um ponto de vista lógico. O que parecia
uma disputa animada, quase a dar em murros, não é de modo algum uma disputa; estamos apenas a
falar em dessintonia. Mas isto parece perfeitamente errado.3

A teoria dos agregados de Searle

À luz destas duas objecções (e muitas outras) à versão de Russell da teoria descritivista, John Sear-
le ofereceu uma variante mais flexível e sofisticada. Sugeriu que um nome não está associado a
uma descrição particular mas a um agregado vago de descrições. Como Searle afirma, a força de
“Isto é N,” em que N é substitui um nome próprio, é asserir que um número suficiente mas inespe-
cificado de “afirmações habituais de identificação” associadas ao nome se aplica ao objecto indica-
do por “isto”; isto é, o nome refere seja qual for o objecto que satisfaça um número suficiente mas
vago e inespecificado (NSMVEI) das descrições que geralmente lhe estão associadas. (Searle acres-
centa a tese metafísica de que ser a pessoa N é ter um NSMVEI de propriedades relevantes.)
A vagueza é importante; Searle diz que é precisamente o que distingue os nomes das des-
crições, sendo de facto por isso que temos e usamos os primeiros e não apenas as segundas. Note-se
que, se a tese dos nomes estivesse correcta, a única função dos nomes próprios seria poupar fôlego
ou tinta; seriam apenas abreviaturas. Searle insiste que, em vez de serem equivalentes a uma só
descrição, um nome funciona como um “cabide […] no qual penduramos descrições” (1958: 172),
sendo isso que nos permite desde o início lidar linguisticamente com o mundo.
Precisaríamos de fazer alguns aprimoramentos. Por exemplo, para quem é serliano parece

3
No Capítulo 2 definimos a noção de denotatum/referente semântico de uma descrição, e assim
poder-se-ia sugerir que isto fornece o ponto de contacto necessário entre os dois disputadores. Mas isso ignora-
ria o facto de não haver qualquer incompatibilidade entre a 7 de Russell e a 8.
Melhorando a teoria de Russell, um descritivista posterior poderia pôr a tese dos nomes em termos de
descrições usadas referencialmente, e apelar ao facto que vimos na nossa discussão de Donnellan de que a
comunicação ocorre por via do referente de quem fala e não do referente semântico. Isso introduziria uma
noção de “discordância” entre quem fala que seria mais fraca do que um conflito de conteúdo semântico.
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natural exigir que um “número suficiente” seja pelo menos mais de metade — caso contrário, dois
indivíduos obviamente distintos poderiam ser ambos o referente do nome. Além disso, quereríamos
certamente dizer que algumas das propriedades identificadoras são mais importantes do que outras
na determinação da sua identidade; há uma maneira qualquer de dar maior ou menor peso às des-
crições identificadoras.
Esta teoria dos agregados permite a Searle evitar as duas objecções que levantámos à pers-
pectiva de Russell. A objecção 1 fica esvaziada porque Searle abandonou o compromisso de que
para cada nome tem de haver uma descrição particular que o nome expressa. O nome está apenas
ligado a um agregado vago de descrições. A objecção 2 fica enfraquecida (pensa Searle) pelo facto
de diferentes pessoas poderem ter em mente diferentes subagregados de material descritivo, e
contudo cada uma ter um NSMVEI de descrições identificadoras conseguindo por isso referir o mes-
mo indivíduo.4
Assim, Searle tentou mitigar as objecções iniciais à teoria de Russell oferecendo a sua ver-
são mais flexível da abordagem descritivista, em termos de agregados. Esta versão parece poder ser
considerada um meio-termo sensato entre a perspectiva de Russell e a concepção milliana dos
nomes, que aparentemente foi desacreditada pelo quatro quebra-cabeças. Mas, partindo de algu-
mas ideias importantes de Ruth Barcan Marcus (1960, 1961), Saul Kripke (1972) sujeitou a tese dos
nomes de Russell e a teoria dos agregados de Searle a uma crítica mais cerrada. Argumentou que
Searle não se afastou suficientemente de Russell, herdando problemas em grande parte dos mesmos
tipos; ao invés, a imagem descritivista dos nomes próprios é toda ela irrazoável. A teoria da refe-
rência nunca mais foi a mesma.

A crítica de Kripke

OBJECÇÃO 3

Suponha-se que “Richard Nixon” é equivalente a “o vencedor das eleições presidenciais norte-
americanas de 1968.” E agora considere-se uma questão sobre possibilidades. (Questões sobre pos-
sibilidade e necessidade chamam-se modais; regressaremos a elas no próximo capítulo.) Poderia
Richard Nixon ter perdido as eleições de 1968? A resposta parece inequivocamente “Sim,” presu-
mindo que “poderia” exprime aqui uma mera possibilidade teórica, lógica ou metafísica, e não algo
sobre o estado do nosso conhecimento. Mas segundo a teoria descritivista a nossa pergunta seria a
mesma que

4
Este aspecto precisa de ser investigado melhor, no mínimo, dado que do ponto de vista de Searle
apesar de dois interlocutores poderem conseguir seleccionar o mesmo indivíduo, as frases que irão usar têm
mesmo assim diferentes significados e, dado tudo o que se mostrou, podemos mesmo assim ficar com o pro-
blema da impossibilidade de discordância.
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9) É possível que: uma e uma só pessoa ganhou as eleições de 1968 e quem ganhou as eleições de
1968 perdeu as eleições de 1968?

Cuja resposta é claramente “Não.”


A teoria dos agregados de Searle parece oferecer um progresso, pois é possível que uma
pessoa que satisfaça um NSMVEI do agregado de descrições associado a “Richard Nixon” no entanto
não satisfaça a descrição particular “o vencedor das eleições de 1968.” Mas, lembra Kripke, a pos-
sibilidade humana ultrapassa tal coisa: a pessoa individual Nixon poderia não ter feito qualquer das
coisas geralmente a si associadas. Poderia ter aprendido a fazer sandálias aos doze anos e ter-se
dedicado a isso toda a vida, nunca se aproximando sequer da política ou da vida pública, e nunca o
seu nome aparecendo no jornal. Contudo, não é obviamente possível que uma pessoa satisfaça um
NSMVEI do agregado de descrições associado a “Richard Nixon,” não satisfazendo no entanto qual-
quer das descrições desse agregado. Do ponto de vista de Searle, a pessoa que se dedicou a fazer
sandálias não teria sido o referente de “Richard Nixon” e não teria até sido Richard Nixon. E isto
parece errado.
Michael Dummett (1973) retrucou que a objecção 3 é simplesmente inválida, tal como está;
pelo menos, repousa num pressuposto escondido falso. Só podemos inferir que a nossa pergunta
modal e 9 são sinónimas pressupondo que, se “Richard Nixon” é realmente equivalente a uma des-
crição, é equivalente a uma descrição que tenha âmbito curto; na terminologia do capítulo 2, isso é
uma ocorrência “secundária” com respeito a “É possível que.” E se a descrição relevante tiver
âmbito longo? Então não há sinonímia entre a nossa pergunta original e 9, mas sim

10) Uma e só uma pessoa ganhou as eleições de 1968 e, com respeito a seja quem for que ganhou as
eleições de 1968, será possível que essa pessoa tenha perdido as eleições?

10 é desajeitada; além disso, há outras desambiguações irrelevantes da nossa pergunta devido ao


facto de o próprio operador de interrogação ter âmbito, de modo que podemos simplificar tudo
usando apenas versões indicativas das duas leituras. A frase

11) É possível a Richard Nixon ter perdido as eleições de 1968,

presumindo que “Richard Nixon” é equivalente a “o vencedor das eleições de 1968,” é ambígua
entre a leitura de âmbito curto

Possível: ( x)(Gx & (y)(Gy y = x) & (z)(Gz ~Gz))

que corresponde a 11 e é falsa (representei “perdeu” como “não ganhou”), e a leitura de âmbito
longo

( x)(Gx& (y)(Gy y = x) & (z)(Gz Possível: ~Gz))


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que é presumivelmente verdadeira. Coloquialmente, 11 quer dizer que uma e uma só pessoa
ganhou as eleições e quem ganhou as eleições é tal que poderia tê-las perdido. 5
Numa jogada semelhante mas mais sofisticada, alguns filósofos aprimoraram a objecção 3
“rigidificando” as descrições nos termos das quais explicam os nomes: compreenda-se “Richard
Nixon” não como “o vencedor das eleições de 1968,” mas “o vencedor efectivo das eleições de
1968.” Veja-se o próximo capítulo.

OBJECÇÃO 4

Kripke (1972: 83-7) oferece um exemplo (completamente ficcional!) com respeito ao teorema da
incompletude de Gödel, um resultado metamatemático famoso. Na ficção de Kripke o teorema foi
demonstrado na década de vinte do séc. XX por um homem chamado Schmidt, que morreu misterio-
samente sem o publicar. Kurt Gödel apareceu, apropriou-se do manuscrito e publicou-o ignobilmen-
te em seu próprio nome.6 Agora as pessoas conhecem Gödel, na sua maior parte, como o homem
que demonstrou o teorema da incompletude. Contudo, parece claro que mesmo quem nada mais
sabe sobre Gödel profere o nome “Gödel,” referem Gödel e não o completamente desconhecido
Schmidt. Por exemplo, quando dizem “Gödel demonstrou o teorema da incompletude,” estão a
dizer uma falsidade, por mais bem justificada que esteja a sua crença.
Esta objecção funciona também contra a teoria dos agregados de Searle, tal como contra a
perspectiva russelliana clássica. Suponha-se que na verdade ninguém demonstrou o teorema da
incompletude; a alegada demonstração de Schmidt tinha um erro irreparável, ou talvez nem tenha
existido qualquer Schmidt, e “a demonstração materializou-se simplesmente porque os átomos se
espalharam aleatoriamente num pedaço de papel” (p. 86). Neste caso é ainda mais óbvio que os
usos que as pessoas fazem de “Gödel” referem, na sua maior parte, Gödel e não qualquer outra
pessoa; contudo, todas essas pessoas não têm sequer o apoio de qualquer agregado searliano.

OBJECÇÃO 5

Considere-se a frase

12) Algumas pessoas não estão cientes de que Cícero é Túlio.

12 é ostensivelmente verdadeira mas, se a tese dos nomes for correcta, é difícil interpretá-la, pois
“não há qualquer proposição única denotada pela oração “que,” que a comunidade de quem fala
português normalmente exprime com “Cícero é Túlio”” (Kripke 1979b: 245). Dado que “Cícero” e

5
Este é um exemplo do afastamento de Russell com respeito a Frege, pois este último não permitia
que os nomes próprios tivessem qualquer âmbito.
6
Ao introduzir este exemplo na palestra que estava a dar na Universidade de Princeton em 1970,
Kripke exclamou: “Espero que o Professor Gödel não esteja presente” (p. 83).
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“Túlio” são equivalentes a descrições diferentes para diferentes pessoas, não há um facto único
acerca do qual 12 afirme que as pessoas não estão cientes. Ora, se eu asserir 12, a sua oração com-
plementar exprime o que “Cícero é Túlio” significa no meu discurso. Mas dado que sei que Cícero é
Túlio, associo o mesmo conjunto de descrições (sejam elas quais forem) com ambos os nomes.
Suponha-se que, como a maior parte dos filósofos, associo tanto “Cícero” como “Túlio” a “o famoso
orador romano que denunciou Catilina e que figura em alguns exemplos famosos de Quine.” Então
12 é equivalente ao seguinte:

13) Algumas pessoas não estão cientes de que uma e uma só pessoa foi um famoso orador… [etc.] e
uma e uma só pessoa foi um famoso orador… [etc.] e seja quem for que tenha sido um famoso
orador… [etc.] foi um famoso orador… [etc.].

Essa frase imensamente redundante é equivalente a:

14) Algumas pessoas não estão cientes de que uma e uma só pessoa foi um famoso orador romano que
denunciou Catilina e que figura em alguns exemplos famosos de Quine.

Sem dúvida que 14 é verdadeira, mas certamente que não exprime o que 12 significa, mesmo
quando sou eu que a profiro.
Também não é de modo algum óbvio como poderia Searle lidar com a objecção 5.

OBJECÇÃO 6

Se a tese dos nomes for verdadeira, então todo o nome é “apoiado” por uma descrição que se apli-
ca unicamente ao referente do nome. Mas as pessoas associam na sua maior parte “Cícero” apenas
a “um famoso orador romano” ou outra descrição indefinida e, digamos, “Richard Feynman” apenas
com “um dos principais físicos teóricos contemporâneos”; contudo, estas pessoas não só conseguem
usar esses nomes correctamente como conseguem referir Cícero e Feynman respectivamente quan-
do o fazem. Além disso, dois nomes da mesma pessoa, como “Cícero” e “Túlio,” podem muito bem
ter a mesma descrição indefinida como apoio e, quando isso ocorre, nenhuma teoria russelliana
consegue explicar por que razão não podem ser substituídos em contextos de crença (Kripke 1972:
80 ss., 1979b: 246-7).
Mais em geral, não é preciso muito para conseguir referir uma pessoa. Keith Donnellan
(1970) oferece um exemplo no qual uma criança que foi para a cama dormir é momentaneamente
acordada pelos pais. Com eles está o Tomás, um velho amigo da família que veio de visita e queria
ver a criança. Os pais dizem “Este é o nosso amigo Tomás,” Tomás diz “Olá, rapazinho!” e o episó-
dio fica-se por aqui; a criança mal acordou. Pela manhã, a criança acorda com uma vaga memória
de que o Tomás é simpático. Mas não tem qualquer material descritivo associado ao nome “Tomás”;
pode nem se lembrar que o Tomás foi a pessoa que conheceu meio acordado de noite. Contudo,
argumento Donnellan, isso não o impede de conseguir referir o Tomás; há uma pessoa que a criança
diz que é simpática e essa pessoa é o Tomás.
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OBJECÇÃO 7

Russell queria enfaticamente que a sua teoria se aplicasse a nomes ficcionais como “Hamlet” e
“Sherlock Holmes” e “o almoço gratuito.” Então, se a tese dos nomes estiver correcta, qualquer
frase que contenha um nome ficcional numa posição “primária” ou de âmbito longo será falsa. Por
exemplo,

15) Sherlock Holmes viveu no número 221B da Rua Baker

será falsa porque é supostamente equivalente a

16) Uma e uma só pessoa foi [isto, existe exactamente uma pessoa que foi] um detective famoso
que… [etc.] e quem foi um detective famoso que… [etc.] viveu no número 221B da Rua Baker,

e 16 é falsa (pois essa pessoa nunca existiu de facto). Mas algumas frases ficcionais, como a própria
15 e “Hamlet era dinamarquês,” são verdadeiras, ou pelo menos não são falsas.
Russell não ficaria muito persuadido por este argumento, dado não ter qualquer inclinação
para dizer que é verdade, em vez de meramente “verdade faz-de-conta” ou “verdade na ficção,”
que Holmes vivia na Rua Baker, ou qualquer outro exemplo. (Note-se bem: se fosse verdade que
Holmes viveu na Rua Baker, então seria uma verdade sobre a Rua Baker, um lugar real até hoje, que
teve Holmes como seu residente. Além disso, se tais frases fossem verdadeiras apenas em virtude
de alguém as ter escrito em livros ou histórias populares, então seria igualmente verdade que Hol-
mes existiu, que Hamlet existiu, etc., dado que as pessoas também dizem essas coisas em livros e
histórias; estranhamente, este aspecto passa muitas vezes despercebido.) Contudo, algumas pes-
soas querem insistir que as frases ficcionais são literalmente destituídas de valor de verdade e não
falsas; se o leitor simpatizar com esta posição, quererá defender uma teoria kripkiana dos nomes
ficcionais e não a de Russell (Kripke 1972: 156-8). Donnellan (1974) defende pormenorizadamente
uma teoria assim.
Kripke tem uma objecção mais, e mais fundamental, à teoria descritivista, mas exige um
pouco de maquinaria técnica. Precisaremos dessa maquinaria outra vez, de qualquer maneira.
Desenvolvê-la-ei no próximo capítulo.

Sumário

Os quatro quebra-cabeças lógicos sobre a referência surgem tão insistentemente nos nomes
comuns como anteriormente nas descrições definidas.
Frege ofereceu soluções em termos do que chamava “sentidos,” mas as soluções não são real-
mente explicativas.
Em resposta, Russell alargou a sua teoria das descrições defendendo a tese dos nomes.
Mas a tese dos nomes enfrenta pelo menos duas objecções poderosas.
Searle oferece uma versão mais flexível da teoria descritivista, a teoria dos aglomerados, que
evita as objecções iniciais.
P á g i n a | 54

Mas Kripke arregimenta chusmas de objecções complementares que se aplicam conta tanta tena-
cidade à perspectiva de Searle quanto à teoria mais estrita de Russell.

Questões

1. Serão as soluções de Frege para os quebra-cabeças realmente soluções, afinal? O que explicam,
na ausência do pressuposto de que os “sentidos” tomam a forma de descrições?
2. Suponha-se que o leitor rejeita a tese dos nomes. Como poderia então resolver os quatro quebra-
cabeças, com respeito aos nomes?
3. Responda em nome de Russell a uma ou mais das duas primeiras objecções; ou invente novas
objecções.
4. A teoria dos aglomerados de Searle evita realmente as objecções 1 e 2, coisa que a versão mais
estrita do descritivismo de Russell não conseguia fazer?
5. Consegue conceber uma objecção à teoria de Searle que não se aplique à teoria original de Rus-
sell?
6. Pode Russell refutar qualquer das objecções 3-7 de Kripke? Mesmo que Russell não possa fazê-lo,
poderá Searle?

Leitura complementar

A tese dos nomes de Russell é defendida de modo mais acessível em “The Philosophy of Logical
Atomism” (1918).
Para algumas críticas à tese dos nomes semelhantes às de Kripke, veja-se Donnellan (1970).
Searle (1979ª) trata da questão dos nomes ficcionais no capítulo 3. Responde a algumas objecções
de Kripke no capítulo 9 de Searle (1983). Mais em geral, há uma bibliografia imensa sobre nomes
ficcionais; veja-se, por exemplo, Everett e Hofweber (2000), Braun (2005) e as referências aí
incluídas.
Burge (1973), Loar (1976), Bach (1987) e outros têm defendido géneros mais específicos da teoria
descritivista contra Kripke, versões que evitam algumas das objecções.
P á g i n a | 58

4 Nomes próprios: referência directa e a teoria


histórico-causal

Sinopse

Num argumento complementar contra as teorias descritivistas dos nomes próprios, Kripke
apelou à noção de “mundo possível” ou universo alternativo ao nosso. Uma descrição defi-
nida do género de Russell muda o seu referente de mundo para mundo; apesar de “a
mulher mais rápida em 1998” referir efectivamente Marion Jones, designa indivíduos dife-
rentes noutros mundos, dado que Jones poderia ter sido mais lenta (ou poderia não ter
existido) e outras mulheres poderiam ter sido melhores atletas. Mas, tipicamente, um
nome como “Marion Jones” refere o mesmo indivíduo em todos os mundos nos quais tal
indivíduo existe.
Alguns teorizadores defendem que os nomes são directamente referenciais, pois
um nome não dá qualquer contribuição para o significado de uma frase na qual ocorre
excepto o seu portador ou referente. À luz das críticas de Kripke contra as teorias descri-
tivistas, esta perspectiva é muito plausível. Mas os quatro quebra-cabeças voltam e
assombram-na. De modo que ficamos com algo como um paradoxo.
Uma questão independente é: um nome próprio designa o seu portador em virtude
do quê? Kripke ofereceu uma imagem histórico-causal da referência, segundo a qual um
dado uso de “Marion Jones” refere Marion Jones em virtude de uma cadeia causal que liga
essa ocorrência de elocução à cerimónia na qual se deu a Jones esse nome pela primeira
vez. Mas, à luz de alguns exemplos que claramente não cabem nesse modelo, são necessá-
rios apuramentos consideráveis para transformar essa imagem numa teoria adequada do
acto de referir.
Kripke, e Hilary Putnam, alargaram a perspectiva histórico-causal para abranger
termos para categorias naturais, como “água,” “ouro” e “tigre,” e não apenas nomes pró-
prios. Se aceitarmos que esta jogada está basicamente correcta, tem uma consequência
inesperada: os famosos exemplos da “Terra Gémea” de Putnam parecem mostrar que o
significado de tal termo não é determinado apenas pelo que está nas cabeças de quem
fala e ouve; o estado do mundo exterior dá também uma contribuição. Assim, duas pes-
soas poderiam ser cópias um do outro, molécula a molécula, e no entanto as suas palavras
terem diferentes significados.
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Mundos possíveis

Vou agora estabelecer a maquinaria necessária para formular a crítica fundamental de


Kripke às teorias descritivistas dos nomes próprios. Começo com a noção de um “mundo
possível.” (Remonta pelo menos a Leibniz, apesar de ter sido incorporada na lógica filosó-
fica apenas no séc. XX.) Considere-se o mundo em que vivemos — não apenas o planeta
Terra, mas todo o universo. O nosso discurso sobre coisas no nosso universo é sobre o que
efectivamente existe, que coisas realmente há: Gordon Brown, o primeiro-ministro britâ-
nico, o meu cotovelo esquerdo, Bolívia, a sanduíche no seu prato, a galáxia da Andrómeda,
e assim por diante, mas excluindo Hamlet, o Coelhinho da Páscoa, a Grande Montanha de
Ouro ou o almoço gratuito. E o que é verdadeiro neste universo é claro que é efectivamen-
te verdadeiro. Mas há coisas que são de facto falsas e, no entanto, poderiam ter sido ver-
dadeiras. As coisas poderiam ter sido diferentes; o mundo poderia ser diferente do que é.
Outra pessoa que não Brown poderia ter sido o sucessor de Tony Blair como primeiro-
ministro, eu poderia ter-me casado com outra pessoa (o que teria sido um erro), e sei que
poderia ter acabado de escrever este livro mais depressa se me tivessem dado uma secre-
tária particular e um séquito de criados, incluindo um cozinheiro pessoal e um par de
assassinos contratados.
Assim, há várias maneiras de ser do mundo. Ou seja, fantasiosamente, há mundos
alternativos. Mundos diferentes, mundos que poderiam ter sido nossos, mas que são ape-
nas possíveis e não efectivos. Pense-se numa sequência de universos possíveis, correspon-
dendo às infinitas maneiras diferentes como as coisas, falando muito em geral, poderiam
ter sido. Todos estes mundos possíveis representam possibilidades gerais inefectivas.
Ora (obviamente) a verdade de uma frase — mesmo que mantenhamos fixo o seu
significado — depende do mundo que estamos a considerar. “Brown é primeiro-ministro” é
verdadeiro no mundo efectivo, mas dado que Brown não tinha de ter sido primeiro-
ministro, há inúmeros mundos nos quais “Brown é primeiro-ministro” é falsa: nesses mun-
dos, Brown não foi o sucessor de Tony Blair, ou nunca se dedicou à política, ou até nunca
existiu. E em alguns outros mundos, outra pessoa é primeiro-ministro — David Cameron, P.
F. Strawson, eu, Madonna ou o Daffy Duck. Noutros ainda, não há sequer o caro de primei-
ro-ministro, ou nem existe o Reino Unido; e assim por diante. Assim, uma dada frase ou
proposição varia o seu valor de verdade de mundo para mundo.
(Por agora, tomemos este discurso sobre “mundos alternativos” intuitivamente,
como metáfora ou imagem, uma heurística para ver o que Kripke tem em mente. Conside-
rado como metafísica séria, este discurso levanta muitas questões controversas,1 mas

1
Veja-se Lewis (1986) e Lycan (1994).
P á g i n a | 60

podemos ter a esperança de que tais questões não afectarão muito o uso que Kripke faz da
imagem dos mundos possíveis para os seus propósitos na filosofia da linguagem.)
Tal como as frases mudam os seus valores de verdade de mundo para mundo, um
dado termo singular pode variar de referente de mundo para mundo: no nosso mundo
efectivo, em (finais) de 2007, “O presente primeiro-ministro britânico” designa Gordon
Brown. Mas, como antes, Brown poderia não ter sido bem-sucedido, ou poderia até não ter
entrado na política, ou poderia nem ter existido. Assim, em alguns outros mundos, a mes-
ma descrição, com o mesmo significado que tem no nosso mundo, designa outra pessoa
(Cameron, Strawson,…), ou ninguém — dado que em alguns outros mundos possíveis os
conservadores ganharam as eleições, e em alguns não houve eleições, e assim por diante.
É por isto que o referente das descrições muda de mundo para mundo.
Chamemos a tal termo singular, um termo que designa diferentes coisas em mundos
diferentes, um designador flácido. Contrasta especificamente com o que Kripke chama um
designador rígido: um termo que não é flácido, que não muda o seu referente de mundo
para mundo, denotando o mesmo item em todos os mundos (ou pelo menos em todos os
mundos em que esse item existe.2)

Rigidez e nomes próprios

Estamos agora em condições de formular a objecção complementar de Kripke às teorias


descritivistas dos nomes próprios (1972: 74ss): uma descrição definida do género que Rus-
sell tinha em mente é flácida, como acabámos de mostrar. Contudo, os nomes próprios,
afirma Kripke, não variam desse modo (usualmente) a sua referência ao longo de mundos
ou situações hipotéticas. Se imaginarmos um mundo no qual Aristóteles faz tal e tal coisa,
trata-se de um mundo no qual Aristóteles faz isso e tem algumas propriedades diferentes
das que tem aqui no mundo real. O nosso nome “Aristóteles” denota-o aí, e não outra pes-
soa. Os nomes são nesse sentido (normalmente) designadores rígidos, mantendo o mesmo
referente de mundo para mundo, ao passo que as descrições russellianas são flácidas.

2
Esta restrição é importante. Se um termo designasse o mesmo item em todos os mundos
possíveis sem excepção, isso significaria que o tem existiria em todos os mundos possíveis, e isso
por sua vez significaria que o item não poderia não ter existido. Nenhuma coisa ou pessoa comum
tem esse tipo de inevitabilidade. Apesar de o leitor, eu e a ponte de Brooklyn existirmos realmente,
poderíamos não ter existido, e assim há mundos nos quais não existimos. Que género de item existe
em todos os mundos possíveis? Deus, talvez. Kripke está inclinado a pensar que os números — pelo
menos os números naturais, 0, 1, 2,… — existem em todos os mundos possíveis. Nesse caso, os
numerais que os referem presumivelmente designam as mesmas coisas em todos os mundos possí-
veis, sem excepção. Mas esse dificilmente é o caso normal.
P á g i n a | 61

Assim, os nomes não são equivalentes a descrições russellianas. (Claro que se uma descri-
ção for usada referencialmente no sentido de Donnellan, pode tornar-se rígida.)
As restrições parentéticas anteriores (“usualmente,” “normalmente”) são impor-
tantes. Kripke não sustenta qualquer tese universal estrita sobre nomes próprios. Está
apenas a generalizar quanto a usos normais de nomes próprios comuns, dizendo apenas
que, na sua maior parte, tais nomes são usados rigidamente. De modo que não é refutável
encontrando nomes flácidos pouco usuais, que certamente existem: ocasionalmente, ofe-
rece-se uma descrição para fixar convencionalmente o significado e não apenas para iden-
tificar o referente de um nome próprio aparente. “Jack, o estripador” é um exemplo. E
em escritos populares sobre a Scotland Yard ou sobre a cultura detectivesca britânica dos
anos cinquenta do séc. XX, por exemplo, o nome “Chummy” era usado como sinónimo de
“o culpado”; significava, atributiva ou flacidamente, apenas “seja quem for que cometeu
o crime.” Na verdade, provavelmente qualquer nome próprio tem usos flácidos ocasionais.
Frege (1892a) oferece um exemplo famoso: “Trieste não é uma Viena,” em que “Viena”
não funciona como o nome de uma cidade, mas como uma abreviatura de um agregado
vago de propriedades culturais estimulantes que Viena tem. No mesmo espírito, numa oca-
sião que os eleitores norte-americanos recordam bem, o candidato vice-presidencial de
1988, Lloyd Bentsen, disse ao seu rival Dan Quayle: “Senador, você não é um Jack Ken-
nedy.” Mas estes dificilmente são usos comuns dos nomes “Viena” e “Jack Kennedy.”3
Kripke oferece um pequeno teste adicional para dizer se um termo é rígido: expe-
rimente inserir o termo no enquadramento frásico “N poderia não ter sido N.” Se no lugar
de N colocarmos uma descrição como “o presidente dos EUA em 1970,” obtemos “O presi-
dente dos EUA em 1970 poderia não ter sido o presidente dos EUA em 1970”; e esta última
frase é claramente verdadeira, pelo menos na sua leitura mais natural: a pessoa que foi
presidente em 1970 poderia não o ter sido então (ou em qualquer outro momento). A ver-
dade dessa frase mostra que a descrição refere pessoas diferentes em mundos diferentes,
e portanto que é flácida.
Mas se colocarmos o nome próprio “Nixon,” obtemos “Nixon poderia não ter sido
Nixon,” na melhor das hipóteses uma frase muito estranha. Pode querer dizer que Nixon
poderia não ter existido, que talvez seja o modo mais óbvio de Nixon não ser Nixon. Mas
dada sua existência, como poderia Nixon não ser Nixon? Poderia não se ter chamado
“Nixon,” mas isso não é o mesmo do que não ser o próprio Nixon (porque, é claro, Nixon
não tinha de se chamar “Nixon”). Nixon poderia não ter as propriedades comummente
associadas a Nixon, e assim não “ser Nixon” no sentido em que Trieste “não é Viena,” mas
como vimos no capítulo anterior tais usos flácidos dos nomes não são usuais.

3
Para exemplos complementares de nomes usados flacidamente, veja-se Boër (1978).
P á g i n a | 62

Kripke argumenta que quando se usa o nome “Nixon” para referir uma pessoa neste
mundo e depois se começa a descrever cenários hipotéticos ou mundos possíveis alternati-
vos, continuando a usar o nome, se está a falar da mesma pessoa. Assim, se perguntarmos
“Poderia Nixon ter aderido ao Panteras Negras em vez de se ter tornado presidente?”, a
resposta poderá ser sim ou poderá ser não, mas no cenário que se está a considerar Nixon,
a própria pessoa, é membro dos Panteras Negras — não é um cenário no qual seja o que for
ou quem for que era presidente dos EUA era membro dos Panteras Negras. Não se está a
imaginar um mundo no qual um membro dos Panteras Negras é presidente dos EUA.
Mas… e quanto ao argumento do teste de identificação de Russell? Em resposta a
“Quem tens em mente com “Lili Boulanger”/“Wilfrid Sellars”?”, prontamente se deita
mão a uma descrição ou agregado de descrições. O mesmo acontece com o apelo de Searle
ao ensino e aprendizagem: procedem também equacionando o nome em questão com uma
descrição ou agregado. Estes factos parecem inegáveis e insuperáveis.
Em resposta, Kripke introduziu uma distinção importante. Russell e Searle presu-
mem que, se um nome tem associado consigo uma descrição ou agregado da maneira que
assinalam, então o nome tem de partilhar o significado do material descritivo (passarei a
dizer apenas “descrição,” para abreviar). Mas não há justificação para este pressuposto,
pois há uma relação mais fraca que a descrição poderia ter com o nome e que explica o
teste de identificação e os dados pedagógicos: mesmo que a descrição não dê o significado
linguístico do nome, é usada para determinar a referência do nome numa ocasião. Apesar
de o nome “Lili Boulanger” não ser sinónimo de “a primeira mulher a ganhar o Prémio de
Roma,” esta última descrição pode ser usada para indicar a pessoa que se está a referir
quando se usa “Lili Boulanger.” E pode fazer parte de uma explicação dada a um aluno,
para identificar o indivíduo ao qual o nome está conectado.
Assim, mesmo que um nome na boca de alguém num dado momento tenha uma
associação psicológica firme com uma descrição particular na mente dessa pessoa, não se
segue que o nome seja semanticamente equivalente à descrição. Dado tudo o que se mos-
trou, quando a pessoa deita mão obsequiosamente da descrição para responder ao teste
da identificação, está meramente a identificar o referente do nome. Similarmente, se digo
a uma criança quem é “Gordon Brown,” identificando o referente desse nome dizendo
“Gordon Brown é o primeiro-ministro britânico,” não se segue que o nome “Gordon
Brown” signifique meramente “o primeiro-ministro britânico.” (É claro que isto não é um
argumento contra a própria tese dos nomes; apenas neutraliza o uso do teste da identifi-
cação por parte de Russell como argumento a favor da tese dos nomes.)

Referência directa

Russell usou os quatro quebra-cabeças e (implicitamente) o seu argumento do teste de


identificação para atacar a perspectiva de que os nomes próprios são millianos, a favor da
P á g i n a | 63

teoria descritivista. Por seu lado, Kripke atacou a teoria descritivista a favor da tese de
que os nomes próprios são designadores rígidos. Mas esta tese não equivale ao millianismo,
pois nem todos os designadores rígidos são nomes millianos.
Um nome milliano, recorde-se, é aquele nome que não faz qualquer contribuição
proposicional excepto o seu portador ou referente. A sua única função é introduzir esse
indivíduo no discurso; nada mais empresta ao significado da frase na qual ocorre. Se dize-
mos “Jason é gordo,” e “Jason” é um nome próprio comum, então o significado dessa fra-
se consiste simplesmente na pessoa Jason em si concatenada com a propriedade de ser
gordo.
Ser um nome milliano certamente implica ser rígido. Mas o reverso não. Apesar de
Kripke citar Mill e argumentar que os nomes são rígidos, a rigidez não implica ser milliano.
Pois as descrições definidas podem ser rígidas. Suponha-se que aceitamos a perspectiva
prevalecente de que todas as verdades aritméticas são verdades necessárias. Então há
descrições aritméticas, como “a raiz quadrada positiva de nove,” que são rígidas, por
exemplo designam o mesmo numero em todos os mundos possíveis, mas certamente que
não são millianas porque para garantir a sua referência usam o seu conteúdo conceptual.
Na verdade, parecem russellizar: “A raiz quadrada positiva de nove” parece significar seja
qual for o número positivo que dá nove quando é multiplicado por si mesmo. Assim, essa
descrição não é milliana, apesar de ser rígida, porque não introduz simplesmente o seu
portador (o número três) no discurso; também caracteriza o três como algo que dá nove
ao multiplicar-se por si mesmo. Assim, ao defender a rigidez dos nomes, Kripke não esta-
beleceu desse modo a tese mais forte. (Não tinha essa intenção; Kripke não crê que os
nomes sejam millianos.)4
Contudo, outros filósofos militaram a favor da concepção milliana, que se passou a
chamar teoria da referência directa dos nomes. O primeiro foi Ruth Marcus (1960, 1961),

4
Kripke (1979b) volta à carga e usa uma variação do quebra-cabeças da substituibilidade
sobre as expressões referenciais para refutar a perspectiva milliana. Esse argumento também pare-
ce embaraçoso para a sua própria tese da rigidez, mas Kripke não oferece qualquer perspectiva
positiva alternativa. Kaplan (1975) inventa uma palavra, “haquele” (que se pronuncia “aquele”),
que toma uma descrição comum como “o homem ao canto” e fá-la denotar o seu portador rigida-
mente, em vez de flacidamente ou atributivamente. Assim, “haquele homem ao canto” refere, num
dado mundo possível, não seja qual for o homem que nesse mundo está ao canto, mas o mesmo
homem que está ao canto neste mundo. Se eu usar “haquele homem ao canto,” deve-se entender
que estou simplesmente a falar daquela pessoa, e o facto de ter inserido conteúdo conceptual,
aludindo a ser humano e a estar no canto, é apenas um modo de chamar a atenção para esse
homem, como se eu estivesse a fixar a referência da minha própria descrição sem fixar o seu senti-
do. De modo que “haquele” funciona como rigidificador. Plantinga (1978) e Ackerman (1979) arre-
gimentam uma versão diferente da ideia de rigidificação ao defender teorias positivas de acordo
com as quais os nomes próprios são rígidos mas não são millianos; veja-se mais à frente.
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que Kripke declara ter directamente inspirado o seu trabalho. Com base no trabalho de
Marcus e Kripke desenvolveram-se outras teorias da referência directa (RD) dos nomes
(por exemplo, Kaplan 1975; Salmon 1986).
Os teorizadores mais recentes alargaram a RD de modo a abranger outros termos
singulares, nomeadamente pronomes pessoais e demonstrativos, como “eu,” “tu,” “ela,”
“isto” e “aquilo,” além de nomes. (Um problema óbvio quando se alarga a RD as pronomes
é que qualquer pessoa que fale normalmente português conhece o seu significado, saibam
ou não quem tal pronome designa numa dada ocasião de uso; se encontrarmos “estou
doente e não vou hoje às aulas” escrito num quadro de uma sala de aulas vazia, com-
preendemos a frase ainda que não saibamos quem a escreveu nem em que dia. Este pro-
blema será considerado no capítulo 11.)
Claro que a RD tem de se confrontar com os quatro quebra-cabeças. E é óbvio que
o teorizador da RD não pode subscrever a solução de Russell nem coisa alguma muito
parecida a isso, pois, segundo a RD, os nomes nada fazem semanticamente que não repre-
sentar os seus portadores.
Consideremos primeiro o quebra-cabeças da substituibilidade. Recorde-se a nossa
frase:

1) O Alberto acredita que Samuel Langhorne Clemens tinha menos de um metro e meio de
altura.

1 torna-se falsa quando “Mark Twain” substitui “Samuel Langhorne Clemens.” Como pode
a RD explicar ou até tolerar tal facto?
Os teorizadores da RD usam uma estratégia bipartida. Há uma tese positiva e uma
negativa (apesar de muitas vezes não se distinguirem explicitamente entre si). A tese posi-
tiva da RD é que os nomes em questão se substituem realmente sem alterar o valor de
verdade da frase. Deste ponto de vista,

2) O Alberto acredita que Mark Twain tinha menos de um metro e meio de altura.

é verdadeira, e não falsa. No mínimo dos mínimos, as frases de crença têm leituras ou
entendimentos transparentes, segundo as quais os nomes que estão sob o âmbito de
“acredita” na verdade referem apenas o que referem.
Não pensamos naturalmente dessa maneira; 2 não nos parece verdadeira. Mas isso
é porque ao ver uma frase de crença tomamos usualmente a sua oração complementar de
maneira a reproduzir os modos como o seu sujeito falaria ou pensaria. Ao asserir 2, sugiro
de algum modo que o Alberto aceitaria a frase “Mark Twain tinha menos de um metro e
meio de altura” ou algo suficientemente próximo dessa frase. Se eu disser “O Alberto não
acredita que Mark Twain tinha menos de um metro e meio de altura,” estou a sugerir que,
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confrontado com a frase “Mark Twain tinha menos de um metro e meio de altura,” o
Alberto diria “Não” ou “Não sei dizer.”
Mas os teorizadores da RD assinalam que tais sugestões não são sempre verdadei-
ras; e talvez nunca o sejam. Considere-se:

3) Colombo acreditava que a ilha do Fidel era a China.

(Exemplo atribuído ao falecido Roderick Chisholm.) Todos sabemos o que se quer dizer ao
asserir 3; quem fala quer dizer que, quando Colombo avistou Cuba, pensou estar a chegar
às Índias Orientais, aproximando-se directamente da China. Claro que há 450 anos,
Colombo nada sabia acerca de Fidel Castro; contudo, podemos asserir 3 sem presumir que
a sua oração complementar representa as coisas do modo como o próprio Colombo as
representava. Quem fala faz esta referência a Cuba sem presumir de modo algum que
Colombo se referiria a Cuba desse modo ou de qualquer outro modo paralelo ou análogo.
Ou suponha-se que você e eu estamos entre as poucas pessoas que sabem que o
nosso conhecido Jacques é de facto o ladrão de jóias de má reputação que tem andado a
aterrorizar os ricaços de Paris, e a que a imprensa popular e os gendarmes chamam “Le
Chat.” Lemos no jornal depois de um roubo particularmente arrojado mas mal sucedido
que a polícia acredita “Ao fugir, Le Chat deixou cair uma mão-cheia de anchovas.”
Assim, parece inegável que há posições transparentes no interior de frases de cren-
ça, nas quais a expressão referencial se limita a referir o seu portador, sem qualquer
sugestão complementar sobre o modo como o sujeito da frase de crença representaria o
portador. Os termos singulares podem ser transparentes e são muitas vezes entendidos
desse modo. Poderíamos até dizer:

4) Algumas pessoas duvidam que Túlio seja Túlio.

querendo dizer com isso que algumas pessoas duvidam, quanto ao homem Cícero, que ele
era também Túlio. Essa será também uma interpretação minoritária de 4, mas podemos
pelo menos ouvir 4 considerando que assere que as pessoas duvidam, quanto a Cícero, que
ele era Túlio.5
Virtualmente toda a bibliografia da RD tem sido dedicada à defesa da tese positiva,
de que os nomes têm leituras millianas mesmo em contextos de crenças. Mas a tese positi-
va está longe de ser tudo o que o teorizador da RD precisa. Pois, apesar de podermos ficar
persuadidos de que todas as frases de crença têm realmente uma leitura transparente, a
maior parte das pessoas estão também convencidas de que todas as frases de crença têm

5
Claro que se “Túlio” é também um nome milliano, isso seria equivalente a duvidar que a
pessoa referida é essa mesma pessoa. Mas também este é um entendimento possível de 4.
P á g i n a | 66

também uma leitura opaca, uma leitura na qual algumas substituições transformam verda-
des em falsidades: num certo sentido, Colombo acreditava que a ilha do Fidel era a China,
mas noutro sentido não acreditava em tal coisa, pela razão óbvia de que nunca ouviu falar
do Fidel (e nunca ouviria). Similarmente, num certo sentido, a polícia acreditava que Jac-
ques deixou cair as anchovas, mas noutro sentido não, e o mesmo ocorre quando as pes-
soas duvidam “que Túlio é Túlio.” No entanto, parece que a RD não pode permitir um só
sentido no qual os contextos de crença sejam opacos. Esta é a tese negativa da RD: que os
nomes não têm leituras imillianas, mesmo em contextos de crença.
O problema torna-se ainda pior: é difícil negar que as leituras opacas se ouvem
mais prontamente do que as transparentes. Na verdade, isso é implicitamente concedido
pelos teorizadores da RD, pois sabem que tiveram de trabalhar para nos fazer ouvir as lei-
turas transparentes. O teorizador da RD tem de tentar explicar eliminativamente este fac-
to, mostrando tratar-se de uma ilusão particularmente dramática. Ou seja, têm de susten-
tar que, de facto, as frases como 1-4 não podem literalmente ter o significado que lhe
podemos atribuir e que usualmente lhe atribuímos; há alguma razão inapropriada que nos
seduz, fazendo-nos ouvir essas frases opacamente. Esboçaram-se algumas explicações
hipotéticas desse género, usando materiais que encontraremos no capítulo 13 (Salmon
1986; Soames 1987, 2002; Wettsein 1991; e veja-se Marcus 1981). Mas neste aspecto, na
minha opinião, os teorizadores da RD não foram persuasivos; pelo menos, nenhum dos
esboços produzidos até hoje me pareceu muito plausível, apesar talvez de Soames (2002)
ser o mais promissor.
Como o exemplo 4 sugere, o quebra-cabeças de Frege é ainda pior para o milliano.
Segundo a RD, uma frase como “Samuel Langhorne Clemens é Mark Twain” só pode signifi-
car que o referente comum, independentemente da maneira como for designado, é ele
mesmo. Contudo, tal frase praticamente nunca é entendida como se tivesse esse significa-
do. E qualquer pessoa poderia duvidar que Clemens é Twain, aparentemente sem duvidar
da auto-identidade seja de quem for. Uma vez mais, o teorizador da RD tem o ónus imenso
de explicar eliminativamente os nossos juízos, mostrando que são ilusórios.
Os problemas da referência aparente a inexistentes e das existenciais negativas são
ainda piores, na verdade. Se o significado de um nome é simplesmente a referência ao seu
portador, então o que dizer de todos aqueles nomes perfeitamente dotados de significado
que não têm portadores? (Mas para tentativas intrépidas de responder a esses dois pro-
blemas, veja-se Salmon 1998; Soames 2002; Braun 2005.)
Chegámos a um dilema grave, quase um paradoxo. Por um lado, no capítulo 3 vimos
razões kripkianas poderosas segundo as quais não se pode pensar que os nomes abreviam
descrições flácidas, nem podem de outro modo qualquer ter sentidos ou conotações subs-
tanciais. Intuitivamente, os nomes são millianos. Contudo, porque os quebra-cabeças ori-
ginais continuam tão insistentemente irritantes como antes, parece também que a DR está
P á g i n a | 67

perfeitamente refutada. Isto é um dilema, ou antes um trilema, porque parece além disso
que só temos uma dessas três possibilidades: ou os nomes são millianos, ou abreviam des-
crições completamente, ou de um modo menos rígido, como defende Searle, têm algum
“sentido” ou conteúdo substancial. Mas nenhuma destas perspectivas é aceitável.
Alguns teorizadores professaram encontrar vias entre as três alternativas. Como
assinalámos no capítulo 3, Plantinga (1978) e Ackerman (1979) apelaram a descrições rigi-
dificadas, como “o vencedor efectivo das eleições de 1968” em vez de apenas “o vencedor
das eleições de 1968”; a primeira descrição é rígida porque “o vencedor efectivo” significa
o vencedor neste (nosso) mundo, e refere essa mesma pessoa em qualquer mundo, inde-
pendentemente de ter nesse mundo vencido as eleições. Deste ponto de vista, os nomes
são rígidos apesar de não serem millianos. (Veja-se também Jackson 1998.) Michael Devitt
(1989, 1996) ofereceu uma revisão radical da noção de sentido de Frege. Eu próprio (Lycan
1994) ofereci uma versão enfraquecida da RD, muito mais subtil, bonita e eficiente, mas
seria imodesto da minha parte promovê-la aqui.6
Temos agora de fazer uma distinção crucial. Até agora, neste capítulo, falámos da
semântica dos nomes próprios, ou seja, de teorias sobre a contribuição dos nomes para o
significado das frases nas quais ocorrem. A RD, em particular, toma como óbvia a ideia de
referente ou portador de um nome. Mas então a questão à parte é: algo é o referente ou
portador de um nome particular em virtude do quê? A semântica deixa essa questão à aná-
lise filosófica. Uma teoria filosófica da referência é uma hipótese sobre que relação exac-
tamente liga um nome ao seu referente — mais especificamente, é uma resposta à ques-
tão de saber o que é preciso para haver uma ligação referencial entre a nossa elocução de
um nome e o indivíduo referido por essa elocução.
As teorias semânticas dos nomes e as explicações filosóficas da referência variam
independentemente entre si. A diferença foi obscurecida por Russell e Searle,7 porque
davam ambos respostas muito similares às duas perguntas. Russell disse que um nome
adquire o seu significado, e contribui para o significado geral da frase, abreviando uma
descrição; e também que o que faz de algo o portador do nome é a coisa satisfazer univo-
camente a descrição. O mesmo ocorre com Searle e os seus aglomerados. Mas repare-se
agora que, caso se defenda a teoria da RD, tal teoria nada nos diz por si mesma sobre o
que vincula um nome ao seu referente. O mesmo ocorre com a tese mais fraca da rigidez
de Kripke; até então, Kripke falou apenas da semântica, e a sua teoria da referência não
se tornou ainda visível. É para isso que nos voltamos agora.

6
Receio que mesmo a edição brochada de Lycan (1994) é cara, mas vale bem cada centavo.
7
E insuficientemente enfatizada por Kripke. Foi pela primeira vez realmente levada a cabo
por Devitt (1989).
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A teoria histórico-causal

Como se pode verificar, a maior parte das objecções de Kripke à tese dos nomes e à
semântica descritivista em geral traduzem-se também em objecções à teoria descritivista
da referência; a teoria descritivista irá prever o referente errado (pense-se no exemplo de
Gödel/Schmidt na objecção 5, capítulo 3) ou nenhum referente (como quando não há
qualquer descrição particular que quem fala tenha em mente (objecção 1) ou em casos
indefinidos, como na objecção 6).
Kripke esboça uma ideia melhor. Começa inesquecivelmente (1972: 91): “Nasce
alguém, digamos, um bebé…” (penso que podemos conceder-lhe o pressuposto de que o
neonato é um bebé. Não vale a pena ser demasiado picuinhas.). E continua:

Os pais [do bebé] referem-no com um certo nome. Falam dele aos amigos. Outras pessoas
conhecem o bebé. Por meio de vários tipos de conversa, o nome espalha-se de elo em elo,
como numa cadeia. Quem está do lado mais afastado desta cadeia, que ouviu falar, diga-
mos, de Richard Feynman, na via pública ou em qualquer outro lugar, pode referir Richard
Feynman apesar de não se lembrar de quem ouviu falar pela primeira vez de Feynman ou
de quem ouviu falar de Feynman. Sabe que Feynman era um físico famoso. Uma certa pas-
sagem de comunicação que acaba por alcançar o próprio homem alcança quem fala. Quem
fala refere então Feynman apesar de ser incapaz de o identificar univocamente.

A ideia, então, é que a minha elocução de “Feynman” é o elo mais recente numa
cadeia histórico-causal de empréstimos de referência, cujo primeiro elo é o acontecimen-
to em que a criança Feynman recebe esse nome. Eu adquiro o nome de alguém que o
adquiriu de outra pessoa…, recuando sempre até chegar à cerimónia de atribuição do
nome. Não tenho de estar em qualquer estado cognitivo particular do género de Russell ou
Searle. Nem tenho de ter qualquer crença verdadeira interessante sobre Feynman, ou
sobre como adquiri o nome. Tudo o que se exige é que uma cadeia de comunicação se
tenha de facto estabelecido em virtude de eu pertencer a uma comunidade discursiva que
passou o nome de pessoa para pessoa, cadeia que remonta ao próprio Feynman.
É claro que quando alguém aprende um nome pela primeira vez de um predecessor
na cadeia histórica, isso só pode ocorrer porque o novato e o predecessor partilham uma
base psicologicamente saliente de descrições identificadoras. Mas, como antes, não há
razão para pressupor que essa base particular de descrições fixa o sentido do nome. Só
precisa de fixar a referência. Desde que o novato tenha uma fixação identificadora no
referente do predecessor, pode depois usar o nome para referir essa pessoa.
À primeira vista, esta perspectiva histórico-causal faz as previsões correctas no
caso de exemplos como o Tomás de Donnellan. Em cada caso, a referência é bem-sucedida
P á g i n a | 69

porque quem fala está causalmente conectado ao referente de um modo historicamente


apropriado.
Kripke (1972): 66-7) oferece mais um caso: o da personagem bíblica Jonas. É seme-
lhante ao exemplo de “Nixon” (objecção 3, capítulo 3). Kripke assinala que devemos dis-
tinguir entre histórias que são apenas lendas e histórias que são, ao invés, relatos substan-
cialmente falsos de pessoas reais. Suponha-se que os historiadores descobriam que de fac-
to nenhum profeta alguma vez foi engolido por um grande peixe, ou fez qualquer uma das
outras coisas que a Bíblia atribui a Jonas. Permanece a questão de saber se a personagem
de Jonas foi simplesmente inventada desde o início, ou se a história se fundamenta em
última análise numa pessoa real. Na verdade, há subcasos: alguém poderia ter inventado e
espalhado uma quantidade de histórias falsas sobre Jonas imediatamente depois da sua
morte; ou, por Jonas ser um indivíduo impressionante, começaram a circular todo o géne-
ro de rumores e histórias sobre ele, acabando os rumores por se desencaminhar; ou pode-
ria ter ocorrido uma perda muito gradual de informação correcta e a acreção de falsas
atribuições ao longo de séculos. Mas, em qualquer destes casos, parece que hoje a Bíblia
afirma coisas falsas sobre a pessoa real, Jonas.8
Poderá pensar-se que os nomes ambíguos — nomes que mais de uma pessoa tem —
levantam um problema à perspectiva histórico-causal. (“John Brown” é ambíguo entre o
criado escocês que fez amizade com a Rainha Vitória depois da morte de Alberto, o agri-
cultor frustrado monomaníaco que invadiu a cidade de Harpers Ferry em 1859, e sem
dúvida milhares de outros homens do mundo anglófono. Até 1994, até o nome muitíssimo
distinto “William Lycan” se aplicava a mais de uma pessoa. Suponho que a vasta maioria
de nomes são ambíguos; um nome só não é ambíguo por acidente histórico.) Isto não é
problema algum para as teorias descritivistas porque, segundo elas, os nomes ambíguos
abreviam simplesmente descrições diferentes. (Se alguma coisa ocorre, é o facto de as
teorias descritivistas tornarem os nomes próprios demasiado abundantemente ambíguos.)
Mas o que acontece se defendermos a RD e negarmos que os nomes tenham sentidos ou
conotações descritivas em qualquer sentido, seja ele qual for?

8
Kripke cita H. L. Ginsberg, The Five Megilloth and Jonah (Jewish Publication Society of
America, 1969), afirmando que defende seriamente esta perspectiva. Note-se também que o nome
de Jonas poderia não ter sido “Jonas”; o som de “j” não existe em hebraico. David Kaplan susten-
tou uma vez (em 1971, numa palestra) que há pelo menos um exemplo verdadeiro deste tipo que
favorece a teoria histórico-causal contra a explicação da referência de Searle: o nome “Robin dos
Bosques.” Parece que os historiadores descobriram que existiu realmente uma pessoa que deu ori-
gem (causalmente) à lenda do Robin dos Bosques. Sucede, afinal, que esta pessoa não era pobre,
não vivia perto da Floresta de Sherwood, não era um fora-da-lei (na verdade, era bastante próximo
do xerife de Nottingham), e nem sequer se chamava “Robin dos Bosques.” Na perspectiva histórico-
causal isto faz perfeitamente sentido.
P á g i n a | 70

Só fiz a última pergunta para ver se você estava a prestar atenção anteriormente.
Pois a pergunta ignora inequivocamente a distinção importante entre a semântica dos
nomes e a teoria da referência. A teoria histórico-causal da referência tem uma resposta
inequívoca à questão da ambiguidade dos nomes: se um nome é ambíguo, é porque foi
dado a mais de uma pessoa. O que desambigua um uso particular de um nome desses
numa dada ocasião é a base histórico-causal desse uso (que outra coisa haveria de ser?),
especialmente o portador particular cuja cerimónia de nomeação deu início à sua etiolo-
gia.
Kripke sublinha que só esboçou uma imagem; não tem uma teoria completamente
trabalhada. O difícil será ver como se poderá pegar nessa imagem e torná-la uma teoria
real que resista a objecções sérias. A única maneira de transformar uma imagem numa
teoria é tomá-la demasiado literalmente, tratá-la como se fosse uma teoria e ver como
precisa de ser aprimorada. Kripke faz precisamente isso, apesar de deixar o aprimoramen-
to aos outros.

Problemas para a teoria histórico-causal

A noção capital da perspectiva histórico-causal é a da passagem da referência de uma pes-


soa para outra. Mas nem toda a transferência serve. Primeiro, temos de excluir o fenóme-
no da “nomeação posterior.” O meu amigo de infância John Lewis adquiriu um cão pastor,
e chamou-lhe “Napoleão,” em nome do imperador; tinha o Napoleão histórico explicita-
mente em vista e quis dar o seu nome ao cão. “Dar o nome de” é um elo numa cadeia his-
tórico-causal: só porque o imperador se chamava “Napoleão” é que John Lewis deu esse
nome ao cão. Mas é o tipo errado de elo. Para o excluir, Kripke exige que “quando o nome
“passa de elo para elo,” quem recebe o nome tem […] ter a intenção, quando o aprende,
de o usar com a mesma referência que o homem de quem o ouviu” (1972: 96). É claro que
esta restrição não foi acatada por John Lewis, que estava deliberadamente a mudar o
referente do imperador para o cão e queria que os seus amigos estivessem perfeitamente
cientes disso.
Segundo, Kripke aduz o exemplo do “Pai Natal.” Pode haver uma cadeia causal que
faça remontar o nosso uso desse nome a um certo santo histórico, possivelmente uma pes-
soa real que viveu na Europa de leste há séculos, mas ninguém diria que quando as crian-
ças usam o nome referem inadvertidamente esse santo; referem-se claramente à persona-
gem ficcional natalícia. Mas então o que faz a diferença entre “Pai Natal” e “Jonas”? Por
que não dizer que houve um Pai Natal real, mas que a mitologia sobre ele é ostensivamen-
te falsa? Em vez disso, é claro, dizemos que não há qualquer Pai Natal (as minhas descul-
pas a quem não o sabia). Usamos o nome “Pai Natal” como se abreviasse uma descrição.
Um exemplo semelhante seria o de “Drácula.” Sabe-se muito bem que o uso contemporâ-
neo desse nome remonta a um nobre real da Transilvânia chamado “Vlad” (usualmente
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chamado “Vlad, o Empalador,” em virtude do tratamento costumeiro dispensado às pes-


soas que o tinham chateado). Mas é claro que quando hoje dizemos “Drácula” queremos
falar do vampiro ficcional criado por Bram Stocker e retratado por Bela Lugosi no famoso
filme.
Tendo-se limitado a levantar o problema, Kripke não tenta corrigir a sua perspecti-
va em função disso, e passa à frente. Provavelmente a característica mais óbvia a notar é
que “Pai Natal” e “Drácula,” tal como usamos esses nomes, estão associados a estereóti-
pos muitíssimo poderosos, na verdade, ícones culturais nos EUA. Os seus papéis sociais são
tão proeminentes que se ossificaram, transformando-se em descrições ficcionais, de um
modo que nem mesmo entre pessoas religiosas ocorre com “Jonas.” De certo modo, as
propriedades icónicas de Jonas são paralelas às suas propriedades históricas do Antigo Tes-
tamento, mas poderíamos dizer que “Pai Natal” e “Drácula” são puros ícones. E para os
norte-americanos médios, o mito ultrapassa em muito a fonte histórica.
Como Kripke afirma, é necessário muito trabalho. Devitt (1981ª) oferece uma pers-
pectiva razoavelmente desenvolvida que se pode considerar uma teoria e não apenas uma
imagem. Contudo, eis algumas objecções que se aplicam a qualquer versão da teoria his-
tórico-causal descrita.

OBJECÇÃO 1

Foi-nos oferecida a noção de uma cadeia histórico-causal remontando dos nossos usos
actuais do nome a uma cerimónia na qual um indivíduo efectivo é nomeado. Mas então
como pode o teorizador histórico-causal acomodar nomes vazios, nomes que não têm por-
tadores efectivos?
Talvez a melhor aposta seja neste caso tirar partido do facto de que mesmo os
nomes vazios são introduzidos na comunidade linguística em momentos particulares, seja
por meio de ficção deliberada seja por meio de um erro qualquer. Partindo de tal introdu-
ção, como Devitt (1981ª) e Donnellan (1974) assinalam, as cadeias histórico-causais come-
çam a espalhar-se na direcção do futuro tal como se o nome tivesse sido atribuído a um
indivíduo efectivo. Assim, tanto a referência como a “referência” de inexistentes se dá
por uma cadeia histórico-causal, mas o primeiro elo da cadeia é o próprio acontecimento
de atribuição do nome e não quaisquer hipotéticas façanhas do portador inexistente.9

9
Esta jogada seria também uma ajuda com respeito a dois problemas similares: os nomes
de indivíduos futuros (“Tentemos ter um bebé, e se formos bem-sucedidos o seu nome será
“Quim””); e os nomes de objectos abstractos, como números individuais, que não têm poderes
causais.
Dado que a cadeia histórico-causal relevante tem origem num acontecimento de atribuição
de nome, o leitor deve perguntar-se por que razão não é esse acontecimento em si o referente
propriamente dito do nome. (Assim, “Pégaso só demorou trinta segundos e deu pouco trabalho ao
P á g i n a | 72

OBJECÇÃO 2

Evans (1973) assinala que os nomes podem mudar a sua referência sem o nosso conheci-
mento, em virtude de acasos ou erros, mas a teoria histórico-causal, tal como a apresen-
támos até agora, não pode permitir tal coisa. Segundo Evans,10 “Madagáscar” era o nome
original de uma porção do continente africano, e não de uma imensa ilha do mesmo conti-
nente; a mudança deveu-se em última análise a uma incompreensão de Marco Pólo Ou:

Nascem dois bebés, e as suas mães atribuem-lhes nomes. Uma enfermeira troca-os inadver-
tidamente e nunca se descobre o erro. Será daqui para a frente inegavelmente verdade que
o homem universalmente conhecido por “Zé” tem esse nome porque uma mulher o deu a
outro bebé.
(Evans 1973: 196)

Não queremos ser forçados a dizer que o nosso uso de “Madagáscar” ainda designa parte
do continente, ou que “Zé” continua a referir o outro bebé e não o homem a quem toda a
gente chama “Zé.”
Em resposta, Devitt (1981ª: 150) sugere que se aposte na fundação múltipla. Uma
cerimónia de atribuição de um nome, afirma, é apenas um tipo de ocasião que pode fun-
dar uma cadeia histórica apropriada; outros encontros perceptivos podem também servir.
Em vez de haver apenas uma só cadeia causal linear que remonta das nossas elocuções à
cerimónia de atribuição do nome, tem uma estrutura mangal: a elocução parte também de
outras cadeias históricas que se fundam em estádios posteriores do próprio portador.
Quando uma grande preponderância do nosso uso de “Madagáscar” tem das suas fundações
na ilha e não no continente, esse uso passa a designar a ilha; quando o nosso uso de “Zé”
se fundamente fortemente nos encontros perceptivos de muita gente com o homem que
tem esse nome, estas fundações terão ascendência sobre a cadeia que começou com a
cerimónia de atribuição do nome. Isto é vago, é claro, talvez inaceitavelmente vago.

autor” poderia ser uma frase verdadeira sobre um item efectivo, e não uma frase ficcional de todo
em todo.) Poder-se-ia perfeitamente estipular que os acontecimentos de atribuição de nomes não
são referentes a menos que eles próprios sejam objectos de outros acontecimentos de atribuição de
nomes; alternativamente, veja-se a resposta à objecção 4, a seguir.
10
Evans cita o livro de 1898 de Isaac Taylor, Names and Their History: A Handbook of His-
torical Geography and Topographical Nomenclature (Detroit, MI: Gale Research Co., 1969).
P á g i n a | 73

OBJECÇÃO 3

Podemos identificar mal o objecto de uma cerimónia de atribuição de um nome. Suponha-


se que procuro um novo gato de estimação no Abrigo dos Animais. Visitei o Abrigo várias
vezes e reparei numa gatinha cinzenta; decido adoptá-la. Na minha visita seguinte, prepa-
ro-me para lhe dar um nome. O assistente trás uma gatinha semelhante à anterior e eu
penso que é a mesmíssima que tenciono adoptar. Digo: “Cá estamos de novo, latinha! O
teu nome agora passa a ser “Liz,” em homenagem à compositora Elizabeth Poston, e nós
vemo-nos outra vez depois de teres sido vacinada” (diplomaticamente, não menciono a
obrigatória esterilização). O assistente leva de novo a gata. Contudo, sem o meu conheci-
mento, era a gata errada, e não a que eu tinha em vista. O assistente deu-se conta do erro
e, sem me dizer, vai buscar a gata correcta, e dá-lhe as vacinas (e o resto). Eu pego nela e
levo-a para casa, chamando-lhe naturalmente “Liz” daí em diante.
O problema, é claro, é que nenhuma cerimónia deu esse nome à minha gata. A
impostora recebeu esse nome, ainda que eu não tivesse qualquer direito de lhe atribuir
um nome. Contudo, certamente que a minha própria gata é a portadora de “Liz,” não
apenas depois de múltiplas fundações subsequentes terem sido estabelecidas, mas mesmo
depois da cerimónia de atribuição do nome que eu executei. (Seria diferente se eu tivesse
levado a impostora para casa e lhe tivesse continuado a chamar “Liz.”) A estratégia de
fundação múltipla não parece ajudar-nos neste caso. Ao invés, o que conta é que gata eu
tinha em mente e que gata pensava eu estar a atribuir um nome naquela cerimónia.
(Devitt (1981ª: secção 5.1) fala de “competências para designar,” vendo-as como estados
mentais de um certo tipo sofisticado.) Nesse caso, corrigir a teoria histórico-causal neste
aspecto exigirá uma incursão significativa na filosofia da mente.

OBJECÇÃO 4

As pessoas podem ter crenças categoricamente erradas sobre os referentes. Evans cita
Arthur of Britain, de E. K. Chambers,11 que afirma que o Rei Artur teve um filho chamado
Anir “que a lenda confundiu talvez com o lugar onde foi sepultado.” Uma pessoa vítima
desta confusão poderia dizer “Anir deve ser um lugar verde e adorável”; a teoria histórico-
causal consideraria que essa frase afirma que um ser humano (o filho de Artur) era um
lugar verde e adorável. Menos dramaticamente, pode-se confundir uma pessoa com uma
instituição e vice-versa. (Um antigo colega costumava usar o nome de Emerson Hall — o
edifício que alberga do departamento de filosofia de Harvard — para referir o departa-
mento, dizendo coisas como “Emerson Hall não vai gostar disto.” Um interlocutor casual
poderia facilmente ficar com a ideia de que “Emerson Hall” é um nome de uma pessoa.)

11
Londres: Sidgwick & Jackson, 1927.
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Ou uma pessoa pode confundir uma sombra com um ser humano vivo e dar-lhe um nome.
Em nenhum destes casos é plausível dizer que os usos subsequentes do nome em questão
referem realmente o item categoricamente errado.
Devitt e Sterelny (1987) chamam a isto o “problema qua.” Concedem que quem
celebra uma cerimónia de atribuição de um nome, ou outra pessoa responsável por qual-
quer das fundações do nome, tem de não estar categoricamente enganado e tem realmen-
te de visar referir algo que pertença à categoria apropriada. Esta é uma concessão mínima
ao descritivismo.
Há mais objecções (algumas de Evans). A posição maioritária é aparentemente que
Kripke reagiu no início excessivamente à imagem descritivista. Tinha razão em insistir que
algum tipo de cadeias histórico-causais é necessário para referir e que as descrições não
fazem nem de perto o trabalho que Russell ou mesmo Searle pensavam que faziam; mas
(como os críticos sustentam, incluindo Kripke) mesmo assim também existem condições
descritivas. O truque é ir de novo na direcção do descritivismo sem ir tão longe quanto a
doutrina descritivista fraca de Searle. Mas isso não deixa muito espaço de manobra. Uma
linha promissora veio a chamar-se “descritivismo causal” (Kroon 1987): a ideia é aceitar
que a proposta histórico-causal acerta nos casos, mas transformá-la numa condição descri-
tiva. Kroon defende esta ideia, fundamentalmente, alargando a objecção da “nomeação
posterior.”

Termos para categorias naturais e a “Terra Gémea”

Kripke (1972) e Hilary Putnam (1975ª) alargaram depois tanto a teoria semântica da desig-
nação rígida como a teoria histórico-causal da referência, passando dos termos singulares
para alguns predicados ou termos gerais, sobretudo termos para categorias naturais, subs-
tantivos comuns do género que referem substâncias naturais ou organismos, como “ouro,”
“água,” “molibdénio,” “tigre” e “oricterope.” Tais expressões não são termos singulares,
dado não pretenderem aplicar-se apenas a uma coisa. Mas Kripke e Putnam argumentaram
que são mais parecidos a nomes do que a adjectivos. Semanticamente, são rígidos; cada
um refere a mesma categoria natural em todos os mundos nos quais tal categoria se inclui.
E uma dada versão da teoria histórico-causal caracteriza o seu uso referencial.
Esta perspectiva opõe-se frontalmente a uma teoria descritivista dos termos para
categorias naturais há muito sustentada, que associava cada termo desses a um estereóti-
po descritivo. Por exemplo, “água” seria analisado de modo que o seu significado seria
algo como “um líquido transparente, sem cheiro nem sabor que cai do céu como chuva e
constitui os lagos e ribeiros,” e o significado de “tigre” seria algo como “um felino da sel-
va feroz e carnívoro, amarelado e com listas pretas peculiares.” Kripke e Putnam usaram
argumentos modais contra tais análises, semelhantes à objecção 3 do capítulo anterior e
ao argumento da rigidez que deu início a este capítulo. Por exemplo, poderia haver água
P á g i n a | 75

mesmo que nunca tivesse havido chuva, lagos ou ribeiros, e noutras circunstâncias a água
poderia ter cheio ou sabor. Os tigres poderiam ter nascido dóceis, e poderíamos até des-
cobrir que nenhum tigre alguma vez teve de facto listas (uma conspiração ao estilo do País
das Maravilhas poderia mandado pintar todas as listas).
O que faz então algo ser um tigre, ou uma amostra de água, se não for o estereóti-
po de senso comum? Kripke e Putnam chamaram a atenção para a natureza científica das
categorias naturais. O que faz da água água é a sua composição química, H2O; o que faz
dos tigres tigres é o seu código genético distinto. Em todos os mundos possíveis, a água é
H2O, mas em alguns mundos o H2O tem cheiro, ou sabor.
Poder-se-á objectar que a composição química da água e as características genéti-
cas dos tigres são descobertas empíricas muitíssimo substanciais; de modo que era certa-
mente possível que a água não fosse H2O, de modo que há mundos nos quais a água não é
H2O. Mas Kripke e Putnam responderam que a alegada “possibilidade” é aqui apenas uma
questão de ignorância científica, e não uma possibilidade metafísica genuína; quando se
descobre a essência científica de uma categoria natural descobre-se a verdadeira natureza
metafísica dessa categoria, e a categoria tem essa natureza em todos os mundos possíveis
nos quais se manifesta. O que muda de mundo para mundo são os elementos do estereóti-
po de senso comum.
Se esta perspectiva estiver correcta,12 tem uma implicação algo surpreendente
sobre a relação entre o significado linguístico e a mente: que o significado, como Putnam
escreve, “não ’tá na cabeça.” Putnam imagina que algures noutra galáxia há um planeta,
chamado “Terra Gémea,” que é uma cópia quase exacta da nossa Terra, caminhando em
paralelo com a nossa história. Contém um Putnam Gémeo, uma Ponte Gémea de Brooklyn,
um Lycan Gémeo e um Você Gémeo, sendo todas estas cópias moleculares das suas con-
trapartes daqui. Se conseguíssemos observar os dois planetas simultaneamente, seria
como ver o mesmo programa de televisão em duas televisões diferentes. (Mas é importan-
te assinalar que a Terra Gémea não é um mundo possível diferente; é apenas outro plane-
ta, no mesmo mundo que a Terra. Apesar de ser exactamente como você, e de estar num
contexto planetário quase exactamente semelhante, é claro que o seu gémeo não é você,
mas uma pessoa numericamente diferente.)
Afirmei que a Terra Gémea é uma cópia quase exacta da Terra. Há uma diferença: o
que se parece com a água e se comporta como água na Terra Gémea não é água — ou seja,
H2O — mas uma substância diferente a que Putnam chama XYZ. XYZ não tem cheiro nem
sabor e tem as outras propriedades superficiais da água, mas é apenas “água falsa” (como
o “ouro falso”). Claro, os terráqueos gémeos que falam português gémeo chamam “água”

12
É contestada por Searle (1983), Rosenberg (1994) e Segal (2000).
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a XYZ, dado que são exactamente como nós em todos os outros aspectos,13 mas isso é um
equívoco; “água” em português gémeo significa XYZ e não água, tal como (pelo que me
dizem) o termo categorial “chicória” em inglês britânico e americano significam plantas
diferentes.
Ora, considere-se um par de gémeos transmundiais, digamos Gordon Brown e Brown
Gémeo. Depois de uma catástrofe natural, Brown sublinha a urgência em fazer chegar
comida e água às vítimas. Naturalmente, ao mesmo tempo, Gordon Gémeo sublinha a
urgência em fazer chegar comida e “água” às vítimas. Mas as frases que proferem, idênti-
cas palavra a palavra, têm significados diferentes. A frase de Brown significa que é neces-
sário fornecer comida e H2O às vítimas, ao passo que a de Gordon Gémeo significa que é
necessário fornecer comida e XYZ às vítimas.
Contudo, Brown e Brown Gémeo são cópias físicas. Dados os pressupostos de fundo
de Putnam, isto mostra que os significados das elocuções de Brown e de Brown Gémeo não
são determinadas pelos estados totais dos seus cérebros, nem sequer pelos estados totais
dos seus corpos. Pois os seus estados cerebrais e somáticos são idênticos, diferindo no
entanto os significados das suas elocuções.
Talvez isto não seja uma grande surpresa. Afinal, a linguagem é uma propriedade
pública; qualquer linguagem é usada por uma comunidade, para permitir a comunicação
entre pessoas diferentes, e não para a mera articulação dos pensamentos privados de
alguém. Mas de facto (uma vez mais, dados os pressupostos de fundo), o exemplo de Put-
nam mostra mais do que isso: mostra que os significados linguísticos das frases não são
determinados nem mesmo pela totalidade dos estados cerebrais e somáticos de quem
fala, na verdade nem sequer pelo padrão de uso de toda a comunidade. Pois as pessoas
que falam português e português gémeo são todas exactamente idênticas na sua composi-
ção física e no uso público de palavras que soam exactamente da mesma maneira; contu-
do, as frases das suas linguagens idênticas significam coisas diferentes.14 Voltaremos a este
aspecto no capítulo 6.

13
O leitor atento ter-se-á dado conta de uma infelicidade no exemplo de Putnam: dado que
o corpo humano é constituído numa enormíssima proporção por água, os terráqueos gémeos dificil-
mente podem ser cópias moleculares de nós. Ignore-se isto ou, se realmente o incomodar, mude o
exemplo para uma categoria natural que não esteja representada no corpo humano.
14
Burge (1979) argumenta com base num exemplo do estilo da Terra Gémea que o significa-
do de um termo linguístico que alguém usa depende em parte do uso da comunidade que o rodeia,
não sendo por isso determinado pelos conteúdos da sua cabeça. Isto seria menos surpreendente do
que o ponto principal de Putnam, apesar de servir para sustentar a sua tese de que o significado
“não tá na cabeça.” (A verdadeira preocupação de Burge no artigo é a mente e não a linguagem:
quer mostrar que nem mesmo os conteúdos doxásticos estão na cabeça.)
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É agora tempo nos expandirmos e enfrentar a toda a questão do significado e das


teorias do significado.

Sumário

Kripke argumentou que os nomes próprios funcionam como designadores rígidos, que
um nome denota o mesmo indivíduo em todos os mundos possíveis nos quais esse indiví-
duo existe.
Adoptando uma linha mais ambiciosa, os teorizadores da RD defendem a perspectiva
milliana de que a única contribuição de um nome para o significado de uma frase na
qual ocorre é introduzir o seu portador no discurso.
Mas os nossos quatro quebra-cabeças sobre a referência surgem ainda, como antes, com
igual insistência, e parecem tornar a RD indefensável. Ficamos como que num parado-
xo.
Passando à teoria da referência, Kripke oferece a sua imagem histórico-causal em subs-
tituição das teorias descritivistas. Michael Devitt e outros aperfeiçoaram e ramificaram
a perspectiva histórico-causal em resposta às objecções iniciais.
Kripke e Putnam alargaram a teoria histórico-causal para abranger termos para catego-
rias naturais.
Se a teoria histórico-causal estiver correcta, então os exemplos da “Terra Gémea” de
Putnam parecem mostrar que os significados das palavras de uma comunidade discursi-
va não são inteiramente determinados pelos conteúdos das cabeças dos interlocutores;
o mundo exterior dá também uma contribuição.

Questões

1. Alguns filósofos sentem-se desconfortáveis com a noção de Kripke de um “designador


rígido” e com a sua distinção auxiliar de “fixar o sentido.” Se se sente também descon-
fortável com a “rigidez,” pode articular o problema?
2. Os nomes ficcionais são especialmente problemáticos para a tese da rigidez de Kripke?
Como poderia ele tratar os nomes ficcionais?
3. Depois de Kripke rejeitar a tese dos nomes, como poderá ele enfrentar um ou mais dos
quatro quebra-cabeças?
4. Poderá você ajudar a RD a enfrentar um ou mais dos quebra-cabeças (uma tarefa mais
difícil)?
5. Pode você responder mais completamente em nome da teoria histórico-causal às objec-
ções 1-4?
6. Faça as suas próprias críticas à imagem histórico-causal?
7. Ajuíze a perspectiva de Kripke-Putnam segundo a qual os termos para categorias natu-
rais designam rigidamente categorias cientificamente caracterizadas.
8. Os exemplos de Putnam da “Terra Gémea” persuadiram-no de que os significados “não
’tão na cabeça”?
P á g i n a | 78

Leitura complementar

Mais artigos representativos da referência directa encontram-se em Almog, Perry e


Wettstein (1989); Devitt (1989) oferece um exame e crítica. Veja-se também Recanati
(1993).
Kvart (1993) elabora também uma versão da teoria histórico-causal da referência.
Evans (1973) oferece mais objecções à imagem de Kripke, e uma revisão interessante.
Evans (1982) faz concessões a Kripke mas insiste que a ideia de uma “prática (social) de
uso de nomes” tem de ser introduzida como elemento complementar. McKinsey (1976,
1978) recuou até ao ancien regime. Mais objecções são feitas por Erwin, Kleiman e
Zemach (1976) e Linsky (1977).
Salmon (1981) passa em revista perspectivas semânticas sobre termos categoriais. Sch-
wartz (1977) contém artigos relevantes. Críticas na linha das de Kripke-Putnam são ofe-
recidas por Fine (1975), Dupré (1981), Unger (1983) e outros. Boër (1985) responde a
algumas dessas críticas.
O impacto dos exemplos da “Terra Gémea” na teoria do significado em geral são explo-
rados por Harman (1982) e Lycan (1984: cap. 10).
P á g i n a | 80

5 Teorias tradicionais do significado

Sinopse

Se a teoria referencial do significado é falsa, que teoria é verdadeira? Qualquer teoria do


significado tem de dar conta dos factos relevantes, a que podemos chamar “os factos do
significado”: alguns objectos físicos são significadores; expressões distintas podem ter os
mesmos significados; uma única expressão pode ter mais de um significado; o significado
de uma expressão pode estar contido no de outra; e não só. Tendemos a falar de “signifi-
cados” como coisas individuais.
Já se pensou que os significados eram ideias particulares nas mentes das pessoas.
Mas várias objecções mostram que isto não pode querer dizer pensamentos efectivos nas
mentes de pessoas particulares em momentos particulares do tempo. Na melhor das hipó-
teses, os significados teriam de ser mais abstractos: tipos de ideia que poderiam ocorrer
(ou não) na mente de um ser qualquer algures.
Assim, os significados foram também tomados em si como coisas abstractas, alter-
nativamente chamadas “proposições.” A frase “A neve é branca” significa que a neve é
branca; igualmente, podemos dizer que “expressa a proposição de que” a neve é branca.
Outras frases, mesmo noutras linguagens, como “La neige est blanche” e “Der Schnee is
weiss,” exprimem a mesma proposição, e são portanto sinónimas. Esta teoria proposicio-
nal dá correctamente conta dos vários “factos do significado,” dado que “proposição” é
essencialmente outra palavra para “significado.” Mas os críticos perguntam-se se explica
os factos do significado satisfatoriamente, ou até se o chega a fazer.
No início deste livro, os tópicos da referência e do significado não estavam separa-
dos porque a ideia ingénua mais comum que as pessoas têm quanto ao significado é que o
significado é a referência. No capítulo 1 desacreditámos a intuitiva mas insustentável teo-
ria referencial do significado. Por isso temos agora de enfrentar o significado directamen-
te, e ver algumas teorias mais sofisticadas do significado.
Como qualquer teoria, uma teoria do significado tem de ter um conjunto de dados
próprios. Quais são os dados primários de uma teoria do significado? Referir-me-ei a eles
em bloco como “os factos do significado.”
Primeiro, como sublinhámos no capítulo 1, há o ser significador em si. Algumas
sequências ou marcas ou ruídos no ar são apenas sequências ou marcas ou ruídos no ar, ao
passo que outras — em particular, frases completas — são significadoras. Qual é a diferen-
ça? Talvez esta seja a questão básica para a teoria do significado.
Segundo, por vezes dizemos que duas expressões distintas são sinónimas. Terceiro,
dizemos por vezes de uma só expressão que é ambígua, ou seja, que tem mais de um signi-
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ficado. (De modo que as expressões e os significados não têm uma correlação um a um.)
Quarto, dizemos por vezes que o significado de uma expressão está contido no de outra,
como fêmea e bode estão contidos no significado de “cabra.” Um importante caso espe-
cial aqui é quando de uma frase se deriva outra: de “Haroldo é gordo e Benedito é estúpi-
do” deriva-se “Benedito é estúpido.” (Também há derivabilidade conjunta: de “Ou a avó
está na cela ou já está no tribunal” e “A avó não está na cela” deriva-se conjuntamente “A
avó já está no tribunal,” mas de nenhuma das frases por si se deriva isso.)
Também há factos do significado mais exóticos. Por exemplo, algumas disputas ou
alegadas disputas são meramente verbais ou “apenas semânticas,” ao contrário de discor-
dâncias substanciais sobre factos. X e Y não discordam sobre o que efectivamente aconte-
ceu; disputam apenas que o que aconteceu conte como um “tal e tal.” E quem assiste diz:
“Oh, estão só a ter uma conversa de surdos.” (Isto acontece muito em filosofia.)
Ao formular os anteriores factos do significado, tentei pelo menos sem grande
entusiasmo evitar “reificar” coisas chamadas significados; isto é, evitei falar de “signifi-
cados” como se fossem coisas individuais, como sapatos ou meias. Falei de frases que têm
características como serem significadoras, serem sinónimas, serem ambíguas, apesar de
ter eventualmente caído na alusão a “significados.” Poderia ter reificado, dizendo “tem
um significado” em vez de “é significadora,” “têm o mesmo significado” em vez de “são
sinónimas,” e assim por diante, ou poderia até ter usado expressões quantificadoras, como
em “Há um significado que a frase tem” e “Há um significado comum a cada uma destas
frases.” Há filósofos que fizeram disto uma questão.
Usemos o termo “teoria da entidade” para uma teoria que oficialmente toma os
significados como coisas individuais. Há uma base considerável para teorias da entidade no
modo como comummente falamos. Parece que não nos referimos a coisas chamadas signi-
ficados usando a palavra como substantivo comum, mas parece que usamos expressões
quantificadas para fazer algo do género. Por vezes até parece que os contamos: “Esta
palavra tem quatro significados diferentes.” Por isso, é natural começar pelas teorias da
entidade.
Há pelo menos dois tipos diferentes de entidades com os quais se pode identificar
os significados. Primeiro, pode-se considerar que as entidades são itens mentais. Às teorias
desse tipo chama-se por vezes teorias ideacionais.

Teorias ideacionais

A vítima aqui é geralmente John Locke (1690), dado parecer ter sustentado que os signifi-
cados das expressões linguísticas são ideias na mente. Neste género de perspectiva, o que
faz uma sequência de marcas ou ruídos significar algo é essa sequência exprimir um esta-
do mental, ou de algum modo corresponder-lhe significantemente, estado mental em que
se encontra quem fala: uma ideia, uma imagem, ou talvez um pensamento ou uma crença.
P á g i n a | 82

O que é característico das teorias ideacionais tal como estou a usar o termo é que os esta-
dos mentais em questão são estados efectivos de pessoas particulares em momentos parti-
culares do tempo.
Se uma sequência é significadora na medida em que exprime uma ideia, pode-se
então dizer que a sinónima entre duas expressões ocorre quando ambas exprimem a mes-
ma ideia. A ambiguidade de uma expressão ocorre quando há mais de uma ideia que essa
expressão poderia exprimir, e assim por diante. E quando ao fenómeno da discordância
meramente verbal, o teorizador ideacionista pode dizer: não se trata de um interlocutor
ter um pensamento e o outro um pensamento diferente, conflituante; ambos têm o mes-
mo pensamento mas estão confusamente a pô-lo em palavras diferentes que parecem
incompatíveis.
Assim, um teorizador ideacional parece dar-nos um modo intuitivo de exprimir os
nossos factos do significado com mais precisão. Contudo, as teorias ideacionais não têm
sido populares neste último século (mas veremos no capítulo 7 que Paul Grice defende
uma teoria que é uma sua descendente). Eis várias razões do seu descrédito.

OBJECÇÃO 1

Para uma teoria ideacional ser suficientemente precisa, tem de (acabar por) especificar
que género de entidade mental é uma “ideia.” E é então que temos problemas. As ima-
gens mentais não servem de modo algum, de facto, pois as imagens são mais pormenoriza-
das do que os significados. (Uma imagem de um cão não é apenas, genericamente, de um
cão, mas de um cão de um formato e dimensão particulares, possivelmente de uma raça
particular; uma imagem de um triângulo é de um tipo particular de triângulo, equilateral
ou recto ou seja o que for.) Um candidato melhor seria um “conceito” mental mais abs-
tracto, mas essa sugestão seria circular até alguém conseguir dizer-nos o que é um “con-
ceito,” independentemente da noção de significado. Além disso, um conceito como o de
cão ou triângulo não é verdadeiro ou falso por si, e por isso não pode ser o significado de
uma frase completa.
Um pensamento completo poderia servir como significado de uma frase completa.
Mas nem todas as frases exprimem o pensamento efectivo de alguém. E se quer dizer
“pensamento” de um modo mais abstracto, como fazia Frege, então estamos a falar sobre
um género muito diferente de teoria (veja-se a seguir).

OBJECÇÃO 2

Como acontece com a teoria referencial, há pura e simplesmente demasiadas palavras que
não têm imagens mentais particulares ou conteúdos a elas associados: “é,” “e,” “de.” Na
verdade, se estamos a falar de imagens, há certamente palavras que psicologicamente não
poderiam ter imagens a si associadas, por exemplo, “quiliógono” ou “inentidade,” e mes-
P á g i n a | 83

mo quando uma palavra tem uma imagem associada, como ocorre com “vermelho,” nem
sempre trazemos a imagem à mente do decurso quotidiano de compreender a palavra à
medida que surge; na verdade, podemos praticamente nunca o fazer.

OBJECÇÃO 3

O significado é um fenómeno público, intersubjectivo, social. Uma palavra portuguesa tem


o significado que tem para toda a comunidade de quem fala português, ainda que ocorra
alguns membros dessa comunidade não compreenderem essa palavra. Mas as ideias, ima-
gens e sentimentos na mente não são intersubjectivos desse modo; são subjectivos, pre-
sentes apenas nas mentes de pessoas individuais, e diferem de pessoa para pessoa depen-
dendo do seu estado mental e do seu contexto. Logo, os significados não são ideias na
mente. (Poder-se-ia responder apelando ao que é comum entre todos os lusófonos nas
ideias de “cão,” digamos, mas o que é comum a todas as ideias de “cão” não é em si uma
ideia, mas um tipo de ideia, uma “qualidade” universal ou abstracta no sentido do capítu-
lo 1.)

OBJECÇÃO 4

Há frases significadoras que não exprimem qualquer ideia efectiva ou pensamento ou


estado mental. Pois, como vimos no capítulo 1, há frases muito longas e complicadas de
português que nunca foram proferidas, e algumas delas nunca o serão. (É claro que mal
dei um exemplo de uma, já não era um exemplo de uma, porque mal a escrevi tornou-se
uma frase proferida. Mas podemos extrapolar; há outras no mesmo lugar de onde tirei a
minha extravagante frase de Hitler.) Assim, há frases que são ou seriam perfeitamente
significadoras mas cujos conteúdos nunca foram pensados por alguém e nunca ocorreram
sequer a alguém. Assim, há frases significadoras que não correspondem a quaisquer enti-
dades mentais efectivas.
Neste século, tem sido muito mais comum as teorias semânticas da entidade invo-
carem entidades abstractas e não mentais. Aos significados das frases em particular tem-
se chamado “proposições” (como fazia Russell, como vimos no capítulo 2).

A teoria proposicional

Como as ideias, estes itens abstractos são “independentes da linguagem” na medida em


que não estão ligadas a qualquer linguagem natural particular. Mas ao contrário das ideias,
são também independentes das pessoas. As entidades mentais dependem das mentes nas
quais inerem; um estado mental tem de ser o estado mental de alguém, um estado da
mente de uma pessoa particular num momento particular do tempo. As proposições são
inteiramente gerais e, se se quiser, eternas. (O próprio Russell pouco mais tinha para dizer
P á g i n a | 84

sobre a sua natureza; o seu colega G. E. Moore era mais claro e menos reservado, ou pelo
menos mais directo.1 Frege construíra anteriormente uma teoria proposicional muito ele-
gante, mas parece ter pensado nada haver para compreender quanto ao que é uma propo-
sição a não ser compreender o papel desempenhado pelas “proposições” na teoria.)
Considere-se uma resposta possível à objecção 4 anterior: pode-se tentar salvar a
teoria ideacional sugerindo que precisamos de nos restringir a ideias efectivas; podemos
apelar a ideias meramente possíveis — ideias que alguém poderia ter ou poderia ter tido.
Mas isso seria postular conteúdos abstractos que são conteúdos possíveis do pensamento
mas não estão relacionados com os pensamentos efectivos de alguém. É aqui que entra o
teorizador proposicional: “Muito bem, chamemos “proposições” a essas coisas que podem
ser pensadas.” E assim (se o teorizador ideacional fizer esta jogada), a perspectiva idea-
cional vai simplesmente dar à teoria proposicional.
A teoria proposicional oferece uma imagem gráfica. Suponha-se que temos uma
sequência S de palavras, que é significadora, juntamente com outra sequência g que é só
uma algaraviada. Qual é a diferença? Segundo Russell e Moore, a diferença é haver um
conteúdo abstracto ou proposição, chame-se-lhe P, com a qual S tem uma certa relação
especial. S é uma frase de uma linguagem particular. A pobre g não tem essa relação com
qualquer item desses. À relação chama-se frequentemente expressão; os filósofos falam
comummente de frases que exprimem proposições. (Apesar de o termo ser aqui mais ané-
mico do que nas teorias ideacionais. Os teorizadores ideacionais concebem as frases quase
como se fossem impelidas de dentro de nós pela pressão dos nossos pensamentos, mas as
proposições são abstractas, imutáveis e impotentes e não impelem coisa alguma.) Assim, S
é significadora em virtude de exprimir a proposição particular P; a deficiência de g é não
exprimir qualquer proposição.
Os outros factos do significado são elegantemente descritos deste ponto de vista.
Ocorrer sinonímia entre as frases F1 e F2 é apenas F1 e F2 exprimirem a mesma proposição.
F1 e F2 são expressões linguísticas distintas — podem ser expressões diferentes de uma
mesma linguagem natural ou podem ser expressões correspondentes de linguagens dife-
rentes. O que têm em comum é apenas terem a relação de expressão com respeito à
mesma proposição.
O mesmo ocorre no caso da ambiguidade. Uma frase F é ambígua se, e só se, há
pelo menos duas proposições distintas, P1 e P2, e a expressão única F tem a relação de
expressão com ambas, P1 e P2. No caso das disputas meramente verbais, podemos dizer

1
“O facto é que todos os conteúdos absolutamente do Universo, absolutamente todas as
coisas que são tudo, podem ser divididos em duas classes — nomeadamente, proposições, por um
lado, e em coisas que não são proposições, por outro” (Moore 1953: 71). Moore relata numa nota
autobiográfica que teve uma vez um pesadelo em que as proposições eram mesas.
P á g i n a | 85

que os interlocutores não discordam sobre qualquer proposição; estão apenas a usar for-
mas diferentes de palavras para exprimir a mesma proposição, e as formas particular de
palavras parecem estar em conflito apesar de o não estarem.
Sabemos algumas coisas positivas sobre o que são supostamente as proposições,
além de serem expressas por frases. São identificáveis por meio de orações “que”:* fala-
mos da proposição de que a neve é branca, e comprometemo-nos com proposição de que
todos os homens [sic] nascem iguais. “A neve é branca,” “La neige est blanche” e “Der
Schnee is weiss” são sinónimas porque cada uma delas exprime a proposição de que a neve
é branca. Apesar de o que se segue à oração “que” ser apenas outra frase de uma lingua-
gem natural particular, a que por acaso estamos a falar, a função do “que” — criar discurso
indirecto — é libertar a referência à proposição em questão da sua expressão particular.
As proposições são também objectos de estados mentais. Por todo o mundo as pes-
soas acreditam que os mercados asiáticos estão a entrar em colapso, duvidam que os mer-
cados asiáticos estejam a entrar em colapso, temem ou têm a esperança de que os merca-
dos asiáticos estejam a entrar em colapso. Também aqui o “que” serve para remover a
implicação de que todos pensaram esse pensamento em português. Poderão tê-lo pensado
em qualquer linguagem; e seria mesmo assim verdade que acreditavam, duvidavam, etc.,
que os mercados asiáticos estão a entrar em colapso.
Além disso, as proposições são os portadores de verdade e falsidade fundamentais.
Quando uma frase é verdadeira/falsa, só o é porque a proposição por ela expressa é ver-
dadeira/falsa. Um argumento a favor desta tese é que as frases mudam os seus valores de
verdade ao longo do tempo e de contexto para contexto.

1) A actual rainha de Inglaterra é calva.

Acreditamos que 1 é falsa, presumindo que a Elisabete Windsor não adoptou o conselho de
Russell, passando a usar peruca. Mas o que dizer das outras rainhas, do passado ou do
futuro, que podem ter sido ou podem ser calvas? Se 1 fosse proferida durante o reinado de
uma rainha anterior que fosse calva, 1 seria verdadeira, e se for proferida daqui a déca-
das, durante o reinado de uma rainha posterior, 1 poderá ser verdadeira ou falsa. Assim, 1
será verdadeira ou falsa dependendo de quando for proferida. O que faz uma elocução
particular de uma frase ser verdadeira ou falsa é a proposição que essa frase expressa nes-
sa ocasião. A razão pela qual 1 muda o seu valor de verdade é que exprime diferentes pro-

*
Trata-se de orações subordinadas substantivas objectivas directas, introduzidas pela con-
junção subordinativa integrante “que.” Inexistindo uma designação sensata na gramática portugue-
sa, optou-se por manter a tradução literal do inglês, “that” clause, para evitar a verbosidade. N.
do T.
P á g i n a | 86

posições em diferentes ocasiões de elocução. As frases derivam os seus valores de verdade


das proposições; os valores de verdade das proposições são permanentes.
Os defensores da teoria proposicional sustentam na sua maior parte que as proposi-
ções têm estrutura interna; são compostas de partes conceptuais. A palavra “neve” é uma
expressão significadora, mas não em virtude de exprimir uma proposição; por si, não
exprime uma proposição completa. Só uma frase exprime uma proposição ou, como cos-
tumavam dizer quando eu andava na escola secundária, um pensamento completo. “Neve”
não exprime um pensamento completo, mas exprime algo que é parte de muitos pensa-
mentos — um conceito, ou um tipo, ou uma “ideia” no sentido abstracto e não mental.
“Conceito” é o termo habitualmente usado para falar de um constituinte igualmente abs-
tracto de uma proposição abstracta mais lata.2
Também há “factos do significado” sobre as partes ou constituintes das frases, e
podemos dar-lhes um tratamento análogo. Pode-se dizer que as palavras sinónimas de
“neve” exprimem o mesmo conceito; se “neve” for ambígua, como de facto é, é-o em
virtude de exprimir diferentes conceitos: por vezes a substância branca gelada que cai do
céu e outras vezes uma certa substância proibida.
A teoria proposicional evita as quatro objecções às teorias ideacionais, mas escapa
só à justa de uma delas. Já vimos que escapa à objecção 4. Evita 1 porque as proposições
e os conceitos não são entidades mentais, e evita 3 porque, contrastando com as entida-
des mentais, as proposições e os conceitos são intersubjectivos, independentes de pessoas
e linguagens particulares, e até de culturas inteiras.
Escapa à justa da objecção 2. O teorizador proposicional pode insistir que as pala-
vras como “é,” “e,” “de,” “quiliógono” e “inentidade” exprimem conceitos (“quiliógono,”
em especial, é um termo geométrico bem definido). Mas como afirmei em resposta à
objecção 1, para isto não parecer vácuo e talvez até circular, o teorizador proposicional
terá de caracterizar melhor os conceitos relevantes, sem pressupor tranquilamente uma
noção qualquer de significado linguístico. (Veremos no capítulo 10 que uma versão sofisti-
cada da teoria proposicional pode fazer isto.)
A perspectiva proposicional é a principal teoria semântica da entidade. Como qual-
quer teoria semântica, tem por objectivo explicar os factos do significado. Procura fazê-lo
postulando um certo domínio de entidades; é desse modo que muitas vezes explicamos
coisas, especialmente em ciência. Postulamos partículas subatómicas, entidades inobser-
váveis de um certo tipo e pertencentes a um certo domínio, para explicar o comportamen-
to de substâncias químicas observáveis e as proporções em que se combinam.

2
Apesar de, como ocorre com “ideia,” também “conceito” tem sido usado para falar de um
tipo de entidade mental particular. Este equívoco causou alguma confusão na psicologia cognitiva
contemporânea.
P á g i n a | 87

Um género de facto do significado que não mencionei até agora cria um primeiro
problema para a teoria tal como a formulámos até agora. Alguns filósofos consideram este
género de facto do significado até mais importante do que todos os outros apresentados
acima: compreendemos uma frase F, imediatamente, ao passo que não compreendemos
uma sequência de palavras que seja uma algaraviada. Algumas sequências de palavras são
inteligíveis e outras não. Isto introduz outro termo na relação. Até agora, a teoria proposi-
cional centrou-se apenas nas expressões linguísticas e nas proposições, definindo-se entre
ambas a relação de expressão. Agora é necessário introduzir também os seres humanos.
O que é isso de uma pessoa compreender uma frase F? A resposta mooriana clássica
é: essa pessoa tem uma certa relação com uma proposição e sabe que F exprime essa pro-
posição. A esta relação Moore chamou “captar” (ou por vezes “apreender”). Compreender
F é captar uma proposição P e saber que F exprime P.
A teoria proposicional é também simpática ao senso comum. É fácil concordar que
certas frases de várias linguagens diferentes têm todas algo em comum (os seus significa-
dos), um conteúdo independente da linguagem, e é fácil e natural chamar a esse conteúdo
“a proposição expressa pelas” diferentes frases. Além disso, a teoria proposicional é um
instrumento proveitoso para descrever e discutir os outros géneros de “fenómenos do sig-
nificado” que mencionámos, já para não falar da derivabilidade, inclusão semântica,
antonímia, redundância, etc. Por fim, como veremos nos capítulos 10 e 11, a teoria propo-
sicional permite uma elaboração matemática elegante, nas mãos dos semanticistas dos
“mundos possíveis” e dos lógicos intensionais. Mas, como sempre, há problemas.

OBJECÇÃO 1

Dissemos que as “proposições” são entidades abstractas, apesar de se afirmar agora que as
frases as “exprimem,” em vez de se dizer que as nomeiam, como na teoria referencial.
Consideradas como entidades, estes itens abstractos são algo esquisitos. Não estão locali-
zados em lugar algum do espaço e, dado que não poderiam ser criados ou destruídos, são
também temporalmente eternos ou pelo menos perpétuos. Existiam muito antes de existir
qualquer ser vivo, apesar de os seus conteúdos terem a ver com estados de coisas humanos
muitíssimo específicos, como o Frederico ter emborcado rapidamente quatro martínis no
bar Não Está Cá Ninguém ao anoitecer de terça-feira, 19 de Setembro de 1995. As proposi-
ções continuarão a existir muito depois da última criatura senciente ter morrido. E (neces-
sariamente, dado não estarem localizadas no espaço-tempo) não têm propriedades cau-
sais; não fazem coisa alguma ocorrer.

UMA RESPOSTA
É correcto e apropriado desconfiar de se postular entidades esquisitas. Mas talvez seja
prematuro este apelo directo à “Navalha de Occam.” O filósofo medieval Guilherme de
P á g i n a | 88

Occam disse-nos para não multiplicar entidades postuladas para lá da necessidade explica-
tiva. Mas só poderemos saber se as proposições são desnecessárias para a explicação se
tivermos uma teoria alternativa do significado que explique os fenómenos do significado
igualmente bem mas sem acarretar proposições. E (até agora) não temos tal teoria rival.

OBJECÇÃO 2

As “proposições” são num certo sentido incomuns e alheias à nossa experiência. Oiço e
vejo palavras e compreendo-as, mas isto dificilmente é ou parece um caso em que eu faço
algo chamado “captar,” que me põe em contacto com um objecto supra-empírico não
espacial, indestrutível, eterno. (Aqui entra uma música de fundo espectral.)

A RESPOSTA DE MOORE

É perfeitamente claro, penso, que quando compreendemos o significado de uma frase, algo
mais acontece nas nossas mentes além da mera audição das palavras que compõem a frase.
Isto é fácil de verificar contrastando o que acontece quando ouvimos uma frase que com-
preendemos com o que acontece quando ouvimos uma frase que não compreendemos […]
Certamente que no primeiro caso ocorre, além da mera audição das palavras, outro acto de
consciência — uma apreensão do seu significado, que no segundo caso está ausente. E não é
menos claro que a apreensão do significado de uma frase com um dado significado difere
em algo aspecto da apreensão de outra frase com um significado diferente […] Certamente
que os dois significados diferentes apreendidos existem. E é a cada um desses dois signifi-
cados que chamo proposição.
(1953: 73-4)

E, poderia Moore acrescentar, se dissermos que não sabemos de que está ele a falar, esta-
mos a mentir. Captar é algo de que temos experiência directa.

UMA RESPOSTA DIFERENTE


Concedendo a premissa em vez de a pôr em causa, poder-se-ia assinalar que é comum não
apenas em filosofia como na ciência explicar fenómenos muitíssimo familiares em termos
de fenómenos muitíssimo incomuns, talvez até misteriosos.

OBJECÇÃO 3

Esta é de Gilbert Harman (1967-8). A teoria proposicional nada explica de facto; limita-se
a repetir os dados num jargão mais decorativo. (“Por que razão “A neve é branca” e “La
neige est blanche” têm o mesmo significado?” — “Porque exprimem a mesma proposição.”
— “Ah, estou a ver.”) É como se a expressão “exprime uma proposição” fosse apenas uma
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maneira mais decorativa de dizer “é significadora.” Pelo menos até nos mostrarem algum
modo independente de compreender o discurso proposicional, permanecerá a suspeição de
se tratar apenas de uma maneira pretensiosa de reformular os factos do significado. Com-
pare-se com o médico de Molière sobre o ópio e a “virtude dormitiva.”3

RESPOSTA
Esta objecção não é muito preocupante. Pois quando se elaborar e aprimorar uma teoria
proposicional, juntamente com a noção de uma pessoa “captar” uma proposição, e de
uma frase exprimir uma proposição, o aparato tem pelo menos algum poder previsivo e
por isso (nessa medida) tem pelo menos algum poder explicativo. Se a história resultante é
plausível ou não é uma questão diferente. Mas talvez Harman tivesse realmente em vista a
próxima objecção.

OBJECÇÃO 4

Seja lá o que for o significado, desempenha um papel dinâmico na sociedade humana.


Alguns dos seus comportamentos resultam causalmente de eu dizer certas palavras que
significam o que significam, e alguns dos meus comportamentos resultam de você dizer
certas palavras também significadoras. As decisões judiciais em casos importantes por
vezes dependem dos significados das palavras, e assim por diante. Assim, o significado,
seja lá o que for, tem de ter algum poder causal (algum impulsionamento, vigor, genica).
Mas as proposições, dado serem entidades inteiramente abstractas, não têm poderes cau-
sais, precisamente. Situam-se serenamente e inutilmente fora do espaço-tempo, e não
fazem coisa alguma. Por isso é difícil ver como as proposições poderiam figurar na explica-
ção do comportamento linguístico humano ou como poderiam de qualquer outro modo
ajudar a explicar o papel social dinâmico do significado. E consequentemente parece afi-
nal de contas que são postulados desnecessários.

RESPOSTA
Mesmo que as proposições não ajudem na explicação do comportamento humano, isto não
é a única coisa que precisa de ser explicada. Os próprios “factos do significado” são os
nossos dados primários e, pace Harman, as proposições ajudam a explicá-los.
Os filósofos da “linguagem comum” dos anos cinquenta do séc. XX tiraram uma
lição das primeiras versões das objecções 1 e 4: que precisamos é de uma teoria que

3
“Por que razão o ópio faz a pessoas dormir?” — “Porque tem uma virtude dormitiva.” Isto
pode parecer profundo até se dar conta de que a expressão é apenas a transliteração latina de
“poder para provocar o sono.” O médico (Argan, em Le Malade Imaginaire) poderia igualmente ter
falado em latim de porcos: “Faz as pessoas dormir porque itay utspay eoplepay otay eepslay.” Isto
dificilmente é uma explicação.
P á g i n a | 90

explique os fenómenos do significado em termos que estejam em conexão com o compor-


tamento humano. (Recorde-se que o comportamento humano envolve actividade física
efectiva; o significado tem de algum modo de contribuir para o impulsionamento literal.)
Mais especificamente, temos de entender o significado em termos de uso da linguagem.
Desde então, os filósofos têm falado de teorias semânticas do “uso.” Mas não ganhámos
muito, pois há muitos tipos diferentes de modos de “uso,” alguns dos quais são obviamen-
te irrelevantes para o significado no sentido caracteristicamente linguístico. Diferentes
concepções especificamente linguísticas de “uso” conduziram a teorias do significado dife-
rentes e rivais.

Sumário

Uma teoria do significado tem de explicar os “factos do significado.”


Os “significados” foram muitas vezes entendidos como entidades ou coisas individuais.
Os teorizadores ideacionais sustentam que os significados são ideias particulares nas
mentes das pessoas.
Mas várias objecções mostram que, na melhor das hipóteses, os significados teriam de
ser mais abstractos: tipos de ideias, e não pensamentos propriamente ditos nas mentes
de pessoas particulares.
Os teorizadores proposicionais tomam os significados como coisas abstractas em si.
Mas os críticos têm questionado se a teoria proposicional explica satisfatoriamente os
factos do significado (ou até se os chega realmente a explicar).

Questões

1. Poder-se-á dizer algo mais a favor da teoria ideacional? E/ou poderá você defendê-la de
uma ou mais das objecções apresentadas?
2. Explica realmente a teoria proposicional os factos do significado? Porquê ou por que
não?
3. Defenda a teoria proposicional mais exaustivamente contra as nossas objecções. Ou
levante novas objecções.

Leitura complementar

A teoria ideacional de Locke é discutida por Bennett (1971).


Frege (1918) criticou as teorias ideacionais a favor da teoria proposicional. Wittgenstein
(1953) criticou-as de um ponto de vista muito diferente (veja-se o capítulo 6), tal como
Waismann (1965ª).
Uma teoria proposicional clássica foi oferecida por Russell (1919).
Para alguma discussão das proposições e das suas relações com as frases e as elocuções,
veja-se Cartwright (1962) e Lemmon (1966).
P á g i n a | 91

A melhor sinopse das críticas quinianas à teoria proposicional é de Gilbert Harman


(1967-8), particularmente pp. 124-7 (pp. 141-7 são também relevantes). Lycan (1974) é
uma resposta a favor da teoria. Veja-se também Loux (1998: cap. 4).
P á g i n a | 92

6 Teorias do uso

Sinopse

A teoria proposicional trata as frases e outros itens linguísticos como entidades abstractas
inertes cuja estrutura pode ser estudada como que ao microscópio. Mas Ludwig Wittgens-
tein argumentou que as palavras e frases são mais como peças ou partes de um jogo, usa-
das para fazer jogadas em práticas sociais convencionais regidas por regras. Um “significa-
do” não é um objecto abstracto; o significado é uma questão do papel que uma expressão
desempenha no comportamento social humano. Saber o significado da expressão é apenas
saber como empregar a expressão apropriadamente em contextos conversacionais.
A versão de Wilfrid Sellars desta ideia torna central o acto de inferir; é a complexi-
dade dos padrões de inferência que permitem ao teorizador do uso acomodar frases longas
e novas. Deste ponto de vista, uma frase deriva-se de outra não porque as duas “expri-
mam” “proposições,” uma das quais está de algum modo “contida” na outra, mas porque
há a expectativa social de que o nosso semelhante executaria o acto de inferir a segunda
frase da primeira.
As teorias do uso deste tipo enfrentam dois obstáculos principais: explicar como o
uso da linguagem difere das actividades convencionais comuns regidas por regras, como os
jogos de xadrez, que não geram qualquer significado; e explicar como, em particular, uma
frase pode significar que tal e tal (como o francês “La neige est blanche” significa que a
neve é branca). Robert Brandom ofereceu recentemente uma teoria do uso que professa
executar estas façanhas.
Como vimos no capítulo 2, o hábito de Russell era escrever uma frase no quadro e
examinar (como ele sustentava) a proposição expressa pela frase, tratando-a como um
objecto de interesse em si e tentando discernir a sua estrutura. Ludwig Wittgenstein e J.
L. Austin argumentavam que esta imagem de como a linguagem funciona e de como deve
ser estudada está completamente errada. As linguagens e as entidades linguísticas não são
objectos abstractos exangues que possam ser estudados como espécimes ao microscópio.
Ao invés, a linguagem assume a forma de comportamento, actividade — prática social
específica. As frases não têm vida por si mesmas. As coisas que escrevemos nos quadros, e
as alegadas “proposições” que exprimem, são abstracções assaz violentas das elocuções
executadas por seres humanos em contextos do mundo real e em ocasiões particulares.1 E

1
Eis três maneiras infrequentemente vistas e nas quais a noção de uma “frase” é uma abs-
tracção assaz considerável da actividade linguística do mundo real. Primeiro (o que poderá ser uma
surpresa), as elocuções humanas não surgem divididas em palavras separadas. Uma análise acústica
da produção de discurso oral mostra uma corrente contínua de som, ainda que evidentemente
P á g i n a | 93

proferir algo é antes de mais e sobretudo fazer algo. É um pedaço de comportamento que
por convenção foi incorporado numa prática social regida por regras. Já encontrámos uma
versão desta ideia no capítulo 2, pois é desta mesma perspectiva que Strawson aferrou as
suas várias objecções contra a inicialmente atraente teoria das descrições de Russell. E
quer tenhamos ficado convencidos pelas objecções quer não, na altura eram novas e
impressionantes e, para muitas pessoas, intuitivamente persuasivas. Esta é uma boa carta
de recomendação para a própria perspectiva.

O uso num sentido aproximadamente wittgensteiniano

Wittgenstein (1953) e Austin (1961, 1962) desenvolveram esta ideia sócio-comportamental


de maneiras diferentes. Concentrar-me-ei numa perspectiva wittgensteiniana, protelando
Austin até ao capítulo 12. Digo apenas “uma perspectiva wittgensteiniana” porque, por
razões que não podemos explorar aqui, o próprio Wittgenstein opunha-se à teorização sis-
temática em filosofia, e os seus seguidores objectavam a qualquer expressão na linha de
“a teoria de Wittgenstein de…” ou “a doutrina de Wittgenstein quanto a…”2 Tentarei ape-

diversificada. (Quando… falamos… não… fazemos… pausas… ainda… que… breves… entre… as… pala-
vras.) Quando ouvimos uma corrente de som que constitui o discurso de alguém, somos nós que
dividimos as palavras, automaticamente e sem pensar sequer alguma vez nisso. Isto já é uma abs-
tracção, uma jogada teórica ou analítica feita por nós.
Segundo, pensar em algo como uma “frase” pressupõe a noção de boa formação gramatical.
Nem toda a sequência de palavras constitui uma frase; só as sequências gramaticais constituem
frases. E a ideia de gramaticalidade é sofisticada, apesar de ser captada, por mais indistintamente
que seja, por crianças de quatro anos.
Terceiro, considere-se a categoria do que os linguistas costumavam chamar elocução semi-
gramatical. Algumas das elocuções que as pessoas produzem são apenas semigramaticais, na medi-
da em que se as suas palavras fossem escritas no papel, o resultado não iria contar como uma frase
inteiramente gramatical à luz de uma qualquer regra da gramática (contém uma qualquer infelici-
dade gramatical), mas é suficientemente coerente para ser compreendida. De facto, suspeito que
as pessoas falam dessa maneira, na sua maior parte. No mínimo, todos fazemos coisas como come-
ços falsos, e todos nos entregamos a revisões no meio do discurso. Corrigimos a semigramaticalida-
de assaz automaticamente. Essa correcção é uma jogada teórica feita pelos nossos cérebros, e con-
tudo é mais um afastamento por abstracção dos acontecimentos discursivos do mundo real.
2
O parágrafo 43 das Investigações Filosóficas de Wittgenstein (1953) tem a fama de ser mal
citado. Nele lê-se: “Numa grande classe de casos — mas não em todos — nos quais usamos a palavra
“significado,” esta pode ser definida assim: o significado de uma palavra é o seu uso na lingua-
gem.” Wittgenstein levava muito a sério o “mas não em todos”; não defendia que “o significado é o
uso,” sem mais. Na verdade, tinha alergia a generalizações universais. Pensava que um defeito
profundo da filosofia era precisamente a procura de generalizações universais; o mundo real, man-
tinha, é sempre mais complicado que isso.
P á g i n a | 94

nas esboçar uma perspectiva que se baseia nas contribuições de Wittgenstein, sem atribuir
essa ou qualquer outra teoria ao próprio Wittgenstein.
Se o próprio significado é misterioso, uma maneira de reduzir o mistério é entrar
no seu domínio através de algo com o qual tenhamos uma familiaridade mais directa. Para
encontrar terreno firme no significado, pensemos nele do ponto de vista do receptor, a
captação do significado ou a compreensão de expressões linguísticas. E para compreender
a compreensão, concebamo-la como o produto de nos terem ensinado a nossa linguagem,
e como o que se aprende quando se aprende uma linguagem.
Mas mal tentamos vê-la assim, algo se torna imediatamente óbvio: que o que se
aprende e ensina é uma forma complicada de comportamento social. O que aprendemos
quando aprendemos uma linguagem é a fazer jogadas, a entregarmo-nos a certos tipos de
práticas, em particular o comportamento conversacional. E o que é ensinado primariamen-
te é a maneira correcta de nos comportarmos quando as outras pessoas fazem certos tipos
de ruídos, e que tipos de ruídos fazer quando as circunstâncias são apropriadas para isso. A
prática linguística é regida por conjuntos muitíssimo complexos de regras, apesar de rara-
mente as articularmos; as crianças limitam-se a apanhá-las a uma velocidade colossal,
aprendendo a obedecer-lhes sem se darem conta que é isso que estão a fazer.
Estas verdades comezinhas são obscurecidas pelas teorias da entidade, que tratam
os significados como coisas estáticas e inertes. Tanto Wittgenstein quanto Austin foram
pródigos em invectivas contra tais teorias, apesar de aqui nos ocuparmos de uma perspec-
tiva positiva do uso. Wittgenstein faziam também pouco da perspectiva de que o significa-
do envolve essencialmente relações referenciais entre expressões linguísticas e coisas no
mundo (apesar de não negar evidentemente que há algumas relações dessas).
Wittgenstein fez a analogia capital da actividade linguística com actividade de
jogar jogos. (Segundo o físico Freeman Dyson, na altura um estudante de graduação em
Cambridge, um dia Wittgenstein caminhava por um campo onde decorria um jogo de fute-
bol, e “ocorreu-lhe pela primeira vez que na linguagem jogamos jogos com palavras.”)3 A
linguagem não é uma questão de marcas no quadro portadoras da relação de “expressão”
com entidades abstractas chamadas “proposições”; a linguagem é algo que as pessoas

Como Georg Henrik von Wright escreveu, Wittgenstein “viveu nas fronteiras da doença men-
tal […] durante toda a sua vida” (“Biographical Sketch,” in Norman Malcolm, Ludwig Wittgenstein:
A Memoir, Oxford: Oxford University Press, 1958). Wittgenstein também se distinguia da maior par-
te dos filósofos anglófonos do séc. XX por ter tido uma vida bastante interessante; veja-se a mara-
vilhosa biografia de Ray Monk, Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius (Nova Iorque: Free Press,
Maxwell Macmillan International, 1990.) [Wittgenstein: O Dever do Génio, trad. Carlos Afonso Mal-
ferrari. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.]
3
Referido por Norman Malcolm (1958: 65). “Uma ideia central da sua filosofia, a noção de
um “jogo de linguagem,” teve aparentemente a sua génese neste incidente.”
P á g i n a | 95

fazem, e que fazem de um modo profundamente convencional e regido por regras. A acti-
vidade linguística é regida por regras em grande parte como a actividade de jogar um jogo
é regida por regras.
Além disso, as próprias expressões linguísticas são como peças de um jogo. Consi-
dere-se os xadrezistas. Um “peão,” ou uma “torre,” é definido pelas regras do xadrez que
regem a sua posição inicial e as jogadas permitidas subsequentes; o que faz de um cavalo
um cavalo é o modo característico como se move de acordo com as regras convencional-
mente instituídas do jogo. Do mesmo modo, o significado linguístico de uma expressão é
constituído pelas regras tácitas que regem o seu uso conversacional correcto.
Comece-se com expressões como “Olá,” “Raios” (ou “Sebo”), “Chiça,” “Desculpe,”
“Ámen,” “Obrigado,” “Pára com isso!,” “Estou nessa” (quando se ofereceu uma aposta) e
“Santinho.” Estas expressões não parecem significar o que significam em virtude represen-
tarem algo ou em virtude de exprimirem proposições. São apenas dispositivos convencio-
nais para, respectivamente, cumprimentar, indicar consternação, deplorar, pedir desculpa,
apoiar, agradecer, protestar, comprometermo-nos com uma aposta e bendizer. São ruídos
que fazemos que têm papéis funcionais socialmente definidos; há ocasiões apropriadas e
inapropriadas para os usar, e respostas apropriadas. Quando falamos dos seus significados,
trata-se das funções que caracteristicamente executam no contexto das nossas práticas
sociais correntes. Do ponto de vista wittgensteiniano, este é o locus e lar natural de todo
o significado, apesar de a maior parte das expressões terem papéis sociais muitíssimo mais
complicados.
Para sublinhar tudo isto, Wittgenstein introduziu o termo “jogo de linguagem,”
tendo em vista coisas como o jogo de linguagem de encontrar e saudar alguém, o jogo de
linguagem do casamento, o jogo de linguagem da aritmética, e assim por diante.
Wittgenstein oferece outra analogia (1953: 2): um pedreiro e o seu servente têm
apenas quatro tipos de blocos de construção. Falam uma pequena linguagem primitiva que
tem apenas quatro palavras correspondentes: “bloco,” “pilar,” “laje” e “viga.” Constroem
coisas, entregando-se às suas actividades alinguísticas, ajudados por um certo género pri-
mitivo de actividade linguística: o pedreiro diz “laje,” e o servente traz uma pedra da
forma apropriada. Ora, poder-se-ia dizer: “Claro, a palavra “laje” tem a relação de refe-
rência com um bloco desta forma, e o seu significado é a proposição de que o servente
deve trazer tal bloco ao pedreiro.” Mas segundo Wittgenstein isto seria não ver o que con-
ta. Neste pequeno jogo de linguagem primitivo, a palavra “laje” tem uma função que está
obviamente conectada com blocos dessa forma, mas o que conta é a função e não a rela-
ção de referência. O intuito do pedreiro ao produzir o ruído “laje” é fazer o servente fazer
algo, desencadear convencionalmente (depois de o servente ter aprendido a sua profissão)
um padrão de actividade útil. A actividade envolve coisas desta forma, mas o intuito pri-
mário é desencadear a acção, e não referir ou “exprimir” uma proposição eterna.
P á g i n a | 96

Claro que é difícil extrapolar esta imagem simples do significado como função
social brutalmente convencional para frases longas e complexas como “A actual rainha de
Inglaterra é calva” ou “Em 1931, Adolf Hitler fez uma visita aos EUA, durante a qual…,”
nenhuma das quais tem um papel social convencional facilmente identificável (a não ser
asserir que a actual rainha de Inglaterra é calva e que em 1931… mas isto em nada nos
ajuda). É preciso introduzir um mecanismo adicional para se conseguir essa extrapolação.
Os positivistas lógicos apelavam à noção de verificação, mas eu reservo a discussão disso
até ao capítulo 8. Wilfrid Sellars (1963, 1974) invocava a ideia de inferir como um acto
social. Falava também de “regras linguísticas de entrada” e “regras linguísticas de saída,”
respectivamente regras que regem o que se espera que digamos em resposta a certos
géneros de acontecimentos alinguísticos (como observações) e o que se espera que faça-
mos em resposta a certas elocuções linguísticas, mas o mais importante são as “regras
linguísticas de linguagem,” que regem o que se espera que digamos em resultado do que
se infere de outra coisa que previamente se disse. Chame-se a isto a teoria inferencial do
significado.
É difícil ver como uma teoria que tomou “Olá” ou “Laje” como paradigmas poderia
ser bem-sucedida ao explicar os factos do significado mais sofisticados. Ser dotado de sig-
nificado, sinonímia e ambiguidade não levantam problemas; mas o que dizer da derivabili-
dade entre frases complexas? O apelo da teoria inferencial ao inferir é uma ajuda, pois o
que poderia parecer uma relação estática abstracta de “derivabilidade” entre duas frases
pode-se reconstruir como uma prática regida por regras de inferir uma da outra. De
“Haroldo é gordo e Benedito é estúpido” deriva-se “Benedito é estúpido” porque se
alguém asserir a primeira mas negar a segunda aplicamos várias sanções sociais; na verda-
de, erguemos pelo menos os sobrolhos se alguém asserir a primeira e depois não se com-
porta como se a segunda fosse verdadeira. Segundo as teorias do uso, e esta prática em si
que torna a inferência válida e não (como os livros de lógica quereriam) qualquer garantia
independente de que a inferência preserva a verdade.

Objecções e algumas respostas

A beleza da teoria inferencial é conseguir evitar sem esforço todas as objecções que fize-
mos a cada uma das três teorias tradicionais (referencial, ideacional e proposicional).
Além disso, é naturalista, na medida em que centra a atenção nas características efectivas
da linguagem tal como esta é usada no mundo real. Mesmo assim, há alguns problemas
formidáveis.
P á g i n a | 97

OBJECÇÃO 1

Todos os jogos de linguagem são exactamente iguais na Terra e na Terra Gémea, dado que
nesses dois planetas tudo ocorre exactamente em paralelo; mas as palavras na Terra
Gémea e as suas contrapartes na Terra têm significados diferentes. Dada uma elocução na
Terra e a sua Gémea, uma pode ser verdadeira e a outra falsa; que mais se poderia exigir
para haver diferença de significado? Assim, o significado de uma expressão não se esgota
no papel que essa expressão desempenha num jogo de linguagem.

RESPOSTA
Pode-se classificar os jogos de linguagem mais subtilmente, e negar que nós e os nossos
sósias da Terra Gémea estejamos a jogar “o mesmo” jogo, apesar de o que estamos a fazer
parecer exactamente o mesmo se fosse visto na televisão. Por exemplo, nós respondemos
à água (H2O) e agimos perante a água, mas os nossos gémeos não, lidando antes com XYZ;
regras completamente diferentes, como se vê. (Na verdade, esta era a intenção original
de Sellars, apesar de ele não ter ainda ouvido falar da Terra Gémea de Putnam.)

OBJECÇÃO 2

Os nomes próprios levantam um problema ao teorizador do uso. Tente-se formular uma


regra de uso para o nome “William G. Lycan,” ou para o nome do seu melhor amigo.
Recorde-se que tem de ser uma regra que toda a pessoa que fala competentemente o seu
dialecto local efectivamente obedece sem excepção. As únicas regras possíveis que me
ocorrem empurram o teorizador do uso para uma teoria descritivista do significado dos
nomes. O próprio Wittgenstein achava o descritivismo apropriado, mas não tinha lido Krip-
ke.

OBJECÇÃO 3

A teoria wittgensteiniana parece desamparada face ao nosso dado original: a capacidade


espantosa para compreender frases longas completamente novas quando as ouvimos pela
primeira vez e sem um momento de reflexão. As peças de xadrez e coisas análogas são
tipos familiares e recorrentes de objecto, e as regras do seu uso são impostas a cada
objecto individualmente. O mesmo ocorre com “Laje,” “Olá,” “Ui,” “Aceito” e outros
exemplos wittgensteinianos de expressões cujos usos são definidos por rituais e costumes
locais. Mas a nossa capacidade para compreender frases novas longas e agir com base
nelas não pode ser o resultado de conhecermos convenções que se aplicam a essas elocu-
ções, pois nenhumas convenções alguma vez foram impostas a essas elocuções.
O wittgensteiniano tem de conceder que compreendemos frases novas composicio-
nalmente, em virtude de compreendermos as palavras individuais que ocorrem nelas, che-
P á g i n a | 98

gando aos significados gerais das fases a partir do modo como as palavras individuais estão
ordenadas. (Teremos muito mais a dizer sobre isto no capítulo 9.) Segue-se que o que se
compreende, isto é, o significado de uma frase, não é simplesmente uma questão de haver
normas convencionais que se impõem ao uso dessa frase, pois o significado da frase é em
grande medida também uma função da sua estrutura interna.

OBJECÇÃO 4

Não poderia eu desconhecer o uso de uma expressão e no entanto adoptá-la, mecanica-


mente, sem a compreender? Tenho conhecido estudantes de graduação que são génios a
adoptar jargão académico de um género ou de outro, brandindo-o muito facilmente, mas
sem compreensão. Conheci um que fez uma cadeira de fenomenologia ministrada por um
parisiense que estava de visita, nada compreendeu da coisa, mas ganhou a habilidade de
tecer as expressões de jargão tão bem umas às outras que o seu trabalho final mereceu
(ou “mereceu”) nota máxima. Uso perfeito (ou pelo menos, nota máxima); significado
nenhum.

OBJECÇÃO 5

Muitas actividades sociais regidas por regras — desportos e os próprios jogos, em particular
— não envolvem centralmente o tipo de significado que as expressões linguísticas têm. As
jogadas de xadrez e as batidas de ténis não têm certamente esse género de significado.
(Contraste-se com a situação em que um espião usa jogadas de xadrez como um verdadei-
ro código secreto; por exemplo, pode-se ter convencionalmente estipulado que N-Q3 signi-
fica “Leva o zircão ao Foppa e diz-lhe que vamos esta noite.”) O que distingue então,
supostamente, os jogos de linguagem dos jogos comuns?
Suponha-se que uma comunidade concorda usar certas palavras — ou em qualquer
caso sons e marcas — de um modo peculiar; digamos que decidem pôr apenas “palavras”
com o mesmo número de sílabas ao lado umas das outras em grupos de três, ou que profe-
rem apenas “frases” em pares que rimem, começando cada sequência com uma palavra de
uma letra acrescentando-se uma letra sucessivamente a cada item seguinte. (Isto poderia
ser uma espécie de jogo de salão abrangendo toda a comunidade.) Se um recém-chegado
chegasse a esta caprichosa comunidade desconhecendo o acordo, não compreenderia o
que se passava. O recém-chegado poderia, com o tempo, descobrir todas as regras de
acordo com as quais as várias peças eram usadas, e no entanto não ter qualquer noção do
que se estava a dizer, ou até se se estava a dizer algo. E neste caso simples, pelo menos,
dada se está a dizer. Poder-se-ia sugerir que tal jogo, como a linguagem do pedreiro, é
pura e simplesmente demasiado simples e/ou primitiva. Mas é difícil ver como a mera adi-
ção de complexidade poderia ajudar.
P á g i n a | 99

RESPOSTA
Poder-se-ia argumentar que se as suas regras forem suficientemente ricas e se aludirem
suficientemente a condições ambientais, a referência e a predicação serão resgatáveis da
descrição do jogo. Suponha-se que há uma regra segundo a qual sempre que um criado
entra o terceiro jogador grita “Aqui, criado,” e é-lhe dado um martíni; sempre que um
jogador diz “Mistura, por favor” quem estiver mais próximo passa-lhe o prato de snacks; e
assim por diante. Ser-se-ia então tentado a concluir que “criado” refere o criado e “mistu-
ra” refere snacks. Assim, as jogadas do jogo teriam afinal significado.

RÉPLICA
Talvez, nesse caso, as elocuções especificadas pelas regras do jogo tivessem significados —
mas apenas porque de facto representam ou referem coisas e não apenas devido ao orde-
namento convencional do seu comportamento.
Estipulemos por isso que, por mais complexo que se torne o jogo, as elocuções dos
jogadores não referem coisas externas ao jogo; são apenas jogadas no jogo. Mas então
parece ainda mais óbvio que o jogo não é sequer o começo de uma linguagem propriamen-
te dita, e que as jogadas não têm significados como as elocuções de frases portuguesas.
Assim, as condições explícitas do teorizador do uso não são suficientes para que algo seja
uma linguagem.

SEGUNDA RESPOSTA
Waismann (1965: 158) antecipa uma objecção deste género. E sugere uma resposta rival:
que os jogos de linguagem genuínos estão “integrados […] na vida.” Em contraste, os jogos
de salão, como as jogadas de xadrez e as batidas de ténis, “têm uma relação muitíssimo
menos próxima com a vida do que palavras seriamente usadas.” Um jogo de linguagem não
pode ser delimitado, não pode ser algo que mantemos à mão de semear e que jogamos
apenas quando nos apetece.

RÉPLICA
Mas alguns jogos de linguagem, como dizer longas piadas maçadoras, são delimitados e só
são jogados ocasionalmente e quando queremos. Além disso, ainda que concordemos que
os jogos de linguagem mais sérios e com uma diversidade de propósitos estão plenamente
integrados na vida, consideramos habitualmente que essa relação próxima e integradora é
uma relação de referir, que as nossas palavras são sobre as coisas no mundo que nos inte-
ressam. O wittgensteiniano não concorda que o significado envolva essencialmente o refe-
rir, e por isso Waismann precisa dizer o que é então a “integração.” Ao que parece, a ideia
é que os jogos de linguagem estão integrados noutras práticas sociais. Mas é difícil ver
como o wittgensteiniano pode explicitar isso a) de um modo que explique como as jogadas
linguísticas ganham conteúdo proposicional, mas b) sem introduzir secretamente o referir.
P á g i n a | 100

O meu uso agora mesmo da expressão “conteúdo proposicional” pode sugerir uma
fidelidade fracassadamente tácita à teoria proposicional. Mas estou a usar tal expressão, e
continuarei a usá-la ao longo deste livro, num sentido mais fraco: seja qual for a proprie-
dade de uma frase ou outro item que é de algum modo expressa por uma oração “que,”
como em “significa que os brócolos te vão matar.” Não precisamos de tomar essa proprie-
dade como uma questão de ter a relação de “expressão” com uma entidade abstracta
chamada “uma proposição.”

OBJECÇÃO 6

Um sentido claro no qual se pode considerar que uma prática social é uma linguagem pro-
priamente dita é que, segundo esse sentido, pode-se fazer ruídos ou inscrever marcas e
com isso dizer que P, sendo P uma qualquer frase adequada. E uma das coisas que é segu-
ramente essencial para a linguagem é que possamos dizer coisas com ela. Mas nenhum
discurso indirecto destes é permitido apenas em virtude de algumas pessoas jogarem
xadrez ou um jogo de salão; nenhum dos jogadores disse ou perguntou ou pediu ou suge-
riu… que algo, seja o que for. Falta qualquer coisa. Estamos a jogar um jogo, e a usar
peças de acordo com um conjunto de regras convencionais, e entregamo-nos a uma práti-
ca social que pode não apenas ser divertida mas também visar algo mais vasto; pode até
ser de algum modo vital para a nossa forma de vida. As coisas que os jogadores destes
vários jogos fizeram podem ser significativas num certo sentido, mas ninguém fez quais-
quer asserções ou pediu seja o que for ou aconselhou alguém a fazer algo.

Inferencialismo

Neste ponto é tentador fazer uma concessão séria à teoria referencial. Mas isso seria omi-
tir a mais recente incarnação da teoria inferencial de Sellars: Brandom (1994), uma obra-
prima de 700 páginas, que pelo menos tem o potencial de evitar algumas das objecções
anteriores. Brandom desenvolve uma concepção particular de “uso,” uma concepção nor-
mativa segundo a qual o uso de uma frase é o conjunto de compromissos e titularidades
associados à elocução pública dessa frase. O seu paradigma é a asserção, considerada
como um acto social efectivo: quando se profere uma frase fazendo-se assim uma asser-
ção, quem o faz está a comprometer-se com a defesa dessa asserção contra qualquer
objecção ou desafio que o interlocutor possa fazer. A defesa tomaria a forma de dar razões
que sustentem a asserção, inferindo-a tipicamente de outra frase cuja elocução não esteja
tão prontamente aberta a ser posta em causa. E ao fazer a asserção quem o faz confere
também a si mesmo a titularidade de fazer mais inferências com base nela. O jogo social
de dar e pedir razões é regido por regras, é claro, e mantém-se um histórico. (No sistema
de Brandom, as noções de manter um histórico desempenham um papel muito importan-
P á g i n a | 101

te.) São as razões que seriam correctamente oferecidas a favor de uma frase F, e as nor-
mas de acordo com as quais F poderia correctamente ser dada em defesa de outras frases,
que constituem o significado de F.
Como Wittgenstein gostaria, a referência não desempenha um papel importante
nesta teoria. Para Brandom, a referência é apenas um constructo feito a partir de práticas
inferenciais definidas sobre frases completas, e não um tema adequado para teorização
independente; a teoria histórico-causal passa completamente ao lado do que é importan-
te. (Contudo, isto exacerba a objecção 2.)
O sistema de Brandom é muito complexo e não podemos examiná-lo aqui. Mas assi-
nalo que ultrapassa algumas das objecções levantadas até agora contra a perspectiva witt-
gensteiniana. Contra a objecção 5, distingue realmente as elocuções linguísticas de
“Laje,” jogadas de xadrez, e assim por diante, dado que estas não são os géneros de coi-
sas a favor das quais se dê razões, se conteste desafios, e por aí fora. (Pode-se, é claro,
oferecer razões práticas para ter feito uma dada jogada no xadrez ou no ténis, mas Bran-
dom tem em mente razões indiciárias, elocuções que nos dão razões para acreditar numa
afirmação factual. Uma vez mais, o seu paradigma é o da razão inferencial, e as jogadas
de xadrez e coisas do género certamente que não são inferências.) A objecção 6 também
não é um problema, pois o próprio Sellars ofereceu uma perspectiva inferencialista ele-
gante das orações que. Apesar de Brandom sustentar que as expressões subfrásicas só
“têm significados” derivadamente, dependendo dos significados de frases completas,
reconhece também um tipo fraco de composicionalidade, e por isso pode iludir a objecção
3. E, o que é admirável, enfrenta alguns fenómenos semânticos assaz pormenorizados
(nomes próprios, descrições, indexicais, quantificação e anáfora) em termos das suas con-
tribuições características para o potencial de compromisso/titulação das frases em que
ocorrem.4

4
Horwich (1998) oferece uma imagem similar, ainda que menos trabalhada. Ao contrário de
Brandom, sublinha que as expressões individuais têm significados: a “propriedade do significado”
de uma dada expressão é “o seu uso reger-se por tal e tal regularidade — ou, mais especificamen-
te, a propriedade de todo o uso da palavra se explicar em termos do facto de aceitarmos certas
frases específicas que a contêm” (p. 6, itálico no original). Para cada palavra, há uma “regularida-
de básica de uso.” Exemplos: tendemos a aceitar “Isso é vermelho” (se for realmente proferido) na
presença de uma coisa vermelha; aceitamos “p e q” sse [se, e só se] aceitarmos p e aceitarmos q.
(“Aceitar” uma frase é supostamente uma noção psicológica (pp. 94-6), e não uma forma reconhe-
cível de comportamento social efectivo; isto é outro afastamento de Wittgenstein e de Brandom.) A
composicionalidade é brevemente tratada no capítulo 7: a propriedade do significado de uma
expressão complexa consiste numa “propriedade de construção,” e.g.: x significa KANT MORREU na
medida em que “x resulta de pôr termos cujos significados são KANT e MORREU, nessa ordem, num
esquema cujo significado é NSV” (p. 156). Mas, a menos que eu não tenha visto, nada é dito sobre
P á g i n a | 102

Em qualquer caso, a centralidade das noções epistemológicas nas teorias inferen-


cialistas — defesa, sustentação, justificação, aceitação — sugere que as teorias estão mais
próximas em espírito das perspectivas verificacionistas do que da ideia original de Witt-
genstein. Veja-se o capítulo 8.
Um género algo diferente da teoria do uso (Alston 1963, 2000; Barker 2004) baseia-
se na noção de J. L. Austin de “força ilocucionária.” Mas este conceito não será apresen-
tado até ao capítulo 12.
Passemos agora à frente, para ver uma teoria do significado consideravelmente
diferente. A teoria de Paul Grice começa com a noção ultrajante de que a linguagem é um
meio de comunicação.

Sumário

As teorias do uso sustentam que os “significados” não são objectos abstractos como
proposições; uma expressão linguística é determinada pela sua função característica no
comportamento humano social.
Segundo Wittgenstein, as expressões linguísticas são como peças de um jogo, usadas
para fazer jogadas em práticas sociais convencionais regidas por regras.
A versão de Sellars desta ideia torna o acto de inferir central, e é a complexidade dos
padrões de inferência que permite o teorizador do uso acomodar frases longas e novas.
As teorias do uso enfrentam dois obstáculos principais: explicar como o uso da lingua-
gem diferente das actividades comuns convencionais regidas por regras que não geram
significado; e explicar como uma frase pode significar que tal e tal.
A teoria do uso de Brandom ultrapassa alguns destes obstáculos.

Questões

1. Poderá a teoria do uso wittgensteiniana, tal como a esboçámos, ser defendida de uma
ou mais das objecções 1-4?
2. Ajuíze a objecção 5. Pode dar uma resposta melhor do que a de Waismann?
3. Invente uma resposta wittgensteiniana à objecção 6.
4. Poderá uma pessoa daltónica que não distingue o vermelho do verde compreender a
palavra “vermelho”? Pense nisto com respeito às teorias do uso.
5. Se leu Brandom, discuta as suas perspectivas.

como o “esquema” tem supostamente uma “regularidade de uso” apesar de não ser uma expressão
do português.
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Leitura complementar

A bibliografia sobre Wittgenstein é tão vasta que hesito em mencionar uma ou duas ou
três obras exegéticas, excluindo outras. Mas: Rhees (1959-60); Pitcher (1964: cap. 11);
Hallett (1967); Kenny 1973: caps. 7-9).
Sellars (1963) é o locus classicus da sua teoria funcional; veja-se também Sellars (1974).
Uma excelente exposição e defesa dos temas centrais surge em Rosenberg (1974).
Philosophy and Phenomenological Research 57 (1997) contém um simpósio sobre Bran-
dom (1994), com uma sinopse, artigos de John McDowell, Gideon Rosen, Richard Rorty e
J. F. Rosenberg, e uma resposta de Brandom. Brandom (2000) é uma introdução mais
acessível a Brandom (1994).
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7 Teorias psicológicas: o programa de Grice

Sinopse

H. P. Grice sustentou que uma expressão linguística só tem significado porque é uma
expressão — não porque “exprime” uma proposição, mas porque, mais genuína e literal-
mente, exprime uma ideia concreta ou intenção da pessoa que a usa. Grice introduziu a
ideia de “significado de quem fala”: aproximadamente, o que quem profere uma dada
frase numa ocasião particular tenciona transmitir a um interlocutor. Dado que quem fala
nem sempre quer dizer o que as suas frases comummente querem dizer na linguagem,
Grice distinguiu este significado de quem fala do próprio significado comum da frase. Ofe-
receu uma análise elaborada do significado de quem fala em termos das suas intenções,
crenças e outros estados psicológicos, e esmerou essa análise à luz de muitas objecções.
Concorda-se geralmente que alguma versão da análise tem de estar correcta.
Grice também ofereceu uma análise do significado (comum) de uma frase, o que é
mais importante para os nossos propósitos, em termos do significado de quem fala. Neste
caso, Grice enfrenta sérias dificuldades, dado haver muitos casos em que o significado das
frases se recusa obstinadamente a cooperar com o significado de quem fala. Grice tem
uma maneira de ultrapassar tais obstáculos, mas parece verosímil que essa maneira con-
cede demasiado a teorias rivais do significado das frases.

A ideia básica de Grice

Queremos chegar a uma explicação do significado, considerando-o uma característica


notável de expressões linguísticas, em particular frases. Mas suponha-se que nos pergun-
tamos o que são afinal realmente as frases. São tipos de marcas e ruídos, casos individuais
dos quais são produzidos por pessoas em ocasiões particulares e com um propósito. Quan-
do você diz algo, é habitualmente com o propósito de comunicar. Oferece uma opinião, ou
expressa um desejo ou uma intenção. E quer produzir um efeito, fazer algo surgir daí.
Assim, poder-se-ia começar como os teorizadores ideacionais e inferir que a base
natural real da elocução significadora está no estado mental que a elocução exprime. Cla-
ro que já introduzimos a palavra “exprime” como relação designadora entre frases e pro-
posições, mas aqui o termo tem um uso mais concreto e literal: considera-se que as frases
particulares são expressivamente produzidas pelas crenças, desejos e outras atitudes pro-
posicionais de quem fala.
Grice (1957, 1969) tomou estes factos como base da sua teoria do significado. Pen-
sava que o significado frásico se baseia no mental, e propôs-se explaná-lo em última análi-
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se em termos dos estados psicológicos de seres humanos individuais. Podemos ver isto
como nada menos do que uma redução do significado linguístico à psicologia.
A força motriz do projecto de Grice era uma noção ligeiramente diferente de signi-
ficado, que não coincide com a de significado frásico. (É aqui que se afasta crucialmente
das teorias ideacionais clássicas.) Eis três exemplos para ilustrar a diferença. Primeiro,
recorde-se a frase de Strawson do capítulo 2, “Esta vermelha é muito boa.” Como vimos, o
significado dessa frase, tomada em si, não está inteiramente determinado; para o com-
preender, precisamos de saber para onde está a apontar quem fala. Num contexto, quem
fala pode querer dizer que a maçã na sua mão é uma maçã vermelha muito boa, ao passo
que outra pessoa numa ocasião diferente pode querer dizer que a terceira carrinha à sua
esquerda é uma bela carrinha vermelha.
Segundo, suponha que à semelhança de alguns desgraçados eu acredito incorrec-
tamente que a palavra inglesa “jejune” quer dizer algo como inexperiente ou pueril,1 e
digo “A Missa Piccolomini de Mozart é jejune, não é um bom Mozart de modo algum,” que-
rendo dizer que a Missa Piccolomini é inexperiente e pueril. Mas “jejune” de facto signifi-
ca enfezado e insatisfatório (deriva da palavra latina para jejum); a frase que proferi sig-
nifica que a Missa é enfezada e insatisfatória, coisa que eu consideraria falsa apesar de
considerar a Missa inexperiente e pueril.
Terceiro, considere-se o sarcasmo, como quando alguém diz “Essa ideia foi brilhan-
te,” querendo dizer que a ideia foi muito estúpida. Também aqui temos uma divergência
entre o significado da frase proferida e o que a pessoa que fala queria dizer ao proferi-la
(pois quem fala quer dizer precisamente o oposto). A conclusão a tirar é que o que alguém
quer dizer ao proferir uma dada frase é um tipo de significado ligeiramente diferente do
significado da própria frase. Grice chamou-lhe “significado do locutor.”2
Ora bem, regressemos ao projecto redutor de Grice, a explicação do significado
frásico em termos psicológicos. Compõe-se de duas fases que é muito importante ver que
são diferentes. Na primeira fase,3 Grice tenta reduzir o sentido frásico ao significado do

1
Não perca o conto de Kingsley Amis sobre esta palavra em The King’s English (Londres:
HarperCollins, 1998: 118-19). Amis jura ter visto a palavra mal escrita como “jejeune” e até pro-
nunciada em pseudofrancês como “jajane.” Pensando melhor, não perca também o resto do livro.
2
Há uma tendência na bibliografia griciana para presumir que o significado do locutor é
único, que uma dada elocução não tem senão um só significado do locutor. Este pressuposto é falso;
somos comunicadores complexos e por vezes queremos dizer mais de uma coisa num dado instante
ao proferir a frase que proferimos. Talvez eu queira dizer o que a frase quer dizer e também outro
significado transmitido. Ou se o leitor for bom a fazer trocadilhos, a sua frase pode ser em si ambí-
gua e o leitor visar os dois significados ao mesmo tempo. Shakespeare queria dizer por vezes qual-
quer coisa como cinco coisas diferentes numa só elocução.
3
Não surgiu cronologicamente em primeiro lugar, mas foi apresentada por Grice (1968).
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locutor. No segundo, tenta reduzir o significado do locutor a um complexo de estados psi-


cológicos que se centram num tipo de intenção.
À primeira vista, a primeira fase é uma ideia plausível. Como Wittgenstein frisou, é
muito estranho pensar que as frases têm significados por si mesmas e em abstracto, em
vez de pensar que as frases têm significado em virtude do que os locutores fazem com
elas. Parece que as expressões linguísticas têm os significados convencionais que têm ape-
nas em virtude das práticas comunicativas humanas, e que as “práticas” comunicativas
humanas acabam por ser apenas conjuntos de actos comunicativos de locutores indivi-
duais. Grice corrige a expressão “actos comunicativos,” centrando-se no significado visado
pelos locutores ao usar frases, no sentido de o que os locutores querem dizer ao proferir
as frases que proferem e quando as proferem. Para Grice, o significado de uma frase é
uma função dos significados individuais dos locutores.
Mas Grice concentrou as suas energias na segunda fase da redução. Que o significa-
do do locutor deve ser explanado em termos de estados mentais e ainda mais plausível do
que a primeira fase. Se ao dizer “Era uma ideia brilhante” quero dizer que a ideia do
Asdrúbal era muito estúpida, certamente que o significado do locutor é algo psicológico,
algo sobre o meu estado mental. Presumivelmente, é uma questão de intenção comunica-
tiva da minha parte, do que tenciono transmitir-lhe. Parece que, em geral, os actos
comunicativos individuais são uma questão de os locutores terem intenções complexas
para produzir vários estados cognitivos, e não só, nos seus interlocutores.

Significado do locutor

Comecemos com uma versão plausível e talvez desnecessariamente específica da segunda


fase da análise de Grice, desconsiderando algum do trabalho pedestre mais antigo presen-
te no seu artigo original (1957) ou nele inspirado. (Ofereço uma paráfrase e não uma cita-
ção directa, para evitar algum do jargão ligeiramente técnico de Grice e algumas compli-
cações.)4 Queremos explanar afirmações da forma “Ao proferir x, S queria dizer que P,”
como em “Ao proferir “A Missa Piccolomini é jejune,” Lycan queria dizer que a Missa Picco-
lomini é inexperiente e pueril.” A análise é como se segue:

G1) S proferiu x com a intenção de A formar a crença de que P [sendo A o interlocutor de S,


ou a sua audiência]

4
Em particular, confinemos a discussão a frases declarativas, apesar de Grice ter tido o cui-
dado de tratar também das imperativas, entre outras.
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G2) S tinha também a intenção de que A reconhecesse a intenção original de S [descrita em


G1]

G3) S tinha ainda a intenção de que A formasse a crença de que P pelo menos parcialmente
com base no reconhecimento da sua intenção original.

Assim, no nosso exemplo de Mozart, ao proferir “A Missa Piccolomini é jejeune,” eu quero


dizer que a Missa é inexperiente e pueril, porque a proferi com a intenção de que você
formasse a crença de que a Missa é inexperiente e pueril pelo menos em parte com base
no seu reconhecimento de que eu tinha essa mesma intenção.
Como vimos, o núcleo do significado do locutor é uma intenção, mas há outros
estados mentais que figuram também na análise, nomeadamente a sua crença futura por
mim visada e o estado visado de reconhecimento.
Poder-se-á considerar implausível que um locutor comum possa ter tais intenções
complexas, e ainda menos tê-las de cada vez que faz uma asserção. Mas Grice não está a
supor que estas intenções comunicativas são conscientes, ou que estão perante a mente.
Na verdade, na vida quotidiana as nossas intenções são apenas tácitas, na sua maior parte;
só ocasionalmente nos damos conta delas. Assim, você habitualmente diz coisas sem pen-
sar explicitamente acerca disso, e muitas vezes quer transmitir significados de locutor de
que não está ciente.
Esta segunda fase da teoria tem estado sob quase constante revisão desde 1969,
em resposta a contra-exemplos de vários tipos. Irei passar em revista algumas das objec-
ções e revisões, só para dar uma ideia deste subprojecto.

OBJECÇÃO 1

O significado do locutor não exige de facto uma audiência. Suponha-se que sou dado a
solilóquios. Quando tenho um problema, prático ou teórico ou pessoal, examino-o falando
alto comigo mesmo na privacidade da minha cave de Batman. Não só não viso qualquer
efeito sobre qualquer audiência, como ficaria mortificado se descobrisse que alguém tinha
estado a ouvir. Ou considere-se o protagonista George de Paul Ziff (1967: 3-4) e a frase
“Cláudio assassinou o meu pai”: num só dia, George pode proferir essa frase primeiro
“durante um solilóquio matinal,” uma vez mais “à tarde, ao conversar com Josef,” e outra
vez ainda “ao final da tarde, em delírio febril,” e sem ter consciência da audiência que o
acompanhava. Contudo, George queria em todas as vezes dizer a mesma coisa com “Cláu-
dio assassinou o meu pai.” Mas a análise de Grice exige não apenas uma audiência mas que
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o locutor tenha intenções muito específicas com respeito a essa audiência, e isto é
implausível pelo menos nos casos do solilóquio e do delírio.
Grice (1969: secção V) enfrenta os casos de inexistência de audiência. Advoga uma
solução em termos de audiências hipotéticas ou contrafactuais: com efeito, o locutor
devia visar que, estivesse alguém presente na posse de condições perceptuais normais,
entre outras condições psicológicas, essa pessoa formaria a crença de que P.
Preciso eu, como locutor, de visar isto? Talvez, pois quando falo até comigo mesmo
tenho de pressupor que o que digo faria sentido para alguém. Por outro lado, vêm à mente
outros contra-exemplos potenciais. Suponha-se que cresci numa ilha deserta e que de
algum modo inventei sozinho uma linguagem; contudo, nunca formei o conceito de “outro
locutor” ou de uma “audiência.” Então não poderia visar fosse o que fosse acerca de uma
audiência, nem mesmo contrafactualmente. Mas este é um caso muitíssimo controverso,
dado que muitos filósofos negaram que me seria até remotamente possível inventar a
minha própria linguagem sem ter formado o conceito de locutores e audiências.

OBJECÇÃO 2

Mesmo quando há efectivamente uma audiência, o locutor pode querer dizer algo, e no
entanto não visar produzir crença por meio do reconhecimento da intenção; os requisitos
G3 e até G2 podem ser excessivamente fortes. Ou o locutor pode nem visar produzir a
crença de modo algum, dado a sua audiência já ter essa crença e o locutor saber disso.
Eis um exemplo do primeiro tipo de caso. Conclusão do argumento: oferece-se um
argumento, apresentando talvez uma demonstração de um teorema da geometria. Certa-
mente que se visa o significado do locutor da conclusão do argumento, mas não se tem em
vista que a nossa audiência chegue a essa conclusão nem sequer parcialmente com base no
reconhecimento da nossa intenção original. Pode-se ter a firme intenção de que não o
faça, mas antes que forme a crença com base apenas no mérito do argumento.
Schiffer (1972: 79-80) aborda os casos de (alegada) inexistência de audiência, e
também a conclusão do argumento, estipulando que o locutor é a sua própria audiência.
(Pessoalmente, não posso desconsiderar isto por ser caprichoso, dado que já disseram que
profiro coisas muitas vezes pela simples gratificação de me ouvir falar.)5 Esta jogada pode-
ria funcionar, mas para casos do segundo tipo. Um exemplo disto é o exemplo do exami-
nando: um aluno que correctamente responde a uma questão num exame quer dizer, por
exemplo, que a Batalha de Waterloo ocorreu em 1815, mas não visa induzir essa crença no
examinador ou examinadores.

5
Pois disseram. É inacreditável.
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Grice faz essencialmente duas revisões em resposta a estes contra-exemplos e a


variadíssimos outros. Primeiro, sugere a invocação do conceito de crença “activada”: ape-
sar de alguns membros da audiência já acreditarem no que o locutor tem em mente, as
suas crenças podem não ser inteiramente conscientes nem estar psicologicamente activas,
ou podem não ser conscientes de todo em todo. Se tornarmos G1 mais robusto, o requisito
de que se visa que a audiência acredite que P, passando a ser o requisito de que S visa
produzir uma crença activada em A, isso pode dar conta (ainda que de uma maneira não
muito natural) do caso do examinando; mas sai-se melhor em alguns dos outros casos.
A segunda revisão de Grice consiste também em corrigir G1, desta vez substituindo-
o pela condição mais fraca de que se vise que a audiência acredite apenas que o locutor
acredita que P. (Enfraquecer G1 desta maneira é compatível com o seu fortalecimento de
modo a exigir crença activada.)
Esta segunda revisão parece razoável. Como afirma Grice, dá rapidamente conta do
examinando. E não é implausível. Dizer algo e visar dizê-lo, poderíamos sustentar, não é
senão exprimir uma crença, tendo habitualmente a esperança, se bem que nem sempre,
ou visando ou tendo a expectativa, que a nossa audiência passará a partilhar a crença.
(Quando informamos as pessoas de coisas dizendo-lhes isso, temos normalmente a expec-
tativa que esse informar funcione em termos do que os lógicos informais chamam “autori-
dade”: os nossos ouvintes confiam no que estamos a dizer e acreditam nisso porque nós
acreditamos.)
Contudo, Grice concede e Schiffer salienta (p. 43) que o caso da conclusão do
argumento não se resolve com a primeira nem com a segunda revisão. Mais em geral, nem
todos os casos de comunicação são bem-sucedidos em virtude de a audiência acreditar no
locutor. Recordemos a demonstração de geometria. Para dar um exemplo mais familiar, o
próprio Grice comunicou-nos a sua teoria do significado, mas não em virtude de ter visado
que a aceitássemos com base no que ele diz. É verdade que passámos a acreditar que Gri-
ce acredita na sua teoria do significado, de modo que a nova versão enfraquecida de G1 é
satisfeita; mas isso não nos ajuda neste caso. (Não podemos sequer pressupor realmente
que Grice acredita na teoria; receio bem que os filósofos estão sempre a escrever artigos
defendendo perspectivas em que na realidade não acreditam.)
E quanto à resposta de Schiffer ao caso conclusão do argumento, afirmando que o
locutor é a sua própria audiência? Penso que há ainda contra-exemplos do mesmo tipo.
Suponha-se que apresento uma segunda demonstração do meu teorema quando a primeira
está ainda no quadro. Não induzo uma crença em mim, nem sequer activo uma crença a
que já tinha em silêncio. Eis outro exemplo: suponha-se que dois filósofos estão a fazer
uma festa de afeição pela perspectiva da referência directa quanto aos nomes próprios.
Enquanto dançam em círculo gritam alegremente um ao outro, vezes e vezes sem conta:
“Os nomes só referem!” Estão ambos num estado de crença completamente activada na
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verdade desta asserção dúbia, e sabem que o outro também o está; e por isso nenhum
deles pode ter a intenção de produzir ou activar a crença no outro. No entanto, certamen-
te querem dizer que os nomes próprios só referem, quando fazem aquela elocução; não é
um cântico sem sentido.
Há outras jogadas possíveis,6 mas deixarei a objecção 2 neste ponto.
As primeiras duas objecções visam mostrar que a análise de Grice é demasiado exi-
gente. As próximas duas procuram mostrar que noutros aspectos a análise não é suficien-
temente exigente.

OBJECÇÃO 3

Ao ser admitido no exército, George é obrigado a fazer um teste destinado a estabelecer a


sanidade. George é conhecido por ser um académico irritável. O teste que lhe dão seria
apropriado para atrasados mentais. Uma das perguntas é “O que diria se lhe perguntasse
para se identificar?” George responde ao oficial que lhe faz a pergunta proferindo “Ugh
blugh blugh ugh blugh”.
(Ziff 1967: 2)

George visa mostrar o seu desprezo, e pretende que o oficial reconheça o seu des-
prezo com base no reconhecimento da sua intenção de o mostrar. Mas, apesar de as condi-
ções de Grice serem satisfeitas, George nada queria dizer em qualquer sentido linguístico
(apesar de se poder correctamente salientar que há um sentido mais lato de “comunica-
ção” que a análise de Grice parece ainda assim captar.)7

OBJECÇÃO 4

Durante a segunda guerra mundial um soldado americano foi capturado por tropas italia-
nas. Ele quer que os italianos o libertem, convencendo-os de que é um oficial alemão. Mas

6
Uma resposta possível, que o falecido Wendy Nankas me sugeriu, é falar não apenas de
activação, mas de reforço.
7
O caso de Ziff é fortemente similar ao exemplo dos parafusos e orelhas de J. O. Urmson,
que Grice discute (1969: 152-3). Em resposta, Grice ofereceu o que chama “Redefinição I”; mas eu
nunca vi como é exactamente que essa redefinição excluiria supostamente este tipo de contra-
exemplo. Há um conjunto de exemplos inicialmente conversacionais, de Dennis Stampe, Stephen
Schiffer e P. F. Strawson, e que envolve logro e tentativa de antecipação de um certo tipo. A versão
de Stampe foi a primeira a que Grice respondeu (1969). Os contra-exemplos e respostas conduziram
a uma regressão indefinida de casos particularmente convolutos e revisões da análise. Duvido que o
leitor me agradecesse se o arrastasse só pelo segundo exemplo da regressão. (Poderia até tentar
devolver este livro e reaver uma fracção do seu dinheiro.) Por isso nem o primeiro irei expor.
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não sabe alemão nem italiano. Com a esperança de que os seus captores também não sai-
bam alemão, “tenta, digamos, montar uma fantasia em que lhes diz que é um oficial ale-
mão,” ladrando oficiosamente a única frase alemã que conhece, uma linha de poesia que
aprendeu na escola: “Kennst du das Land wo die Zitronen blühen?” (“Conheces a terra
onde os limoeiros florescem?”)8 (Searle 1965: 229-30).
Neste caso, o soldado preferiu a sua frase visando fazer os italianos acreditar que
ele é um oficial alemão; visava além disso que eles reconhecessem a sua intenção original;
e ainda visava também que formasse a crença falsa em parte com base no reconhecimento
da sua intenção. Mas não parece que ao dizer “Kennst du das Land…” ele diga que é um
oficial alemão.
Grice responde exigindo que se vise que a audiência acredite haver um “modo de
correlação” entre as características da elocução e o tipo de crença visado. Schiffer (1972)
faz uma jogada diferente, em termos da sua noção técnica de “conhecimento* mútuo.”
Parece melhor não avançar nestes esoterismos por agora.
Gricianos determinados como Schiffer (1972) e Avramides (1989) exibiram uma
audácia e perícia extraordinárias, mudando a perspectiva original de Grice de modo a
acomodar todos os casos problemáticos anteriores e outros ainda, resultando daí que ape-
sar da profusão de objecções uma versão complicada (!) continua a ser credível. E concor-
da-se geralmente que o significado do locutor tem de algum modo ser uma questão de
intenções e outros estados mentais do locutor. Mas agora temos de voltar à primeira fase
do programa griciano: a redução do significado frásico ao significado do locutor.

Significado frásico

Depois de ler a secção anterior poderá ser surpreendente que a construção de Grice (1968)
do significado frásico a partir do significado do locutor é elaborada e cheia de pormenores
delicados. Ao invés de nos deitarmos a eles, começarei por revelar alguns obstáculos.
Depois farei apenas um esboço do modo ou modos como Grice tenta ultrapassá-los.
Seria natural começar por supor que uma dada frase portuguesa significa que P
apenas no sentido em que quando quem fala português profere essa frase, o significado do
locutor é sempre (ou pelo menos normalmente) que P. Mas eis os problemas.

OBSTÁCULO 1

Ziff (1967) ofereceu os seguintes dois exemplos:

8
Trata-se da linha de abertura da letra de uma canção que surge no romance Wilhelm
Meisters Lehrjahre (1795-6), de Goethe, livro 3, capítulo 1.
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George sofreu uma intervenção na cabeça: inseriram-se eléctrodos, montaram-se placas, e


assim por diante. O efeito foi curioso: quando lhe perguntavam como se sentia, George res-
pondia proferindo […] “Glyting elly beleg”. O que ele queria dizer, disse-nos mais tarde, era
que se sentia bem. Disse que, na altura, acreditava de algum modo que [“Glyting elly
beleg”] e “Sinto-me bem” eram sinónimas e que toda a gente o sabia.
(pp. 4-5; a esta altura já se viu que George tem uma vida mais interessante
do que a sua ou a minha)

Subitamente, um homem gritou “Gleeg gleeg gleeg!”, visando com isso produzir um certo
efeito numa audiência por meio do reconhecimento da sua intenção. Queria fazer a sua
audiência crer que estava a nevar no Tibete. Claro que não produziu o efeito visado dado
ninguém reconhecer qual era a sua intenção. Contudo, que ele tinha tido tal intenção tor-
nou-se claro. Sendo declarado louco, foi entregue a um psiquiatra. Queixou-se então ao
psiquiatra que quando gritava “Gleeg gleeg gleeg!” tinha tal intenção mas que ninguém a
reconhecia, o que era uma loucura da parte deles.
(p. 5)

No texto, não é claro se Ziff toma estes casos como contra-exemplos à análise de
Grice do significado do locutor. Mas não é assim que o entendo e não os tomo desse modo.
Parece-me que, no seu estado alterado, George queria dizer que se sentia bem; e o louco
queria desvairadamente dizer que estava a nevar no Tibete. Ao invés, penso que o que
está em causa é que se a teoria de Grice estiver correcta, então o significado do locutor é
demasiado barato: dado um estado mental adequadamente desordenado, qualquer locutor
pode querer dizer absolutamente qualquer coisa com qualquer sequência de ruídos que se
dê o caso de proferir. Se a análise de Grice do significado do locutor estiver correcta,
então tanto pior para a primeira fase do seu projecto, pois nesse caso não haverá restri-
ções formais quanto ao que os locutores poderiam querer dizer com qualquer frases que
profiram, havendo apenas estatísticas sobre quão frequentemente querem dizer isto ou
aquilo.
Na vida real, o significado do locutor não é assim tão fácil de obter, por duas
razões. a) A maior parte das pessoas não estão desvairadas à maneira dos pacientes de
Ziff. E, o que é muito mais importante, b) as frases portuguesas têm os significados que
têm realmente, e não podem pura e simplesmente significar seja o que for que se queira.
A menos que eu esteja estranhamente enganado quanto ao significado da própria palavra,
ou a menos que se trate de uma situação mais elaborada, não posso dizer “Está frio” e
querer com isso dizer “Está calor.” (O exemplo é de Wittgenstein.) Posso estar a ser sar-
cástico, é claro. Mas não posso querer perfeitamente dizer “Aluguei o vídeo Agnes de
P á g i n a | 113

Deus,” ou “Os porcos têm asas.” O significado prévio de uma frase controla em parte o
que um locutor pode querer dizer com ela num dado contexto.
A razão b é mais um problema para a primeira fase de Grice, pois para que o signi-
ficado frásico seja inteiramente analisado em termos de significado do locutor, não deve-
mos ter de ver o significado frásico como algo que delimita possíveis significados de locu-
tor. (Talvez “não devemos” seja demasiado forte. Não há neste caso uma circularidade
óbvia; e é certamente possível que um constructo especial baseado no significado do locu-
tor possa delimitar o significado do locutor em geral. Mas o griciano terá de explicar por
que razão isto ocorre de modo tão robusto.)

OBSTÁCULO 2

A maior parte das frases dotadas de significado de uma linguagem nunca são proferidas.
Logo, nunca alguém alguma vez quis dizer algo com elas. Logo, dificilmente os seus signi-
ficados podem ser determinados pelo que os locutores (normalmente, tipicamente, e
assim por diante) querem dizer com elas (Platts 1979: 89).
Não adianta muito, apesar de ser tentador, apelar ao que os locutores teriam que-
rido dizer com as frases improferidas caso as tivessem proferido. Para começar, a esmaga-
dora maioria são frases que os locutores nunca teriam proferido. Mesmo no caso de uma
frase que os locutores poderiam ter proferido apesar de não o terem feito, o único terreno
firme que temos quanto ao que os locutores teriam querido dizer ao proferi-la é o que já
sabemos que essa frase significa.

OBSTÁCULO 3

Frases novas outra vez. Mesmo quando uma frase é efectivamente proferida, pode ser fan-
tasticamente nova, e no entanto é instantaneamente entendida pela audiência. Mas se é
nova, então não há qualquer facto pré-estabelecido (como antes, independentemente do
que sabemos que a frase em si significa) do que os locutores normalmente querem dizer
ou quereriam normalmente dizer com tal frase. E note-se que o primeiro uso novo pode
ser a) igualmente o último e b) não ser em si literal. (Estou bastante certo que a seguinte
frase nunca foi proferida antes, ainda que possa sê-lo de novo: “O presidente da Corpora-
ção Filosófica dos EUA, que saiu finalmente da prisão e com a celeridade de uma águia se
dirige para o nosso aviário, irá partilhar connosco as riquezas do seu espírito amanhã às 15
horas.” Em casos como este, apesar de a frase ter sido proferida, ninguém quereria efec-
tivamente dizer o que ela literalmente diz.)
Blackburn (1984: cap. 4) salienta que, nas circunstâncias certas, uma dada frase
pode ser proferida com praticamente qualquer intenção e certamente que sem a intenção
de exibir a nossa verdadeira crença. (Blackburn esboça a ideia alternativa de que uma
frase F significa P quando há uma regularidade convencional ou a consequência de uma
P á g i n a | 114

regularidade convencional que permite considerar que quem profere F com força assertiva
manifesta que P, tratando-se esta permissão de um facto social que ocorre independente-
mente de quaisquer intenções particulares do locutor. Esta ideia é interessante, e exige
muita expansão das noções de “permitir,” “considerar” e “manifestar,” mas não é uma
ideia griciana, pois separa conscientemente o significado frásico das intenções comunica-
tivas do locutor.)

OBSTÁCULO 4

Não é apenas anormalmente mas antes frequentemente que se usa frases com outros sig-
nificados que não os literais. Mesmo negligenciando o sarcasmo e outras formas de actos
de fala indirectos (falaremos mais dessas coisas no capítulo 13), o uso figurativo é muito
prevalecente (falaremos mais disso no capítulo 14). Se Grice quer dizer que o significado
de uma frase em si é o que os locutores “normalmente” querem dizer ao proferi-la, terá
então de dizer o que quer dizer “normalmente” à parte o significado comum da frase, e
terá também de nos dar uma motivação para aceitar essa tese.
E as coisas ficam ainda piores. Há códigos privados em que uma dada frase nunca é
usada com o seu significado literal. O sinal japonês para o ataque aéreo de 1941 a Pearl
Harbor foi (a expressão japonesa que se traduz como) “Vento de leste, chuva,” que, tanto
quanto sei, nunca foi usada para significar outra coisa que não “Está na hora de bombar-
dear Pearl Harbor.” E mesmo à parte os códigos privados, na vida quotidiana há muitas
frases que são normalmente proferidas com significados que não os literais, e talvez nunca
sejam proferidas com esses significados literais. (“Vais tirar o pai da forca?” “Pode dizer-
me as horas?” “O Jorge e a Marta enterraram o machado de guerra.” “Negócio é negó-
cio.”) E há toda a questão da metáfora, apesar de o próprio Grice a conceber, como vere-
mos no capítulo 13, como uma espécie do que ele chamou “implicatura conversacional.”

Esbocemos agora a redução de Grice do significado frásico ao significado do locutor, e


vejamos como ele poderia ter abordado os obstáculos 1-4, caso tivesse inteiramente cien-
te deles.9
Grice concentra-se primeiro na noção estrita de significado frásico para um indiví-
duo particular, ou seja, o significado que a frase tem no discurso pessoal e distinto desse
indivíduo, o seu idiolecto. (Nenhuns dois idiolectos de locutores lusófonos são exactamen-
te idênticos.) E restringe ainda mais o seu alvo inicial, distinguindo elocuções estruturadas
de inestruturadas. Uma elocução estruturada tem partes com significado, como palavras
individuais, que contribuem para o significado geral da elocução; qualquer frase declarati-

9
Schiffer (1972: capítulos 5-6) enveredou por um método diferente, usando a teoria das
convenções de Lewis.
P á g i n a | 115

va de português é um exemplo disto, dado conter palavras que têm significado por si
mesmas e dado significar o que significa em virtude de essas palavras significarem o que
significam. Uma elocução inestruturada é uma expressão única, como “Ui,” ou um gesto
iverbal, como um gesto indicador que significa “Por aqui,” cujo significado não é composi-
cional nesse sentido. (Note-se que Grice usa o termo “elocução” de maneira muito lata,
incluindo actos comunicativos iverbais.)
Depois de alguns recuos e acrescentos, Grice levanta a hipótese de que x [uma
expressão inestruturada] significa que P no idiolecto de S, se, e só se (aproximadamente),
S tem no seu repertório o seguinte procedimento: proferir x se, para alguma audiência A,
S visa que A creia que S crê que P. (Esta última cláusula é uma versão simplificada de “S
visa o significado do locutor de que P”; Grice argumenta que neste caso a simplificação é
inocente.)
De seguida Grice expande a sua análise para abranger o significado da elocução
para um grupo de locutores: x [inestruturada] significa que P para o grupo G se, e só se, a)
muitos membros de G têm nos seus repertórios o procedimento de proferir x se, para
alguma A, querem que A creia que eles crêem que P; e b) este procedimento é condicio-
nalmente mantido por eles sob o pressuposto de que pelo menos alguns outros membros
de G têm o mesmo procedimento nos seus repertórios.
O que supostamente ultrapassa o obstáculo 1, penso, é a combinação de a e b; que
o procedimento relevante esteja disseminado na comunidade e que os membros indivi-
duais da comunidade estejam a contar com os outros membros para o manter também.
Isto parece perfeitamente correcto.
Mas agora o difícil é ir da análise do significado de elocuções inestruturadas para o
significado frásico comum, dado que as frases portuguesas comuns são todas estruturadas.
Grice introduz a noção de um procedimento “resultante.” Neste ponto, o artigo de Grice
torna-se denso e obscuro, mas penso que a ideia é a seguinte: tal como as frases portu-
guesas são constituídas de partes mais pequenas dotadas de significado — palavras e
expressões — em virtude das quais as frases completas significam o que significam, um
locutor individual terá no seu repertório um “procedimento resultante” complexo e abs-
tracto constituído pelos procedimentos concretos anexados às suas respectivas partes
compostas. Assim, o significado de uma frase não será directamente uma função do signi-
ficado do locutor, mas antes uma função dos significados individuais das elocuções das suas
partes últimas. Só então será invocada a ideia nuclear de Grice, e (crucialmente) a sua
análise do significado da elocução para um grupo, como explicação dos significados de
elocução das partes.
Sublinho “procedimentos resultantes abstractos” porque pouquíssimos desses pro-
cedimentos “abstractos” alguma vez ocorrerão. E é esta característica que ajudará Grice a
lidar com os obstáculos 2-3. Pois o tema destes obstáculos é que as frases improferidas e
P á g i n a | 116

novas não correspondem a quaisquer significados efectivos de locutor. Mas é pelo menos
argumentável que correspondem aos significados de locutor hipotéticos que seriam gera-
dos pelos procedimentos resultantes abstractos de Grice. O apelo a procedimentos abs-
tractos pode também ajudar a ultrapassar o obstáculo 4: ainda que o significado literal de
uma dada frase nunca condiga com qualquer significado efectivo de locutor, pode ainda
corresponder a um hipotético significado resultante de locutor.
Contudo, creio que este apelo absolutamente necessário trai o espírito do progra-
ma de Grice. Com efeito, cede terreno a uma teoria rival do significado; argumentarei a
favor desta ideia no capítulo 9.

Sumário

Segundo Grice, as expressões linguísticas têm significado apenas porque exprimem


ideias ou intenções dos locutores que as usam.
O “significado do locutor” é, aproximadamente, o que o locutor, ao proferir uma dada
frase numa ocasião particular, visa transmitir ao interlocutor.
Grice oferece uma análise do significado do locutor em termos das intenções, crenças e
outros estados psicológicos dos locutores, e aperfeiçoou de maneiras viáveis essa análi-
se à luz de muitas objecções.
Grice ofereceu também uma análise do próprio significado de uma frase em termos do
significado do locutor.
Essa análise ultrapassa alguns obstáculos sérios, mas aparentemente só o consegue
fazer concedendo demasiado a teorias rivais do significado frásico.

Questões

1. Consegue ajudar Grice a evitar um ou mais dos obstáculos 1-4?


2. Consegue pensar em mais obstáculos à teoria do significado do locutor de Grice?
3. Discuta a “primeira fase” de Grice; será bem-sucedido o seu elaborado método de
reduzir o significado frásico ao significado do locutor?

Leitura complementar

Schiffer (1972) é o aperfeiçoamento clássico da perspectiva de Grice. Veja-se também a


recensão de Gilbert Harman (1974ª), e Avramides (1989). Trabalhos relacionados do
próprio autor estão coligidos em Grice (1989).
Bennett (1976) é uma valiosa defesa do projecto de Grice por alguém exterior à área.
MacKay (1972), Black (1973), Rosenberg (1974: cap. 2) e Biro (1979) criticam Grice.
P á g i n a | 116

8 Verificacionismo

Sinopse

Segundo a teoria verificacionista, uma frase é dotada de significado se, e só se, a sua ver-
dade faria alguma diferença no decurso da nossa experiência futura; uma frase ou “frase”
inverificável pela experiência é destituída de significado. Mais especificamente, o signifi-
cado particular de uma frase é a sua condição de verificação, o conjunto de experiências
possíveis da parte de alguém que tenderiam a mostrar que a frase era verdadeira.
A teoria enfrenta várias objecções: declara que várias frases claramente dotadas de
significado são destituídas de significado, e vice-versa; atribui significados errados a frases
que considera dotadas de significado; e tem alguns pressupostos dúbios. Mas a pior objec-
ção é que, como Duhem e Quine argumentaram, as frases individuais não têm por si mes-
mas condições de verificação próprias.
Quine admitiu essa desgraça e inferiu que as frases individuais não têm significa-
dos; segundo ele, não há significado frásico. Quine atacou também a perspectiva ante-
riormente muito difundida de que algumas frases são “analíticas” no sentido de serem
verdadeiras por definição ou somente em virtude dos significados dos seus termos compo-
nentes.

A teoria e a sua motivação

A teoria verificacionista do significado, que floresceu nos anos trinta e quarenta do séc.
XX, era muitíssimo política. Era motivada, e reciprocamente ajudou a motivar, um empi-
rismo e cientismo crescente na filosofia e noutras disciplinas. Em particular, era o motor
que conduzia o movimento filosófico do positivismo lógico, que era correctamente enca-
rado por filósofos da moral, poetas, teólogos e muitos outros como um ataque directo aos
fundamentos dos seus respectivos labores. Ao contrário da maior parte das teorias filosófi-
cas, tinha também um grande número de efeitos poderosos na prática efectiva da ciência,
tanto bons quanto maus. Mas aqui examinaremos o verificacionismo simplesmente como
mais uma teoria do significado linguístico.
Como dizia um popular lema positivista, uma diferença tem de fazer diferença. Ou
seja, se um pedaço de linguagem é supostamente dotado de significado de todo em todo,
então tem de fazer algum tipo de diferença para o pensamento e para a acção. E os posi-
tivistas tinham uma ideia muito específica sobre que tipo de diferença tinha o dever de
fazer: o pedaço de linguagem devia ser relevante, especificamente, para o curso da nossa
experiência futura. Se alguém profere o que parece uma frase, mas não temos ideia de
P á g i n a | 117

como a verdade dessa frase afectaria o futuro de um modo detectável, então em que sen-
tido podemos dizer que é contudo uma frase dotada de significado para nós?
Os positivistas faziam esta pergunta de retórica como um desafio. Suponha-se que
escrevo no quadro uma linha de algo que parece uma algaraviada e assiro que o que
escrevi é uma frase dotada de significado na linguagem de alguém. Você pergunta-me o
que acontecerá consoante o que escrevi for verdadeiro ou falso. E eu digo: “Nada; o mun-
do continuará na mesma, seja esta frase verdadeira, seja falsa.” Então você deve ficar
com muitas suspeitas quanto à minha afirmação de que esta algaraviada aparente real-
mente quer dizer algo. Com menos dramatismo, se você ouvir alguém pronunciar algo
numa língua estrangeira, presume que quer dizer algo, mas não tem ideia do que seja; isto
é porque não sabe o que mostraria que essa frase é verdadeira ou falsa.
Os positivistas estavam preocupados com a propriedade básica de ser dotado de
significado porque suspeitavam que muito do que passava por elocuções dotadas de signi-
ficado nas obras dos Grandes Filósofos Mortos não eram de facto (nem sequer) dotadas de
significado, quanto mais verdadeiras. Assim, o seu princípio verificacionista era sobretudo
notavelmente usado como critério que distinguia o que tinha significado do que não o
tinha: uma frase contava como dotada de significado se, e só se, havia um conjunto de
experiências possíveis da parte de alguém que tenderiam a mostrar que a frase era verda-
deira; chame-se a este conjunto a condição de verificação da frase. (Uma frase tem tam-
bém uma condição de falsificação, o conjunto de experiências possíveis que tenderiam a
mostrar que é falsa.) Se, ao examinar uma frase proposta, não se conseguisse encontrar
tal conjunto de experiências, a frase reprovaria o teste e revelar-se-ia destituída de signi-
ficado, por mais apropriada que fosse a sua gramática de superfície. (Exemplos clássicos
de alegadas reprovações incluem: “Tudo [incluindo todas as fitas métricas e outros disposi-
tivos de medida] acabou de ficar com o dobro do tamanho.” Criação das onze horas: “Todo
o universo físico começou a existir há apenas cinco minutos, juntamente com todas as
memórias ostensivas e registos históricos.” Cepticismo do génio maligno: “Estamos cons-
tante e sistematicamente a ser enganados por um génio maligno poderoso que nos provoca
experiências especiosas.”)1

1
Estes são exemplos de hipóteses cépticas de um tipo que toda a tradição filosófica levou a
sério; os positivistas tinham de se esforçar muito para mostrar que estas “hipóteses” eram destituí-
das de significado apesar de as frases parecerem perfeitamente dotadas de significado à primeira
vista. Os positivistas tinham menos paciência e menos problemas com o idealismo hegeliano dos
finais do séc. XIX, patente em “O Absoluto é perfeito,” e com o existencialismo heideggeriano,
patente em “O Nada nadifica” (“Das Nichts nichtet”). Recebi uma vez uma brochura que publicita-
va um livro novo de filosofia. A brochura tinha uma lista demarcada das características especiais do
livro. E um dos itens era: “Onze novas maneiras de a negação se negar a si mesma.” Juro que não
estou a inventar.
P á g i n a | 118

Mas os verificacionistas não se restringiam ao sem significado em si. A teoria assu-


mia também uma forma mais específica, antecipada por C. S. Peirce (1878). Ocupava-se
dos significados individuais das frases particulares, e identificava o significado de cada
frase com a condição de verificação dessa frase.
Assim, a teoria tinha um uso prático como teste efectivo do que uma frase indivi-
dual realmente quer dizer; prevê o conteúdo proposicional particular da frase. Esta é uma
virtude importante, que nem todas as suas rivais têm. (A teoria proposicional ingénua nada
diz sobre como se associa uma proposição particular a uma dada frase.) Pretendia-se que a
teoria verificacionista fosse usada, e tem sido usada — mesmo por pessoas que não a acei-
tam completamente —, como um instrumento clarificador. Quando você se confrontar com
uma frase que presume ser dotada de significado mas que não compreende completamen-
te, pergunte-se o que tenderia a mostrar que a frase é verdadeira ou falsa.
A teoria verificacionista é assim uma explicação epistémica do significado; ou seja,
localiza o significado nas nossas maneiras de vir a saber ou a descobrir coisas. Para um
verificacionista, o significado de uma frase é a sua epistemologia, é uma questão saber
qual é a sua base indiciária apropriada. (Numa interpretação, a teoria inferencial do signi-
ficado, ou teoria funcional sellarsiana, mencionada no capítulo 6, é verificacionista, dado
que as regras de inferência de Sellars são dispositivos epistémicos.)
Os positivistas permitiam a existência de uma classe especial de frases que não têm
conteúdo empírico mas são todavia dotadas de significado de algum modo: estas são as
frases que são, digamos, verdadeiras por definição, verdadeiras unicamente em virtude
dos significados dos termos que as compõem. “Nenhum solteiro é casado”; “Se está a
nevar, está a nevar”; “Cinco lápis são mais lápis do que dois lápis.” As frases como estas
não fazem previsões empíricas, segundo os positivistas, porque são verdadeiras seja o que
for que aconteça no mundo. Mas são dotadas de um certo género de significado porque são
verdadeiras; a sua verdade, por mais trivial, é garantida pelos significados colectivos das
palavras que ocorrem nelas. Chama-se analíticas a tais frases.
O verificacionismo é uma perspectiva atraente que foi fervorosamente sustentada
por muitas pessoas. Mas, como qualquer outra teoria do significado, tem os seus proble-
mas.

Algumas objecções

Os positivistas nunca chegaram a uma formulação do princípio da verificação que fosse


satisfatório, nem mesmo para eles; nunca conseguiram que se ajustasse apenas às sequên-
cias de palavras que queriam. Toda a formulação precisa revelava-se demasiado forte ou
demasiado fraca num ou outro aspecto (veja-se Hempel 1950). Há também um problema
metodológico: para testar propostas de formulações os positivistas tinham de apelar a
casos claros de ambos os tipos; isto é, de sequências de palavras dotadas de significado e
P á g i n a | 119

de sequências destituídas de significado. Mas isto pressupõe já que há sequências de pala-


vras que são literalmente destituídas de significado apesar de estarem gramaticalmente
bem formadas e apesar de serem compostas de palavras dotadas de significado; e isso é,
se pensarmos bem, uma tese muito audaciosa.
Estes problemas não constituem objecções de princípio ao verificacionismo, mas
sugerem dois outros que o são.

OBJECÇÃO 1

Wittgenstein queixava-se que a teoria verificacionista é mais uma tentativa monolítica de


chegar à “essência” da linguagem, e todas essas tentativas estão condenadas a falhar. Mas
em particular, e menos dogmaticamente, a teoria aplica-se apenas ao que os positivistas
chamavam linguagem descritiva, factual. Mas a linguagem descritiva ou factual é apenas
um tipo de linguagem; também fazemos perguntas, damos ordens, escrevemos poemas,
dizemos piadas, executamos cerimónias de vários tipos, e assim por diante. Presumivel-
mente, uma teoria adequada do significado deveria aplicar-se a todos esses usos da lin-
guagem, dado que em qualquer sentido comum do termo todos são usos dotados de signi-
ficado; mas é difícil ver como a teoria verificacionista se poderia alargar de modo a
abrangê-los.

RESPOSTA
Os positivistas reconheciam que se ocupavam do significado apenas num sentido restrito;
chamavam-lhe sentido “cognitivo.” Ser “cognitivamente” dotado de significado é aproxi-
madamente ser uma afirmação de facto. Perguntas, ordens e linhas de poesia não são
afirmações factuais ou descritivas nesse sentido, apesar de terem funções linguísticas
importantes e de serem “dotadas de significado” no sentido comum, opondo-se a algara-
viadas.
A restrição ao significado “cognitivo” não era problemática para os propósitos
metafísicos e anti-metafísicos positivistas mais latos, mas do nosso ponto de vista, a eluci-
dação do significado linguístico em geral, é prejudicial. Uma teoria do significado no nosso
sentido tem por missão explicar todos os factos do significado, e não apenas os respeitan-
tes à linguagem factual. Além disso, a retirada para o significado “cognitivo” em nada
ajuda a responder à objecção 2.

OBJECÇÃO 2

Como salientámos, os positivistas trabalhavam com ideias admitidamente preconceituosas


sobre que sequências de palavras são ou não dotadas de significado, tentando excluir as
que são intuitivamente destituídas de significado e incluir as que são obviamente dotadas
de significado. Mas não eram apenas os positivistas que tinham ideias preconceituosas
P á g i n a | 120

sobre que sequências de palavras são dotadas de significado. Suponha-se que olhamos para
uma dada sequência de palavras e perguntamos se é ou não verificável e, em caso afirma-
tivo, o que a verificaria. Para o fazer, temos de saber já o que a frase diz; como podería-
mos saber se é verificável ou não a menos que soubéssemos o que diz?
Para determinar como se verifica a presença de um vírus, digamos, temos de saber
o que são vírus e onde, em geral, se encontram; assim, parece que temos de compreender
o discurso acerca de vírus para verificar afirmações sobre vírus, e não o contrário. Mas se
já sabemos o que a nossa frase diz, então há algo que ela diz. E, nessa medida, já é dota-
da de significado. Assim, a questão da verificabilidade e das condições de verificação é
conceptualmente posterior a saber o que a frase significa; parece que temos de saber o
que a frase significa para saber como verificá-la.2 Mas isto é precisamente o oposto do que
diz a teoria verificacionista.
Um aspecto relacionado é haver uma diferença flagrante entre as frases que os
positivistas queriam excluir por serem destituídas de significado (“Tudo acabou de ficar
com o dobro do tamanho,” “Todo o universo físico começou a existir há apenas cinco
minutos”) e os casos paradigmáticos de sequências destituídas de significado do género
ilustrado no capítulo 1: algaraviadas (“w gfjsdkhj jiobfglglf ud”) ou apenas saladas de
palavras (“Bom de fora pedante o um um porquê”). Certamente que as primeiras sequên-
cias não são destituídas de significado da mesma maneira drástica e óbvia que estas últi-
mas. Seja o que for que possa haver de errado com elas de um ponto de vista epistemoló-
gico, não são meras algaraviadas.

RESPOSTA
O verificacionista tem de apresentar alguma diferença entre os dois tipos de sequência,
sem admitir que as sequências do primeiro tipo são afinal dotadas de significado. Eis uma
jogada possível. As sequências do primeiro tipo são feitas de palavras portuguesas habi-
tuais e, por serem gramaticais de um ponto de vista sintáctico superficial, há uma espécie
de ilusão de compreensão. Dado que são sequências de palavras de um tipo que muitas
vezes dizem e significam algo, produzem em nós um sentimento de familiaridade. Temos a
impressão de que sabemos o que dizem. E num sentido fraco sabemos: podemos analisá-
las gramaticalmente, e compreendemos cada uma das palavras que nelas ocorrem. Mas
daqui não se segue que estas sequências de palavras significam de facto algo tomadas em
conjunto.

2
Claro que há graus de compreensão. Podemos não compreender um termo completamen-
te. (Sabe o que é exactamente um eixo de cames? E quanto a um acelerador linear?) Mas para com-
preender uma frase, mesmo apenas em parte, temos de ter alguma ideia do que a frase diz. Toda-
via, uma vez mais, isso implica que já há algo que a frase diz antes de se determinar seja o que for
quanto às suas condições de verificação.
P á g i n a | 121

OBJECÇÃO 3

A teoria verificacionista conduz a uma metafísica má ou pelo menos altamente controver-


sa. Recorde-se que uma condição de verificação é um conjunto de experiências. Os positi-
vistas queriam que tais experiências verificadoras fossem descritas num tipo de linguagem
uniforme chamada “Linguagem observacional.” Suponha-se que a nossa “linguagem obser-
vacional” se restringe ao vocabulário de impressões sensoriais subjectivas, como em “Ago-
ra parece que estou a ver uma coisa cor-de-rosa com a forma de um coelho à minha fren-
te.” Então segue-se do verificacionismo que qualquer afirmação dotada de significado que
eu consiga fazer só pode em última análise ser acerca das minhas próprias impressões sen-
soriais; se o solipsismo for falso, eu não posso dizer que o é numa linguagem dotada de
significado. Nem eu, nem ninguém.
Mesmo que em vez disso tornemos a nossa noção de “observação” mais flexível,
incluindo o que Hempel (1950) chamava as “características directamente observáveis” de
objectos comuns, continua a ser verdade que o verificacionismo reduz o significado de
uma frase ao tipo de indícios observacionais que podemos ter a favor dessa frase, e nada
mais. Por exemplo, somos conduzidos a uma perspectiva grotescamente revisionista quan-
to aos objectos científicos — a perspectiva instrumentalista de que as afirmações científi-
cas sobre electrões, traços de memória, outras galáxias e coisas parecidas são meramente
abreviações de conjuntos complexos de frases sobre os nossos próprios dados laboratoriais.
Qual é a condição de verificação de uma frase sobre um electrão? Claro que é algo
macroscópico, algo sobre leituras num aparelho de medição ou traços de vapor numa
câmara Wilson de vapores ultra-saturados ou padrões de dispersão num tubo catódico ou
algo desse género. É observável a olho nu aqui e agora. Devemos realmente acreditar que
quando falamos de partículas subatómicas não estamos realmente a falar de partículas
pequenas — partículas tão pequenas que não podem ser observadas — mas antes de leitu-
ras num aparelho de medição, traços de vapor, e coisas do género? (Os próprios positivistas
não consideravam que este instrumentalismo fosse grotesco: pensavam que era uma ver-
dade importante. Mas eu penso que é grotesco.)
E quando nos voltamos para questões sobre a mente humana, descobrimos que
emerge imediatamente uma versão muito forte de comportamentalismo: as afirmações
sobre as mentes das pessoas são meramente abreviaturas de afirmações sobre o seu com-
portamento aberto. Pois o único género de indícios observacionais que tenho quanto aos
seus pensamentos e sentimentos mais privados é o seu comportamento que vejo e oiço. Se
formos verificacionistas, a filosofia da mente está feita e acabada.
Talvez uma ou mais das teorias anteriores, que para mim são indesejáveis, seja
verdadeira. Talvez todas sejam verdadeiras. Mas o que está em causa é que a nossa teoria
do significado linguístico não deve mostrar num só passo que o são. A metafísica não deve
ser resolvida por uma teoria da linguagem, pois a linguagem é apenas uma adaptação tar-
P á g i n a | 122

dia que se encontra numa espécie de primatas. (Talvez nem seja uma adaptação, mas
antes um pliotropismo; isto é, um mero subproduto de outros traços que são em si adapta-
tivos.)

OBJECÇÃO 4

Como se aplica o princípio verificacionista a si mesmo? Ou é empiricamente verificável ou


não.
Suponha-se que não é verificável. Então ou é apenas destituído de significado ou é
uma verdade “analítica” vácua ou definicional. Pelo menos um positivista (já não me lem-
bro qual) abraçava galantemente a ideia de que o princípio é apenas destituído de signifi-
cado, uma escada a deitar fora depois de termos subido por ela. Alguns positivistas adop-
tavam a linha de que o princípio era uma definição estipulativa útil da palavra “significa-
do,” para fins técnicos. Hempel (1950) chamava “proposta” ao princípio, não sendo assim
verdadeira nem falsa, apesar de estar sujeita a várias exigências e restrições racionais,
não sendo portanto simplesmente arbitrária. Claro, qualquer filósofo pode estipular qual-
quer coisa a qualquer momento; mas como poderia isso ajudar quem procura uma teoria
do significado (em si), credível e na verdade correcta? As estipulações têm os seus usos
mas, quando estamos a tentar chegar a uma teoria filosófica adequada de um fenómeno
pré-existente, uma estipulação não é uma grande ajuda.
Suponho que alguns positivistas pensam que o princípio era uma definição fiel, cor-
recta, que capta o significado anterior de “significado.” O problema dessa ideia é não
sabermos que indícios especificamente semânticos exibiriam a correcção da definição. Os
positivistas não sujeitaram certamente o termo “significado” ao género de análise que
Russell dedicou à palavra “o”; e nem as pessoas comuns nem os filósofos que não são posi-
tivistas partilhavam quaisquer juízos intuitivos compatíveis com o princípio verificacionis-
ta. Não parece analítico, como “Nenhum solteiro é casado”; duvido que qualquer pessoa
que compreenda o que a palavra “significado” significa e o que “verificar” significa saiba
que ser dotado de significado é apenas ser verificável e que o significado de uma frase é a
sua condição de verificação.
Suponha-se que o princípio é tido como empiricamente verificável. Isto é, presuma-
se que será supostamente confirmado pelas nossas experiências de frases, dos seus signifi-
cados e das suas condições de verificação, e suponha-se que se descobriu que o significado
se alinha com a condição de verificação. Mas (como na objecção 1) isso pressupõe que
podemos reconhecer os significados das frases independentemente de lhes atribuirmos
condições de verificação. E não é claro o que deve contar como dados “empíricos” no qual
o princípio deverá basear-se. Resultados de inquéritos de rua? Definições de dicionário?
(Isso, nunca.) As nossas próprias “intuições” linguísticas? (Acresce que o próprio significado
do princípio verificacionista coincidiria então, pelo próprio princípio, com a sua própria
P á g i n a | 123

condição de verificação, o conjunto de experiências como que de significados coincidindo


com condições de verificação; isto é um enleio desagradável, mas não tenho a certeza se
é vicioso, em última análise.)
Em qualquer caso, o problema da auto-aplicação é real, e não apenas um truque
superficial.3

OBJECÇÃO 5

Erwin (1970) oferece um argumento para mostrar que toda a afirmação é verificável, tri-
vialmente e praticamente da mesma maneira. Suponha-se que nos apresentam uma
máquina esquisita que se revela uma maravilhosa máquina de previsão. Nomeadamente,
quando se codifica uma frase declarativa num cartão e o inserimos numa abertura da
máquina, esta faz um zunido e um ruído surdo e surge a palavra “VERDADEIRO” ou “FAL-
SO”; além disso, tanto quanto conseguimos aferir, a máquina está milagrosamente sempre
certa.
Considere-se agora uma sequência de palavras arbitrariamente escolhida, S. O
seguinte conjunto de experiências seria suficiente para elevar drasticamente a probabili-
dade de S:

1. Codificamos S num cartão.


2. Introduzimos o cartão na nossa máquina.
3. Na máquina surge a palavra “VERDADEIRO”.

(E recorde-se que a máquina nunca se enganou.) Assim, há um conjunto possível de expe-


riências que confirmariam S, ainda que S seja intuitivamente uma algaraviada. E a condi-
ção de verificação particular da própria S seria que, quando é codificada e introduzida na
máquina, a máquina responde “VERDADEIRO.” Assim, a teoria verificacionista fica triviali-
zada, dado que qualquer sequência de palavras é verificável, e atribui os significados
errados a frases particulares (porque pouquíssimas frases querem dizer algo acerca de
cartões que são introduzidos em máquinas infernais.)
Há algo de errado com este argumento. Mas descobri que é muitíssimo difícil dizer
exactamente o que há de errado.

3
O verificacionismo cortejou o que o falecido David Stove (1991) chamava o “efeito de
Ismael,” o fenómeno de uma teoria filosófica fazer de si mesma a única excepção. (A referência é
ao Moby Dick: “E só eu escapei para vos contar”; na verdade, isto é em si uma citação de Job
1:15.) Por exemplo: “Tudo o que podemos saber é que não podemos saber coisa alguma.” “O único
pecado moral é a intolerância.” “Absolutamente tudo é relativo.”
P á g i n a | 124

OBJECÇÃO 6

Qualquer versão do princípio verificacionista tem de pressupor uma “linguagem observa-


cional” na qual se descrevam as experiências; consequentemente, tem de sancionar uma
distinção firme entre termos “observacionais” e (correlativamente) “teóricos.” Como
mencionei, alguns positivistas restringiam a sua linguagem observacional a afirmações
sobre as impressões sensoriais privadas e subjectivas das pessoas. Mas isso não respondia
aos propósitos da ciência intersubjectiva testável, de modo que a maior parte dos subjec-
tivistas juntaram-se a Hempel (1950), apelando às “características directamente observá-
veis” dos objectos comuns. Isto tem dois problemas. Primeiro, a noção de “observação
directa” é controversa, e parece totalmente relativa à tecnologia e também aos interesses
e projectos. Uma observação visual é “directa” quando estamos a usar óculos? E se esti-
vermos a usar uma lupa? E se observarmos por um microscópio, com um ou outro grau de
ampliação? E que dizer do microscópio electrónico?
Segundo, as “observações,” e as afirmações formuladas na “linguagem observacio-
nal,” estão impregnadas de teoria, pelo menos em parte; o que conta como uma observa-
ção e o que conta como observado e o modo como se descreve um “dado” — tudo isto é
determinado em parte pelas próprias teorias que estão em questão.
Estes dois problemas são questões espinhosas na filosofia da ciência; só as mencio-
no de passagem.4 Mas ajudam a dar forma a uma objecção muito mais profunda ao verifi-
cacionismo.

A grande objecção

OBJECÇÃO 7

Na esteira de Pierre Duhem (1906), W. v. Quine (1953, 1960) argumenta que nenhuma fra-
se individual tem uma condição de verificação distinta, excepto relativamente a uma mas-
sa de teoria de fundo contra a qual a testagem “observacional” tem lugar.
Há uma ideia ingénua que muitas pessoas têm sobre a ciência. É a ideia de que se
formula uma hipótese científica que depois testamos fazendo uma experimentação, e a
experimentação mostra, só por si, se a hipótese é correcta. Duhem salientou que na histó-
ria do universo nunca houve uma experimentação que tenha podido só por si verificar ou
falsificar uma hipótese. A razão é que há sempre demasiados pressupostos auxiliares que
se tem de aceitar para fazer a hipótese contactar com o aparato experimental. As hipóte-
ses por vezes são realmente infirmadas — completamente refutadas, se quisermos — mas

4
Veja-se Achinstein (1965) e Churchland (1988). Mas quanto ao segundo aspecto tem havido
alguma discordância, como Fodor (1988).
P á g i n a | 125

isso é só porque os cientistas envolvidos mantêm inalterados outros pressupostos que são
disputáveis e que até podem ser perfeitamente falsos. Suponha-se que estamos a fazer um
estudo astronómico, e que estamos a verificar e a refutar coisas fazendo observações
através de complicados telescópios. Ao usar tais telescópios estamos a pressupor pratica-
mente toda a teoria óptica, e muitas mais coisas.
Surpreendentemente, o que Duhem disse aplica-se também à vida quotidiana.
Tome-se uma qualquer frase comum sobre um objecto físico, como “Está uma cadeira à
cabeça da mesa.” Qual é a sua condição de verificação? Uma primeira coisa a notar é que
“o” conjunto de experiências que confirmariam essa frase é de certo modo condicional,
dependendo do nosso ponto de vista hipotético. Podemos tentar algo assim: se entrarmos
na sala vindos da direcção desta porta, teremos experiência de uma cadeira à cabeça da
mesa. Mas mesmo isto depende. Depende de termos os olhos abertos, e depende de o nos-
so aparato sensorial estar a funcionar apropriadamente, e depende de as luzes estarem
ligadas, e… Estas restrições não parecem chegar ao fim. Se tentarmos inserir as reservas
apropriadas (“Se entrarmos na sala, e tivermos os olhos abertos, e o nosso aparato senso-
rial estiver a funcionar,…”), surgem mais restrições: caminhamos de frente ou de costas?
Há algo interposto entre nós e a cadeira? A cadeira foi disfarçada? Os marcianos tornaram-
na invisível? Terá o nosso cérebro sido alterado por uma emissão inesperada de raios Q
vindos do céu? E podemos continuar nisto durante dias.
A moral da história é que o que tomamos como “a” condição de verificação de uma
dada afirmação empírica pressupõe um pano de fundo gigantesco de pressupostos auxilia-
res preestabelecidos. Estes pressupostos são de hábito perfeitamente razoáveis, e não os
fazemos por acaso. Mas uma “condição de verificação” particular só está associada com
uma dada frase se escolhermos admitir tais pressupostos, e quase qualquer um deles pode
falhar. Intrinsecamente, a frase não tem qualquer condição de verificação determinada.
Isto é (no mínimo) embaraçoso para uma teoria que identifica o significado de uma
frase com a sua condição de verificação. Mas, como veremos, a questão não acaba aqui.

DUAS QUESTÕES QUINIANAS

Nos anos cinquenta e sessenta do séc. XX, W. v. Quine levantou dois desafios à filosofia da
linguagem dos positivistas. Primeiro, atacou a noção de analiticidade (Quine 1953, 1960);
isto é, atacou a tese de que algumas frases são verdadeiras inteiramente em virtude do
seu significado e não por causa de qualquer contribuição do mundo extralinguístico. Quine
apresenta vários argumentos contra a analiticidade. Alguns não são convincentes. Outros
são melhores, e fizeram de “analítico” uma palavra feia desde então, ou pelo menos até
um ressurgimento recente. Não farei uma lista; darei apenas uma ideia geral do que penso
ser fundamental no repúdio de Quine da analiticidade.
P á g i n a | 126

Quine partilha e sustenta a inclinação epistemológica dos positivistas, e pensa que


se o significado linguístico for alguma coisa, terá de ser uma função da base indiciária.
Mas a sua epistemologia difere da dos positivistas por ser holista. Há frases individuais que
consideramos verdadeiras e outras que rejeitamos por serem falsas, mas em cada caso a
base da nossa crença é uma questão, complexa, de relações indiciárias que a nossa frase
mantém com muitas outras frases. Sempre que parece que é necessário rever crenças,
podemos escolher entre muitíssimas crenças que podemos abandonar para manter um sis-
tema adequadamente coerente (recorde-se a questão de Duhem). E nenhuma crença está
completamente imune à revisão, nenhuma frase há que não poderia ser rejeitada sob a
pressão de indícios empíricos juntamente com uma preocupação com a coerência geral.
Mesmo verdades aparentes da lógica, como as verdades da forma “Ou P ou não P,” pode-
riam ser abandonadas à luz de fenómenos adequadamente bizarros da mecânica quântica.
Mas uma frase analítica seria por definição inteiramente insensível aos dados do mundo, e
portanto imune à revisão. Logo, não há frases analíticas.
Pode parecer que em termos práticos não é muito relevante haver ou não frases
que ocupem a pitoresca categoria filosófica do “analítico.” Mas a rejeição de Quine da
analiticidade tem realmente uma pequena repercussão interessante. Suponha-se que duas
frases portuguesas, F1 e F2, são precisamente sinónimas. Então, a frase condicional “Se
F1, então F2” deveria ser analítica, pois tem como conteúdo “Se [este estado de coisas],
então [este mesmo estado de coisas],” que dificilmente poderia ser falsificado por qual-
quer desenvolvimento empírico. Logo, se não há frases analíticas, nenhumas duas frases
portuguesas são precisamente sinónimas, nem sequer “A mãe de Kant era uma mulher” e
“A mãe de Kant era um ser humano do sexo feminino.”5
As coisas ficam ainda piores. Eis o segundo desafio que Quine lança aos positivistas
e praticamente, na verdade, a toda a gente. Não se trata apenas de não haver frases ana-
líticas, nem de não haver frases sinónimas. O que se passa é que o significado é coisa que
não existe. Quine começa por negar os nossos “factos do significado,” e insiste num elimi-
nativismo ou niilismo quanto ao significado, na forma da sua doutrina da “indeterminação
da tradução.”
Quine apresentou também aqui vários argumentos, alguns mais convincentes do
que outros. Um deles (de Quine 1969) pode ser formulado com grande simplicidade: as
frases individuais não têm condições de verificação. Mas, se uma frase tivesse qualquer
significado, seria uma condição de verificação. Logo, as frases individuais não têm qual-
quer significado de todo em todo. É assim que Quine salva o verificacionismo da objecção
5. Mas este é um salto desesperado, dado salvar a povoação destruindo-a, eliminando sim-

5
Na verdade, um bom quiniano consumado não deveria aceitar este argumento. Porquê?
(Pista: veja o parágrafo anterior.)
P á g i n a | 127

plesmente o significado e os próprios factos do significado. O problema com o argumento,


é claro, está na justificação da segunda premissa; se as frases não têm condições de veri-
ficação, porquê continuar a aceitar o verificacionismo quando há tantas outras teorias do
significado à nossa disposição?
Um argumento mais conhecido começa com a hipótese de um linguista de campo a
investigar uma linguagem nativa alienígena a partir do zero, tentando construir um
“manual de tradução” ou um dicionário de nativo-português. Quine argumenta que a tota-
lidade dos indícios disponíveis ao linguista não determinam qualquer um manual de tradu-
ção; muitos manuais mutuamente incompatíveis são inteiramente consistentes com esses
indícios. Além disso, a subdeterminação neste caso não é apenas a subdeterminação nor-
mal das teorias científicas face aos indícios nos quais se baseiam. É radical: nem sequer a
totalidade dos factos do mundo é suficiente para vindicar um dos manuais rivais de tradu-
ção contra os outros. Logo, nenhuma tradução é correcta à exclusão das suas traduções
rivais. Mas se as frases tivessem significados, teriam traduções correctas, nomeadamente
as traduções que preservassem os seus significados efectivos. Logo, as frases não têm sig-
nificados.
O problema aqui é justificar a premissa de que nem sequer a totalidade dos factos
físicos do mundo determina a correcção de um dos manuais de tradução rivais. A defesa
dessa premissa permanece obscura.

Sumário

Segundo a teoria verificacionista, uma frase é dotada de significado se, e só se, caso
fosse verdadeira isso faria alguma diferença no decurso da nossa experiência futura; e o
significado particular de uma frase é a sua condição de verificação, o conjunto de expe-
riências possíveis que tenderiam a mostrar que essa frase era verdadeira.
A teoria enfrenta várias objecções de médio porte.
Mas a objecção mais forte é que, como Duhem e Quine argumentaram, as frases indivi-
duais não têm condições de verificação distintas por si mesmas.
Quine atacou a perspectiva de que há frases “analíticas,” frases verdadeiras somente
em virtude dos seus significados.
Da posição de Duhem Quine inferiu a tese radical de que as frases individuais não têm
significados; o significado frásico é coisa que não existe.

Questões

1. Responda em nome do verificacionista a uma das objecções 1-6.


2. Tente enfrentar a objecção 7.
3. Tem alguma crítica complementar a fazer à teoria verificacionista?
4. Discuta o ataque de Quine à analiticidade, ou a sua defesa da indeterminação do signi-
ficado. (São necessárias leituras externas para qualquer destas questões.)
P á g i n a | 128

Leitura complementar

Ayer (1946) é um clássico e/mas é uma exposição e defesa muito acessíveis do verifica-
cionismo.
Alguns artigos anti-verificacionistas influentes, além de Quine, foram Waismann (1965b)
e vários artigos coligidos de Hilary Putnam (1975b), especialmente “Dreaming and
“Depth Grammar”.”
A doutrina de Quine da indeterminação da tradução abrangeu uma vasta bibliografia
tóxica. Para uma perspectiva da doutrina e da bibliografia inicial veja-se Lycan (1984:
cap. 9) (estava à espera que eu recomendasse a perspectiva de outros?); veja-se tam-
bém Bar-On (1992).
Os anos setenta e oitenta do séc. XX viram a eclosão do neoverificacionismo, em grande
medida devido aos escritos de Michael Dummett reunidos no seu livro de 1978. Para um
ataque excessivamente simplificado a Dummett, mas muito claro, veja-se Devitt (1983).
P á g i n a | 129

9 Teorias das condições de verdade: o programa de


Davidson

Sinopse

Segundo Donald Davidson, obteremos uma teoria do significado melhor se substituirmos a


noção de condição de verificação de uma frase pela noção de condições de verdade da
frase: as condições sob as quais a frase efectivamente é ou seria verdadeira, em vez de o
estado de coisas que serviria apenas como indício da verdade. Davidson oferece vários
argumentos, sendo o principal que precisamos da composicionalidade para dar conta da
nossa compreensão de frases longas e novas, e as condições de verdade de uma frase cons-
tituem a sua característica mais obviamente composicional. Como modelo do modo como
as condições de verdade se podem atribuir a frases de linguagens naturais como o portu-
guês, Davidson toma o modo como a verdade é definida para um sistema artificial de lógi-
ca formal. Mas, dado que a gramática de superfície das frases portuguesas diverge das
suas formas lógicas, é necessário fazer intervir uma teoria da gramática e da sua relação
com a lógica; essa teoria existe e é sustentada de modo independente.
A teoria de Davidson enfrenta muitas objecções. Uma é que muitas frases perfei-
tamente dotadas de significado não têm valores de verdade. Outras objecções incluem a
incapacidade da teoria para lidar com expressões (como pronomes) cujos referentes
dependem do contexto, predicados que não são sinónimos mas que por acaso se aplicam
precisamente às mesmas coisas, e frases cujos valores de verdade não são determinados
pelos das suas orações componentes.

Condições de verdade

Até agora, só uma das nossas teorias conseguiu lançar luz sobre o que efectivamente
determina os significados das frases particulares. A teoria proposicional toma os significa-
dos frásicos e limita-se a reificá-los (faz deles objectos de um certo tipo), sem grandes
comentários complementares e sem conectar o objecto que assim se reificou com as práti-
cas linguísticas ou com o comportamento linguístico seja de quem for. Grice tentou
empurrar a questão para a filosofia da mente, tentando conectar as frases com os conteú-
dos das intenções e crenças efectivas das pessoas, coisa que não foi muito bem-sucedida
e, mais importante, limitou-se a tomar como garantidas os próprios conteúdos das inten-
ções e das crenças. Como vimos, os verificacionistas fizeram melhor; ofereceram-nos um
teste para o conteúdo proposicional de qualquer frase dada, sendo o conteúdo (precisa-
mente) a condição de verificação da frase. O problema é que, ainda que ignoremos o pro-
P á g i n a | 130

blema de Duhem-Quine (a objecção 7 do capítulo anterior), o teste verificacionista parece


prever muitas vezes o conteúdo errado (objecção 3). Donald Davidson (1967ª, 1970) argu-
mentou que chegamos onde queremos se substituirmos a noção positivista de condição de
verificação de uma frase pela noção de condições de verdade de uma frase. Deste ponto
de vista, conhecer o significado de uma frase é conhecer as condições sob as quais essa
frase seria verdadeira, e não saber como determinar se a frase é efectivamente verdadei-
ra. (Esqueça a epistemologia.) Ser uma frase sinónima de outra é ser uma frase verdadeira
precisamente sob as mesmas condições da outra; ser uma frase ambígua é ser simulta-
neamente verdadeira e falsa nas mesmas circunstâncias mas sem autocontradição; ser
uma frase derivável de outra é ser impossível que a segunda seja verdadeira sem que a
primeira o seja também.
Já vimos a abordagem do significado em termos de condições de verdade, ainda
que não por esse nome, na nossa discussão da teoria das descrições de Russell, que esboça
precisamente as condições de verdade das frases que contêm descrições, argumentando
de diferentes maneiras que essas são as condições de verdade correctas. Mas voltaremos a
Russell na próxima secção.
Davidson começa com duas ideias que depois se verá que estão relacionadas. Uma
é que uma teoria do significado deve proporcionar uma orientação quanto ao que deter-
mina o significado de uma frase particular. A outra é dar importância central ao fenómeno
assombroso com o qual este livro começou: a nossa capacidade para compreender longas
frases novas instantaneamente. Centrando-se na primeira ideia, Davidson pergunta como
se poderia dar uma “teoria do significado para” uma linguagem particular — não uma teo-
ria geral do significado no nosso sentido filosófico, mas uma teoria do português ou do
chinês ou do kwakiutl — que especificasse os significados particulares das frases dessa lin-
guagem, uma por uma.
Que forma assumiria tal teoria? Davidson oferece e motiva várias orientações e res-
trições. A primeira é esta:

Dado não parecer haver qualquer limite claro no número de expressões dotadas de signifi-
cado, uma teoria viável tem de dar conta do significado de cada expressão na base na exi-
bição padronizada de um número finito de características. Mas mesmo que houvesse uma
restrição prática na dimensão das frases que uma pessoa pode enviar e receber compreen-
dendo, uma semântica satisfatória teria de explicar a contribuição de características repe-
tíveis para os significados das frases nas quais ocorrem.
(Davidson 1970: 18)

Davidson apela aqui para a nossa capacidade de compreender frases longas e


novas, e sugere uma explicação para essa capacidade. Como compreendemos um número
P á g i n a | 131

potencialmente infinito de frases portuguesas com base no nosso vocabulário finito e na


nossa experiência limitada da linguagem? A resposta tem de ser que dominámos “um
número finito de características,” um conjunto relativamente pequeno e manejável de
expressões dotadas de significado que servem de “átomos” do significado, e também
algumas regras de composição, modos “padronizados” de combinar esses átomos ou primi-
tivos semânticos que geram os significados das expressões mais complexas.1
Muito grosseiramente falando, os átomos de significado são palavras individuais, e
as regras de composição são as regras da gramática ou da sintaxe que especificam como as
palavras podem ser combinadas para projectar os seus significados individuais em signifi-
cados mais complexos. Davidson sustenta que o significado de uma frase é uma função dos
significados das suas palavras constituintes.2 É a isto que no capítulo 6 chamámos tese da
composicionalidade. A composicionalidade é a hipótese óbvia para explicar a nossa com-
preensão de longas frases novas: compreendemos os significados complexos decompondo
sintacticamente as frases em elementos menores dotados de significado, computando
então os significados complexos como funções sintácticas desses elementos.
Assim, uma teoria adequada do significado no sentido filosófico geral deve guiar-
nos na construção de uma “teoria sistemática do significado para” qualquer linguagem que
especifique o significado de cada frase gramatical dessa linguagem, fazendo a crónica da
composição da frase a partir das suas palavras constituintes. Assim, deve ter os meios para
gerar uma lista:

“A neve é branca” significa que a neve é branca.


“A relva é verde” significa que a relva é verde.
“Os poltergeists constituem o principal tipo de manifestação material” significa que os pol-
tergeists constituem o principal tipo de manifestação material.
Em 1931, Adolf Hitler foi aos EUA, visitou vários pontos de interesse… [Já apanhou a ideia.]

E esta lista é infinita ou potencialmente infinita. Claro que este exemplo especifica em
português os significados de frases portuguesas (e por isso parece um tanto desinteressan-
te), mas temos também de conseguir fazer o mesmo para outras linguagens:

1
Davidson aqui segue Ziff (1960).
2
“Palavras” não é o termo mais correcto. Alguns átomos de significado são menores do que
as palavras: afixos como “in-” (prefixo) e “-vel” (sufixo). Algumas palavras são apenas partes pleo-
násticas de átomos de significado, como no francês “ne… pas.” Os linguísticas chamam morfemas
aos verdadeiros átomos de significado. Mas por uma questão de conveniência e familiaridade conti-
nuarei a falar de “palavras.”
P á g i n a | 132

“Der Schnee ist weiss” significa que a neve é branca.


“Das Gras ist grün” significa que a relva é verde.
“Die Potergeisten representieren…” [etc.]

Como poderia uma teoria do português ou do alemão gerar tal lista? Note-se, pri-
meiro, que, correspondendo à nossa capacidade para compreender novas frases longas,
temos a capacidade para determinar os valores de verdade dessas frases se soubermos
factos suficientes. Por exemplo, se por acaso eu souber que, na “Ave Maria,” Katherine
Dienes usa segmentos de cânticos, baixo contínuo, figuras sobrepostas de “ora pro nobis”
e outros dispositivos para sugerir a sonoridade da música conventual medieval, e encon-
trar a frase

1) Na “Ave Maria,” Katherine Dienes usa segmentos de cânticos, baixo contínuo, figuras
sobrepostas de “ora pro nobis” e outros dispositivos para sugerir a sonoridade da músi-
ca conventual medieval

(uma frase que tenho a certeza é tão nova para si quanto o foi originalmente para mim);
sei também que essa frase é de facto verdadeira. E se eu tivesse encontrado uma frase
como esta mas em que “música conventual medieval” tivesse sido substituído por “o géne-
ro de música rap de Ice-T,” acrescentando-se a oração “… e Dienes mudou-se recentemen-
te para Newark, Nova Jérsia,” eu saberia instantaneamente que é falsa.
Assim, parece que compreendemos as condições de verdade de longas frases novas
assim que as vemos, tal como as compreendemos, e levanta-se a mesma questão: como é
isso possível? Davidson pensa que esta coincidência não é uma coincidência. A questão tem
a mesma resposta: composicionalidade. As condições de verdade das frases longas são
determinadas pelas condições de verdade das frases menores que as constituem, e os pro-
cessos sintácticos que geram as frases mais longas transportam consigo propriedades
semânticas relacionadas com a verdade, combinando assim as propriedades de verdade
simples em propriedades mais complexas.3
Temos um modelo elegante desta composicionalidade das condições de verdade,
que serve também como o único modelo que temos para a composicionalidade do signifi-
cado. É a semântica de uma linguagem formal como, por exemplo, o cálculo de predica-
dos, formulado pelos lógicos. Quem fez um curso de lógica formal já estava a ver que
íamos dar aqui e portanto já me ultrapassou. Mas para quem não fez tal coisa, tentarei
explicar a ideia informalmente, sem me basear na notação técnica.

3
A tese da composicionalidade é simplesmente pressuposta pela maior parte dos teorizado-
res, mas é difícil de formular com precisão, e foi seriamente posta em causa, nomeadamente por
Pelletier (1994); veja-se também Szabó (2007).
P á g i n a | 133

Irei descrever uma pequena linguagem muito simples, quase tão simples quanto a
linguagem dos pedreiros de Wittgenstein, mas com uma característica distintiva crucial.
Tem dois termos ou predicados, F e G, que correspondem às palavras portuguesas “gordo”
e “ganancioso”; F denota ou aplica-se a todas as coisas gordas do mundo, e apenas a elas,
e G aplica-se a todas as coisas gananciosas. A pequena linguagem (a que chamarei “labre-
guês”) tem também dois nomes próprios: a, que denota o Alberto, e b, que denota a Bela.
E tem uma regra semântica para formar frases sujeito-predicado: uma frase construída
prefixando um predicado P ao um nome próprio n é verdadeira sse o que n denota está
incluído entre as coisas às quais P se aplica. Por fim, o labreguês inclui mais duas expres-
sões chamadas “conectivas frásicas”: “não,” que se pode acrescentar a qualquer frase
dada, e “e,” que pode ser inserida entre frases completas para fazer uma frase mais lon-
ga. Cada uma das conectivas é regida pela sua regra semântica distintiva. A regra “não” é
que uma frase que resulte de se acrescentar “não” a outra frase A será verdadeira se, e só
se, a própria A não for verdadeira. A regra de “e” é que uma frase da forma composta “A e
B” será verdadeira se, e só se, A for verdadeira e B também. Assim:

DEFINIÇÃO DE VERDADE PARA O LABREGUÊS

“F” aplica-se a coisas gordas.


“G” aplica-se a coisas gananciosas.

“a” denota o Alberto.


“b” denota a Bela.

Uma frase sujeito-predicado “Pn” é verdadeira se, e só se, o que “n” denota é um membro
da classe de coisas a que “P” se aplica.

Uma frase da forma “Não A” é verdadeira se, e só se, a frase “A” não é verdadeira.

Uma frase da forma “A e B” é verdadeira se, e só se, as suas frases componentes “A” e “B”
são ambas verdadeiras.

Isto é a totalidade da linguagem — todo o seu vocabulário, todas as suas regras de


significado de qualquer tipo. É de reduzido interesse e encoraja a repetição entediante.
Mas a sua definição de verdade, ainda que na sua simplicidade bruta, tem as característi-
cas gémeas de que precisamos: permite a existência de frases gramaticais de labreguês de
dimensão ilimitada e em número ilimitado, e (contudo) consegue especificar as condições
de verdade para todas elas. Por exemplo, se um locutor de labreguês proferir “Fa,” sabe-
P á g i n a | 134

mos pela nossa cláusula sujeito-predicado que essa frase é verdadeira se, e só se, a deno-
tação de a, isto é, o Alberto, estiver incluída na classe de coisas às quais F se aplica isto é,
a classe das coisas gordas, que é apenas dizer que Alberto é gordo. (À classe de coisas às
quais um termo se aplica chama-se a sua extensão.) Ou pode-se dizer que o Alberto é
ganancioso. Ou pode-se dizer que é gordo e ganancioso, pois a nossa regra de verdade
para “e” diz-nos que “Fa e Ga” é verdadeira apenas quando o Alberto é gordo e o Alberto
é ganancioso. (Afira-o por si.) E a palavra “e” pode ser iterada, isto é, aplicada uma e
outra vez, para fazer frases cada vez mais longas sem parar: “Fa e não Fb”; “Fa e não Ga
e Fb e não Gb”; “Fa e Ga e não Fb e Gb e Fa e não Fb”; e assim por diante, para sempre.
(Claro que as últimas frases serão repetitivas dado o labreguês ter um léxico tão pequeno,
mas mesmo as frases mais repetitivas são mesmo assim gramaticais e têm condições de
verdade perfeitamente claras.)
Assim, mesmo com esta pequena e trivial definição de verdade apenas já obtive-
mos um número infinito de frases gramaticais, e temos regras de projecção que nos
dizem, independentemente da dimensão da frase, a condição sob a qual essa frase é ver-
dadeira. Na posse disto, podemos encontrar qualquer frase nova de labreguês, mesmo que
tivesse oitocentos metros, e computar as suas condições de verdade. Explicámos uma
capacidade potencialmente infinita por meios finitos, na verdade, minúsculos.
Suponha-se que derivámos passo a passo uma condição de verdade da nossa defini-
ção de verdade e que a explicitámos:

“Fa e não Ga e Fb e não Gb” é verdadeira se, e só se, o Alberto é gordo e o Alberto não é
ganancioso e a Bela é gorda e a Bela não é gananciosa.

Tomamos uma frase de labreguês e especificámos a sua condição de verdade. Mas


não especificámos nós também o significado? Certamente que o que a frase escolhida sig-
nifica é apenas que o Alberto é gordo e o Alberto não é ganancioso e a Bela é gorda e a
Bela não é gananciosa. E significa isso composicionalmente, em virtude do que a, b, F e G
denotam mais as regras semânticas para determinar condições de verdade complexas a
partir das mais simples.
Suponha-se que podíamos fazer o mesmo para o português, isto é, construir uma
definição de verdade que expele algo da forma ““——” é verdadeira se, e só se, ——” para
cada frase portuguesa. (Chama-se a tais produtos “bicondicionais de Tarski” ou “frases V,”
pois inspiram-se na forma que assume a teoria da verdade de Tarski (1956)). E suponha-se
que se vê que cada frase V apanha correctamente as condições de verdade da frase visa-
da. Então, pergunta Davidson, que mais se poderia razoavelmente pedir de uma teoria do
significado para o português?
P á g i n a | 135

Considere-se: uma atribuição correcta de significado a uma frase deveria determi-


nar a sua condição de verdade; assim, sabemos que uma teoria adequada do significado
para uma linguagem deve proporcionar pelo menos uma definição de verdade para essa
linguagem. Assim, se a definição de verdade faz também tudo que é de esperar de uma
teoria do significado, seria razoável identificar simplesmente o significado de uma frase
com a sua condição de verdade.
E quanto aos factos do significado? Já mencionei as maneiras segundo as quais a
teoria das condições de verdade dá conta da sinonímia e da ambiguidade. Dá também con-
ta da inclusão semântica e especialmente da derivabilidade. De “Fa e não Fb” deriva-se
“Fa” porque, segundo a nossa definição de verdade, “Fa e não Fb” não poderia ser verda-
deira a menos que “Fa” o fosse. Uma definição de verdade para uma linguagem prevê as
sinonímias, derivabilidades e outras relações semânticas que se encontram por referência
às regras semânticas de composição que codifica.
E, em parte, o defensor contemporâneo da teoria das condições de verdade estuda
construções linguísticas do mesmo modo que Russell trabalhou nas descrições. Reúne uma
quantidade de factos do significado sobre um tipo ou grupo particular de frases nas quais
tem interesse — factos sobre relações de sinonímia, ambiguidades, relações de derivabili-
dade, etc. — e tenta explicar esss factos em termos das condições de verdade. Russell deu
atenção às propriedades semânticas das frases deste ou daquele tipo, em especial pro-
priedades interessantes que criam quebra-cabeças lógicos, e depois perguntou: como
podemos fazer uma teoria de tais frases que explique a razão pela qual exibem essas
características semânticas que originam quebra-cabeças? A sua resposta, como na teoria
das descrições, seria uma condição de verdade hipotética.
A teoria das condições de verdade vê o significado como representação. Com efei-
to, regressa à concepção de significado da teoria referencial, segundo a qual o significado
é um espelhamento ou correspondência entre frases e estados de coisas efectivos ou pos-
síveis; Russell salientava esta ideia (e na verdade fez dela uma pedra angular da sua meta-
física). A definição de verdade funda-se nas relações referenciais entre os termos e os seus
denotantes ou extensões mundanos. Vimos no capítulo 1 que a teoria referencial grosseira
era uma ideia excessivamente simples da correspondência entre as palavras e o mundo; o
defensor da teoria das condições de verdade não postula uma correspondência tão forte
nem tão simplista, dado não insistir que todas as palavras são nomes. Mas o defensor da
teoria das condições de verdade está de volta à tarefa de espelhar a natureza, de pergun-
tar que estados de coisas efectivos ou possíveis uma dada frase visada descreve ou repre-
senta.
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Definir a verdade em linguagens naturais

A verdade foi definida explicitamente no labreguês. As suas frases exibem explicitamente


as suas condições de verdade, no sentido em que não há disparidade entre a forma grama-
tical de superfície de uma frase e o que Russell chama a sua forma lógica (capítulo 2). E
podemos pura e simplesmente olhar para uma frase de labreguês e, na posse da definição
de verdade, analisar a estrutura composicional da frase e calcular a condição de verdade
da frase. Este é o paradigma de Davidson.
Há um enorme “mas” (na verdade, um “Mas…‼”), que provavelmente já lhe ocor-
reu. Uma coisa é fornecer uma definição de verdade para uma linguagem formal inventa-
da, mesmo que seja muitíssimo mais rica do que o labreguês; outra coisa muito diferente
é revelar regras de verdade alegadamente subjacentes a uma linguagem natural previa-
mente existente como o português. A linguagem natural já cá estava. E, o que é muito
mais importante, as frases do português não exibem explicitamente as suas condições de
verdade. Como vimos no capítulo 2, é notório que a sua gramática de superfície difere
imprevisivelmente das suas formas lógicas.
Bem, diz o partidário da teoria das condições de verdade, não é assim tão imprevi-
sivelmente. É aqui que a sintaxe entra no filme. (Na verdade, pode dizer o partidário, é
para isso que serve a sintaxe.)
Gostaria de lhe dar um curso inteiro de sintaxe; na impossibilidade de o fazer, gos-
taria de lhe dar só os elementos básicos. Mas o espaço não me permite fazer qualquer das
duas coisas. Assim, limitar-me-ei a apontar para a ideia fundamental na esperança de que
possa apanhar o resto alhures. Por uma questão de simplicidade, irei usar jargão que faz
lembrar os primórdios da sintaxe teórica (aproximadamente os anos sessenta do séc. XX),
quando esta disciplina foi fundada por Zellig Harris e Noam Chomsky.
Uma sintaxe ou uma gramática para uma linguagem, natural ou artificial, é um dis-
positivo para extrair frases bem formadas ou gramaticais de todas as sequências constituí-
das por palavras dessa linguagem. E uma vez mais (como na semântica), o modelo é o da
formação de regras para um sistema lógico. Recorde-se o labreguês. As frases de labreguês
podem ser analisadas e diagramadas pelo que se chama “marcadores de expressão,” de
um modo que descreve directamente a sua composição sintáctica com base em termos
individuais. Eis “Fa e não Fb”:
P á g i n a | 137

Frase

Frase Conectiva Frase

Predicado Nome Conectiva Frase

Predicado Nome

F a e não F b

Pode-se formar uma colocando um nome depois de um predicado, de modo que “Fa” e
“Fb” são frases. Pode-se formar uma frase prefixando uma frase com “não,” de modo que
“não Fb” é uma frase. Finalmente, pode-se formar uma frase colocando “e” entre duas
frases, de modo que o resultado inteiro será uma frase.
Podemos diagramar frases portuguesas simples de maneira semelhante. Eis uma
clássica: “O rapaz chutou a bola colorida.”

Frase

Expressão nominal Expressão verbal

Determinante substantivo Verbo Expressão nominal

Determinante Substantivo Adjectivo

O rapaz chutou a bola colorida

Os nós destes marcadores de expressão são etiquetados segundo categorias gramaticais, e


os mais abaixo começam a parecer-se com “partes dos discurso” português: substantivo,
adjectivo, e por aí fora. Os nós mais acima correspondem a estruturas gramaticais mais
complexas, como expressões nominais.
Mas poucas frases portuguesas são assim tão simples. A maior parte tem estruturas
que não podem ser inteiramente representadas por marcadores de expressão deste tipo
simples (a que se chama marcadores “sem contexto”), porque há relações gramaticais
robustas e inconfundíveis que não podem ser representadas desta forma. Chomsky (1957,
1965) argumentou que a gramática dos marcadores de expressão precisa de ser aumentada
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por um dispositivo, especificamente um conjunto de regras, que possam tomar um marca-


dor de expressão e transformá-lo num marcador diferente de um tipo dependente; cha-
mou a essas regras “transformações.” Por exemplo, uma transformação passiva pode
tomar o anterior marcador de expressão e rearranjar as suas partes transformando-o num
marcador para “A bola colorida foi chutada pelo rapaz.” As transformações são entendidas
como dinâmicas, como agentes que partem marcadores de expressão e reconstroem as
suas partes em diagramas em árvore mais complicados.
Assim, com alguma sorte, todas as sequências gramaticais de português têm ou um
marcador de expressão sem contexto ou um marcador que foi derivado por uma série de
uma ou mais transformações a partir de um marcador sem contexto. Nenhuma outra
sequência é gramatical. (As gramáticas já não têm esta arquitectura simples, nem os lin-
guistas de hoje usam a minha terminologia antiquada. Mas para ficar a saber mais terá de
estudar por si.)
Como afirmei, os linguistas concebiam originalmente a gramática simplesmente
como uma máquina que separava sequências bem formadas de algaraviadas. Alguns lin-
guistas param aí, e não consideram que a tarefa tenha muito a ver com semântica ou com
o significado frásico propriamente dito. Mas, como Davidson afirma, algo toma os signifi-
cados das palavras individuais, compondo-os depois ou projectando-os em significados frá-
sicos completos. O que faz tal coisa? Presumivelmente, regras para juntar as palavras
numa ordem racional qualquer, uma ordem que confere um significado à totalidade do
composto. Mas repare-se que um mesmo conjunto de palavras pode ser diferentemente
ordenado, e duas das sequências resultantes podem ter significados diferentes, mesmo
que ambas estejam bem formadas: tragicamente, “O João ama a Marta” não tem o mesmo
significado que “A Marta ama o João,” ainda que as mesmas três palavras componham as
duas frases. Assim, para gerar significados diferentes para estas frases, as regras de pro-
jecção têm também de fazer ajustes mais subtis; têm de olhar não apenas para as próprias
palavras, mas também para algumas distinções mais subtis. Mas as mesmíssimas regras
sintácticas que compõem sequências gramaticalmente aceitáveis a partir de palavras indi-
viduais parecem também perfeitamente adequadas para servir como regras de projecção
desse género. Nos finais dos anos sessenta do séc. XX muitos linguistas vieram a adoptar
essa perspectiva, e sustentaram que as transformações preservam o significado (apesar de
esta última tese ter sido restringida e parcialmente abandonada pela teoria canónica alar-
gada dos anos setenta do mesmo século e pela teoria da regência e da ligação dos anos
oitenta).
Suponha-se que temos uma gramática da estrutura de expressões para uma lingua-
gem formal cujas condições de verdade foram explicitamente definidas. E suponha-se que
temos transformações gramaticais capazes de converter fórmulas dessa linguagem em
sequências bem formadas de português. Então temos uma gramática cuja componente de
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estrutura de expressões gera estruturas subjacentes (fórmulas como as da lógica) e cuja


componente transformacional produz variações portuguesas sobre essas estruturas subja-
centes. Dado que as transformações preservam o significado ou, em termos mais restritos,
dado que as transformações preservam propriedades da verdade, podemos então ver como
as frases portuguesas têm os seus significados. Nomeadamente, têm significados em virtu-
de de terem condições de verdade, e têm condições de verdade em virtude de derivarem
por transformação de fórmulas de um sistema de notação análogo ao da lógica cuja verda-
de foi explicitamente definida. As frases sinónimas são variações transformacionais de
cada uma; as frases ambíguas são os produtos de mais de um processo transformacional
possível, e assim por diante.
Idealmente, o defensor da teoria das condições de verdade quer ser empiricamente
mais responsável do que Russell. Este filósofo abordava as condições de verdade a priori;
escrevia uma frase inglesa no quadro, escrevia uma fórmula lógica ao lado, olhava para as
duas, e ajuizava que a segunda parecia captar correctamente as condições de verdade da
primeira. Também apelava, o que era mais prometedor, para o poder que a sua hipótese
tinha para resolver quebra-cabeças. Mas um defensor contemporâneo da teoria das condi-
ções de verdade deverá querer que, além disso, as suas hipóteses semânticas respondam
pelo menos parcialmente a teorias sintácticas plausíveis.

Objecções à versão davidsoniana

OBJECÇÃO 1

Como ocorre com a teoria verificacionista, a teoria das condições de verdade parece apli-
car-se apenas à linguagem descritiva, factual; perguntas e ordens, etc., não são de modo
algum verdadeiras ou falsas.

UMA RESPOSTA DÉBIL


Apesar de não dizermos normalmente que as perguntas ou as ordens são verdadeiras ou
falsas, estas têm valores semânticos bipolares análogos à verdade. A uma pergunta res-
ponde-se correctamente “sim” ou “não”; e obedece-se ou desobedece-se a uma ordem.
Intuitivamente, uma frase adeclarativa corresponde a um estado de coisas que pode ocor-
rer ou não, ainda que a sua função não seja descrever ou relatar esse estado de coisas. Por
exemplo, uma ordem é “verdadeira” se lhe obedecermos de facto, e falsa no caso contrá-
rio. Claro que isto não é uma maneira normal de usar “verdadeiro” e “falso”; estamos a
alargar a sua aplicação a toda a bipolaridade semântica. (Talvez devêssemos inventar um
par mais geral de termos gerais, como “positivo” e “negativo.”)
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UMA PRIMEIRA RÉPLICA


Nem todas as adeclarativas são bipolares desse modo. Considere-se perguntas como
“Quem roubou o serviço de mesa?,” “Que horas são?,” e “Por que fizeste explodir o meu
barco?” Nenhuma destas tem uma resposta “sim” ou “não”; na verdade, cada uma delas
admite um âmbito muitíssimo vasto de respostas correctas possíveis.

UMA SEGUNDA RÉPLICA


A dificuldade com a inexistência de valor de verdade não se restringe a frase adeclarati-
vas. Para começar, já se argumentou que certas frases gramaticalmente declarativas não
têm condições de verdade e só têm condições epistémicas de “asseribilidade”. A mais
notável dessas posições é a de Adams (1965), entre outros autores, que defendeu a pers-
pectiva de que as condicionais indicativas não têm condições de verdade nem valores de
verdade.
Além disso, alguns filósofos sustentam (na peugada dos positivistas) que certas fra-
ses gramaticalmente declarativas não afirmam factos apesar de ingenuamente não o pare-
cer. Segundo os emotivistas, em filosofia moral, os juízos morais são apenas expressões ou
manifestações, análogos semanticamente a gemidos, grunhidos de protesto, aclamações, e
coisas do género. Sendo assim, tais frases “factualmente defectivas” não têm valores de
verdade. Logo, uma frase V com respeito a uma delas (““O assassínio é incorrecto” é ver-
dadeira sse o assassínio é incorrecto”) seria falsa ou anómala.4

RESPOSTA À SEGUNDA RÉPLICA


É fácil ao defensor da teoria das condições de verdade que seja também um emotivista
(ou seja o que for) restringir a sua teoria da verdade de modo a não se aplicar desde logo
a frases infactuais. Mas inversamente, pode-se argumentar partindo da plausibilidade
geral da semântica das condições de verdade (se nela acreditarmos) para concluir que o
emotivismo é implausível, assim como outras perspectivas que neguem o valor de verdade
a declarativas perfeitamente gramaticais.

OBJECÇÃO 2

Davidson fala como se os lados direitos das suas frases V fossem todos escritos em inglês,
ou na linguagem natural do teorizador, seja ela qual for, de modo que se possa prontamen-
te ver que estão correctas ou não. Na verdade, Davidson apregoa que as frases V são con-
sequências empiricamente testáveis de uma definição de verdade proposta para uma lin-

4
Os descendentes actuais mais sofisticados dos emotivistas incluem Blackburn (1984, 1993)
e Gibbard (1990); mas procuram encontrar maneiras de conceder que os juízos morais podem ser
considerados “verdadeiros” ou “falsos” e figurar em frases V, sem conceder que os juízos morais
afirmem factos sobre o mundo.
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guagem. Mas nenhuma davidsoniana definição de verdade efectiva poderia ter como resul-
tado tais frases V (Stich 1976; Blackburn 1984). Para que tal teoria gere frases V — ou
qualquer outra coisa — como teoremas, tem de ser formulada numa linguagem razoavel-
mente formal e regimentada, algo semelhante à lógica. (Veja outra vez a definição de
verdade para o labreguês.) Além disso, quando o teorizador chega a construções da lingua-
gem da natural que não ocorrem nas lógicas simbólicas usuais, como advérbios, operado-
res de crença, etc., os lados direitos das frases V que as envolvem podem conter alguma
notação radicalmente inabitual. Uma versão recente da teoria das frases de acção do pró-
prio Davidson (1967b) origina frases V como estas:

“O João barrou manteiga na tosta à meia-noite” é verdadeira sse

(∃a)(BARRAR-MANTEIGA(a) & PROTAG(João, a) & VÍTIMA(a tosta, a) & OCCORREU-EM(a,


meia-noite)).

O lado direito é para ser aqui lido do seguinte modo: “Ocorreu um acontecimento,
que foi um barrar manteiga na tosta, executado pelo João à meia-noite.” (Ao fazer o
sujeito subjacente todo o acontecimento em vez de ser apenas o agente João, Davidson
consegue explicar por que a frase visada implica frases mais simples como “O João barrou
manteiga na tosta,” “O João barrou manteiga em algo,” “Algo aconteceu à tosta” e “Algo
aconteceu à meia-noite,” implicações que de outro modo são difíceis de captar.) Mas
então como fica a alegação de Davidson de que a sua teoria é testável? Como se espera
que possamos saber se as misteriosas frases V deste género estão correctas ou incorrectas?

RESPOSTA
A testabilidade fica mais fraca, mas não desaparece. Pois ainda podemos testar frases V
emaranhadas como a anterior à luz das nossas intuições lógicas, e ainda podemos avaliar a
alegação de Davidson de que iluminou características semânticas impressionantes da frase
visada.

OBJECÇÃO 3

Quando começamos a examinar frases com elementos deícticos surgem problemas técnicos
brutais (antecipados por Davidson 1967ª). (Um elemento “deíctico” ou “indexical” é aque-
le no qual a interpretação semântica varia com o contexto de elocução, como um marca-
dor de flexão ou um pronome demonstrativo.) Por exemplo, como se formularia a condição
de verdade para a frase “Estou doente”? ““Estou doente” é verdadeira se, e só se, estou
doente agora” não serve, dado que o seu valor de verdade depende de quem a profere e
de quando a profere, não sendo em geral determinado pelo meu (este seu humilde narra-
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dor) estado de saúde. As frases deícticas nem sequer têm valores de verdade, excepto nas
ocasiões efectivas ou hipotéticas do seu uso (um aspecto que seria gratificante para
Strawson).
A resposta do próprio Davidson é relativizar a verdade a um locutor e a um momen-
to do tempo. A frase V relevante seria formulada assim: “Estou doente” é verdadeira
enquanto potencialmente proferida por p no momento t se, e só se, p está doente em t.”
Mas há vários aspectos em que isto é insatisfatório,5 nomeadamente o facto de o locutor e
o momento da elocução não serem os únicos factores contextuais que afectam o valor de
verdade. (Recorde-se “Esta vermelha é muito boa.”) Regressaremos a esta questão no
capítulo 11.6

OBJECÇÃO 4

Uma definição davidsoniana de verdade tem muita dificuldade em distinguir expressões


que por acaso são co-extensionais (ou seja, que se aplicam exactamente aos mesmos refe-
rentes) mas não são sinónimas (Reeves 1974; Blackburn 1984). Considere-se dois únicos
itens de vocabulário que diferem em significado mas que por acaso têm exactamente as
mesmas extensões. Um exemplo usual disto é as palavras “renato” e “cordato,” signifi-
cando respectivamente “criatura com rins” e “criatura com coração.”7 Uma teoria david-
soniana da verdade não conseguirá distinguir o significado de uma frase que contenha
“renato” de uma frase que contenha “cordato,” pois a cada termo será atribuído exacta-
mente a mesma classe de objectos como extensão.

PRIMEIRA RESPOSTA
Numa teoria da verdade do género que descrevemos, as palavras usadas no lado direito
das frases V correspondem supostamente tão intimamente quanto possível às expressões
que compõem a frase visada. (Veja outra vez a definição de verdade para o labreguês.)
Assim, a cláusula para “renato” será escrita como ““Renato” denota renatos” e não como
““Renato” denota cordatos.” Para derivar a segunda frase da nossa teoria da verdade
(apesar de ser verdadeira), seria necessário acrescentar e premissa contingente e ilinguís-

5
Veja-se Lycan (1984: capítulo 3). Devo confessar que essa obra é uma defesa global da
teoria das condições de verdade. Penso que a teoria está correcta e que vale a pena pagar bem
para a ouvir em concertos ao vivo.
6
Também há um problema terrível com as frases ambíguas; veja-se Parsons (1973) e Lycan
(1984: capítulo 3).
7
Pelo menos um biólogo disse-me que as duas palavras não se aplicam às mesmas coisas; há
animais com coração que não têm rins, e vice-versa. Mas ignore-se este facto esquálido e pretenda-
se que “renato” e “cordato” se aplicam exactamente aos mesmos animais.
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tica “Todos os renatos são cordatos e só eles o são.” E, segundo Davidson, o significado de
uma frase visada não é dado apenas pela frase V que tem por objecto a frase visada, mas
por essa frase V juntamente com a sua derivação dos axiomas da teoria da verdade. Para
evitar a sugestão de que ser cordato faz parte do significado de “renato,” podemos exigir
que a derivação da frase V não contenha premissas ilinguísticas.

SEGUNDA RESPOSTA
“Renato” e “cordato” serão distintos em frases que contenham certos géneros de constru-
ção, nomeadamente em frases modais e em frases doxásticas. Seja qual for a semântica
que Davidson dá a frases como “Poderia haver um renato que não fosse cordato” e “O
Godofredo acredita que a sua tartaruga de estimação é renata” teria de acomodar (prever,
na verdade) a impermutabilidade de “cordato” por “renato” nessas frases.

RÉPLICA À SEGUNDA RESPOSTA


Tais frases — nas quais não se pode substituir termos co-extensionais sem mudar o valor de
verdade das próprias frases — são em si um quebra-cabeças. (São denominadas frases
intensionais; trata-se de uma generalização do fenómeno a que no capítulo 2 se chamou
“opacidade referencial.”) Seria de esperar que a substituição não fizesse diferença; afi-
nal, mesmo que usemos uma palavra diferente, continuamos a falar exactamente acerca
da mesma coisa ou classe de coisas. Já encontrámos um caso especial deste problema nos
capítulos 2 e 3, o problema da substituibilidade das descrições definidas e dos nomes pró-
prios. Qualquer teoria do significado tem de oferecer alguma explicação das substituições
fracassadas. Assim, a expressão “Seja qual for a semântica que Davidson der para frases
como…” não é inocente. Resolver esse problema será uma tarefa árdua para Davidson,
dado o formato da sua teoria do significado. (Ele enfrenta realmente o problema da inten-
cionalidade aqui e ali, principalmente em Davidson (1968). A sua solução é, grosso modo,
considerar que as frases intensionais fazem referência tácita às próprias palavras que
nelas ocorrem. Veremos uma abordagem muitíssimo diferente no capítulo seguinte.)

OBJECÇÃO 5

É muito simples escrever uma regra de verdade para uma palavra formadora de frases
como “e.” Afinal, “e” é o que os lógicos chamam uma conectiva verofuncional: o valor de
verdade de “A e B” é estritamente determinado pelos valores de verdade das suas frases
componentes, A e B. Mas muitas expressões formadoras de frases pura e simplesmente não
transmitem a verdade desse modo. Tome-se a palavra “porque”: a verdade de “A porque
B” não é determinada pelos valores de verdade das frases componentes, A e B, pois, ainda
que ambas sejam verdadeiras “A porque B” pode ser falsa, dependendo de outras caracte-
rísticas do mundo. Como se poderia então escrever uma regra de verdade para “porque,”
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paralela à regra do labreguês para “e”? Ou tome-se os advérbios. Como se poderia escre-
ver uma regra de verdade para “devagar” ou para “muito”?
Pior ainda: considere-se outra vez “acredita que,” como em “O João acredita que a
Maria acredita que Emanuela acredita que a casa está a arder.” Como escreveríamos uma
regra de verdade para isto? “n acredita que A” é verdadeira se, e só se… o quê?
Uma estratégia óbvia é invocar um domínio de entidades útil, como proposições (!),
e escrever regras de verdade para expressões que não sejam verofuncionais em termos de
quantificação sobre esse domínio. (Como vimos, para lidar com alguns advérbios, Davidson
introduziu um domínio de “acontecimentos,” e transformou os advérbios em predicados
adjectivais de acontecimentos.) O principal problema desta estratégia é que força a sinta-
xe, dado que as transformações têm de ser cada vez mais árduas para transformar as
novas formas lógicas excêntricas em português familiar; como Blackburn salienta (1984:
289), um tratamento davidsoniano de uma construção (intensional) que não seja verofun-
cional como “porque” ou “acredita que” exige pelo menos um “compromisso sério com
formas lógicas escondidas.” (Mas, como antes, as frases de crença em particular já são um
problema terrível para qualquer teoria do significado.)

OBJECÇÃO 6

A semântica das condições de verdade tem de explicitar a noção geral de verdade que está
a pressupor. Mas a única análise geral plausível de verdade é em termos de afirmar ou
asserir coisas: “Quem faz uma afirmação ou asserção faz uma afirmação verdadeira se, e
só se, as coisas são como ele diz que são ao fazer a afirmação” (Strawson 1970: 15). O que
é dizer que a análise tem de ser feita em termos de comunicação, que tem de ser formu-
lada à lá Grice. Assim, apesar de a letra da semântica das condições de verdade poder não
ser objectável, o espírito da teoria foi traído, pois acaba por ir dar ao gricianismo em vez
de se apresentar como uma alternativa superior.

PRIMEIRA RESPOSTA
Quer tenhamos quer não uma análise filosófica geral da verdade, temos o conceito expres-
so pela palavra portuguesa “verdadeiro,” e temos também a estrutura formal introduzida
por Tarski, que gera frases V. Se a noção de significado pode ser reduzida à de verdade,
isso constitui uma economia teórica, mesmo que não forneçamos outra explicação filosófi-
ca da verdade; não é um caso em que “os conceitos de significado e verdade apontam
inexpressivamente e em vão um para o outro” (Strawson 1970: 16).

RÉPLICA
Muito bem, mas e então se a análise correcta de “verdadeiro” for (de facto) em termos de
comunicação?
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SEGUNDA RESPOSTA
Se for assim, então cairíamos (de facto) em Grice. Mas por que havemos de aceitar de
todo em todo a teoria da verdade baseada no afirmar/asserir? Que dizer das outras teorias
gerais que os filósofos têm oferecido nos últimos dois mil anos? Em particular, há as teorias
clássicas da correspondência, da coerência e a pragmatista. Mais recentemente, há a teo-
ria profrásica engendrada por Grover, Camp e Belnap (1975). Tanto quanto consigo ver,
Strawson ignora-as simplesmente porque deve estar a pressupor que todas as teorias desse
género teriam de algum modo de aceitar a ideia griciana numa fase qualquer inicial: por
exemplo, dado que as crenças são primariamente o que tem ou não coerência, a teoria da
verdade como coerência teria de tratar as frases apenas na medida em que exprimem
crenças, e assim por diante. Mas não vejo por que havemos de conceder tal pressuposto
(se acaso é o de Strawson) só porque o afirma. Sob esta interpretação, Strawson está, no
fundo, na posição em que insiste: “Mas certamente que uma qualquer versão de gricianis-
mo está correcta.”
A este propósito, seja-me permitido tomar a sugestão de Grice sobre frases impro-
feridas e novas, o seu apelo a “procedimentos resultantes” abstractos (veja-se o final da
penúltima secção do capítulo 7). Parece agora que o que Grice tinha aí em mente era a
composicionalidade alcançada por meio da sintaxe. Suponha-se que Grice podia desenvol-
ver uma noção de significado público análogo ao significado frásico mas aplicando-se a
expressões subfrásicas (palavras, por exemplo); chame-se-lhe “significado das expres-
sões.” Grice poderia então invocar a sintaxe e construir abstractamente os significados
frásicos a partir dos significados das expressões (apesar de, uma vez mais, Grice ter aqui
de conseguir distinguir os “significados frásicos” abstractos das proposições).
Como explicar o significado das expressões? Recorde-se que no capítulo 2 definimos
uma noção de “referência do locutor” de termos singulares, que visava precisamente con-
trastar gricianamente com a “referência semântica” do termo e que era entendida em
termos das intenções dos locutores de chamar a atenção dos interlocutores para certas
coisas. Talvez possamos definir um conceito análogo de “extensão do locutor” de predica-
dos em termos das intenções dos locutores que subjazem de algum modo aos usos desses
predicados, e assim por diante. Depois poderíamos pedir de empréstimo a linguagem de
Grice sobre repertórios e procedimentos, presente na sua discussão das elocuções inestru-
turadas, e usá-la para congeminar tipos correspondentes de significado das expressões.
Esta redução em duas fases do significado frásico ao significado do locutor ainda enfrenta-
ria problemas, mas já não as objecções 2-4.
Além disso, esta ideia sugere um programa de investigação interessante, pois leva-
nos de volta à teoria da referência, vindos de nova direcção. Por exemplo, pode a denota-
ção semântica de um nome próprio ser realmente analisado em termos da referência do
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locutor? À primeira vista, essa ideia rivaliza tanto com a teoria descritivista dos nomes
como com a teoria histórico-causal.
Mas esta perspectiva combinada, explicando o significado frásico em termos do sig-
nificado primitivo das expressões juntamente com uma teoria griciana dos significados
primitivos individuais das expressões, concede que a teoria das condições de verdade está
correcta, acrescentando apenas, apesar de isso ser muito significativo, um novo tipo de
teoria da referência que rivalizaria com as consideradas nos capítulos 2-4.

Sumário

Davidson oferece vários argumentos em defesa da teoria das condições de verdade. O


principal é que a composicionalidade é necessária para dar conta da nossa compreensão
de frases longas e novas, sendo as suas condições de verdade a característica mais
obviamente composicional de uma frase.
A definição de verdade para um sistema de lógica formal ao estilo de Tarski é um mode-
lo do modo como se pode atribuir condições de verdade a frases das linguagens natu-
rais.
Mas dado que a gramática de superfície das frases portuguesas difere das suas formas
lógicas, é preciso ter uma teoria da transformação gramatical e sintáctica.
Essa teoria existe e tem apoio independente.
A teoria de Davidson enfrenta muitas objecções. Talvez a mais importante é que muitas
frases perfeitamente dotadas de significado não têm valores de verdade. Algumas das
outras: o seu programa de Tarski não pode lidar com expressões (como pronomes) cujos
referentes dependam do contexto, predicados que não sejam sinónimos mas que por
acaso se aplicam às mesmas coisas, e frases cujos valores de verdade não são determi-
nados pelos das suas orações componentes.
Pode ser possível fundir Davidson com Grice fornecendo uma teoria griciana das exten-
sões dos termos.

Questões

1. Avalie o argumento principal de Davidson a favor da sua teoria das condições de verda-
de; isto é, o seu apelo à composicionalidade, e as definições tarskianas de verdade.
2. Discuta o argumento complementar muito brevemente formulado acima cujas premissas
são que a) o significado de uma frase deve determinar as suas condições de verdade e
b) uma definição de verdade para uma linguagem faz também tudo o que é de esperar
que uma teoria do significado faça.
3. Se já sabe alguma coisa de sintaxe teórica, avalie a esperança de que possa ser usada
como veículo para conectar as frases portuguesas aos lados direitos das frases V de
Davidson.
4. Ajuíze uma ou mais das objecções levantadas à teoria das condições de verdade.
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5. Se conhece o paradoxo do mentiroso, explore o problema que levanta à teoria das con-
dições de verdade. (Davidson (1967ª) trata brevemente deste problema.)
6. Levante uma nova objecção complementar à teoria das condições de verdade.
7. Desenvolva a teoria combinada griciana, em “duas fases,” sugerida no final deste capí-
tulo. Ou desenvolva a redução griciana da primeira fase da denotação semântica (para
nomes ou predicados).

Leitura complementar

Além de Lycan (1984), a melhor introdução geral ao programa de Davidson é Harman


(1972). Esse artigo, assim como muitos outros bons artigos de e sobre a semântica da
teoria da verdade, está reimpresso em Davidson e Harman (1975); veja-se também as
antologias de Evans e McDowell (1976) e Platts (1980). Platts (1979) é uma boa discus-
são crítica do programa davidsoniano.
Harman (1974b, 1982) rompeu com Davidson e fundou a semântica do papel conceptual.
Para uma revisão da bibliografia que se seguiu veja-se Lycan (1984: cap. 10).
Davidson (1986) é uma crítica importante à própria posição de Davidson, baseada no
fenómeno do malapropismo.
Um efeito lateral importante da semântica da teoria da verdade, e que com ela rivali-
za, é a semântica da teoria dos jogos desenvolvida por Jaakko Hintikka (1976, 1979).
Não sei até que ponto o programa de Hintikka rivaliza com a semântica da teoria da
verdade ou é uma sua variante. Os artigos básicos da semântica da teoria dos jogos
estão coligidos em Saarinen (1979).
Radford (1997), Culicover (1997), Sag e Wasow (1999), Carnie (2001) e Lasnik e Uriage-
reka (2005) são excelentes introduções à teoria sintáctica contemporânea; veja-se tam-
bém Hornstein (1995). Larson e Segal (1995) expõem a convergência da semântica com
a sintaxe contemporânea do ponto de vista da linguística teórica.
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10 Teorias das condições de verdade: mundos possíveis e


semântica intensional

Sinopse

Os mundos possíveis kripkianos (tal como os apresentámos no capítulo 4) permitem uma


noção alternativa de uma condição de verdade: vimos que uma frase contingente é verda-
deira em alguns mundos mas não noutros. De modo que se pode tomar o conjunto de mun-
dos possíveis nos quais a frase é verdadeira como a condição de verdade dessa frase. Além
disso, os mundos possíveis podem ser usados para construir “intensões” ou significados
para expressões subfrásicas, e em particular para palavras individuais ou átomos de signi-
ficado, que são como os “sentidos” de Frege por serem independentes dos referentes pro-
priamente ditos. Por exemplo, um predicado tem extensões diferentes em mundos dife-
rentes, e a sua intensão pode ser entendida como a função que associa um qualquer mun-
do dado à extensão particular do predicado nesse mundo. Então uma gramática pode mos-
trar como estas intensões subfrásicas se combinam para fazer uma condição de verdade, e
portanto um significado, de uma frase completa da qual essas intensões são componentes.
A perspectiva resultante evita de modo elegante várias das objecções que atormen-
tam a teoria de Davidson, principalmente a 4, o problema dos termos co-extensionais que
não são sinónimos, e a 5, o problema das conectivas que não são verofuncionais. E tam-
bém ajuda a resolver o problema da substituibilidade. Mas herda as restantes dificuldades
de Davidson e incorre em mais uma ou duas.

Uma nova concepção das condições de verdade

Como vimos no capítulo anterior, a teoria das condições de verdade entende o significado
como representação, como um espelhar ou uma correspondência entre frases e estados de
coisas efectivos ou possíveis. Mas podemos tomar a noção de um estado de coisas hipotéti-
co mais seriamente do que Davidson está disposto a fazer e encarar os “estados de coi-
sas/circunstâncias/condições possíveis” como mundos possíveis kripkianos (capítulo 4).
Recorde-se que um mundo possível (além do mundo efectivo, que é o nosso mundo) é um
universo alternativo, no qual as coisas ocorrem de modo diferente do que aqui. E, porque
os mundos diferem entre si com respeito aos seus factos componentes, é claro que a ver-
dade de uma dada frase depende do mundo que estamos a considerar.
Isto permite uma nova versão da ideia de condições de verdade de uma frase. A
frase é verdade em algumas circunstâncias possíveis e não noutras. O que, no vernáculo
dos mundos possíveis, é dizer que a frase é verdadeira em alguns mundos mas não noutros.
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Quando duas frases têm as mesmas condições de verdade serão verdadeiras precisamente
nas mesmas circunstâncias, precisamente nos mesmos mundos. Quando diferem em condi-
ções de verdade, isso significa que haverá alguns mundos nos quais uma é verdadeira e a
outra falsa, de modo que não serão verdadeiras precisamente nos mesmos mundos. Como
primeira aproximação, tomemos, pois, as condições de verdade de uma frase simplesmen-
te como o conjunto de mundos nas quais essa frase é verdadeira.
Claro que para o defensor da teoria das condições de verdade esse conjunto de
mundos será também o significado da frase. Seguir-se-ia que as frases sinónimas são ver-
dadeiras precisamente nos mesmos mundos, ao passo que para quaisquer duas frases que
não sejam sinónimas haverá pelo menos um mundo no qual uma das frases é verdadeira e
a outra falsa. Esta ideia generaliza-se ao significados das expressões subfrásicas. Mas para
mostrar como isto funciona tenho de recuar por um ou dois parágrafos.
Vimos no capítulo 2 que, ao contrário de Russell, Frege (1892) rejeitou a tese J3/K3
(“Uma frase sujeito-predicado é dotada de significado (apenas) em virtude de seleccionar
uma coisa individual e de lhe atribuir uma propriedade qualquer”), postulando entidades
abstractas a que chamou “sentidos,” argumentando que um termo singular tem um senti-
do além e para lá do seu referente. E Frege defendia a composicionalidade: segundo ele, a
frase sujeito-predicado tem um sentido compósito constituído pelos sentidos individuais
das suas partes, e é dotada de significado em virtude de ter esse sentido compósito, quer
o seu sujeito tenha referente quer não. (Foi assim que Frege atacou o problema da refe-
rência aparente aos inexistentes.)
Como esboçámos até agora, a perspectiva de Frege parece uma versão da teoria
proposicional. E é; é vítima por isso das várias objecções que se levantaram contra esta
teoria no capítulo 5. Mas Rudolf Carnap (1947), Richard Montague (1960) e Jaakko Hintikka
(1961) desenvolveram uma lógica intensional, interpretando e explicando os sentidos de
Frege em termos de mundos possíveis. Eis, grosso modo, a ideia.
Diz-se que um termo singular ou um predicado tem tanto extensão (no sentido
introduzido no capítulo anterior) quanto um sentido fregiano ou “intensão”. O truque é
construir a intensão de um termo como uma função de mundos possíveis para extensões.
Assim, a intensão de um predicado é uma função de mundos para conjuntos de coisas que
existem nesses mundos e que pertencem à extensão do predicado nesses mundos. Por
exemplo, a intensão de “gordo” olha de mundo para mundo e em cada um selecciona a
classe das coisas gordas desse mundo. “Gordo” significa não apenas as coisas gordas efec-
tivas, mas seja o que for que seria gordo noutras circunstâncias possíveis. (Para pôr a ideia
em termos mais humanos, quem sabe o significado de “gordo” sabe quais das várias coisas
hipotéticas contariam como gordas, assim como sabe que coisas são efectivamente gor-
das.)
P á g i n a | 150

Os “sentidos individuais,” as intensões dos termos singulares, são funções de mun-


dos para habitantes individuais desses mundos. Isto deve parecer algo familiar, com base
no capítulo 4; um designador rígido exprime uma função constante, pois selecciona o
mesmo indivíduo em todos os mundos. Mas um designador flácido muda o seu referente de
mundo para mundo: como vimos, “o primeiro-ministro britânico na segunda metade de
2007) designa Gordon Brown no mundo efectivo, mas muitas outras pessoas (ou criaturas)
noutros mundos e ainda ninguém noutros. O sentido ou intensão de “o primeiro-ministro
britânico” olha (ou salta) de mundo para mundo e selecciona seja quem for que é presen-
temente primeiro-ministro nesse mundo. Como acontece com os predicados, quem sabe o
significado da expressão “o primeiro-ministro britânico” sabe quem seria o primeiro-
ministro sob várias situações hipotéticas, ainda que não saiba quem é agora efectivamente
o primeiro-ministro.
Funções deste género combinam-se para constituir sentidos ou intensões para fra-
ses completas. Tome-se a seguinte frase:

1) O presente primeiro-ministro britânico é gordo.

Noutro mundo possível, o sujeito de 1 denota seja quem for que é primeiro-ministro nesse
mundo, e “gordo” tem uma extensão nesse mundo que provavelmente difere da classe
efectiva de coisas gordas. Assim, composicionalmente, sabemos dizer se 1 é verdadeira
nesse mundo: será verdadeira se, e só se, o primeiro-ministro desse mundo pertence a
essa extensão local. Logo, se conhecemos a intensão de “o presente primeiro-ministro
britânico” e a intensão de “gordo,” sabemos se um dado mundo faz 1 ser verdadeira, ou
seja, sabemos como distinguir os mundos em que 1 é verdadeira; pois temos com efeito
uma função compósita de mundos para valores de verdade. Logo, sabemos que conjunto
de mundos é o conjunto de verdades de 1. (Estritamente falando, a intensão da frase é a
função e não o conjunto de verdades resultante, mas passarei a ignorar esta distinção téc-
nica daqui para a frente.) E isto é dizer que conhecemos a proposição expressa por 1, ou
seja, conhecemos o significado de 1. (Não se deixe enganar: toda esta conversa sobre
“saber” coisas não quer dizer que estamos a cair no verificacionismo. Estou a falar meta-
foricamente de como se computa uma intensão complexa dadas algumas intensões primiti-
vas simples e uma gramática de sujeito-predicado.)
Se uma proposição é entendida deste modo como um conjunto de mundos possí-
veis, então obtemos, afinal, explicações intriviais dos factos do significado. Duas frases
serão sinónimas se, e só se, são verdadeiras precisamente nos mesmos mundos. Uma frase
será ambígua se houver um mundo na qual é simultaneamente verdadeira e falsa mas sem
contradição. E a interpretação dos mundos possíveis permite uma álgebra elegante do sig-
nificado por meio da teoria de conjuntos: por exemplo, a derivabilidade entre frases é
apenas a relação de subconjunto. F2 deriva-se de F1 se, e só se, F2 é verdadeira em todos
P á g i n a | 151

os mundos nos quais F1 também o é; ou seja, o conjunto de mundos que constitui o signifi-
cado de F2 é um subconjunto do significado de F1.
Assim, a efectuação das condições de verdade em termos de mundos possíveis salva
esta versão sofisticada da teoria proposicional da objecção 3 de Harman (capítulo 5), pois
diz-nos o que é uma “proposição” em termos que podem ser trabalhados independente-
mente: uma proposição é um conjunto de mundos. (Pode-se ter reticências metafísicas
quanto à ideia de um “mundo possível inefectivo,” mas pelo menos já sabemos o que é,
supostamente, um mundo.) Esta perspectiva evita também a nossa segunda objecção às
teorias ideacionais, que afectava também a teoria proposicional, pois diz-nos o que é um
“conceito” abstracto: é uma função de mundos para extensões. (Irei já de seguida intro-
duzir uma complicação.)
Por fim, há um argumento directo a favor da versão de mundos possíveis da teoria
das condições de verdade, apresentado muito brevemente em Lewis (1970):

Para dizer o que é um significado, podemos perguntar primeiro o que faz um significado,
para depois encontrar algo que faça isso.
Um significado para uma frase é algo que determina as condições sob as quais a fra-
se é verdadeira ou falsa. Determina o valor de verdade da frase em vários estados de coisas
possíveis, em vários momentos do tempo, em vários lugares, para vários locutores, e assim
por diante.
(p. 22)

Penso que a ideia é esta: se compreendemos uma dada frase F e nos mostrarem um
mundo possível qualquer — voamos até lá e deixam-nos nesse mundo, fazendo-nos mila-
grosamente omniscientes quanto aos seus factos — então saberemos imediatamente se F é
verdadeira ou falsa. (Se conhecemos todos os factos sem excepção desse mundo e mesmo
assim não sabemos se F é verdadeira nesse mundo, então não é possível que tenhamos
compreendido F.) Assim, uma coisa que um significado faz é desembuchar um valor de ver-
dade para qualquer mundo possível dado. O mesmo é dizer que um significado é pelo
menos uma condição de verdade, no sentido de um conjunto particular de mundos. (Isto
deixa em aberto que um significado possa incluir mais do que apenas uma condição de
verdade.)

Vantagens relativamente à perspectiva de Davidson

A perspectiva dos mundos possíveis tem algumas vantagens importantes relativamente à


versão de Davidson da teoria das condições de verdade. Especificamente, evita as objec-
ções 4 e 5 que fizemos a Davidson.
P á g i n a | 152

A objecção 4 era o problema de termos coextensionais mas que não são sinónimos.
Na perspectiva dos mundos possíveis, isto não é de modo algum um problema. “Renato” e
“cordato” diferem em significado porque apesar de se aplicarem precisamente às mesmas
coisas no mundo efectivo, as suas extensões divergem noutros mundos possíveis; há inú-
meros mundos que contêm renatos que não são cordatos e vice-versa. Fim da história
(apesar disso iremos fazer a ressurreição da solução de Frege para o problema da substi-
tuibilidade).
A objecção 5 era o problema das conectivas frásicas que não são verofuncionais.
Neste caso, a perspectiva dos mundos possíveis exibe uma força única. Pois permite for-
mular condições de verdade para certas conectivas directamente em termos de mundos.
Tome-se o operador modal simples “É possível que,” como em “É possível que o presente
presidente dos EUA seja gordo.” Esta frase conta como verdadeira se, e só se, há um mun-
do no qual o presente presidente dos EUA é gordo. E se quiséssemos dizer “Necessaria-
mente, se há um presidente dos EUA, os EUA existem,” a semântica intensional considerá-
la-ia verdadeira se, e só se, em todos os mundos, se há um presidente dos EUA, os EUA
existem.
Daqui pode-se ver que a nossa fórmula original precisa de ser qualificada: nem todo
sentido ou intensão de expressões simples pode ser formulado como uma função de mun-
dos para uma extensão ou referente. Alguns são funções de intensões para outras inten-
sões; “é possível que” toma a intensão da frase à qual se aplica e transforma-a noutra
intensão. Outro exemplo subfrásico seriam os advérbios, como “devagar.” “Jane nada” é
verdadeira num mundo se, e só se, o referente de “Jane” nesse mundo está entre as coi-
sas que nadam aí, pois a extensão de “nada” é apenas a classe dos habitantes desse mun-
do que nadam. Mas e que dizer de “Jane nada devagar”? Gramaticalmente, “devagar”
modifica o predicado “nada,” transformando-o no predicado complexo “nada devagar.” E
o semanticista intensional sustenta que a semântica procede precisamente do mesmo
modo: a intensão de “nada” é uma função de intensões para intensões; selecciona a inten-
são de “nada” e transforma-a numa intensão modificada, nomeadamente a função que
olha para um mundo e selecciona a classe de coisas que nadam devagar nesse mundo.1
A teoria dos mundos possíveis tem uma maneira expedita de lidar também com fra-
ses doxásticas. Regressemos por momentos a Frege. Como solução para o problema da
substituibilidade, Frege propôs que uma frase doxástica pode mudar o seu valor de verda-

1
Montague (1960) construiu uma estrutura com intensões de ordem cada vez mais superior
deste género que correspondem às partes cada vez mais abstractas do discurso. De facto, para
fazer pirraça a Quine, Montague atribuiu explicitamente intensões individuais muito rarefeitas a
“sake,” “behalf” e “dint.” Como mencionei no capítulo 1, deste modo Montague visava também
vingar-se em prol da teoria referencial. (Mas é na melhor das hipóteses uma vingança aparente: não
se considera que as palavras denotam as suas intensões como se fossem nomes próprios.)
P á g i n a | 153

de em resultado da substituição de termos co-referenciais porque, apesar de os dois ter-


mos terem o mesmo referente, podem ter sentidos diferentes, e assim um sentido compó-
sito pode resultar dessa substituição. (E a crença, que é um estado cognitivo, tem um
“pensamento” ou sentido compósito por objecto, e não um referente.) Como sempre ocor-
re com versões inexplicadas da teoria proposicional, isto parece correcto — mas não expli-
ca na verdade coisa alguma enquanto o “sentido” for meramente dado como garantido.
Mas o defensor da teoria dos mundos possíveis pode dar mais conteúdo à explicação: ape-
sar de os dois termos serem co-referenciais no mundo efectivo, divergem noutros mundos,
e assim as suas intensões diferem. Logo, as intensões compósitas de frases que contenham
tais termos e que noutros aspectos são semelhantes irão também diferir. Se a crença é
uma relação entre o crente e uma proposição — isto é, a intensão de uma frase — então é
claro que o crente pode crer numa intensão sem crer na outra.
Neste ponto, precisamos de um ajuste. Como salientei anteriormente, esta versão
da teoria dos mundos possíveis considera que duas frases são sinónimas quando, e só
quando, as duas são verdadeiras precisamente nos mesmos mundos. Mas o que dizer das
verdades necessárias, que se verificam em todos os mundos? Seguir-se-ia que todas essas
verdades são sinónimas entre si; por exemplo, “Ou os porcos têm asas ou não” e “Se há
ratos comestíveis, então alguns ratos são comestíveis” quereriam dizer exactamente o
mesmo, o que obviamente não é verdade. Além disso, quaisquer duas frases necessaria-
mente equivalentes seriam consideradas sinónimas: dir-se-ia que “A neve é branca” signi-
fica exactamente o mesmo que “Ou a neve é branca ou os porcos têm asas e os porcos são
mamíferos e nenhuns mamíferos têm asas”; e considerar-se-ia automaticamente que quem
acreditasse na primeira acreditaria na segunda. Algo tem de ceder.
A origem do problema é, ao que parece, que as intensões complexas podem ser
necessariamente co-extensionais mesmo que sejam constituídas por conceitos muito dife-
rentes. A cura é então, como Carnap (1947) viu, exigir que, para haver sinonímia, as frases
não tenham apenas a mesma intensão, mas que a tenham constituída do mesmo modo (ou
aproximadamente do mesmo modo) a partir das mesmas intensões atómicas. Era a isto que
Carnap chamava isomorfismo intensional, que elimina todos os casos problemáticos ante-
riores. Por exemplo, “Ou os porcos têm asas ou não” e “Se há ratos comestíveis, então
alguns ratos são comestíveis” são compostos de intensões inteiramente diferentes (as
intensões de “porco” e “asa,” no primeiro caso, e as de “rato” e “comestível” ou
“comer,” no segundo).

Objecções restantes

A teoria dos mundos possíveis herda várias das objecções que se levantam contra a versão
de Davidson: 1 (frases que não são declarativas e que não afirmam factos), 2 (testabilida-
de) e 6 (tomar a verdade como garantida); um defensor da teoria intensional daria em
P á g i n a | 154

grande parte as mesmas respostas que demos em nome de Davidson. A objecção 3 (deícti-
cos) surge de modo diferente porque a abordagem dos mundos possíveis não envolve frases
V; mas surge mesmo assim, pois não se deixou ainda espaço para os deícticos no aparato
intensional. A objecção 3 será o tema principal do próximo capítulo.
A perspectiva dos mundos possíveis herda também as primeiras duas objecções que
levantámos à teoria proposicional no capítulo 5: postula entidades esquisitas e alheias.
Como salientei no capítulo 4, uma coisa é tomar os “mundos possíveis” como uma metáfo-
ra ou heurística para explicar um modo de ver as coisas, como fiz ao explicar a perspecti-
va de Kripke dos nomes próprios. Outra coisa é apelar directamente a mundos possíveis na
teorização séria, como fazem os semanticistas intensionais. Em que sentido há realmente
mundos alternativos que não existem realmente? Mas isto é um tema imenso e não posso
abordá-lo aqui.2
A perspectiva dos mundos possíveis está também sujeita à objecção 4 contra a teo-
ria proposicional (negligencia a “característica dinâmica” do significado). Então, respon-
demos apenas que ainda que as proposições não constituam uma ajuda na explicação do
comportamento humano, este não é a coisa primária que precisa de ser explicada; ao
invés, são os factos do significado que precisam de explicação. Mas a objecção foi apro-
fundada contra as duas versões da teoria das condições de verdade.

OBJECÇÃO 7

Subsiste um problema da substituibilidade. Pois parece haver contextos nos quais termos
sinónimos (e não apenas co-extensionais) não podem ser substituídos entre si sem mudan-
ça possível de valor de verdade. “Oftamologista” e “médico dos olhos” são sinónimos (ou
podemos supor que são, por conveniência). Mas se a Maria não o souber, “A Maria acredita
que todos os médicos dos olhos tratam dos olhos” poderá ser verdadeira apesar de “A
Maria acredita que todos os oftalmologistas tratam dos olhos” ser falsa; similarmente, “O
Hermínio foi a um oftalmologista porque um oftalmologista é um médico dos olhos” é ver-
dadeira, ao passo que “O Hermínio foi a um oftalmologista porque um médico dos olhos é
um médico dos olhos” é falsa.

OBJECÇÃO 8

Alguns davidsonianos (por exemplo, Lycan 1984) e alguns defensores da teoria intensional
consideram que o tipo de sintaxe semanticamente carregada que descrevi é um programa
de computador para computar significados grandes a partir de significados menores, pro-
grama que num certo sentido corre nos cérebros dos locutores e dos ouvintes. Mas esta

2
Uma vez mais, veja-se Lewis (1986) e Lycan (1994).
P á g i n a | 155

ideia é problemática. Eis uma preocupação mais específica quanto à “característica dinâ-
mica,” salientada por Michael Dummett (1975) e Hilary Putnam (1978). Os escritos dos
próprios Dummett e Putnam são densos e algo obscuros, mas eis uma maneira simples de
formular uma das suas preocupações: o significado de uma frase é o que se sabe quando se
sabe o que uma frase significa. Mas saber o que uma frase significa é apenas compreeder
essa frase. Compreender é um estado psicológico, inerente a um organismo humano de
carne e osso e que afecta o seu comportamento. Ora, se o que uma frase significa é ape-
nas a sua condição de verdade, como pode o conhecimento de uma condição de verdade
afectar per se o comportamento de alguém quando (como se vê facilmente nos exemplos
da Terra Gémea) as condições de verdade são muitas vezes propriedades “latas” de frases,
no sentido em que não “’tão na cabeça,” sendo o conhecimento das condições de verdade
uma propriedade claramente lata das pessoas? A condição de verdade de “Os cães bebem
água,” aqui, difere da de “Os cães bebem água” na Terra Gémea, mas a diferença é irre-
levante para o comportamento e não pode afectá-lo. Mas a compreensão (= conhecimento
do significado) tem de afectar e afecta o comportamento. Logo, a compreensão não é, ou
não é apenas, conhecimento da condição de verdade, e portanto o significado não é, ou
não é apenas, a condição de verdade.

PRIMEIRA RESPOSTA
Formulado deste modo, o argumento pressupõe que a “compreensão” em si tem de ser um
conceito “restrito” ou “na cabeça.” Isto, no mínimo, não é óbvio. (Deixo-lhe o exercício
de construir um contra-exemplo com a Terra Gémea.) Darmo-nos conta de que o argumen-
to precisa de um conceito restrito de compreensão deveria também fazer-nos reconsiderar
o simples equacionamento do “conhecimento do significado” com a compreensão e vice-
versa, por mais que tal equacionamento pareça à primeira vista um truísmo.

SEGUNDA RESPOSTA
Além disso, o argumento presume que os conceitos latos não podem per se figurar na etio-
logia do comportamento. Como a bibliografia da “causalidade intensional” de há alguns
anos torna claro,3 pode-se fazer “figurar” de inúmeras maneiras. Não há dúvida que o
comportamento depende contrafactualmente de estados latos das pessoas: se eu tivesse
querido água (H2O), teria ido à cozinha. E penso que esta é a noção etiológica mais forte
que o senso comum garante. Se alguém pensa que a compreensão afecta o comportamento
numa acepção mais forte de “afectar” que não apenas o comportamento depender contra-
factualmente da compreensão, teríamos de ouvir uma defesa qualquer.
O defensor da teoria do uso ainda não deu por encerrada a discussão da perspectiva
das condições de verdade. Começaremos o capítulo 12 considerando mais uma objecção.

3
Veja-se, por exemplo, Heil e Mele (1993).
P á g i n a | 156

Sumário

A condição de verdade de uma frase pode ser tomada como o conjunto de mundos pos-
síveis nas quais a frase é verdadeira.
Mais em geral, os mundos possíveis podem ser usados para construir “intensões” para
expressões subfrásicas, que se combinarão composicionalmente para determinar a con-
dição de verdade da frase que as contém.
A perspectiva resultante tanto evita o problema de termos co-extensionais que não são
sinónimos como o problema de conectivas que não são verofuncionais.
A teoria dos mundos possíveis aprofunda também a solução de Frege para o problema
da substituibilidade.
Mas a teoria herda várias das dificuldades originais de Davidson e incorre em mais uma
ou duas.

Questões

1. Avalie o argumento directo de Lewis a favor da versão dos mundos possíveis da teoria
das condições de verdade.
2. Discuta mais a teoria dos mundos possíveis, seja a favor, contra ou ambos. (Se não
conhecer já alguma semântica de mundos possíveis, poderá querer ler pelo menos
alguma coisa como complemento; recomendo Lewis (1970).)
3. Ajuíze a objecção 7 ou a 8.

Leitura complementar

A introdução mais simples e natural que conheço à versão dos mundos possíveis da
semântica das condições de verdade é Lewis (1970). Depois, deite-se a Cresswell (1973)
(apesar de difícil, exigindo conhecimento de lógica formal e teoria de conjuntos; mas
tudo veio de algo muito mais difícil, coligido postumamente em Montague (1974)).
Dois bons manuais introdutórios à gramática de Montague são Chierchia e McConnell-
Ginet (1970) e Weisler (1991).
P á g i n a | 158

11 Pragmática semântica

Sinopse

A pragmática linguística é o estudo dos usos de expressões linguísticas em contextos


sociais. Mas há duas maneiras crucialmente diferentes de uma expressão depender do con-
texto. Primeiro, devido à presença de elementos deícticos como pronomes pessoais e fle-
xões, o conteúdo proposicional de uma frase varia de contexto para contexto (recorde-se
que “Estou doente” diz coisas diferentes em função de quando é proferida e por quem).
Segundo, mesmo depois de se fixar o conteúdo proposicional de uma frase, há vários
outros aspectos importantes do seu uso que mesmo assim irão variar com o contexto. A
pragmática semântica estuda o primeiro fenómeno, a determinação do conteúdo proposi-
cional pelo contexto; a pragmática pragmática estuda o segundo.*
Davidson lida com o problema dos elementos deícticos complicando a forma comum
das suas frases V. O defensor da teoria dos mundos possíveis relativiza a verdade a um con-
junto de factores contextuais que afectam o conteúdo, como o orador e o momento do
tempo. Mas ambas as abordagens precisam de se libertar da necessidade de fazer uma
listagem de um conjunto fixo de características contextuais.
A pragmática semântica tem uma gama complicada de dados que tem de enfrentar.
Tem não apenas de cartografar os usos complicados de pronomes, flexão, etc., como tem
também de resolver o problema geral da desambiguação: dado que quase toda a frase por-
tuguesa tem mais de um significado, como identifica um ouvinte o significado correcto ao
ouvir proferir a frase?
Charles Morris (1938) dividiu o estudo linguístico em sintaxe, semântica e pragmá-
tica. Em traços muito gerais, a distinção era supostamente esta: a sintaxe é o estudo da
gramática, o estudo das sequências de palavras que constituem frases bem formadas de
uma dada linguagem e porquê. A semântica é o estudo do significado, visto principalmente
(apesar de, como sabemos, isso não ser incontroverso) como uma questão de relações que
as expressões linguísticas têm com o mundo e em virtude das quais são dotadas de signifi-
cado. Em contraste, a pragmática estuda os usos de expressões linguísticas em várias prá-
ticas sociais, incluindo, claro, a conversa e comunicação quotidianas, mas não se limitando

*
Infelizmente, em português o substantivo pragmática não se distingue do adjectivo prag-
mática, pelo que ocorre uma aparência de repetição na expressão pragmática pragmática, que em
inglês é pragmatic pragmatics. A expressão deve ser lida tendo em mente que a primeira ocorrência
é o substantivo e a segunda o adjectivo, tal como em linguística pragmática. N. do T.
P á g i n a | 159

a elas. Neste uso, a perspectiva de Wittgenstein (veja-se o capítulo 6) pode ser formulada
dizendo que ou a “semântica” é uma ilusão ou se reduz à pragmática.

Pragmática semântica e pragmática pragmática

A palavra que mais ouvimos no estudo e prática da pragmática é “contexto,” querendo


dizer contexto de elocução. A pragmática é especificamente sobre o funcionamento da
linguagem em contexto. Isto marca um contraste significativo, pois a sintaxe e a semânti-
ca têm geralmente aspirado a ser descontextuais. A sintaxe é sobre se uma frase é grama-
tical ou se uma sequência de palavras constitui uma frase gramatical, sem mais. A semân-
tica sempre se centrou no significado frásico, o significado de um tipo de frase, abstraindo
de qualquer uso particular que se lhe possa dar. Mas há sempre pestes como Wittgenstein,
Strawson e J. L. Austin, insistindo que a própria ideia de “tipo de frase” é uma abstracção
violenta da realidade linguística. Quando uma frase é proferida, é invariavelmente profe-
rida num contexto particular por um locutor particular e para um propósito particular. E
isto é algo que não se pode ignorar, por razões robustas que tentarei clarificar nos restan-
tes capítulos deste livro.
Afirmei que a distinção entre semântica e pragmática era supostamente que a pri-
meira lida com os significados acontextuais de tipos de frases, ao passo que a última res-
ponde aos usos sociais das expressões linguísticas em contexto. Mas há duas razões pelas
quais esta caracterização é demasiado simples. A primeira é que há um sentido importante
em que a maior parte dos tipos de frases não têm pura e simplesmente significados acon-
textuais. A segunda é que, como veremos, os factores de uso social interferem de certos
modos especiais no que se não fosse por isso consideraríamos significado proposicional.
Eis o sentido em que a maior parte dos tipos de frase não têm significados acontex-
tuais. Recorde-se o fenómeno da deixis, introduzido na objecção 3 contra a teoria das
condições de verdade, e considere-se uma frase fortemente deíctica. Suponha-se que você
e eu entramos numa sala de aulas vazia e encontramos as seguintes palavras escritas no
quadro:

1) Estou doente e hoje não darei aula.

A menos que descubramos quem escreveu estas palavras e quando e para quem, não
sabemos exactamente o que se disse (ainda que saibamos algo sobre o que se disse); não
sabemos que proposição se exprimiu. Em termos da teoria dos mundos possíveis, não
conhecemos a intensão da frase. De facto, se a frase tivesse sido rabiscada no quadro
meramente como um exemplo linguístico, sem lhe atribuir referentes nem mesmo tacita-
mente aos seus elementos deícticos, não exprimiria qualquer proposição e não teria
sequer uma intensão.
P á g i n a | 160

A moral da história comum à objecção original 3 e a este último argumento é que a


condição de verdade completa de uma frase depende de factores contextuais. E, ainda
que não se aceite a teoria semântica das condições de verdade, é visível que o significado
de uma frase, no sentido do seu conteúdo proposicional, depende do contexto precisa-
mente do mesmo modo.
Cresswell (1973) distinguiu entre dois tipos de pragmática: a pragmática semântica
e a pragmática pragmática.1 A pragmática semântica lida com aqueles elementos do signi-
ficado no sentido de conteúdo proposicional que simplesmente dependem mesmo do con-
texto. É a disciplina que nos diz como o conteúdo proposicional é determinado por carac-
terísticas contextuais. Mas antes de dizermos mais sobre isso e de explicar a noção con-
trastante, enfrentemos a objecção 3.

O problema da deixis

Regressemos ao problema de Davidson: ele precisa de encontrar um modo de formular


frases V que acomodem elementos deícticos ou indexicais sem que tenham condições de
verdade erradas. Mencionei a proposta do próprio Davidson para o fazer. Outras tentativas
notáveis foram feitas por Weinstein (1974) e especialmente Burge (1974), mas aqui apre-
sentarei uma ideia simples sugerida por Harman (1972).2
Vimos que uma desvantagem da proposta de Davidson era limitar os factores con-
textuais potencialmente relevantes ao locutor e ao momento do tempo. Há muitas outras.
Um exemplo óbvio são os objectos indicados pelo gesto indicador de quem fala, como
quando alguém diz “Este é mais caro do que aquele,” apontando sucessivamente para dois
objectos diferentes em exibição. Tomemos um exemplo mais exótico: hemisfério.3 “É
outono” é verdadeira no momento em que escrevo na Carolina do Norte, EUA, mas não
seria verdadeira caso fosse proferida simultaneamente em Sydney ou em Buenos Aires. (E
o hemisfério relevante não é necessariamente determinado pela localização de quem fala;
depende também da audiência e dos propósitos conversacionais. Se estou a conversar com
um australiano sobre questões australianas — mesmo que estejamos os dois na Carolina do
Norte e em Novembro — posso dizer “Dado que é primavera, os estudantes estão agora a
começar a pensar nos exames finais.”) Por isso, precisamos de uma abordagem das frases
deícticas visadas que não pressuponha um número fixo de variáveis contextuais.

1
As distinções aqui desenvolvidas são razoavelmente tradicionais. Mas recentemente tem
havido alguma disputa sobre a melhor maneira ou maneiras de fazer em particular a distinção entre
semântica e pragmática. Veja-se, por exemplo, Bach (2002) e Bezuidenhout (2002).
2
Esta ideia é desenvolvida no capítulo 3 de Lycan (1984).
3
Foi Peter van Inwagen que uma vez me chamou a atenção para isto.
P á g i n a | 161

Façamos tudo de um só golpe. Podemos relativizar “verdadeira” a contextos —


dado já sabermos que a verdade de um tipo de frase varia realmente com o contexto — e
introduzir uma função, α, que irá procurar elementos deícticos que ocorrem num contexto
e dizer que contribuição esse elemento dá nesse contexto para o conteúdo proposicional.4
Por exemplo, se (como geralmente se pensa) o pronome da primeira pessoa “eu” denota
sempre quem fala, α procurará uma ocorrência de “eu” numa elocução particular e asso-
ciará essa expressão à pessoa que a proferiu. Abreviadamente, α(“eu”,C) — que se lê “o
que α atribui a “eu” no contexto C” — é o locutor em C. Do mesmo modo, se “agora”
denota aproximadamente o momento do tempo em que uma elocução é proferida, então
α(“agora”,C) é esse momento. E α(“amanhã”,C) seria o dia imediatamente a seguir ao
acto de elocução em C.
Depois podemos escrever os lados direitos das frases V de Davidson em termos do
que α atribui no contexto C a cada elemento deíctico na frase visada. Assim:

“Estou doente” é verdadeira em C se, e só se, α(“eu”,C) está doente em α(“agora”,C).*

“Estou doente e hoje não darei aula” é verdadeira em C se, e só se, α(“eu”,C) está doente
durante α(presente,C)5 e α(“eu”,C) não dá aula durante α(futuro,C) em α(“hoje”,C).

“Ela nunca foi a um bar de karaoke, mas tu e ela irão a um amanhã de manhã” é verdadeira
em C se, e só se, α(“ela”, C) não vai a um bar de karaoke durante α(perfeito, C) mas
α(“tu”, C) e α(“ela”, C) vão a um bar de karaoke durante a manhã de α(“amanhã”, C).

Problema resolvido. Isto é, o problema técnico de Davidson de formular frases V; sobre α


há outras questões filosóficas que se podem levantar, e que levantaremos.

4
Isto pressupõe que os elementos deícticos estão de algum modo marcados como tal na
forma lógica.
*
Note-se que em português se omite tipicamente o pronome “eu” e o advérbio “agora” em
locuções deste género, ao contrário do que acontece em inglês, em que é comum escrever ou dizer
I am sick now. A elisão que ocorre em português torna bastante menos plausível esta teoria, pois a
função alfa nada irá encontrar explicitamente na elocução que possa transformar adequadamente,
e não parece ter recursos para que alfa possa encontrar pronomes e advérbios elididos. O problema
parece intratável dado que em português é o próprio contexto que determina a forma lógica da
elocução, sem contudo introduzir qualquer marcador linguístico que a função alfa possa transfor-
mar. N. do T.
5
Este tratamento da flexão é uma simplificação grosseira, por uma questão de conveniên-
cia; para um tratamento da flexão, veja-se Lycan (1984: 55-62).
P á g i n a | 162

Os lógicos intensionais lidaram com a deixis relativizando a verdade a um “índex,”


que era um conjunto fixo de variáveis contextuais. Montague (1968) e Scott (1970) consi-
deraram que um índex é um conjunto de oito elementos canónicos que consistem num
mundo possível m, um momento do tempo t, um lugar l, um orador o, uma audiência a,
uma sequência de objectos indicados ou apontados i, um “segmento de discurso” d, e uma
“sequência de atribuições de variáveis livres” s (não interessa o que são estes dois últi-
mos). Neste sistema, uma atribuição de condição de verdade teria a seguinte aparência:

“Estou doente” é verdadeira em m,t,l,o,a,i,d,s se, e só se, em m, o está doente em t.

Mas isto tem as mesmas desvantagens do método de Davidson, apesar de não tão grave-
mente, dado restringir arbitrariamente o número de características contextuais que se
podem citar.6 Não temos maneira de prever que outras características do género poderão
tornar-se relevantes para a verdade de uma elocução.
Por exemplo, já introduzimos uma variável inesperada, hemisfério (dividindo o
meridional do setentrional). Há muitas mais, aparentemente sem qualquer limite. A ver-
dade de “São 17:00 horas” depende do fuso horário, que é um constructo inteiramente
convencional. (Como Wittgenstein salientou, os fusos horários pertencem ao nosso plane-
ta; “São 17:00 horas no Sol” não tem valor de verdade.) E algumas locuções pressupõem
um tipo de ponto de vista, muitas vezes diferente do lugar da própria elocução, e que
pode mudar até mesmo no interior de uma só frase (Fillmore 1975; Taylor 1988). Tome-se

2a) O Pedrado foi à festa do Tio Chico.


2b) O Pedrado veio à festa do Tio Chico.
2c) Vou sair para limpar o terreno de pastagem;… — Tu vens também.
(Robert Frost, The Pasture)

2a e 2b podem ter a mesma condição de verdade, mas 2b só pode ser adequadamente pro-
ferida por alguém cujo ponto de vista seja o local da própria festa. (Note-se também que
o que conta é o ponto de vista aquando da festa sob discussão, e não aquando da elocu-
ção; esta é mais uma variável de contexto, a que se chama habitualmente momento de
referência.) Em 2c o ponto de vista muda fluidamente do lugar de elocução para o terreno
de pastagem ou pelo menos para algures no caminho em que o locutor precede o seu
interlocutor.
Ao chegar a Princeton para dar uma palestra, encontro uma antiga colega que da
última vez que a vira dava aulas em Wellesley. Pergunto-lhe “Agora estás aqui?,” não para
saber se ela está fisicamente localizada em Princeton (dah) mas se ela trabalha agora no

6
E há também uma objecção mais séria, salientada por Burge (1974).
P á g i n a | 163

departamento de filosofia de Princeton (Nunberg 1993: 28); assim, o valor de verdade


pode variar com instituição de emprego. Ou tome-se

3) Amanhã é sempre a maior noite de festa do ano

proferida sexta-feira antes do começo das aulas (Nunberg 1993: 29; Nunberg refere ter
tirado o exemplo de Dick Oehrle). “Amanhã” em 3 não pode referir, como seria normal, o
dia ou noite seguintes à data da elocução; refere-se a um tipo de data no calendário aca-
démico dos estudantes, nomeadamente o sábado anual antes do começo das aulas.
Eu poderia continuar sem fim. A moral da história é que não podemos jamais ter a
certeza de ter antecipado todas as variáveis de contexto que podem afectar os valores de
verdade. Por isso eu aconselharia os defensores da teoria intensional a deitar mão, em vez
disso, da poderosa função de atribuição α de Harman.

O trabalho da pragmática semântica

O truque é descobrir como α é computada; isto é, que regras usamos em contextos parti-
culares para preencher os pedaços que faltam do conteúdo proposicional que correspon-
dem a elementos deícticos. Presumivelmente, cada um desses elementos da linguagem
rege-se por uma regra apropriada.
Por exemplo, podemos olhar para o pronome “eu” e sugerir que, num dado contex-
to, “eu” denota sempre quem fala. Passando para “agora,” parece razoável dizer que
refere sempre no contexto o momento da elocução. De facto estas primeiras tentativas
são demasiado simplistas. “Eu” pode ser usado como dispositivo de referência condiciona-
da a uma posição ou papel, como quando um presidiário diz “É-me tradicionalmente per-
mitido encomendar seja o que for que eu quiser para a minha última refeição” (Nunberg
1993: 20). Por vezes, “eu” é usado na formulação de uma generalização, como em “Se sou
um departamento de música, sou um buraco de cobras.” A referência temporal “agora”
pode também ser condicionada, como quando estamos a ver uma representação da evolu-
ção da vida numa linha do tempo e, apontando, digo “Agora surgem os dinossáurios,” ou
quando você deixa uma mensagem no seu atendedor de chamadas que diz “Não estou ago-
ra em casa.” “Agora” é por vezes espacial em vez de ser de algum modo temporal — “Ago-
ra a Estrada de Hillsborough atravessa a Estrada do Aeroporto e torna-se o Caminho Ums-
tead” — e por vezes nem sequer é espácio-temporal — “Agora vem o primeiro número pri-
mo cujo quadrado é maior que mil.” Mas uma tarefa da pragmática semântica é aprimorar
tais regras até serem adequadas aos dados.
O lógico intensional David Kaplan (1978) considera que essas regras são funções. Tal
como uma intensão é uma função de mundos para extensões, uma regra pragmático-
semântica é uma função de contextos para intensões. A nível da frase, a intensão é uma
P á g i n a | 164

função de mundos para valores de verdade. Kaplan chama a isso o “conteúdo” da frase e,
como anteriormente, corresponde à noção tradicional de uma proposição. A regra compó-
sita pragmático-semântica é uma função de contextos para conteúdos; a isso chama
Kaplan “carácter.” O conteúdo é o que fica indeterminado pelas frases deícticas nos nos-
sos exemplos; o carácter é o que determina o conteúdo, dadas todas as características
contextuais relevantes de um contexto de elocução. Assim, quando vemos a referida frase
no quadro, o carácter diz-nos para procurar o locutor (α(“eu”,C)), o auditório e a data da
elocução; uma vez descobertos estes factores, saberemos o que tem de ocorrer num mun-
do possível para que a frase seja verdadeira nesse mundo.
Afirmei que, quando encontramos sem preparação a frase no quadro, não sabemos
(completamente) o que diz. E eu tinha razão. Mas há outro sentido perfeitamente bom em
que compreendemos a própria frase, e praticamente qualquer pessoa que fale português
compreende “Estou doente” completamente fora de contexto. Kaplan argumenta que se
deve reservar a palavra “significado” para o carácter e não para o conteúdo, com base na
ideia inteiramente razoável de que qualquer pessoa comum que fale português conhece
sem dúvida os significados de frases deícticas quotidianas mesmo quando não conhece os
parâmetros contextuais que fixariam os seus conteúdos. Contudo, esta acepção de “con-
teúdo” é também algo a que faz pleno sentido chamar “significado.” Dificilmente isto é
uma questão de acesa disputa.
Computar α e/ou caracterizar o carácter não é a única tarefa da pragmática
semântica. Outra tarefa, terrivelmente controversa, é a desambiguação. Muitas frases,
como “As visitas podem ser aborrecidas,” “O Eduardo deitou-se a dormir” e (o exemplo é
de Paul Ziff) “Ele passou ao largo do rato,” são obviamente ambíguas.* E, na verdade, qua-
se toda a frase que encontramos na vida é tecnicamente ambígua, no sentido de ter um ou
mais significados possíveis, ainda que rebuscados, além do significado que normalmente é
visado por quem fala. Contudo, raramente paramos para pensar, e nem nos damos conta
de que estamos a escolher de entre uma gama de significados possíveis (e não apenas a
preencher lacunas num conteúdo proposicional que de outro modo seria unívoco). Como
fazemos isto é uma questão difícil, muito mais difícil do que a de saber como computamos
α. Demasiado difícil para este livro, decerto, ainda que se façam algumas alusões no capí-
tulo 13.
Isto é a pragmática semântica. Em contraste, a pragmática pragmática toma o con-
teúdo proposicional como garantido e faz perguntas mais latas sobre o uso das frases em

*
Os exemplos originais são Visiting philosophers can be boring (visitar filósofos pode ser
aborrecido, os filósofos visitantes podem ser aborrecidos), Ted is lying about meditating (Ted está a
mentir sobre a meditação, Ted está deitado meditando), The mouse tore up the street (o rato pre-
cipitou-se pela rua fora, o espinhaço do rato ao cimo da rua). N. do T.
P á g i n a | 165

contextos. Uma mesma frase com um conteúdo proposicional já fixado pode mesmo assim
ser usada para fazer coisas curiosamente diferentes em contextos diferentes. Como vere-
mos nos capítulos restantes, a produção e compreensão da linguagem envolve muito mais
do que apenas a apreensão do significado proposicional, por mais que este último seja
difícil de explicar.

Sumário

A pragmática linguística é o estudo dos usos das expressões linguísticas em contextos


sociais.
A pragmática semântica estuda, em particular, a determinação do conteúdo proposicio-
nal por meio do contexto.
Davidson lida com o problema dos elementos deícticos complicando a forma canónica
das suas frases V.
O defensor da teoria dos mundos possíveis lida com isso relativizando a verdade a um
conjunto de factores contextuais que afectam o conteúdo, como o locutor e o momento
da elocução.
Mas ambas as abordagens se podem livrar de ter de fazer a listagem de um conjunto
fixo de características contextuais, se nos servirmos da função de atribuição α.
Além de acompanhar os usos complicados de expressões deícticas particulares, a prag-
mática semântica encarrega-se de resolver o terrível problema da desambiguação.

Questões

1. Haverá uma maneira melhor de Davidson ou a teoria dos mundos possíveis resolver o
problema da deixis que não introduzindo a função de atribuição α de Harman? Em parti-
cular, será que α cria por si novas dificuldades?
2. Tome uma expressão como “eu” ou “agora” (ou “amanhã” ou “recentemente” ou “oci-
dente”…) e tente formular a regra exacta que lhe permite atribuir conteúdo proposicio-
nal à frase na qual ocorre.
3. Dê pelo menos os primeiros passos modestos no problema da desambiguação. (Não este-
ja à espera de resultados impressionantes.)

Leitura complementar

Veja-se Szabó (2005) para um trabalho recente sobre a distinção entre semântica e
pragmática.
Para uma discussão dos indexicais um pouco menos técnica do que Kaplan (1978) veja-
se Kaplan (1989). Recanati (1993) adopta a abordagem da referência directa aos indexi-
cais.
Yourgrau (1990) é uma boa antologia sobre demonstrativos.
P á g i n a | 166

Taylor (1988) e Nunberg (1993) contêm excelentes exemplos de construções indexicais


inusuais.
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12 Actos de fala e força ilocucionária

Sinopse

J. L. Austin chamou-nos a atenção para o que chamava uma elocução “performativa”* de


uma frase declarativa, com a qual se executa um acto social convencional mas não se
afirma ou descreve seja o que for — por exemplo, “Desculpe” ou (num jogo de apostas)
“Dobro.” Aos tipos de actos que podem ser executados desta maneira chama-se actos de
fala. Cada tipo de acto de fala rege-se por regras de dois géneros: regras constitutivas, a
que se tem de obedecer para que o acto seja de todo em todo efectivado, e regras regula-
tivas, cuja violação torna o acto apenas defectivo ou, na expressão de Austin, infeliz. Há
muitas maneiras surpreendentemente diversificadas de um dado acto de fala ser infeliz.
Mas Austin acabou por ver que não há qualquer distinção de princípio entre as elo-
cuções performativas e as elocuções declarativas comuns. Ao invés, toda a elocução tem
um aspecto performativo ou força ilocutória, que determina que tipo de acto de fala foi
executado, e praticamente toda a elocução tem também conteúdo descritivo ou proposi-
cional. Além disso, muitas elocuções têm características que incorporam os efeitos distin-
tivos que têm nos estados mentais dos ouvintes; chama-se perlocucionárias a estas carac-
terísticas.
Jonathan Cohen formulou um problema danado quanto às condições de verdade das
frases que contêm prefácios performativos explícitos que especificam o tipo de acto de
fala a executar; por exemplo, “Admito que tive várias conversas privadas com o réu.”
Nenhuma solução satisfatória se encontrou para este problema.
William Alston e Stephan Baker ofereceram um tipo distintivo de teoria semântica
do uso, baseada na noção ilocutória de acto de fala.

Performativas

Considere-se as seguintes frases:

1) Prometo pagar-te as fraldas.


2) Declaro-vos homem e mulher.
3) Baptizo este navio Ludwig Wittgenstein.
4) Peço desculpa.

*
Do inglês performance, que significa, em geral, execução de uma acção. Uma tradução
possível seria assim falar das elocuções executivas. Contudo, o termo performativas tornou-se
canónico na linguística portuguesa. N. do T.
P á g i n a | 168

5) Dobro. [Num jogo de apostas.]


6) Mais cinco. [Num jogo de póquer.]
7) Contra. [Um voto numa moção formal.]

À excepção talvez das últimas duas, estas são frases declarativas, por isso (em par-
ticular) o verificacionista tem de lhes dar resposta; quais são as suas condições de verifi-
cação respectivas? Talvez a questão seja demasiado difícil, ou injusta, face à objecção
duhemiana de Quine. Mas quais são as suas condições de verdade?
Poderíamos aplicar-lhes as frases V. Por exemplo,

“Prometo pagar-te as fraldas” é verdadeira se, e só se, prometo pagar-te as fraldas.

A sério? (Não, nem por isso.)

“Dobro” é verdadeira se, e só se, dobro.

Possivelmente; talvez “Dobro,” dita por mim na ocasião apropriada, seja verdadeira se, e
só se, dobro nessa ocasião. Mas parece que estamos a deixar algo de fora, algo mais
importante do que as condições de verdade ligeiramente degeneradas da elocução. Como
J. L. Austin (1961, 1962) poderia dizer, quando digo “Dobro,” não estou a descrever-me ao
dobrar; estou efectivamente a dobrar, e nada mais. (Dobrar é algo que podemos fazer
numa aposta. É parte de um jogo de linguagem real, no sentido literal.) E ninguém poderia
responder de modo aceitável “Isso é falso, tu não dobras.” Se alguém disser então de mim
“Ele dobrou,” esse é um relato verdadeiro do que fiz. Mas quando o digo originalmente,
simplesmente como uma parte da minha aposta, a minha elocução não parece passível de
ser verdadeira ou falsa.

“Contra” é verdadeira se, e só se, contra.

Esqueça; esta “frase V” nem sequer é gramatical.


Temos aqui a base para mais uma objecção ao verificacionismo e à teoria das con-
dições de verdade, uma mistura de uma objecção wittgensteiniana com a nossa primeira
objecção à teoria das condições de verdade. Um wittgensteiniano poderia olhar para 4, 5
e 7, especialmente, e assimilá-las à linguagem primitiva do pedreiro (“Laje!”), e relem-
brar-nos uma vez mais dos muitos dispositivos, como “Olá” e “Chiça,” que têm usos sociais
convencionais e que são perfeitamente dotados de significado sem terem coisa alguma a
ver com a verificação ou com a própria verdade. Mesmo quando nos voltamos para as fra-
ses 1-3 e 6, que são mais estruturadas, parece que apesar de em termos de modo verbal
P á g i n a | 169

serem declarativas, nenhuma tem por fim especificar um facto ou revelar uma verdade.
Entregam-se a fins diferentes; por isso são aparentemente “factualmente defectivas.”
No seu artigo original, Austin (1961) chamou “performativas” a frases como 1-7,
para as distinguir de “constativas” (sendo estas apenas os géneros habituais de frases des-
critivas, verdadeiras ou falsas, que especificam factos, de que os filósofos gostam). Ao
proferir uma performativa não se está, pelo menos ostensivamente, a descrever algo ou a
especificar um facto, mas a executar um acto social. Quando profiro 1, estou efectiva-
mente a fazer uma promessa. Quando profiro 4 estou apenas a desculpar-me. Quando pro-
firo 6 estou a aumentar a minha aposta, contraindo um compromisso financeiro. Quando
profiro 3, no contexto apropriado com uma garrafa do tipo apropriado de champanhe,
estou efectivamente a baptizar. Austin chamou “actos de fala” a tais actos sociais, dando
assim origem ao ramo da linguística e da filosofia da linguagem a que se passou desde
então a chamar “teoria dos actos de fala.”
Seja qual for o resultado da teoria do significado que se tenha, temos de estudar o
fenómeno de “fazer coisas com palavras” (para usar a expressão do título de Austin), sob
pena de deixar de fora uma gama muito importante de fenómenos linguísticos. (Há tam-
bém duas outras razões. Uma é que a teoria dos actos de fala é a melhor cura para a ten-
dência dominadora, vividamente exemplificada neste mesmo livro até agora, para pensar
que as frases declarativas são as únicas que contam. A outra é que se fizeram muitos erros
e muitas falácias se cometeram em áreas da filosofia que não a filosofia da linguagem por
se ignorar a teoria dos actos de fala; mas o espaço não permite falar disso.)

ILOCUÇÃO, LOCUÇÃO E PERLOCUÇÃO

Naturalmente, Austin começou por procurar um teste trabalhável e razoavelmente preciso


da performatividade. Tentou caracterizar a noção sintacticamente, e encontrou vários
tipos de problemas em que não precisamos de nos deter. Mas no seu artigo de 1961 acabou
por se contentar confortavelmente com o chamado critério “por este meio”: uma elocução
conta como performativa caso se possa adequadamente interpor a expressão “por este
meio” depois do verbo principal. Assim, 1 é performativa porque o orador poderia igual-
mente ter dito “Prometo por este meio pagar-te…” O “por este meio” sublinha que o acto
em questão, neste caso fazer uma promessa, é constituído pela própria elocução do ora-
dor. O critério também funciona bem para 2-6: “Declaro-vos por este meio…,” “Baptizo
por este meio…,” e assim por diante. “Dobro por este meio” seria pomposo, mas o seu
significado seria perfeitamente correcto.
O critério distingue certamente as performativas das constativas. Se profiro uma
constativa paradigmática, como “O gato está no tapete,” não poderia ter inserido “por
este meio.” “O gato está por este meio no tapete” é destituída de sentido ou pelo menos
P á g i n a | 170

falsa, porque o gato está (ou não) no tapete independentemente de eu dizer que está. O
meu acto de o dizer nada faz para o efectivar.
Austin deu-se conta de uma classe irritante de inconstativas claras, performativas
aparentes, que são demasiado simples para passar o teste do “por este meio.” Na verda-
de, 7 pode ser tomado como exemplo, dado que “Por este meio contra” é agramatical.
Mas é plausível dizer que “Contra” é apenas uma forma lacónica de “Voto contra,” que
obedece à condição “por este meio.”
Contudo, o que dizer de “Hurra!”, “Fora!” e “Raios”? Nenhuma admite “por este
meio,” e é mais difícil vê-las, como no caso de “Contra,” como meras abreviaturas de
declarativas que contenham verbos performativos. Poder-se-ia tentar argumentar que
“Hurra!” significa na verdade “Saúdo por este meio”; Lewis (1970: 57-8) propôs-se enten-
der “Hurra pelo Gorducho” como “Saúdo o Gorducho.” Talvez “Fora!” queira dizer “Criti-
co-te por este meio” e “Raios!” queira dizer “Praguejo por este meio.” Mas estas hipóte-
ses não são obviamente correctas.
Austin ficou muito mais insatisfeito com a distinção performativa/constativa quan-
do se deu conta de outro tipo de frase. Considere-se:

8) Declaro que nunca visitei um país comunista.

8 passa o teste do “por este meio,” e por isso deveria contar como performativa. Quando
o digo, executo desse modo um certo acto de fala: um acto declarativo. Mas também é
claramente descritiva, declarando um facto. Na verdade — quer o orador tenha ou não
visitado um país comunista — é precisamente isso que visa; o verbo operativo é “declaro.”
A afirmação do orador é verdadeira ou falsa. Se 8 for proferida sob juramento e o orador
tiver visitado um país comunista, pode ser acusado de perjúrio. Assim, parece que ou 8 é
simultaneamente performativa e constativa, ou não é qualquer uma delas.
E há mais:

9) Parece-me que já encomendámos demasiadas peles de foca.


10) Comunico que o comité votou unanimemente a favor da expulsão da avó.
11) O meu conselho é que seria muito estúpido comprar mais acções da Amálgama Amalga-
da.
12) Toma atenção que esse rottweiler há três dias que passa fome e está um bocado rabu-
gento.

Mesmo 1 tem uma paráfrase com características constativas similares: “Prometo que te
pagarei as fraldas,” que pelo menos assere que te pagarei.
Exemplos como estes fizeram Austin dar-se conta de que uma dada elocução pode
ter simultaneamente uma parte performativa, ou aspecto, e uma parte constativa. De
facto, praticamente toda a elocução tem esses dois aspectos, mesmo que não tenha um
P á g i n a | 171

prefácio performativo explicito como acontece nas elocuções 8-12. Se em vez de 8 eu tes-
temunhar apenas “Nunca visitei um país comunista,” executo mesmo assim um acto decla-
rativo, além de me limitar a exprimir o conteúdo proposicional de que nunca visitei um
país comunista. Sempre que faço uma asserção — isto é, sempre que profiro uma elocução
com força assertiva — executo um acto assertivo.
Também se pode proferir declarativas com outras forças. Se eu apagar os prefácios
performativos de 9-12 e disser apenas “Já encomendámos…,” “O comité votou…,” etc.,
nos mesmos contextos, essas elocuções teriam respectivamente as forças de um juízo,
uma comunicação, um conselho e um aviso. Austin chamou a este tipo de característica
“força ilocucionária” e contrastou-a com o conteúdo “locucionário” ou proposicional.1
Em diferentes contextos, a mesma declarativa pode ter forças ilocucionárias dife-
rentes. “Esse rottweiler há três dias que passa fome e está um bocado rabugento” poderia
ter a força de uma ameaça e não de um aviso; ou pode ser apenas uma observação; ou
(note-se) poderia ser uma garantia tranquilizadora. Até as crianças vêem diferenças de for-
ça potencial: uma queixa como “Se não te despachas com isso, vou-me embora” tem como
resposta o sarcasmo: “Isso é uma ameaça ou uma promessa?”
Voltando-nos para as indeclarativas, é consideravelmente mais óbvio que têm dife-
rentes variedades de força. De facto, o objectivo de modos como o interrogativo e o impera-
tivo é, ao que parece, indicar gamas de força ilocucionária.

13) Pertences ao Exército de Salvação?

pode ser parafraseada como “Pergunto-te (por este meio) se pertences ao Exército de Sal-
vação,” e o mesmo acontece com perguntas “quem” e “o quê”, como “Quem deixou o
Peludo fugir da casota?”

14) Vai à Biblioteca de Música e procura uma cópia da Missa Petite de Lana Walter

pode ter a força de uma directiva, uma ordem, um mero pedido ou apenas uma sugestão,
dependendo das intenções e propósitos do orador e do ouvinte e das relações de poder ou
autoridade institucional entre ambos.2

1
Austin dava quase como garantido o conteúdo proposicional. Opunha-se fortemente às
teorias da entidade, de modo que com “conteúdo locucionário” não queria dizer algo sobre as pro-
posições como coisas. Limitou-se a mencionar vagamente o “sentido e a referência,” fazendo alu-
são a Frege mas sem usar “sentido,” evidentemente, na acepção de um tipo de entidade teórica.
Austin não dava atenção ao conteúdo proposicional porque o seu centro de interesse era a outra
coisa, a força ilocucionária, que varia de modo independente.
2
Numa tira recente do Kudzu, o pregador Will B. Dunn resiste à pressão de um paroquiano
para mudar o nome dos Dez Mandamentos para Dez Sugestões.
P á g i n a | 172

Assim, a distinção original de Austin entre elocuções performativas e constativas


tornou-se uma distinção entre força e conteúdo enquanto aspectos de uma só elocução.
Austin (1962) elaborou um catálogo imenso de forças ilocucionárias diferentes e dos facto-
res que os distinguem. Eis alguns exemplos complementares de actos ilocucionários dife-
rentes: admitir (em dois sentidos); anunciar; assegurar; autorizar; censurar; comprometer-
se; cumprimentar; conceder; confessar; congratular; definir; negar; anuir; admitir a título
de hipótese; inquirir; insistir; perdoar; litigar; empenhar-se; prever; propor; repreender;
agradecer; insistir; fazer voto de.
Austin introduziu uma terceira característica das elocuções, além da sua força ilo-
cutória e do seu conteúdo locutório. Alguns verbos são como os verbos performativos por-
que o seu significado é um tipo de acto social executado por meios linguísticos, mas não
passam o teste “por este meio” porque descrevem o acto em termos dos seus efeitos pro-
priamente ditos no ouvinte e não em termos da intenção do locutor. Tome-se “amedron-
tar” e “convencer.” Não posso dizer-lhe correctamente “Amedronto-o por este meio” ou
“Convenço-o por este meio que foi a avó,” porque ficar amedrontado ou convencido
depende em parte de si e de modo algum está garantido (nem é constituído) pela minha
própria elocução. Os actos de amedrontar e convencer são o que Austin chama actos per-
locutórios; são coisas que fazemos com as palavras, mas não no mesmo sentido íntimo dos
actos ilocucionários. Eis mais alguns exemplos de actos perlocucionários: alarmar; espan-
tar; divertir; agastar; aborrecer; embaraçar; encorajar; enganar; distrair; impressionar;
informar; inspirar; insultar; irritar; persuadir.
A teoria verificacionista do significado e a teoria da condição de verdade identifi-
cam o significado de uma frase apenas com o seu conteúdo proposicional ou locucionário.
Mas não é a força ilocucionária um tipo de significado? Se não entendermos as distinções
de força, haverá certamente um aspecto importante da linguagem que não dominámos.
Assim, parece que os verificacionismo e a teoria da condição de verdade deixaram algo de
fora.
Poderão responder: “São importantes, sem dúvida; as propriedades pragmáticas são
importantes na vida real. Mas não fazem parte do significado.” Penso que isto é apenas
uma escaramuça de jardim-escola sobre a palavra “s,” que muitas vezes é usada mais em
geral como um termo abrangente para quaisquer aspectos da actividade linguística que se
considerem importantes. Já sabemos que há tipos de significado além do significado locu-
cionário das frases — o significado do locutor, por exemplo. Agora podemos acrescentar

Strawson (1964), Schiffer (1972) e Bach e Harnish (1979) argumentam persuasivamente que
nem toda a força ilocucionária é tão puramente convencional quanto a de 1-7, as performativas
comparativamente “puras” com que começámos. Alguma força, a de ser um conselho ou uma per-
gunta, por exemplo, é mais uma questão de intenções gricianas de quem fala.
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que há um tipo ilocucionário de significado, a força, que não é exactamente o mesmo que
o significado locucionário. Cada um destes tipos de significado é perfeitamente real e
indispensável para o uso da linguagem.3

Infelicidades e regras constitutivas

Os actos de fala são actos convencionais; como a teoria do uso quereria, os actos de fala
estão inseridos nos costumes, práticas e instituições sociais e são por eles definidos. A sua
execução é regida por regras de muitos tipos. As regras não estão habitualmente escritas,
estão apenas implícitas no comportamento social normativo.
Searle (1965, 1969) divide as regras dos actos de fala em regras constitutivas e
regras regulativas. Regras (meramente) regulativas “regulam formas de comportamento
pré-existentes ou cuja existência é independente,” ao passo que as regras constitutivas
“criam ou definem novas formas de comportamento” (1969, p. 33). Assim, por exemplo, as
regras de etiqueta regulam as actividades ou práticas que existem independentemente
dessas regras: “Os oficiais têm de usar gravata ao jantar”; “Não mastigue com a boca
aberta.” Mas as regras do xadrez ou do futebol americano definem efectivamente o jogo
em questão, e o jogo, como tal, não existiria sem elas: “Os bispos só andam na diagonal”;
“Marca-se um golo quando um jogador fica na posse da bola na zona final do oponente
enquanto decorre um jogo.”
Podemos introduzir uma noção mais exigente e mais interessante: uma regra for-
temente constitutiva é uma regra cuja violação aborta o acto de fala pretendido. Supo-
nha-se que profiro uma frase com a intenção de executar um certo tipo de acto de fala, A.
Se eu violar uma regra fortemente constitutiva, segue-se que não fui pura e simplesmente
capaz de executar um acto de tipo A. Por exemplo, se amanhã eu proferir 3 e partir uma
garrafa de champanhe contra a proa do USS North Carolina, não conseguirei baptizá-lo,
pois não estou em posição nem detenho a autoridade para o fazer. (A Marinha dos EUA tem
regras explícitas para escolher dignitários que baptizam navios de guerra. Além disso, o
North Carolina já foi baptizado, a 12 de Junho de 1940.)4 Se um clérigo profere 2 a um
jovem casal que está perante si numa capela de Chicago, mas não está autorizado fazer
casamentos no estado do Ilinóis, ou se um dos membros do casal não tem a idade legal
para poder casar, o casamento ocorre (na verdade, não é de modo algum um casamento,

3
Além disso, há indícios de que não se pode explicar alguns fenómenos semânticos a não
ser recorrendo a factores ilocucionários (veja-se Barker 1995, 2004).
4
Só para lhe poupar o trabalho: foi baptizado por Isabel Hoey, filha do então governador da
Carolina do Norte. Disseram-me que Hoey usou a garrafa de champanhe tradicional, ao mesmo
tempo que uma banda tocava “Anchors Aweigh.”
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apesar da música de órgão, dos anéis e o arroz). Para subir cinco proferindo 6, tenho de
estar a jogar póquer nesse momento, e cinco não pode ultrapassar o limite das apostas
acordadas.
A violação de uma regra meramente regulativa é menos grave. Se eu proferir uma
frase visando executar um acto de fala de tipo A e não violar quaisquer regras constituti-
vas mas violar uma regra regulativa, o resultado é que executo um acto de tipo A, mas
defectivo ou, no vocabulário oficial de Austin, “infeliz.” Se o casamento foi bem-sucedido
mas é apenas um casamento de conveniência e o casal mentiu com os dentes todos ao
pronunciar os seus votos, o casamento foi defectivo; uma regra regulativa do casamento é
que exista amor entre o casal, tencionando ambos sinceramente manter-se casados. A
promessa é um exemplo parecido: se eu proferir 1 sem qualquer sinceridade, não tendo a
intenção de lhe pagar as fraldas, é uma promessa infeliz. Já agora, se eu lhe gritar 1 numa
sala cheia de pessoas mas o leitor não consegue ouvir-me, essa é uma infelicidade de tipo
diferente.
Há casos de fronteira entre regras fortemente constitutivas e regras regulativas. E
se eu proferir 4, mas num tom ostensivamente relapso, trocista e sarcástico? Trata-se
então de uma desculpa gravemente infeliz, ou não é sequer uma desculpa?
Austin (1962) sublinhava bastante a diversidade de casos infelizes. Uma elocução
pode correr mal de muitas maneiras diferentes. Pode ser uma jogada infeliz num jogo,
como quando se profere 6 porque se calculou mal as probabilidades. Ou pode ser insince-
ra. Ou podemos não estar em posição de executar um acto do tipo visado, ou não ter auto-
ridade para isso. Ou pode ser muito grosseiro. Ou pode ser proferido muito baixo e nin-
guém ouve. Ou pode ser proferida, sem tacto, à frente das pessoas erradas. Ou pode ser
prolixo e pomposo e um disparate sem fim. Ou pode pressupor uma falsidade, como quan-
do peço desculpa por ter feito algo que o meu interlocutor queria que eu fizesse, ou que
de modo algum foi mau fazer, ou até que eu nem sequer fiz. Esta imensa diversidade de
defeitos tornar-se-á mais tarde filosoficamente importante.
Em particular, agora que reconhecemos que alguns actos de fala são actos de afir-
mação, asserção e semelhantes, vemos que a falsidade é um defeito comum de tais actos;
uma regra regulativa com respeito a actos dessa classe é que o que é dito deve ser verda-
deiro.
Austin queixa-se detidamente que os filósofos estão obcecados com o “fetiche ver-
dadeiro-falso,” a ideia errónea de que o valor de verdade é tudo o que conta no discurso.
Em particular, confundimos muitas vezes outros tipos de infelicidades com a falsidade;
quando ouvimos uma frase que de algum modo é defectiva tendemos a pressupor, falacio-
samente, que não é verdadeira. (No capítulo 13 exploraremos dois casos desta falácia.) Há
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muitas maneiras de as elocuções correrem mal — muito mal — sem que sejam falsas. A
falsidade é apenas uma forma de infelicidade entre muitas outras.5

O problema de Cohen

Jonathan Cohen (1964) levantou um problema danado com respeito a frases como 8–12. É
um problema sobre as condições de verdade. Tome-se 8 (“Declaro que nunca visitei um
país comunista”). Qual é a condição de verdade de 8?
Cohen afirma (p. 121) que “a princípio, é tentador supor que na perspectiva de
Austin o significado da nossa elocução se encontra totalmente na oração que se segue ao
prefácio performativo.” Substituindo “significado” por “condição de verdade,” é de facto
tentador ler a condição de verdade fora do prefácio performativo. Pois o que o locutor de
8 afirma é que nunca visitou um país comunista, e não que está a afirmar algo. Dificilmen-
te se poderia fugir a uma acusação de perjúrio respondendo “A frase que proferi era ver-
dadeira, e não falsa: na verdade afirmei que nunca visitei um país comunista; o facto de
ter visitado um país comunista é irrelevante.” Analogamente, sem dúvida que 9–12 não são
automaticamente verdadeiras simplesmente porque eu, respectivamente, o ajuízo, o
comunico, dou esse conselho e faço esse aviso. (Apesar de Lewis (1970) adoptar exacta-
mente essa corajosa posição.) O conteúdo locucionário, ou pelo menos a condição de ver-
dade, é apenas que nunca visitei um país comunista, e o “Declaro que” é apenas o prefá-
cio performativo que torna a força explícita.
Outro argumento a favor desta perspectiva “tentadora” é que as performativas
explícitas, formais, como 8–12 e 15 parece que são apenas equivalentes verborreicos e
inflacionados das afirmações, avisos, ordens, etc., mais simples que se poderia ter profe-
rido sem prefácios performativos. Mas Cohen levanta uma objecção séria a esta perspecti-
va tentadora. Considere-se qualquer das elocuções 8–12. Suponha-se que a Eleonora profe-
re 12 ao Franklin e a Lúcia, ao ouvi-la, diz “Ela avisou-o que esse rottweiler há três dias
que passa fome…,” ou “A Eleonora avisou o Franklin que esse rottweiler há três dias que
passa fome….” Em cada caso, a Lúcia refere-se apenas aos mesmos indivíduos e predica-
dos e apenas à mesma relação entre ambos, e só a flexão muda. Em particular, certamen-
te que “toma atenção” em 12 significa toma atenção. As palavras que ocorrem no prefácio
performativo de 12 têm os seus sentidos e referentes comuns. Assim, o prefácio não é
apenas uma etiqueta ou marcador para assinalar a força. (Existem tais etiquetas ou mar-

5
Os linguistas não se deram conta muitas vezes do facto de que Austin usava o termo “infe-
licidade” como o termo mais abrangente possível. Usam por vezes a palavra aplicando-a a frases,
querem neologisticamente dizer algo como “defectiva pragmaticamente, mas não sintacticamente
nem semanticamente [de um modo que é supostamente bastante específico mas que nunca é espe-
cificado].”
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cadores; o modo gramatical é basicamente isso mesmo, um simples indicador de âmbito


de força. Mas “Toma atenção que” e os outros prefácios em 8–12 não são apenas etiquetas
de força; têm estrutura gramatical interna e as suas partes têm os seus próprios significa-
dos e propriedades referenciais.) Mas então, porquê fingir que essas partes das frases não
existem e porquê retirar-lhes o significado locucionário?
As coisas ficam ainda piores. Na verdade, a ideia de que os prefácios performativos
são apenas etiquetas de força é pura e simplesmente insustentável. Tais prefácios podem
ter muita estrutura. Por exemplo, podem ter modificadores adverbiais. Modificadores
adverbiais muito longos.

15a) Admito sem coacção que tive várias conversas em privado com o acusado.
15b) Admito com relutância que tive várias … [Note-se que “com relutância” modifica
“admito,” e não “tive várias….”]
15c) Admito com alegria e o maior prazer que tive…
15d) Por estar apostado em dizer toda a verdade, admito que…
15e) Ciente de que há no Céu um Deus justo e poderoso que castiga quem esconde
informação nos tribunais, e com um medo mortal do verme que não morre e do fogo
que não se sacia, admito…

Segundo a perspectiva tentadora, o único conteúdo locucionário em 15a–e é o da


sua oração complementar comum (“Tive várias conversas em privado com o acusado”).
Mas esta afirmação torna-se cada vez menos plausível à medida que descemos nesta lista.
O prefácio de 15c contém uma oração inteira que o orador assere, ainda que de passagem,
como facto. O de 15e contém várias asserções algo controversas; se eu a asserisse seria-
mente, certamente que o leitor poderia dizer depois que eu tinha expresso uma perspecti-
va teológica plena de conteúdo. E não a teria apenas expresso; a teologia parece certa-
mente fazer parte do que é dito.
Parece que não se pode sustentar a perspectiva tentadora. O que se torna tentador
neste ponto, ao invés, é recuar e admitir que os conteúdos locucionários das frases
incluem os seus prefácios performativos. (Chame-se a isto a perspectiva “liberal.”) Qual é
o problema disto?
Eis o problema, caso o tenha esquecido. Se a perspectiva liberal estiver correcta,
então 8–12 são simples e automaticamente verdadeiras sempre que são proferidas e não se
violam as regras constitutivas relevantes. Nenhuma acusação de perjúrio poderia ser bem-
sucedida, se a testemunha tivesse o cuidado de testemunhar apenas com performativas
explicitas como 8. Note-se que, semanticamente, 8–12 nem sequer implicariam as suas
orações complementares (porque se pode afirmar, reportar… coisas que não são como as
descrevemos). A minha elocução de 10 não me comprometeria semanticamente com a
afirmação de que o comité votou unanimemente a favor da expulsão da avó.
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Ora bem, Cresswell (1973) e Bach e Harnish (1979) adoptaram a perspectiva liberal,
pondo em causa a rejeição veemente de Austin de que os agentes dos actos de fala decla-
ram que eles mesmos estão a executar tais actos; mas estes filósofos sugeriram que, além
dos actos principais, os locutores também declaram que os executam. Assim, se eu profe-
rir

16) Ordeno-te que ataques e captures a Universidade de Chicago

o meu acto de fala principal é dar-lhe uma ordem, e como tal não tem valor de verdade,
mas além disso eu declaro que estou a dar uma ordem, e por isso a minha frase é verda-
deira nesse sentido degenerado.
Sob esta hipótese, frases como 8-12, que diferem de 16 porque os seus actos de
fala principais associados são susceptíveis de ser verdadeiros ou falsos, teriam, cada uma
delas, dois conteúdos locucionários e dois valores de verdade: um conteúdo primário,
associado ao que é afirmado, ordenado, etc., (em 8, que nunca visitei um país comunista),
e um valor de verdade autodescritivo que seria quase sempre automaticamente “verdadei-
ro” (que estou a declará-lo). Esta hipótese dos dois valores de verdade é atraente, pois à
luz de exemplos como 15a-e, nem o valor de verdade tentador nem o valor de verdade
liberal parecem elimináveis. E podemos tornar a hipótese dos dois valores de verdade mais
digerível argumentando que os dois valores de verdade estão associados a géneros de coi-
sas ligeiramente diferentes. Note-se que ao proferir 8 faço uma afirmação. Que afirmação?
A afirmação de que nunca visitei um país comunista. Assim, apesar de fazer essa afirmação
proferindo uma frase que, liberalmente tomada, não implica o seu conteúdo proposicio-
nal, fi-la mesmo assim. E se de facto visitei um país comunista, a minha afirmação é falsa
apesar de a frase que proferi, tomada liberalmente, ser verdadeira. Poderia ser acusado
de perjúrio, não por ter proferido uma frase falsa, mas por ter feito uma afirmação falsa.
15d e 15e exigiriam alguma elaboração. Há a sensação de que o locutor de 15e, em
particular, fez duas ou três asserções além da que é expressa pela oração complementar.
Contudo, os exemplos anteriores da lista são casos de fronteira; estaria o locutor de 15a a
asserir que a sua admissão foi feita sem coacção? Uma teoria completa dos actos de fala
teria de esclarecer detidamente subtilezas destas.

Teorias ilocucionárias do significado

William Alston (1963) tentou seriamente transformar a pragmática dos actos de fala de
Austin numa teoria do próprio significado locucionário, identificando o significado de uma
frase com o seu “acto ilocucionário potencial,” a gama de actos ilocucionários que podem
ser executados com essa frase. Quem sabe usar uma frase de todos os modos ilocucioná-
rios que a frase permite, sabe o seu significado, e isso é tudo o que há a dizer quanto ao
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significado frásico. (Isto certamente seria considerado uma teoria do uso, ainda que super-
ficialmente esteja longe do que Wittgenstein tinha em mente.)
Mas de facto a perspectiva de Alston nada ajudou a iluminar o significado locucio-
nário, dado que descrições de actos de fala potenciais como “assere que os gorilas são
vegetarianos” pressupõe já uma noção de conteúdo proposicional e explora os significados
das suas orações complementares. Além disso, como Maureen Coyle uma vez me disse,
frases que partilham os mesmos conteúdos locucionários podem diferir violentamente
quanto aos seus actos potenciais ilocucionários: “A mãe vai comer a ostra”; “Vai a mãe
comer a ostra?” “Mãe, come a ostra!”
Barker (2004), com efeito, evita estas objecções. Evita a primeira à maneira de
Grice, entendendo os actos ilocucionários em termos das intenções e crenças dos orado-
res; por exemplo (ultra-simplificando viciosamente, é claro), asserir que P é proferir uma
frase com a intenção de que o nosso interlocutor creia que P. As descrições dos actos não
herdam os conteúdos proposicionais relevantes dos significados das suas orações comple-
mentares, mas antes dos conteúdos das atitudes mentais que constituem em parte esses
actos. Barker evita a segunda objecção em parte do mesmo modo (fazendo remontar o
que há de comum à identidade de atitudes proposicionais subjacentes dadas), e em parte
argumentando em bases sintácticas sofisticadas que, para começar, não se pode separar o
“conteúdo locucionário” da força ilocucionária.
Note-se que este último aspecto é também uma objecção complementar à teoria
corrente da condição de verdade, porque essa teoria pressupõe que o conteúdo locucioná-
rio é determinado independentemente da força.

Sumário

Austin chamou a nossa atenção para as elocuções “performativas” e para os actos de


fala mais em geral.
Cada tipo de acto de fala rege-se por regras de dois tipos: constitutivas e regulativas.
A violação de uma regra regulativa torna um acto de fala defectivo ou infeliz. Um dado
acto de fala pode ser infeliz de muitas maneiras diferentes.
Não há distinção de princípio entre elocuções performativas e as declarativas comuns;
ao invés, cada elocução tem uma forma ilocucionária, e virtualmente todas as elocu-
ções têm também um conteúdo proposicional.
Além disso, muitas elocuções têm características perlocucionárias.
O problema de Cohen quanto às condições de verdade das frases que contêm prefácios
performativos explícitos não foi resolvido.
A noção ilocucionária de um acto de fala permite um novo tipo de teoria do uso.
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Perguntas

1. Serão todos os actos de fala como “Dobro,” no sentido de serem inteiramente consti-
tuídos por convenção? (Veja-se Strawson 1964).
2. Poderá atribuir-se a todo o acto de fala um conteúdo locucionário? Discuta os nossos
contra-exemplos aparentes e argumento a favor ou contra.
3. Escolha um tipo particular de acto de fala e tente enumerar as suas regras constitutivas
e as suas condições características regulativas. (Searle 1969 fá-lo para o caso do acto
de prometer.)
4. Detecte algumas dificuldades na distinção de Austin entre características locucionárias,
ilocucionárias e perlocucionárias. Encontre casos de fronteira problemáticos.
5. Lewis (1970) defende a ideia anti-austiniana de que quando proferimos (até mesmo)
uma performativa “pura,” ao mesmo tempo afirmamos que estamos a executar o acto
em questão — ou pelo menos a frase que proferimos é verdadeira se, e só se, estiver-
mos a executar esse acto. Examine esta perspectiva.
6. Vá mais longe no problema de Cohen.
7. Se a leu, desenvolva a teoria do significado de Alston ou de Barker.

Leitura complementar

O clássico reconhecido da teoria dos actos de fala, na sequência de Austin, é Searle


(1969). Mas Searle (1979a), uma colecção de ensaios, é consideravelmente melhor.
Veja-se também Travis (1975) e Holdcroft (1978).
Duas obras excelentes (além de Schiffer 1972) que conectam a teoria dos actos de fala
a outras questões da pragmática e à investigação actual na linguística e na psicologia
são Bach e Harnish (1979) e Gazdar (1979). Veja-se também Cole e Morgan (1975),
Levinson (1983), Green (1989) e Sadock (2004).
Ginet (1979) é um artigo excelente, e ilumina o problema de Cohen. Saídas para o pro-
blema (nenhuma inteiramente satisfatória) foram oferecidas por Cresswell (1973), Bach
e Harnish (1979) e Lycan (1984: cap. 6).
Alston (2000) desenvolve mais a sua teoria ilocucionária do significado.

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