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CAPÍTULO 5

A ocupação humana da paisagem

A ocupação de uma região pelos humanos ancestrais era determinada


pela presença de alguns fatores considerados, então, de importância
fundamental, entre os quais a topografia, as rochas, o solo, a flora, a fauna
e a disponibilidade de água. As rochas estão sujeitas a processos diversos
(erosão, falhamentos, dobramentos) que originam acidentes geográficos
(elevações, depressões, penhascos, grutas e cavernas) e solos. A erosão e
as assembléias faunística e florística e os mananciais de água estão
intimamente ligados ao clima local e regional. Enquanto uma topografia
acidentada era uma defesa contra grupos rivais, a agricultura, os animais,
os vegetais e a água eram indispensáveis para a sobrevivência da
comunidade.
Por ocasião da ocupação de um sítio, os humanos usavam rochas e
sedimentos para manufaturar utilitários (facas, raspadores, machados,
potes, flechas, etc.), adornos (colares, brincos, etc.), objetos sagrados
(amuletos, estátuas de deuses, etc.) ou de lazer (bonecas, estatuetas de
animais, etc.), que podem permanecer no sítio e, posteriormente, ser
encontrados em escavações arqueológicas. A maior parte da matéria-prima
utilizada naqueles objetos proveio da área de ocupação e seu entorno; do
estudo desses objetos, podemos inferir a paisagem então existente e as
modificações que ela sofreu em razão das atividades antrópicas. É possível
afirmar que as características da paisagem são fatores fundamentais para
que nela ocorra a ocupação humana e que, a partir desse momento, o
homem passe a ser um agente ativo na transformação desse ambiente.
84

Aproximadamente 80% da superfície terrestre é constituída por


rochas sedimentares e sedimentos e apenas 20% por rochas ígneas e
metamórficas. Esse dado nos mostra como é importante o contexto
sedimentar para o ser humano e por que nele ocorre a maior parte dos
seus assentamentos. Toda rocha sedimentar se origina de sedimentos que
se depositaram sob condições geológicas específicas em um determinado
ambiente deposicional. Alguns deles são mais propícios para o
desenvolvimento da vida do que outros sendo esta a explicação básica para
a preferência do ser humano por alguns tipos de paisagens.

Fácies, ambiente e sistema deposicional

Fácies, um termo derivado do latim (facies), que significa aspecto ou


aparência externa, foi usado na Geologia pela primeira vez por Nicolau
Steno em 1669. Desde então, esta designação tem sido utilizada com
significados diversos tais como, litofácies1 e biofácies2 ou mesmo de modo
impreciso (fácies fluvial, fácies glacial, etc.).
A maioria dos geologistas sedimentares adota a definição estipulada
por De Raaf et al. (1965) de que uma fácies é distinguida por suas
características litológicas, estruturais e orgânicas observadas em campo. Os
elementos que compõem uma fácies são a geometria, a textura, a cor, as
estruturas sedimentares, as paleocorrentes e os fósseis.
A geometria, a forma com que se apresentam os corpos
sedimentares, pode ser variável e é resultante de alguns fatores, tais como
topografia pré-deposicional, geomorfologia do ambiente deposicional e as
mudanças pós-deposicionais. Ela pode ser determinada em superfície
(afloramentos) ou em subsuperfície (testemunhos de sondagens, perfis
elétricos, etc.) sendo útil na análise da fácies e dos ambientes. As
1
Corresponde aos caracteres físicos e orgânicos de uma rocha sedimentar que possibilitam
interpretar o ambiente deposicional; também relacionado à variação da litologia de uma
unidade estratigráfica.
2
É aspecto biológico de um sedimento ou sedimentito. Sua variação pode ou não
corresponder a distintas litofácies.
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geometrias mais comuns são em cunha ou prisma (relação largura x


espessura 5:1 a 50:1), tabulares (relação largura x espessura 50:1 a
1.000:1), em cordão (relação largura x espessura < 5:1), em manta ou
lençol (relação largura x espessura > 1.000:1) e em lente (figura 5.1).
A textura das rochas sedimentares clásticas compreende não só as
partículas, a matriz3 e o cimento (Capítulo 2), mas também a fábrica, a
orientação espacial primária dos detritos, um reflexo das condições hidro ou
aerodinâmicas no momento da deposição. Por essa razão, a fábrica pode
fornecer subsídios para a identificação do paleoambiente e para as medidas
de paleocorrentes. A fábrica anisotrópica é aquela que mostra uma direção
preferencial de orientação dos sedimentos (figura 2.10) e a isotrópica,
aquela de distribuição caótica dos detritos.
Nas rochas sedimentares químicas e orgânicas,a análise textural é
fundamentada nos seus atributos químicos e orgânicos, respectivamente.
A cor é avaliada por comparação com auelas constantes do Rock-
color Chart onde a cor, a tonalidade e a intensidade são expressas por
número e letras. Assim, em vez de realizar uma descrição subjetiva,como,
por exemplo, verde-claro, registra-se 5G 7/4, onde 5G é a cor, 7 é a
tonalidade e 4 a intensidade.

3
Aqui, o termo matriz refere-se a um dos elementos constituintes da textura das rochas
sedimentares clásticas (partículas, matriz e cimento). É definida como os clastos de
menor dimensão do que aqueles considerados partículas nas rochas detrítica.
86

A B
Figura 5.1.
Geometrias mais
comuns de corpos
sedimentares. A. Em
manta ou lençol. B.
Tabular. C. Em cunha
C D ou prisma. D. Em
cordão. E. Em lente.
Fonte: Krynine (1948),
modificado.

As estruturas sedimentares foram tratadas em um item do Capítulo 2.


Certos tipos de estruturas sedimentares (e.g. estratificação cruzada,
imbricação de seixos, turboglifos) são auxiliares na determinação não só do
tipo de agente transportante, mas também de sua direção e sentido, dados
importantes para o estudo da paleogeografia local e regional.
Os fósseis corpóreos (e.g. conchas, ossos, dentes) ou não (e.g.
pegadas, coprólitos4) são importantes tanto na datação quanto no estudo
dos paleoambientes em que viviam os organismos.
Todo sedimento se acumula sob condições físicas, químicas e
biológicas que determinam a maior parte de suas propriedades. Esse
complexo, denominado Ambiente Deposicional (figura 5.2), é uma unidade
geográfica ou geomorfológica onde ocorre a sedimentação. No estudo dos
paleoambientes deposicionais, são usados os ambientes atuais para
comparação.

4
Fezes fossilizadas.
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A uma assembléia 3D de fácies ou ambientes sedimentares,


geneticamente relacionados a processos ativos ou inferidos, denomina-se
Sistema Deposicional (figura 5.3). A análise dos sistemas fundamenta-se
na Lei de Correlação de Fácies ou Lei de Walther5, e sua interpretação
baseia-se em Seqüências Sedimentares6 identificadas em perfis geofísicos
de perfurações profundas e em seções sísmicas.
O quadro 5.1 mostra uma classificação de ambientes deposicionais.
Apenas nos interessam aqueles que mais corriqueiramente são usados
pelos humanos: glacial, eólico, leque aluvial, fluvial, litorâneo e espélico. Há
também ocupação humana de sítios onde aflore o Complexo Cristalino
(rochas ígneas e metamórficas), também denominado Embasamento
Cristalino ou Escudo.

Quadro 5.1. Classificação dos ambientes deposicionais. Fonte: Leinz e Leonardos (1977),
modificado.

Ambientes continentais: fluvial, lacustre, desértico, glacial, palustre e espélico.

Ambientes transicionais: litorâneo, deltaico e lagunar.

Ambientes marinhos: nerítico, batial e abissal.

5
Uma sucessão vertical de fácies, desde que não tenham ocorrido perturbações, reflete a
ordem (ou seqüência) da distribuição horizontal das mesmas fácies.
6
Unidades litoestratigráficas informais de amplitude superior a grupo ou supergrupo,
limitadas, na base e no topo, por discordâncias.
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CC

ALA
ALA

API
API

ALi
ALi ALi ALi ALi

AD

AMP

ALi Ambiente Litorâneo


CC Complexo Cristalino

AD Ambiente Deltaico
ALA Ambiente em Leques Aluviais

AMP Ambiente Marinho Plataformal


API Ambiente de Planície de Inundação

Figura 5.2. Esquema mostrando os locais de mais intensa ocupação humana e as regiões
desprovidas de sua presença: as áreas de deposições deltaicas subaquáticas e as
marinhas. Os ambientes em leque aluvial e planície de inundação são exclusivamente
continentais; já as deposições deltaicas e litorâneas são submetidas também à ação física,
química e biológica do corpo de água onde estão se sedimentando (lago, laguna, mar,
oceano) e, assim, correspondem a ambientes transicionais. Fonte: Krumbein e Sloss
(1963), modificado.
89

Figura 5.3. Esboço de depósitos gerados em Ambientes Deposicionais continentais,


transicionais e marinhos.

Ambiente glacial

O ambiente glacial (figura 5.4) é aquele em que o crescimento ou a


fusão dos glaciares continentais7 ou alpinos8 são os responsáveis diretos ou
indiretos pelos processos erosivos e construtivos dos depósitos. As áreas
proglaciais9 e periglaciais10 são indiretamente relacionadas com o gelo e
também as que, com mais freqüência, são ocupadas pelo homem.

7
Geleira composta por capas de gelo que cobrem vales e montanhas indistintamente.
8
Geleira ocorrente nas montanhas.
9
Correspondem a feições produzidas pelo gelo à frente do glaciar ou do lençol de gelo.
10
Correspondem a processos, climas e topografia das margens do glaciar ou que são
influenciadas por baixas temperaturas.
90

Nunatak
Geleira terrestre
Moraina média
Glaciolacustre

Planície de Fluvioglacial
lavagem

Esker
Ketlles
Praia

Geleira marinha

Vale glacial
submerso
Glaciomarinho
Moraina basal

Figura 5.4. Bloco-diagrama de um ambiente glacial. Nunatak é uma elevação isolada


projetada através de uma geleira terrestre; kettles são depressões originadas pela fusão
de blocos de gelo sobre os depósitos de till; esker corresponde a um depósito glacial
alongado formado por correntes fluvioglaciais no interior de túneis abertos no gelo. Fonte:
modificado de Edwards (1986).

Admite-se que, durante o Quaternário, em algumas regiões do mundo


(e.g. América do Norte), houve aproximadamente 20 ciclos glaciação-
interglaciação, ou seja, períodos de expansão (glaciação) e retração
(interglaciação) das geleiras.
Os glaciares formam-se em regiões propícias à queda de neve (pólos
e cume de montanhas) que, por se acumular, compacta-se e recristaliza-se
como gelo. O aumento da acumulação de gelo representa um aumento de
peso, e a geleira passa a se mover lentamente, afastando-se da área onde
se originou. O balanço entre a quantidade de neve que cai x a fusão e a
evaporação do gelo é o responsável pela estabilidade, avanço ou retração
da geleira.
As geleiras, à medida que se deslocam, produzem e conduzem
toneladas de sedimentos e, às vezes, também artefatos, os quais irão
constituir um depósito pobremente classificado, não estratificado, chamado
91

till (tilito, quando consolidado). Os depósitos de till sedimentados nos


limites laterais, frontal ou basal (drumlins) do glaciar são as morainas
(figura 5.5A). Ocorrem tills de ablação11 e de alojamento12, sendo bastante
comum que os primeiros sobreponham-se aos últimos.
Os clastos podem ser transportados no interior do gelo ou em sua
base, frente ou lados (morainas). Os detritos, por se atritarem com o
substrato, tornam-se facetados, estriados e polidos (figura 5.5B), sendo, às
vezes, pulverizados. A atrição também dá origem, nas rochas sotopostas à
geleira, a uma série de cristas e sulcos paralelos longitudinais à direção de
deslocamento do gelo, chamados estrias glaciais (figura 5.6).
As sedimentações estratificadas, cuja construção é associada à água
de degelo (fluvioglaciais, gláciodeltaicos, gláciolacustres e gláciomarinhos),
constituem os depósitos de lavagem.

ML
ML
MB

A B 5cm

Figura 5.5. A. Vista frontal de depósitos de glaciar. ML correspondem a morainas lateral e


MB à moraina basal. Antártica. Foto: Henrique Carlos Fensterseifer. B. Clasto facetado pela
abrasão glacial. A erosão pelo arraste originou as três faces mostradas à esquerda
conferindo ao seixo uma aparência conhecida como ferro de engomar. Formação Itararé,
Bacia do Paraná, Cachoeira do Sul, Permocarbonífero do RS. Foto: Carlos Henrique
Nowatzki.

11
Depósito formado por detritos transportados no interior de uma geleira, que, após
estagnar, se fusiona e libera os clastos.
12
Depósito formado por detritos glaciais, que eram transportados na base da geleira
(moraina basal).
92

Figura 5.6. Estrias


glaciais paralelas ao
cabo do martelo
desenvolvidas du-
rante a glaciação
Permocarbonífera I-
tararé, expostas em
pavimento de unida-
des sedimentares da
Bacia do Camaquã,
Ordoviciano do RS.
Cachoeira do Sul,
RS. Foto: Carlos
Henrique Nowatzki.

As deposições flúvioglaciais (figura 5.7A) são devidas a fluxo de água


que se deslocam sob, sobre e dentro da geleira, transportando seixos e
areias e, secundariamente, lamas, organizando depósitos estratificados e
bem classificados designados eskers13 e kames14. Os sedimentos
glaciodeltaicos correspondem a areias e lamas sedimentadas na
desembocadura dos cursos fluvioglaciais que atingem corpos de água
maiores (lagos ou oceano), podendo estar associados, distalmente, a
depósitos de turbiditos15. Os depósitos glaciolacustres (figura 5.7B)
também são formados por finas granulometrias (lamas), apresentando-se,
muitas vezes, como uma sucessão de ritmitos (figura 5.8) que podem ser
varves (varvito quando litificado). As varves são compostas por níveis de
areias finas ou silte, depositados durante épocas mais quentes (degelo
maior e conseqüente aumento da competência dos fluxos de água),
intercaladas a níveis de argilas constituídos em períodos de inverno (maior

13
Depósito glacial em forma de longa crista, estratificada, composta por areias e seixos,
sedimentada por correntes de água que percorrem túneis na ou próximo à base da
geleira.
14
Depósito glacial em forma de monte, estratificado, originado por fluxo de água composto
por areias e seixos sedimentados em cavidades do glaciar.
15
Depósitos originados por correntes de turbidez, com geometria tabular, cujos clastos
sedimentam-se nas regiões mais profundas do corpo de água, apresentando a forma de
um leque, quando visto em planta (= Leque Submerso).
93

congelação e menores competências dos fluxos de água), propiciando


condições para a decantação das muito finas granulometrias. Às vezes,
contudo, os ritmitos foram depositados por correntes de turbidez
(turbiditos). Os glaciomarinhos também são formados, dominantemente,
por finas granulometrias (lamas) e, tal como os glaciolacustres são, não
raro, turbiditos. Tanto os depósitos pelíticos lacustres como os marinhos
podem conter clastos pingados16 (figura 5.8), que caem de icebergs (figura
5.9A) à medida que eles derretem.
Tanto nos USA quanto na Europa, foram encontrados artefatos com
idades entre 12.000 a 10.500 anos A.P. em sedimentos de origem glacial,
sob ou sobre depósitos de till ou por eles incorporados. Existem registros
de antigas superfícies com artefatos (figura 5.10) que, em perfil (figura
5.11), mostram evidentes sinais de que o solo apresenta feições
relacionadas a eventos glaciais, como, por exemplo, crioturbação17 e
polígonos de detritos18 ou permafrost (figura 5.9B).

GL

FG
A B

Figura 5.7. A. Água de degelo fluindo pela planície de lavagem transportando seixos e
areias trazidos pela geleira que aparece ao fundo. B. Fotografia obtida do alto de um
glaciar na direção da planície de lavagem onde são visíveis cursos de água (FG) e lagos
periglaciais (GL). Antártica. Fotos: Henrique Carlos Fensterseifer.

16
Areias, grânulos, seixos, etc. que caem de um iceberg que derreteu e liberou para o
fundo do corpo de água os detritos que possuía em seu interior.
17
Dobramentos ou falhamentos originados pelo deslocamento de massas de gelo sobre os
sedimentos inconsolidados ou devido à fusão de gelo englobado por sedimentos.
18
Polígonos cujas cristas acumulam clastos e restos orgânicos. Formam-se entre intervalos
de extremo frio com formação de gelo, aos quais se seguem ciclos de fusão do gelo e de
nova congelação.
94

Figura 5.8. Clastos pingados em


ritmitos glaciolacustres da Formação
CP Itararé. CP (clasto pingado) de
arenito. Observar que as lâminas
abaixo do seixo estão rompidas e
dobradas pelo impacto enquanto as
superiores se amoldaram a ele.
Permocarbonífero da Bacia do
4cm Paraná, Trombudo Central, SC. Foto:
Carlos Henrique Nowatzki.

A B
Figura 5.9. A. Visão desde o continente antártico na direção do oceano, onde flutuam
alguns icebergs. Ao derreterem, liberam os sedimentos que estão no seu interior, os quais
se precipitam sobre os sedimentos já depositados sob a lâmina de água. B. Polígonos de
detritos característicos de regiões periglaciais. Essa feição, também reconhecida como
permafrost, origina-se pela repetida formação de gelo e sua fusão. Antártica. Fotos:
Henrique Carlos Fensterseifer.
95

A
Planície de Lavagem

Geleira
1 Figura 5.10. Diagramas
ilustrativos de ambiente
glacial. A. Posicionamento da
Lago
geleira, do lago pró-glacial e
da planície de lavagem. A
Artefatos ocupação humana (1),
registrada por meio de
1 Cronologia de ocupação descoberta de artefatos, ocupa
humana
uma área marginal (praia) do
Praias
lago glacial. B. Retração da
geleira com sedimentação das
morainas recessionais (R) e
frontal (F) e conseqüente
Morainas regressão do lago e avanço da
praia e dos humanos (2) na
direção da regressão do gelo.
F Fonte: adaptado de Rapp, Jr. e
1 Hill (1998).
B
R

2
96

LEGENDA
f
a Tilito
Níveis de argilas lacustres
b intercaladas a arenitos e psefitos
c Camada Floresta Two Creeks
d Areias e lamas lacustres
e
e Tilito
f Níveis de argilas lacustres
Artefatos
Figura 5.11. Depósitos do
d Quaternário Superior
compostos por dois eventos
glaciais (tilitos a, e)
c intercalados a sedimenta-
ções lacustres (b, d, f). A
camada c, denominada
Camada Floresta Two
Creeck, apresenta restos
vegetais em posição de
vida. Troncos de árvores
b alóctones e artefatos
ocorrem na camada glacial
imediatamente sobreposta;
ambos possivelmente foram
arrancados da camada c
pelo deslocamento do
glaciar responsável pela
a deposição do tilito e. Fonte:
Rapp, Jr. e Hill (1998),
modificado.

Ambiente eólico

O ambiente eólico é aquele onde o vento é o responsável maior pela


erosão, transporte e deposição dos sedimentos detríticos. O vento é a
atmosfera em movimento, fenômeno que se inicia com o aquecimento do
ar, sua conseqüente ascensão e sua substituição pelo ar frio descendente.
Os processos eólicos podem ser significativos em regiões litorâneas
(figura 5.12), em planícies de inundação fluviais e em desertos frios ou
quentes. O maior potencial de preservação da sedimentação eólica é o das
áreas com climas áridos quentes em razão de diversos fatores, entre os
97

quais a da ocorrência pouco importante de outras modalidades de


transporte e a baixa umidade.

Figura 5.12. Campo de


dunas litorâneas em Capão
da Canoa, RS. A visada é
para leste e mostra, em
primeiro plano, crista
barcanóide. Graças ao clima
(subtropical) e a ocupação
humana (ao fundo), que
impede a progressão das
areias, as áreas interdunas
e o backside das cristas
começam a ser vegetados.
Foto: Carlos Henrique
Nowatzki.

Nos desertos quentes, regiões em que a quantidade média anual de


chuvas é inferior a 250ml, as rochas ficam expostas, pois a vegetação é
rala justamente devido à escassez de água. Os corpos rochosos aflorantes
sofrem intemperismo físico, fragmentando-se em pedaços menores graças
à grande variação da temperatura em apenas 24 horas. Durante o dia, a
temperatura sobe muitos graus acima de zero (50°C ou mais), o que
ocasiona a expansão máxima dos minerais de acordo com seus coeficientes
de dilatação; durante a noite, como a temperatura pode cair abaixo de 0°C
no mesmo local, os minerais contraem-se ao seu máximo. Essa repetição –
dilatar/contrair - leva à fadiga da rocha, ocasionando a sua partição. Os
fragmentos caem e passam a sofrer idêntico processo, diminuindo de
dimensão, podendo atingir os tamanhos areia e lama.
Os desertos ocupam 1/6 da superfície emersa do planeta, situando-se
em cinturões subtropicais de alta pressão atmosférica ou em regiões
vizinhas a cadeias de montanhas; eles se caracterizam pela topografia
acentuada, drenagem interior e aridez. A baixa média pluviométrica anual
não impede que as chuvas sejam torrenciais, ainda que breves e
98

esporádicas. Como uma conseqüência desse rigorismo climático, a


diversidade biológica e o número de espécimens são restritos.
No ambiente eólico, têm sido encontrados registros soterrados de
ocupação humana e artefatos que mostram evidências de terem sido
erodidos e transportados pelo vento desde seu sítio primitivo. As pesquisas
arqueológicas indicam ainda que o relevo de uma região submetida à
abrasão e à sedimentação eólica influenciou na ocupação desse ambiente
na pré-história (figura 13).
A erosão eólica ocorre de duas maneiras principais: deflação,
remoção de detritos de rochas soltos, e abrasão ou corrasão, desgaste
realizado pelas areias atiradas pelo vento de encontro a um objeto.
A deflação pode originar uma paisagem com depressões, que são
chamadas bacias de deflação, cujo comprimento e largura são muito
variáveis podendo alcançar metros ou quilômetros de diâmetro. Se a
escavação for profunda o suficiente, o nível superior do lençol freático
poderá ficar exposto e constituirá um lago de deserto durável (figura 5.14).
O vento transporta os materiais mais finos (areias e lamas) deixando
para trás detritos residuais (lag), compostos por clastos mais grossos,
paisagem denominada pavimento do deserto (desert pavement) ou couraça
de deflação (deflation armor). Sobre esse material residual, são
desenvolvidas superfícies polidas devido ao impacto abrasivo das areias
conduzidas pelo vento, assim surgindo os ventifactos (figura 5.15).
99

PD WD - Wadi
LA1 – Leque aluvial mais velho
LA3 LA2 - Leque aluvial intermediário
LA3 - Leque aluvial mais jovem
CC – Complexo Cristalino
PD PD – Pedimento*
LA2
LA1
LA3 LL1
LL2
WD
CC
DN

- Artefatos PS
LL1 - Nível lacustre baixo
LL2 - Nível lacustre alto
DN - Duna
CA - Lençol de areia
CA
PS - Paleossolo

Figura 5.13. Ilustração da ocupação humana em um ambiente desértico quente. Os


artefatos podem ser encobertos pelas areias eólicas ou por sedimentos de leques aluviais,
ser transportados ou ficar expostos por erosão devida a correntes, por fluxos
gravitacionais ou por deflação eólica. Não é incomum também que a variação do nível de
lagos auxilie no soterramento ou exposição de objetos arqueológicos. *Pedimento
corresponde a um depósito formado pela erosão e recuo das escarpas, processo
responsável pela formação de áreas aplainadas em clima árido a semi-árido. Fonte:
modificado de Rapp, Jr. e Hill (1998).

Duna eólica
Lago Deflação

Água subterrânea

Figura 5.14. A deflação eólica pode ser a responsável pela origem de lagos de desertos
muito duradouros, como o esboçado no esquema acima. A passagem preferencial dos
ventos, em certos locais, pode remover grande quantidade de detritos permitindo a
exposição do nível superior do lençol freático. Por essa razão, diversas espécies vegetais e
animais, inclusive a humana, podem ser atraídas e florescer em torno do manancial de
água. Fonte: Leet e Judson (1980), adaptado.
100

Figura 5.15. Atividade abrasiva do vento ao lançar areias contra um seixo originando um
ventifacto. Fonte: Leet e Judson (1980), modificado.

A corrente eólica atinge o substrato como um fluxo turbulento19 e


conduz as areias na forma de um lençol com espessura que normalmente
não ultrapassa um metro. A maior concentração de partículas transportadas
situa-se a poucos centímetros do chão, sendo as areias levadas por
saltação, e as lamas, por suspensão. Muitos grãos de areia, ao caírem,
impactam com outros que se encontram no solo e colocam-nos em
movimento. O restante das areias é transportada por tração formando a
carga do leito (bed load). As lamas podem viajar como carga suspensa
(suspensed load) por centenas ou milhares de quilômetros antes de se
assentarem por decantação.
À medida que a umidade do ar torna as partículas mais pesadas ou o
vento perde seu vigor, as areias e as lamas são depositadas. Dunas,
interdunas e lençóis de areias são os principais depósitos eólicos arenosos,
e loess, a mais importante sedimentação lamítica.
As dunas eólicas (figura 5.16), acumulações compostas
principalmente por areias finas a muito finas, são depósitos que possuem
um perfil de equilíbrio caracterizado por uma superfície suave (10° a 15°)
voltada para a direção de onde sopra o vento (barlavento, backside), uma
crista, que é a parte mais apical da elevação, e uma superfície de maior
mergulho (30° a 35°), em disposição oposta à do barlavento (sotavento,

19
Apresenta flutuações de velocidade devidas a redemoinhos originados quando o fluxo
passa por obstáculos ou irregularidades existentes no substrato.
101

slipface). Não é comum serem encontradas preservadas num único ponto


as deposições do backside e da slipface (figura 5.17).
Sua origem deve-se a irregularidades topográficas ou obstáculos que
contribuem para o decréscimo na velocidade do vento e a conseqüente
acumulação de areia. Nesse processo, vai sendo desenvolvida,
paulatinamente, a face de sotavento onde ocorrem os depósitos de
avalanche. Na face de barlavento, constituem-se os depósitos de acresção
formados de lâminas muito finas de areias (1 a 4mm) horizontalizadas ou
com mergulho de 1° a 3°; também aí ocorrem pequenas marcas de
ondulações, denominadas marcas de ondulações cavalgantes transladantes
(figura 5.18A), que, vistas em perfil, correspondem às laminações cruzadas
cavalgantes transladantes (figura 5.18B).

CRISTA
BACKSIDE FLUXO

SLIPFACE

INTERDUNAS

Figura 5.16. Desenho de uma duna transversal. A porção frontal (slipface) mostra os
depósitos por queda de grãos (grain fall, GFL) e por fluxo de grãos (grain flow, GFW).
Nas suas costas (backside), ocorrem marcas de ondulações cavalgantes transladantes
que, em perfil, são registradas como laminações cruzadas cavalgantes transladantes
(LCCT). Igualmente em perfil aparecem as estratificações cruzadas tangenciais (ECT),
também denominadas estratificações cruzadas por camadas frontais (ECCF). Estão
ainda representados os depósitos de interdunas. Fonte: Hunter (1977), modificado.
102

Figura 5.17. O pesquisador está sobre arenitos com laminações cruzadas cavalgantes
transladantes do backside (depósito de acresção). Abaixo delas, dispõem-se
estratificações cruzadas tangenciais da slipface. Paleocorrentes, da esquerda inferior
para a porção mediana direita da fotografia. Aloformação Pedra Pintada, Ordoviciano da
Bacia do Camaquã, Santana da Boa Vista, RS. Foto: Carlos Henrique Nowatzki.

Na slipface, acontece a contínua queda de grãos (grain fall), pois o


vento inflete para cima seguindo um plano imaginário a partir da crista da
duna. As areias caem e acumulam-se no sotavento em razão de seu peso,
fenômeno que ocasiona o aumento do mergulho (mais de 35º) dessa
porção. O equilíbrio é novamente atingido (menos de 30°) quando ocorrem
fluxos de grãos (grain flow), processo que, somado à queda de grãos, é o
responsável pelo deslocamento da duna e pelo surgimento das
estratificações cruzadas tangenciais - ECT ou estratificações cruzadas por
camadas frontais – ECCF (figuras 5.19A, B e C).
Em depósitos eólicos, podem ocorrer também dobramentos
penecontemporâneos, pequenos falhamentos e blocos rompidos por
103

tração20, especialmente se as lâminas ou estratos estavam úmidos antes de


se romperem e deslizarem pela face de sotavento (figura 5.19D).
As dunas podem apresentar diferentes morfologias em resposta à
direção e sentido dos ventos, à disponibilidade de areia, ao relevo e à
ausência ou presença de vegetação. A classificação mais comum de dunas
é a que utiliza como critério sua morfologia, destacando-se aí as
transversas, as barcanas, as parabólicas e as lineares (longitudinais ou
seif).
As dunas transversas são cômoros alongados e retos, separados por
amplos e regularmente distanciados espaços interdunares, dispostos de
modo perpendicular à unidirecionalidade dos ventos. Constituem-se em
regiões desprovidas de vegetação, possuem uma única slipface e são
indicativas da existência de grande suprimento local de areia (figura
5.20A).

A B

Figura 5.18. A. Marcas de ondulações cavalgantes transladantes. Backside de duna


litorânea, Capão da Canoa, RS. B. Corte transversal em arenito eólico composto
essencialmente por laminações cruzadas cavalgantes transladantes. Formação Botucatu,
Juro-Cretáceo da Bacia do Paraná, São Leopoldo, RS. Fotos: Carlos Henrique Nowatzki.

As dunas barcanas também se dispõem transversalmente aos ventos,


contudo possuem a forma de uma meia-lua cujas extremidades apontam
para sotavento. Essas elevações de areia são uma resposta a ventos fortes
unidirecionais, a uma limitada disponibilidade de areia para transporte na

20
Correspondem a laminas ou estratos arenosos da face de barlavento de dunas eólicas,
umedecidos graças a chuvas, geadas, etc., que se rompem por tração e deslizam
pendente abaixo sem sofrerem rotação.
104

área-fonte e a um relevo esparsamente vegetado. Possuem uma única


slipface e deslocam-se com relativa rapidez pelo terreno (figura 5.20B). À
associação de diversas barcanas dá-se o nome de cristas barcanóides
(figura 5.20C).
As parabólicas (figura 20D) são dunas semelhantes às barcanas,
porém suas extremidades ficam voltadas para barlavento. Na região, os
ventos são unidirecionais e as parabólicas são formadas a partir de dunas
preexistentes, cujas extremidades foram ancoradas por vegetação. Como
apenas a parte central continua se deslocando, resulta uma inversão do
cômoro, se comparado às dunas barcanas. Não é infreqüente a presença de
restos vegetais entre os planos de acamadamento.
As dunas lineares (figura 5.20E), cômoros alongados retos ou
sinuosos dispostos paralelamente à direção dos ventos dominantes da
região, são uma resposta à deflação e à sedimentação organizada por
fortes e uniformes células de vento em espiral, que se deslocam paralelas
ao eixo da duna, em ambos os lados da crista. São dunas estacionárias que
podem ter dezenas de metros de altura e muitos quilômetros de
comprimento.
As estruturas mais notáveis ocorrentes em dunas eólicas são as
estratificações cruzadas de grande porte (figura 5.21A). Já as dunas
formadas em regiões úmidas, como as litorâneas, por exemplo, estão
sujeitas à percolação por águas das chuvas carreadoras de argilas e
compostos químicos, os quais se concentram nos planos de estratificação e
obliteram as estruturas primárias. Essa feição secundária denomina-se
estrutura de dissipação (figura 5.21B).
As áreas interdunares (figura 5.22) são regiões planas situadas entre
as dunas nas quais ocorrem processos deflacionários ou deposicionais.
Quando dominam os processos erosivos, aí se acumulam areias muito
grossas, pois os detritos de granulação mais fina são transportados adiante
pelo vento. No caso de os eventos deposicionais serem os processos
predominantes, eles podem se dar na forma de sedimentações eólicas
105

(interdunas secas, figura 5.22A, B), fluviais, lacustres e orgânicas


(interdunas úmidas, figura 5.22C, D e 5.23).

A B

GLW

C D

Figura 5.19. A. Arenito de duna eólica visto em corte transversal na slipface mostrando
grainflows (GLW) de areias mais grossas na forma de pequenas lentes mais claras,
isoladas em depósitos de grainfalls composto por areias mais finas. Paleocorrente na
direção do observador. Formação Sanga do Cabral, Permotriássico da Bacia do Paraná,
Taquari, RS. B. Corte longitudinal de duna eólica (arenito) composta por grainflows (níveis
mais claros) e grainfalls (níveis mais escuros). Paleocorrente da direta para a esquerda.
Formação Botucatu, Juro-Cretáceo da Bacia do Paraná, São Leopoldo, RS. C. Corte
transversal de depósito arenoso de interduna (até acima da cabeça do observador)
sotoposto a depósito de duna eólica evidenciada pela estratificação cruzada tangencial. Os
grainsflows são os níveis salientes e os grainfalls os mais erodidos. Paleocorrente da
direita para a esquerda. Formação Botucatu, Juro-Cretáceo da Bacia do Paraná, Ivoti, RS.
D. Slipface de duna eólica (arenito) com blocos rompidos por tração mergulhados em
matriz de areias mais finas. Formação Sanga do Cabral, Permotriássico da Bacia do
Paraná, Rosário do Sul, RS. Fotos: Carlos Henrique Nowatzki.
106

A B

C D

Figura 5.20. Formas de dunas eólicas mais comuns. A direção dominante dos ventos é
indicada pelas setas. A. Dunas transversas. B. Dunas barcanas. C. Cristas barcanóides. D.
Dunas parabólicas. E. Dunas lineares (longitudinais). Fonte: McKee (1979), modificado.

Um rio de deserto (wadi) pode ter caráter efêmero (figura 5.24), se


associado a chuvas esporádicas que dão origem a fluxos torrenciais, ou
apresentar uma ocorrência mais duradoura, se formado por água oriunda
de geleiras de altitude, por exemplo. Vistas em um perfil vertical, as
sedimentações fluviais alternam-se às eólicas, uma associação
característica de desertos quentes, temporariamente úmidos (figura 5.25).
107

A B

Figura 5.21. A. Arenito fino a muito fino com estratificações cruzadas festonadas de
grande porte. Os cortes são transversais às dunas, e as paleocorrentes mergulham na
direção da estrada. Aloformação Pedra Pintada, Ordoviciano da Bacia do Camaquã,
Santana da Boa Vista, RS. B. Duna quaternária com estruturas de dissipação
grosseiramente paralelas à cabeça do martelo. Correspondem a níveis com acumulação de
lamas trazidas desde a superfície pela água de percolação. Torres, RS. Fotos: Carlos
Henrique Nowatzki.

Os lagos de deserto (lagos de playa, playa lakes) são geralmente


efêmeros, pois dependem dos wadi: tão pronto a chuva pára, os rios
mostram diminuição no volume das águas afetando o lago, que, finalmente,
seca. Os materiais lamíticos contidos nas águas do wadi e do playa lake
decantam por último e, após a evaporação da água, ficam expostos e se
racham (gretam), separando-se em pequenas placas, que se encurvam
formando as gretas de contração encurvadas ou curlets (figura 2.25A).
Estas serão, posteriormente, recobertas por areias sopradas pelo vento, um
processo delicado e suave que preservará aquelas estruturas sedimentares
(figura 5.26A).
Os lençóis eólicos (figura 5.26B), ou lençóis de areia (eolian sheets,
sand sheets), estendem-se por superfícies relativamente planas sendo
constituídos por depósitos de areias de granulometria heterogênea e outros
detritos mais grossos, transportados pelos ventos com velocidades altas
(regime de fluxo superior). Os depósitos se desenvolvem no limite entre o
ambiente eólico e o não-eólico e entre as dunas e as áreas de interdunas.
Em planta, aparecem como camadas planas ou suavemente onduladas, não
chegando a formar dunas definidas, porém os depósitos podem apresentar
estratificações cruzadas com mergulhos de até 20°.
108

A B

C D

Figura 5.22. Fotografias de áreas interdunas. A. Interduna atual seca com deposições
eólicas tipo lençóis de areia. Capão da Canoa, RS. B. Interduna seca da Formação
Botucatu, Juro-Cretáceo da Bacia do Paraná, São Leopoldo, RS. C. Interduna úmida com
icnofósseis da Formação Sanga do Cabral, Permotriássico da Bacia do Paraná, Jaguari, RS.
D. Detalhe de interduna úmida do Membro Morro Pelado da Formação Rio do Rasto,
composta por lâminas de arenito e pelitos intercalados. Em alguns níveis areníticos,
ocorrem marcas de ondulações subaquáticas. Permotriássico da Bacia do Paraná,
Sapucaia do Sul, RS. Fotos: Carlos Henrique Nowatzki.

Loess é um depósito eólico formado por granulometrias muito finas


(especialmente silte, mas também argila e areia muito fina), que foram
transportadas em suspensão pelo vento desde locais escassamente
protegidos por vegetação. A decantação dessas partículas ocorre porque a
velocidade do vento é reduzida, pela absorção da umidade do ar por parte
dos detritos, o que os torna muito pesados, ou devido às chuvas que as
atiram em direção ao solo. Caso aí ocorra vegetação (gramíneas, por
exemplo), os clastos são fixados no local.
109

A B

Figura 5.23. A. Arenitos de interdunas úmidas. A. Arenitos mais grossos (cores claras) e
finos (escuros) intercalados. Os círculos delimitam icnofósseis. B. Moldes de gretas de
contração lacustres preservados na base de arenitos. Arenito Pedreira, Jurássico (?) da
Bacia do Paraná, Sapucaia do Sul, RS. Fotos: Carlos Henrique Nowatzki.

A B
I

W W
I I

Figura 5.24. A. Vista geral de afloramento de arenitos eólicos (interduna úmida com
icnofósseis, I) e fluviais (wadi, W). Formação Sanga do Cabral, Permotriássico da Bacia do
Paraná, Rosário do Sul, RS. B. Arenitos eólicos (interdunas secas, I) e fluviais (wadi
efêmero, W) da Formação Botucatu, Juro-Cretáceo da Bacia do Paraná, Ivoti, RS. Fotos:
Carlos Henrique Nowatzki.
110

ECT Figura 5.25. Perfil esquemático de depósitos de


dunas eólicas alternados a fluvialitos e a camada
LC orgânica, gerados em clima árido quente. ECT =
ECT camadas de areias com estratificações cruzadas
tangenciais/acanaladas de médio e grande porte
(dunas 3D). LC = laminações cruzadas
LCCT tangenciais/ festonadas (marcas de ondulações
de pequeno porte unidirecionais subaquáticas
formadas em wadi). TA = tapete de algas
ECT desenvolvidas nas águas estagnadas de wadi ou
de playa lake efêmero. LCCT = laminação
TA cruzada cavalgante transladante típicas de
backside de dunas eólicas ou de áreas
LCCT interdunas secas. Fonte: Collinson (1986),
modificado.
ECT

A B
Figura 5.26. A. Camadas de arenitos eólicos separados por fina lâmina de argilito com
gretas de contração encurvadas. As setas destacam aquelas estruturas sedimentares na
base da camada do arenito superior. Aloformação Pedra Pintada, Ordoviciano da Bacia do
Camaquã, Santana da Boa Vista, RS. B. Fotografia de arenito eólico composto por lâminas
e camadas granulometricamente heterogêneas (lençol de areia). Acima e à direita da
referência está o registro do preenchimento de um pequeno canal escavado por fluxo de
água. Formação Botucatu, Juro-Cretáceo da Bacia do Paraná, São Leopoldo, RS. Fotos:
Carlos Henrique Nowatzki.

Sua origem está ligada principalmente à abrasão glacial, que pode


moer as rochas transformando-as em um pó denominado farinha de rocha,
matéria-prima colocada à disposição do transporte eólico. A queda
constante dessas frações sobre um relevo irregular tende a torná-lo
uniforme e plano, podendo variar a espessura da sedimentação de poucos
111

milímetros a mais de 50 metros. Entre outras regiões, ocorrem depósitos


expressivos na China e USA.
Quando a área fonte for não-glacial e a acumulação ocorrer em
regiões áridas ou semi-áridas, o depósito é chamado de dust.
Artefatos podem ser soterrados pelas dunas eólicas móveis ou
aflorarem em áreas de interdunas ou com lençóis de areias submetidas à
deflação. Enquanto os objetos maiores mostram, normalmente, vestígios
de corrasão parcial, os menores podem estar muito danificados ou ausentes
no sítio em razão de sua destruição durante o processo de erosão. Não é
incomum ainda que os artefatos sejam transportados de seu contexto
primário pelos fluxos eólicos ou aquáticos, o que poderá não ocorrer se o
soterramento pelas areias for rápido e o depósito for estabilizado pelo
crescimento de vegetação. Apesar disso, a preservação pode ser
temporária, pois os vegetais talvez morram durante períodos de extrema
seca facilitando outra vez o transporte das areias. Dessa forma, o sítio será
exposto novamente, e a sua matriz original sofrerá deflação; caso ocorra aí
mais de um sítio sobreposto, haverá mistura de artefatos de idades
diferentes (figura 5.27).
Restos arqueológicos são registrados em depósitos de loess (figura
5.28); os sedimentos, uma vez assentados, dificilmente são removidos pelo
vento, graças à maior coesão entre as finas granulometrias. É igualmente
importante a topografia da área, pois, se ela for muito acidentada, poderão
ocorrer fluxos gravitacionais ou fluviais capazes de destruir total ou
parcialmente o sítio arqueológico.
112

Vestígios de fogueira

Artefatos datados de 11.000 anos A.P.


Areias modernas
Camada de areias eólicas c/ artefatos: pontas de projéteis, restos líticos e dentes de bisão.

Depósito de playa lake 3


Depósito de playa lake 2
Depósito de playa lake 1
Depósito de playa lake c/vestígios de fogueira datados de 3.400 anos A.P. e artefatos

Figura 5.27. Ilustração, em corte, do Sítio Arqueológico de Ake, Planície Santo Agostinho,
oeste de New Mexico, USA. Ele é composto na porção basal por depósitos de playa lake
sobrepostos por camadas de areias eólicas. A datação por 14C indica que os artefatos
(11.000 anos A.P.) expostos por deflação de parte da camada de areias onde se
encontravam foram transportados e assentados junto a restos de carvão de uma fogueira
mais jovem (3.400 anos A.P.). Alguns artefatos estão acomodados sobre a área de
interdunas atual, composta dos depósitos de playa lake mais antigos da região. Fonte:
modificado de Waters (1992).
113

Artefatos

A4

L7

A3

L6
A2

L5

L4 Figura 5.28. Perfil vertical do Sítio Arqueológico de Dry


Creek, Alasca, USA, composto por camadas de loess (L)
intercaladas com níveis de areias eólicas (A) dispostas
sobre depósitos de granulometrias grossas de planície de
L3 lavagem (PL). Nas camadas L3 (2 ocorrências), L5 (1
ocorrência), L6 (1 ocorrência) e L7 (1 ocorrência)
,registraram-se períodos de estabilidade correspondentes a
5 paleossolos; apenas no mais recente deles (L7) não foram
A1 encontrados artefatos. As idades, medidas pelo método do
14
L2 C, foram: L2 = 11.120±85 anos, L3 inferior = 11.120±85
anos, L3 médio = 10.690±250 anos, L3 superior =
9.340±195 anos, L5 inferior = 8.355±190 anos, L5 médio =
L1 8600±460 anos, L5 superior = 6.270± 110 anos, L6 inferior
= 4.670±75 anos, L6 médio = 3.655±60 anos e L5 superior
= 3.430±75 anos. Fonte: Waters (1992), modificado.
PL

Ambiente em leque aluvial

O ambiente em leque é próprio de regiões com acentuada diferença


topográfica. Os sedimentos das áreas mais elevadas deslocam-se pelo
interior de uma garganta (canyon), graças à gravidade, alcançando as
regiões vizinhas, com menor gradiente, onde se depositam na forma de um
segmento de cone, distribuído radialmente. A designação deve-se à sua
forma quando vista em planta: a de um leque aberto.
A abundância de sedimentos disponíveis e a diferença acentuada de
relevo, condições essenciais para sua formação, ocorrem tanto subaérea
114

(ambiente em leque aluvial) quanto subaquaticamente (ambiente em leque


submerso = turbidito). Por razões óbvias, interessa-nos aqui o ambiente
em leque aluvial (figura 5.29), cujo maior potencial de preservação está
nas regiões com climas áridos ou semi-áridos quentes. Às vezes, as
porções médias e finas de um leque aluvial alcançam um corpo de água,
tais como um estuário, um lago ou um oceano, oportunidade em que o
depósito recebe o nome de leque deltaico (fan delta).

Leques aluviais Lago de deserto (playa lake)


Montanhas
(rochas-fonte)

Dunas, interdunas e wadi

Figura 5.29. Bloco-diagrama, onde estão registrados, em seção e perfil, as rochas-fonte e


os depósitos de leques aluviais, dunas, interdunas, fluviais (wadi) e lacustres (playa lake),
em clima árido quente. Fonte: Allen e Collinson (1986), modificado.

As dimensões dos depósitos em leque aluvial são variáveis, podendo


atingir algumas poucas centenas de metros até várias dezenas de
quilômetros de extensão. Um corte transversal (A-A’, figura 5-30) realizado
em sua região intermediária mostra que ele possui um perfil convexo para
cima (forma de “arraia”), enquanto o corte longitudinal (B-B’, figura 5-30)
apresenta-o côncavo para cima e assimétrico na espessura, pois a maior
possança está nas proximidades da área-fonte. Assim, é possível dividir
essa sedimentação em leque proximal (LP), que é a porção do depósito
mais próxima da área fonte e que se constitui por sedimentos mais
grossos, leque distal (LD), situado à maior distância desde as rochas
fornecedoras, e cujos sedimentos são os mais finos, e leque médio (LM),
posicionado entre os dois anteriores e formado por granulometrias
intermediárias entre eles (figura 5.30).
115

Os principais mecanismos de transporte dos detritos que os


constituem são o fluxo de detritos (debris flow), o fluxo de lama (mudflows)
e o fluxo aquático (water-laid deposits). O fluxo de detritos forma depósitos
com granulometria grossa, mal selecionada, com arranjo caótico, ou, mais
raramente, com estrutura gradativa inversa, suportados em matriz
lamítica,

LM LP

LD

LP C
LM
B LD

Figura 5-30. Esboços de leque aluvial. A. Vista em planta do depósito e dos fluxos de
água que se deslocam sobre ele nos períodos de chuva. Estão aí representados o corte
transversal (A-A’) e o longitudinal (B-B’) observados em detalhe nos desenhos B e C,
respectivamente. LP = leque proximal, LM = leque médio e LD = leque distal. B. Vista
frontal (corte transversal) evidenciando a acumulação sucessiva dos depósitos e seu
retrabalhamento realizado pelos fluxos de água (canais). C. Vista lateral (corte
longitudinal) e a distribuição aproximada do LP, LM e LD. Fonte: Suguio (2003), com
modificações.

intercalados às sedimentações de fluxo aquático; o fluxo de lama é quase


inteiramente composto por material fino (silte e argila) e médio (areia), que
se deposita tanto nas áreas canalizadas como nas não-canalizadas dos
leques. O fluxo aquático é, geralmente, do tipo fluvial entrelaçado (braided)
e forma, na região proximal, depósito de material grosso imbricado
estratificado horizontalmente e, na região medial, psefitos clasto suportado
116

ou matriz suportada, bem como arenitos, ambos com estratificações


cruzadas. Há também a ocorrência de arenitos laminados, porém a
presença de pelitos laminados ou maciços já é bem mais raro.
A porção do leque situada nas vizinhanças da área-fonte constitui o
leque proximal (figura 5.31), e a parte mais distante dela, o leque distal,
colocando-se, entre as duas, o leque medial. De uma maneira geral, há a
possibilidade de se prever com relativa segurança, que as mais grossas
granulometrias situar-se-ão no leque proximal (domínio dos psefitos), as
médias, no leque medial (domínio dos psamitos) e as finas, no leque distal
(domínio dos pelitos). Independente da distância da área-fonte, os
depósitos apresentam registros de canais escavados e preenchidos em
períodos chuvosos.

Figura 5.31.
Depósito de leque
aluvial proximal,
constituído por
conglomerado mal
organizado, com
seixos de basaltos e
arenitos de
dimensões variáveis
mergulhados em
matriz arenosa.
Formação Gravataí,
Terciário do RS,
Município de
Lajeado. Foto:
Carlos Henrique
Nowatzki.

É ainda comum que a deposição de sedimentos ocorra durante algum


tempo em apenas uma porção do leque e não nas demais. Isso torna as
últimas áreas estabilizadas onde se concentram depósitos residuais (seixos)
por deflação (eólica) das areias ou até que se desenvolvam solos. O retorno
das condições deposicionais nesses pontos soterrará os seixos ou os solos,
117

os quais irão se intercalar aos sedimentos depositados por fluxo de detritos,


de lama ou hidrodinâmicos.
Há a possibilidade de preservação de sítios arqueológicos caso eles se
situem em áreas estabilizadas de leques aluviais (figura 5.13), por onde
não migrem os fluxos. Se, porém, ocorrer aí a passagem de algum desses
transportantes, os artefatos serão arrastados declive abaixo e irão se
depositar em um contexto secundário, como bem ilustram os exemplos de
Borax Lake, Calico Hills e Pinto Wash na Califórnia, USA.
A preservação também pode ser viabilizada se o soterramento dos
artefatos for profundo o suficiente para não ser alcançado pelos fluxos.
Esse foi o caso dos sítios arqueológicos de Vermilion Lakes, Christensen e
Second Lakes, Canadá, onde os sítios foram constituídos simultaneamente
por deposição eólica de silte sobre antigos depósitos de fluxo de detritos.
Posteriormente, novos fluxos gravitacionais soterraram os vestígios do
assentamento humano.

Ambiente fluvial

Por ambiente fluvial entende-se aquele onde a erosão, o transporte e


a deposição de detritos são realizadas por um rio, o tronco principal de um
sistema de drenagem. Os rios são fluxos de água confinados em um canal,
e são os responsáveis maiores pelas grandes modificações que acontecem
na fisionomia da Terra.
Para alguns, é preferível utilizar a expressão ambiente de planície de
inundação, pois, assim, se caracteriza melhor a porção intermediária de um
rio que, em essência, é composto ainda pelas cabeceiras, onde se
desenvolve o ambiente em leque, e pela foz, onde se situa o ambiente
deltaico (figura 5.32). Esse conjunto de ambientes – leque, planície de
inundação e delta – constitui o Sistema Fluvial, como já visto
118

anteriormente. Nesta obra, ambiente fluvial tem o mesmo sentido de


ambiente de planície de inundação.

Cabeceiras Porção intermediária Foz


Ambiente em Leque Ambiente de Planície de Inundação Ambiente Deltaico

Domínio das partículas Domínio das partículas médias (2mm a 0,062mm) Domínio das partículas
grossas (+ 2mm) finas (- 0,062mm)

Sentido do fluxo

2
A
1 3
1 4
5
1

Figura 5.32. Esquema de Sistema Fluvial. A. Perfil longitudinal. B. Vista em planta. 1 =


substrato; 2 = depósitos gravitacionais; 3 = depósitos tracionais e suspensivos; 4 =
depósitos suspensivos e tracionais; 5 = lago, mar, laguna ou oceano. Fonte: Suguio
(2003), modificado.

O suprimento de água para os rios é provido especialmente pelas


chuvas e pela água subterrânea. A intensidade das chuvas e a relação da
seção do canal com a velocidade das águas determinam a competência21 e
a capacidade22 do fluxo. Deve-se levar em conta também o mergulho
regional porque a água é conduzida pela gravidade desde as porções mais
elevadas até as mais baixas, onde se acumula (nível de base23) e forma as
lagoas, os lagos, os oceanos, etc. Em função dessas variáveis e da litologia
e estrutura do substrato, os canais dos rios podem diferir uns dos outros ou
até mesmo ao longo de apenas um deles; seus depósitos mostram um

21
Aptidão do agente transportador em deslocar determinado tamanho de detritos.
22
Volume de carga transportada.
23
Limite abaixo do qual a ação erosiva dos rios não consegue mais rebaixar uma região.
119

baixo grau de seleção e, num perfil vertical, correspondem a ciclos com


granulometria granodecrescente para o topo.
Os padrões básicos de canais de rios são: meandrantes (meandering,
figura 5.33A), retos (straight, figura 5.33B), entrelaçados (braided, figura
5.33C) e anastomosados (anostomosing, figura 5.33D). Alguns
pesquisadores sugerem que os dois extremos são os canais entrelaçados e
os meandrantes, enquanto o reto é apenas um estágio intermediário entre
aqueles dois. Também defendem o ponto de vista de que a criação de um
modelo de rio com canal anastomosado, por se tratar de uma descoberta
recente, provavelmente seja uma precipitação.

A B

C D
Figura 5.33. Esboços dos tipos de canais. A. Rio com canal meandrante. B. Rio com canal
reto. C. Rio com canal entrelaçado e D. Rio com canal anastomosado. Fonte: Allen (1970),
modificado.

Típicos rios com canais retos dificilmente são encontrados na


natureza, pois seu talvegue24 é sinuoso em resposta às barras laterais
situadas alternadamente em cada margem. Não é incomum que se forme

24
Linha que une os pontos de maior profundidade do canal.
120

em resposta às acentuadas diferenças topográficas entre a cabeceira, a


porção intermediária e seu nível de base. São correntes de água que
percorrem com grande velocidade a região por onde passam e
caracteristicamente possuem alto poder erosivo e de transporte. Em alguns
rios com canais retos, o vale é profundo e em forma de “V”, e a taxa de
sedimentação de materiais médios e finos é pouco expressiva ao longo do
percurso intermediário. Grossas partículas, de grânulos a matacões,
atapetam o canal fluvial dificultando o fluxo da água e gerando corredeiras
(figura 5.34).

Figura 5.34. Trecho de rio com


canal reto. Apesar do baixo nível das
águas, o fluxo passa com grande
velocidade porque é significativa a
diferença entre a altitude desse local
e o nível de base do rio. Há uma
grande quantidade de clastos
grossos no canal e a formação de
corredeiras. Rio Maquiné, Maquiné.
RS. Foto: Carlos Henrique Nowatzki.

Os rios entrelaçados (braided) apresentam grande acúmulo de


clastos, especialmente areias (rios braided arenosos = > 10% seixos,
figura 5.35) e seixos (rios braided seixosos = < 10% de seixos), na forma
de barras – vegetadas ou não - no seu amplo canal. Elas tornam difícil a
passagem da água, que acaba escoando entre os depósitos através de
múltiplos e rasos canais. Em períodos de seca, é possível ver nos canais
pequenas dunas e ondas de areia sobrepostas às barras que se dispõem
transversal, oblíqua ou longitudinalmente ao fluxo.
Esses rios desenvolvem-se em regiões com forte mergulho e
abundância de areias e seixos. O volume de detritos à disposição é de
ordem tal que supera a capacidade do rio, contribuindo, assim, para o
desenvolvimento das inúmeras barras. O rio braided caracteriza-se por
121

apresentar curtos períodos de cheias, quando, então, as barras são


movimentadas, seguidos por longos períodos de baixa ou moderada
descarga, quando elas quase se imobilizam; é comum, inclusive, que esses
rios sequem em períodos de significativa escassez de chuvas.
As granulometrias mais grossas de um ambiente de planície de
inundação são aquelas sedimentadas no canal constituindo os depósitos de
acréscimo lateral, pois ele se desloca lateralmente. Destacam-se aí os
depósitos residuais de canal (maiores que 2mm), as barras em pontal
(areias, figura 5.36) e as barras de canal (areias acumuladas como dunas
3D e 2D, figura 5.36). A mobilidade lateral deve-se à erosão na parte
côncava das curvas e à deposição do material erodido na parte convexa das
curvas seguintes.
Os rios anastomosados (anastomosing) constituem-se por uma rede
de canais interconectados, relativamente profundos e estreitos, separados
por baixios pantanosos síltico-argilosos, com ilhas vegetadas e diques
marginais. Eles se desenvolvem em planícies aluviais com baixo gradiente e
alta taxa de subsidência sendo freqüentemente encontrados em planícies
costeiras e ambientes deltaicos.
Os poucos exemplos até agora sugeridos como anastomosados no
registro (figura 5.36) mostram que (a) os canais são estáveis, (b) existem
espessos depósitos de sedimentos de fina granulometria, (c) ocorrem leitos
de turfa (acima de 98% de matéria vegetal) com espessuras de até 1,5m,
(d) os depósitos da zona de várzea (pelitos laminados com restos vegetais)
podem atingir 6m ou mais de possança, (e) os depósitos de canais (seixos
e areias) apresentam espessura ainda não determinada, (f) as
sedimentações lamíticas dos baixios pantanosos possuem quantidades
variáveis de restos orgânicos, (g) os depósitos de diques marginais são
compostos por areias siltosas ou siltito arenoso, (h) os crevasse splay
(depósitos de rompimento de diques marginais) compõem-se por camadas
de areias e ou seixos.
122

LC

EC

LC

EC
LC

EC

LC

Figura 5.35. Ciclos fluviais granodecrescentes para o topo. Na base dos ciclos (cores
claras), acomodam-se seixos e grânulos, os quais, na porção intermediária, são
substituídos por areias médias; no topo dos ciclos (cores escuras), situam-se areias
médias a finas. As estruturas mais conspícuas são as estratificações cruzadas
tangenciais (dunas 3D) e as estratificações cruzadas tabulares (dunas 2D), ambas de
médio porte (Ashley 1990) bem evidenciadas nas regiões médio-basais dos ciclos (EC).
Sobre as dunas (estratificações cruzadas), acomodaram-se marcas de ondulações
assimétricas (laminações cruzadas tangenciais, LC). Formação Antenor Navarro,
Cretáceo da Bacia do Rio do Peixe, Souza, PB. Foto: Carlos Henrique Nowatzki.

A estabilidade dos depósitos resulta de dois fatores: o alto poder


coesivo das finas granulometrias e a ação protetora das raízes, pois é
expressiva a cobertura vegetal. A falta de mobilidade dos canais e seu
entorno reflete-se em um significativo espessamento dos depósitos.
Os rios meandrantes (figuras 5.37 e 5.38) possuem muitas
sinuosidades, denominadas meandros, porque o rio homônimo da Ásia
Menor apresenta essas feições e lá elas foram estudadas de modo
sistemático. O baixo gradiente regional induz as águas a percorrerem seu
123

vale a baixas velocidades e, conseqüentemente, com pouco poder erosivo e


significativas taxas de deposição lateral e vertical.
O atulhamento do canal com detritos e sua migração lateral obriga a
criação de atalhos, novas passagens que facilitam a passagem das águas.
O canal antigo ou meandro abandonado pode se converter em um lago
fluvial (oxbow lake) por determinado tempo, mas, afinal, será preenchido
por frações finas até ali transportadas e depositadas em épocas de cheias.
Os depósitos verticais são ativados durante fases de transbordamento
e, portanto, apenas aumentam em períodos de cheias. Seus principais
representantes são os depósitos da zona de várzea (lamas, figura 5.38), de
diques marginais ou naturais (levee), compostos por areias e siltes, de
canal (seixos e areias) e de rompimento de diques marginais (crevasse
splay), composto por areias e lamas.
A extensa planície por onde serpenteia o canal do rio apresenta, às
suas margens, a zona de várzea, área de sedimentação de lamas e, se o
clima for favorável, de expressiva ocupação florística. Durante enchentes,
areias finas e siltes podem ser transportados em suspensão no leito do rio.
Este, ao extravasar, deposita aquelas frações sobre a zona de várzea,
imediatamente após o canal, pois a corrente apenas é competente para
transportá-los dentro do canal e não na zona ribeirinha; dessa forma, surge
uma sedimentação alongada à beira do canal, denominada dique marginal
ou natural.
124

Figura 5.36. Sedimentitos com deposições fluviais de rio anastomosado. Depósitos de


acréscimo lateral: 1. Barras de canal (arenitos grossos a médios com estratificação
cruzada festonada de médio e pequeno porte). Ocorrem grânulos e seixos. Sentido das
paleocorrentes: na direção dos observadores. 2. Barra em pontal (arenitos médios a finos
com estratificação cruzada tangencial de médio porte) cujo sentido das paleocorrentes é
da esquerda para a direita. Depósitos de acréscimo vertical: 3. Meandro abandonado
(pelitos arenosos); 4. Zona de várzea (pelitos laminados com raízes). Formação Exu,
Cretáceo da Bacia do Araripe, Araripina, PE. Foto: Carlos Henrique Nowatzki.

Durante uma enchente, os diques marginais podem ser rompidos


pela pressão da água, e seus sedimentos areno-siltosos são arremessados
na forma de leques submersos sobre os depósitos da zona de várzea.
Os vales fluviais estão entre os locais preferidos de ocupação pelos
seres humanos, principalmente pelas facilidades que oferecem à sua
sobrevivência. Porém, é variável o potencial de preservação de artefatos de
sítios arqueológicos desenvolvidos em ambientes de planícies de inundação.
125

N
MA

Figura 5.37. Rio Camaquã


(RC) e uma ramificação sua
com canal meandrante (à
direita). São bem visíveis no
canal secundário as barras
BC APem pontal (BP) e as barras
de canal (BC). Na zona de
BP várzea, apesar da ocorrência
de áreas de plantio (AP), a
ocupação por vegetação
AP nativa (VN) ainda é
significativa. MA = meandros
abandonados. Quebra
VN
Mastro, Município de
Camaquã, RS. Foto:
Henrique Carlos
RC Fensterseifer.

VN

ZV

DN

MA

CS
BP

Figura 5.38. Esboço de rio com canal meandrante e alguns de seus depósitos. DN = dique
natural ou marginal; ZV = zona de várzea; BP = barra em pontal; CS = crevasse splay e
MA = meandro abandonado. Fonte: modificado de Allen (1970).
126

SOLO
4
3

Figura 5.39. Depósitos de planície de inundação de rio com canal meandrante. Depósitos
de acréscimo vertical: 1. Zona de várzea (pelitos laminados localmente fluidizados ou
maciços) mais antiga e 4. Zona de várzea (pelitos laminados parcialmente edafizados)
mais jovem. Depósitos de acréscimo lateral: 2. Barras em canal (arenito fino siltoso com
estratificação cruzada festonadas de médio porte). Paleocorrente na direção do observador
e 3. Barra em pontal (arenito muito fino argilo siltoso com estratificação cruzada
tangencial de pequeno porte). Paleocorrente da direita para a esquerda. Formação Rio do
Rasto, Membro Morro Pelado, Permiano da Bacia do Paraná, Esteio, RS. Fonte: Nowatzki
(1997).

Ocupações realizadas ao longo de canais de rios braided ou sobre


suas barras são usualmente removidas em períodos de cheias, e os
artefatos aí existentes são transportados e redepositados em um contexto
secundário (arteclastos25).
Já aldeamentos desenvolvidos em áreas de ocorrência de rios
meandrantes propiciam melhores condições para que aí permaneçam os
registros da passagem humana, da flora e da fauna. Artefatos encontrados
em depósitos de acréscimo lateral (residuais de canal, barras de canal e
barra em pontal) estão, normalmente, em um contexto secundário,
enquanto aqueles associados à sedimentação vertical (zona de várzea,
crevasse splay, diques marginais e de preenchimento de canais) estão no
contexto primário (figura 5.40). Os lagos fluviais são locais favoráveis à
preservação de restos vegetais (polens, fitólitos e diatomáceas) e animais

25
Artefatos retrabalhados e redepositados por algum agente transportante natural.
127

(moluscos e peixes, por exemplo), poderosos auxiliares nas reconstituições


paleoflorísticas, paleofaunísticas e paleoecológicas.
Nas planícies de rios anastomosados, existem as mesmas feições
morfológicas que as encontradas em rios meandrantes, exceto a dos
meandros abandonados. Por essa razão, os locais e as possibilidades de
preservação de vestígios da ocupação humana são os mesmos daqueles já
citados para os rios de canais sinuosos.

Areias siltosas (CS)

Areias siltosas (DN)

Areias/sei-
xos (C)
Lamas e lamas carbonosas (ZV)

Figura 5.40. Associação de depósitos de planície de inundação de rio com canal


meandrante e sítios arqueológicos ( ): ZV = depósitos lamosos da zona de várzea; CS =
sedimentação areno-siltosa do crevasse splay; DN = areias siltosas constituintes dos
diques marginais e C = seixos e areias com artefatos caídos ou jogados para dentro do
canal ou meandro abandonado. Fonte: Waters (1992), com modificações.

Em regiões áridas e semi-áridas quentes, durante períodos de


chuvas, surgem cursos de água efêmeros canalizados, denominados
arroios. Seu leito permanece seco a maior parte do ano, fluindo as águas
durante eventos de cheias rápidas e catastróficas por apenas algumas
horas ou dias, após a queda de intensas chuvas. Um ou mais arroios
podem se dirigir a um único local onde se situa seu nível de base e, nesse
ponto, parte dos sedimentos erodidos à montante que não foram
depositados no canal (dominantemente seixos e areias) acumulam-se na
forma de um leque aluvial, o equivalente terrestre do delta fluvial. Graças à
formação das barras no canal, os arroios assumem o padrão braided com
muitos canais pequenos unindo-se e divergindo em torno dos depósitos.
128

Durante os períodos de seca, o vento acumula as areias na forma de


dunas eólicas que, caso sejam preservadas, aparecerão no registro
geológico associadas aos sedimentos fluviais, compondo as intercalações
sedimentares água-vento, típicas de ambientes desérticos quentes.
Os artefatos localizados no canal de arroios estão usualmente em
contexto secundário, porém, nas áreas de baixo gradiente, onde as paredes
do canal possuem menor altura, as águas carregadas de sedimentos
(seixos, areias, siltes e argilas) extravasam na forma de fluxo em lençol
(sheetflow), depositando os clastos sobre os vestígios humanos, sem
perturbá-los.
Também os terraços fluviais, superfícies relativamente planas
situadas às margens de um vale fluvial e que limitam um antigo nível desse
vale, podem conter artefatos. A interpretação das idades dos artefatos,
contudo, nem sempre corresponde à das datações geocronológicas e à dos
de correlação litoestratigráfica entre os terraços da região, pois sucessivas
fases de erosão, transporte, deposição e soterramento podem misturá-los.
A dinâmica fluvial em um vale não é representada apenas por períodos
erosivos, quando se formam os chamados terraços erosionais (cut
terraces), mas também por épocas de “preenchimento” desse vale com
sedimentos, isto é, por intervalos de agradação, responsáveis pela
formação dos terraços deposicionais (fill terraces). Os depósitos
agradacionais originam uma nova superfície, que formará um novo terraço,
que poderá conter artefatos mais antigos até ali trazidos durante tal etapa
agradativa.
A superfície plana ou bancada (tread) do terraço limita-se, de um
lado, por uma escarpa (riser), e do outro, pela parede do vale ou pela
escarpa do terraço seguinte, assumindo o conjunto a forma de degraus de
uma escada. A bancada do terraço deposicional é criada em dois tempos:
sedimentação dos depósitos de acréscimo lateral e vertical fluviais e
posterior erosão parcial deles, permanecendo num nível topograficamente
mais elevado os sedimentos da zona de várzea que irão constituir a
129

bancada. Estabilizando-se o rio em um nível inferior, há uma parada dos


processos erosivos responsáveis pelo aprofundamento de seu vale. O rio
volta a meandrar, erodindo os seus depósitos mais antigos e criando novas
sedimentações verticais e laterais situadas em nível topograficamente
inferior ao daqueles mais velhos, os quais ficam separados entre si por uma
escarpa. Esse processo é, portanto, o responsável pela formação de
sucessivos terraços, sendo eles tão numerosos quanto forem as repetições.

BANCADA ESCARPA
A

T2 T2
T1 T1
Figura 5.41. Terraços
fluviais. A. Originados
por deposição. B.
Formados por erosão.
Ambos são modelos de
terraços que permitem
a correlação entre as
bancadas de mesmo
B nível topográfico dos
dois lados do vale, pois
T2 T2 elas são cronológica-
T1 T0 T1 mente corresponden-
tes. Já o terraço C,
também originado por
erosão, é do tipo não-
correlativo porque as
bancadas de mesmo
nível topográfico de um
lado não correspon-
dem, cronologicamen-
te, às do outro lado do
C T3 vale. As flechas indi-
cam o sentido da
T3 erosão que formou os
T2 terraços. Fonte: modifi-
T1 cado de Waters (1992),
T0 Muller e Oberlander
(1984).

É possível ainda que os terraços fluviais se originem por erosão de rochas


preexistentes e não a partir dos depósitos fluviais do rio que os cria. Nesse
caso, após a formação do terraço mais antigo, situado topograficamente
130

mais elevado, o rio aprofunda seu vale, abandona-o e passa a escavar uma
outra bancada em posição mais baixa (figura 5.41).
As relações topográficas entre as bancadas existentes em ambos os
lados do vale podem classificá-las como parelhas, se situadas como
elevações equivalentes, ou não-parelhas, quando as altitudes forem
diferentes. As parelhas são criadas em uma zona de várzea muito ampla,
que é erodida verticalmente, e as não-parelhas são geradas pela erosão
lateral simultaneamente ao aprofundamento do canal. Em ambos os casos,
o terraço mais velho é o mais elevado e o mais baixo, o mais jovem.
Vestígios de ocupação humana podem ser encontrados em terraços
fluviais mais antigos ou mais novos. Deve-se ter em consideração, contudo,
que (1) os terraços mais antigos estão há mais tempo disponíveis à
ocupação humana e, conseqüentemente, podem apresentar registros com
idades diversas e, (2) à medida que nos aproximamos dos terraços mais
novos, menor é a mistura e a idade dos artefatos.

Ambiente litorâneo

O entorno de grandes corpos de água, tais como lagos, lagunas,


mares e oceanos, encontram-se entre os locais preferidos para
assentamento humano. A razão, além da presença da água, é a boa
disponibilidade de alimentos. Os depósitos sedimentares de baias, campos
de dunas eólicas litorâneas, estuários, praias, pântanos e deltas podem
conter artefatos que registram a ocupação desses locais por seres
humanos. A variação do nível da água influencia o posicionamento da
ocupação: durante os eventos regressivos, a população acompanha o
descenso da água, e quando da transgressão, ela se desloca no sentido
inverso26 (figuras 5.42), como já visto no Capítulo 2. Isso significa que,

26
A variação do nível dos oceanos, denominada eustasia, pode processar-se como transgressão (subida) ou
regressão (descida) das águas. A eustasia pode ocorrer devido a movimentos tectônicos (ascensão ou descenso
de blocos de rocha), erosão ou deposição na linha de costa e aumento ou diminuição das calotas polares.
131

quando da regressão, os artefatos abandonados num nível topográfico mais


elevado podem ser retirados do sítio primário por correntes aquáticas que
migram à busca de seu novo nível de base, sendo redepositados ao longo
do curso de água ou na sua desembocadura (delta), passando a constituir
um sítio secundário. No caso da transgressão, os artefatos deixados para
trás podem ser retrabalhados pelas ondas e jogados por elas em níveis

2 c
PW b
1
Lama
a
Calcário

Areia

Embasamento NM – Nível do mar A

PW
Areias e lentes 2 c
b
com seixos a
1
Calcário

Lama

Embasamento NM – Nível do mar B

Figura 5.42. Esboço de transgressão e regressão marinha. A transgressão (A) deslocou-


se da direita para a esquerda, e a regressão (B), da esquerda para a direita e, por essa
razão, o nível de base dos rios desce e suas águas avançam no sentido da regressão. As
superfícies a, b, c são isócronas e as de números 1 e 2 indicam as superfícies de contato
entre os depósitos. PW = perfil vertical e a Lei de Walther. Fonte: modificado de Mendes
(1984) e Boulin (1977).
132

topográficos mais elevados do que aqueles onde se encontravam (sítio


secundário), ou permanecerem submersos na posição em que foram
deixados pelos humanos (sítio primário).
O quadro, porém, não é tão simples, pois os diversos fatores
responsáveis pelas oscilações do nível da água podem atuar em conjunto
ou isoladamente, dificultando a interpretação. Soma-se a isso o fato de que
o litoral está sujeito, normalmente, não apenas a um processo regressivo-
transgressivo, mas a diversos eventos sobrepostos.
É importante levar em consideração a Lei de Whalter27, quando da
interpretação de depósitos sedimentares transgressivos e regressivos, pois
ela é uma auxiliar básica na interpretar das mudanças ambientais ocorridas
na região ao longo do tempo, sendo, portanto, um poderoso instrumento
na reconstituição da paleogeografia local (figura 5.42A, B).
Por sua expressão areal, as regiões litorâneas mais constantemente
ocupadas pelo ser humano são as oceânicas, motivo pelo qual são elas aqui
mais correntemente relacionadas ao registro de sua presença.
A região costeira sofre a ação erosiva e deposicional de uma série de
agentes, entre eles as ondas, as correntes marinhas e as marés. As
primeiras são devidas à ação do vento, que ondula a superfície da água em
oceano aberto; as marés resultam da subida e descida da água do oceano
duas vezes a cada 24 horas, enquanto as correntes são fluxos de água que
se deslocam paralela, diagonal e transversalmente à costa.
A onda se caracteriza por apresentar um ponto elevado (porção mais
alta da água acima do nível da água calma), chamada crista, e um outro,
deprimido (porção mais profunda da água abaixo da água calma),
denominada sulco. A distância horizontal entre duas cristas adjacentes
corresponde ao comprimento de onda, e a distância vertical total entre uma
crista e um sulco é a altura da onda. A coluna de água posicionada

27
A Lei de Whalter ou Lei da Correlação de Fácies foi introduzida por Johannes Whalter em
1894 e estabelece que uma sucessão vertical de fácies transgressivas ou regressivas
contém a ordem de distribuição horizontal dessas mesmas fácies, desde que elas
estejam em conformidade.
133

diretamente sob cada elevação possui movimento circular decrescente para


baixo; ele desaparece a uma profundidade igual à metade do comprimento
da onda, ponto denominado base da onda. Apenas a porção superficial da
onda movimenta-se na direção da praia, permanecendo estática a água
com movimentos orbitais. Ao se aproximar da praia, a água circulante
inferior toca o fundo do oceano, ocasionando a distorção do movimento
orbital superficial, o que provoca um levantamento e inclinação da onda
para frente. À medida que continua a mover-se em direção a terra, ela
dobra-se sobre si mesma e colapsa, transformando-se em ondas de
translação, na zona de surf (rebentação). O deslocamento continua em
direção a terra na forma de uma fina torrente de água denominada swash
(espraimento), cujo retorno gera um fluxo ainda mais fino chamado
backwash; ambos (swash e backwash) constituem a zona de swash (figura
5.43).

Espraiamento (swash)
Comprimento de onda Quebra da onda
Rebentação (surf)

CRISTA
Altura
da onda
SULCO

Metade do compri-
Base das ondas mento de onda
Sedimentos ou rochas

Figura 5.43. Perfil de uma região litorânea com as ondas e seu movimento orbital
(círculos) avançando na direção do continente à direita. Fonte: Waters (1992), modificado.

O movimento das ondas induz à formação de uma série de correntes,


tais como correntes de retorno (rip currents), também conhecidas como
repuxo, correntes longitudinais internas (longshore currents) e correntes
longitudinais externas (coastal currents). As correntes de retorno
deslocam-se do litoral para o mar aberto, podendo atingir a distância de
134

1.500 metros desde a praia. Elas se originam porque as águas jogadas


sobre a praia retornam perpendiculares à linha de costa com velocidade
que pode alcançar 3.700m/h; as longitudinais internas, situadas entre a
zona de quebra das ondas e a praia, geram-se por ação de ondas que
migram obliquamente à linha de costa; as longitudinais externas formam-
se antes da zona de quebra das ondas, sentido mar aberto - praia. Elas
também se deslocam paralelas à costa e são originadas pela atividade do
vento ou por correntes de maré.

Planícies de maré
As correntes de maré são fluxos devidos a movimentos de elevação e
queda do nível dos oceanos pela atração gravitacional do sol e da lua,
fenômeno que se repete alternadamente duas vezes a cada 24 horas. A
amplitude da maré é a diferença medida entre o nível máximo de subida da
água durante a maré alta (maré enchente ou preamar) e a de descida dela
na maré baixa (maré vazante ou baixa-mar). Nesse aspecto, uma região
litorânea pode apresentar micromarés (abaixo dos 2m de amplitude),
mesomarés (entre 2m e 4m de amplitude) ou macromarés (acima dos 4m
de amplitude). As correntes geradas pelas marés vazantes são mais rápidas
do que as de enchente, podendo, em média, atingir os 2,9km/h, como
ocorre em Paranaguá (PR). Nas mesomarés, a velocidade das correntes
pode alcançar 5,4km/h e, nas macromarés, chega a atingir 9,0km/h.
Como conseqüência da ação das marés, na região desenvolve-se uma
significativa extensão de pântanos posicionada ao longo de uma planície
delimitada pelos níveis das marés baixas e altas, denominada planície de
maré. Nos pântanos, dominam as lamas e, na planície de maré,
sedimentam-se lamas e areias.
A planície de maré é dividida em Zona Inframaré (Subtidal Zone),
subaquática, situada abaixo do nível da maré baixa, Zona Intermarés
(Intertidal Zone), situada entre o nível da maré baixa, oportunidade em
que fica exposta subaereamente, e o da maré alta, quando é encoberta
135

pelas águas, e Zona Supramaré (Supratidal Zone), localizada acima do


nível da maré alta (figura 5.44). Esta última apenas é atingida pelas águas
da maré de quadratura (sizígia)28, de tempestades ou a combinação das
duas causas.

Canais de maré
Lagoa

Figura 5.44. Representação de uma região de Planície de Maré, das zonas que a
constituem, dos canais de maré e das lagoas. Fonte: segundo Boggs (1987), modificado.

Os mangues correspondem à Zona Intermarés de regiões tropicais,


com uma vegetação típica, que, no caso brasileiro, é composta por
Rhizophora mangle, Avicennia schaueriana e Laguncularia racemosa.
Na Planície de Maré, ocorrem múltiplos canais de maré meandrantes
por onde as águas das marés enchentes e vazantes se deslocam. No evento
da maré cheia, a água salgada do oceano acaba por transpor os canais e
estende-se sobre toda a região da planície. Durante a maré vazante, o

28
Maré de grande amplitude que ocorre durante a fase de lua cheia e de lua nova ocasionada pela soma das
atrações gravitacionais de sol e lua.
136

processo inverte-se, a água é drenada e a planície fica exposta. Areia fina a


muito fina laminada, silte e argila são os sedimentos da planície, enquanto,
nos canais, depositam-se conchas de moluscos, areia grossa e intraclastos.
Em, ambos os depósitos (planície e canais), estão presentes as
bioturbações.
Na Zona de Supramaré, exposta durante a maior parte do ano,
podem-se desenvolver pântanos salgados em clima temperado quente,
onde se depositam argilas laminadas, silte e matéria orgânica, todos
extremamente bioturbados.
Todas as correntes citadas promovem a erosão, transporte e
deposição de sedimentos aí existentes, de forma mais ou menos
pronunciada, em resposta à variação da intensidade do fluxo.

Deltas
Muitos rios deságuam em grandes corpos de água (oceanos, mares,
lagos, lagunas) onde depositam os sedimentos que trazem do continente
(figura 5.45). Esses depósitos constituirão os deltas, sedimentações
transicionais, pois passam a incorporar aos caracteres continentais os
aspectos físicos, químicos e biológicos do sítio onde se depositam.
A maior parte dos depósitos deltaicos acumula-se sob as águas da
bacia (subaquáticos) de deposição, permanecendo expostos, pelo menos de
modo intermitente, às camadas superiores (subaéreas), onde constituem
os sedimentos paludais.
137

Figura 5.45. Delta


construtivo alongado do Rio
Camaquã em construção na
Laguna dos Patos, Município
de Camaquã, RS. As setas
mostram o Rio Camaquã (RC),
os distributários e as baias ou
planícies interdistributárias
(D/BD). São visíveis os finos
sedimentos que se projetam
abaixo do nível da água desde
os distributários laguna
adentro. Eles irão constituir a
RC fácies de fundo e a fácies
frontal. A porção superior
D/BD vegetada é a fácies de topo ou
planície deltaica. Imagem do
satélite Landsat. Acervo do
Laboratório de Sensoriamento
Remoto e Cartografia –
LAGUNA DOS PATOS LASERCA da UNISINOS.

Os deltas podem ser dominados pelos rios (deltas construtivos, figura


5.45), pelas ondas ou pelas marés (deltas destrutivos). Os deltas
construtivos formam-se quando a energia da bacia receptora é baixa, e os
destrutivos, quando os níveis de energia da bacia são altos (figura 5.46).
O canal fluvial, ao alcançar seu nível de base situado na bacia
receptora, ramifica-se em canais menores, os distributários, que são
separados por áreas mais deprimidas cobertas por água, chamadas baias
ou planícies interdistributárias, semelhantes às das zonas de várzeas das
planícies de inundação (figura 5.45). Os sedimentos conduzidos pelo rio
são jogados na bacia a partir da extremidade final dos distributários
(desembocadura) distribuindo-se em três fácies: prodelta, frente deltaica
e planície deltaica (figura 5.47).
138

Figura 5.46. Esboço de


deltas. Os deltas
construtivos podem ser
do tipo lobado (esquema
ao lado) ou alongado
como o do Rio Camaquã,
RS (figura 5.44). Nos
modelos construtivos, a
ação fluvial é dominante
sobre os processos
relacionados à bacia re-
ceptora. Os deltas des-
trutivos correspondem
àqueles onde a ação das
marés ou das ondas
domina sobre os proces-
sos fluviais. Fonte:
Suguio (2003), modifica-
do.
139

NM SP
FD

PD

AP
SM Rocha preexistente

Figura 5.47. Perfil de um delta construtivo. O continente está à direita e a bacia


receptora, à esquerda. NM = nível do mar; SP = sedimentos paludais; FD = frente
deltaica; PD = prodelta; AP = argilas da plataforma; SM = sedimentos marginais. As

O prodelta é composto por lamas, essencialmente argilas-siltosas,


sedimentadas na plataforma continental, abaixo do nível de ação das ondas
normais. Nesses depósitos, além da presença de restos de vegetais e de
animais, podem estar presentes as estruturas laminadas, wavy e linsen.
Sobre as lamas do prodelta, ocorrem os depósitos siltosos e arenosos da
frente deltaica, os quais assumem a geometria sigmoidal (figura 5.48) e
apresentam estratificações cruzadas sigmoidais29; laminações cruzadas
cavalgantes, na base daquelas formas, e laminações cruzadas tangenciais,
no topo delas, são as outras estruturas sedimentares ocorrentes no
depósito. As camadas superiores situam-se acima das da frente deltaica,
sendo compostas por seixos (mais raros), areias, lamas e carvão. As duas
primeiras correspondem a depósitos de canal (barras longitudinais,
transversais ou em pontal), de diques marginais e de crevasse splay, as
lamas, às baias ou planícies interdistributárias, e o carvão, à transformação
sofrida pelos restos vegetais. A região subaérea (acima do nível da maré
alta) é formada por sedimentos paludais. Condicionadas pelo clima, podem
aí ocorrer depósitos de dunas eólicas e de interdunas secos ou úmidos. As
estruturas sedimentares mais representativas são as estratificações nas

29
Estratificação cruzada típica de depósitos arenosos com geometria (limites externos da camada) sigmoidal; isso
ocorre porque o fluxo que transporta os sedimentos perde rapidamente a competência e deposita sua carga. As
camadas assumem a forma de sigma ( ʃ ) inclinado (clinoforma).
140

Figura 5.48. Sigmóides areno-sílticas intercaladas a pelitos da Formação Caturrita, Grupo


Santa Maria, Triássico do RS. RS 287, Município de Candelária. Foto: Renato Bidóia.

areias das barras e dos diques marginais e das dunas eólicas, as


laminações cruzadas e cavalgantes dos diques naturais e dos crevasse
splay e as bioturbações nos depósitos lamíticos das planícies
interdistributárias.
Em algumas regiões do Estado do Rio Grande do Sul (v.g. Rio
Grande, Santa Vitória do Palmar, Bajé, Dom Pedrito), foram encontradas,
em regiões pantanosas e alagadiças, aterros artificiais (cerritos)
construídos por primitivos habitantes, identificados como Povo dos Cerritos.
Esses aterros, de formas elípticas ou circulares com 100 metros de
diâmetro e 6 metros de altura, são compostos por ossos de animais, bolas
de boleadeiras, artefatos de caça, enterramentos, conchas, restos de
cerâmica (potes), etc.
Sobre sedimentos subatuais deltaicos do rio Camaquã e de zonas
litorâneas da Laguna dos Patos (figura 5.49) também foram encontrados
cerritos, cuja idade é estimada entre 2.500 a 1.500 anos A.P. (Rüthschilling
1989).

Praias
As praias desenvolvem-se em regiões costeiras planas, com baixo
gradiente, geralmente compostas por sedimentos terrígenos. Pode-se fazer
um zoneamento da região praial, cuja distribuição no sentido oceano -
141

continente é a seguinte: Costa Afora (offshore), Transição (transition),


Praia (shoreface), Antepraia (foreshore), Pós-praia e Dunas (figura 5.50).
A Zona de Costa Afora se divide em Costa Afora Superior, situada em
profundidades que variam de 2m a 10m e composta por areia fina lamosa
laminada e, por vezes, bioturbada, e Costa Afora Inferior, posicionada
abaixo dos 10m e formada por mega ondulações de areia limpa média a
grossa, comumente envelopadas em lama, não raro com estratificação
cruzada hummocky.

Figura 5.49. Ima-


gem do delta atual
do Rio Camaquã
(DC) e de parte da
Laguna dos Patos,
RS. Os pontos as-
sinalam alguns síti-
os arqueológicos do
Povo dos Cerritos
que se es-
tabeleceram sobre
os sedimentos del-
taicos mais antigos
do Rio Camaquã.
Imagem do satélite
CBERS. Fontes:
LAGUNA DOS PATOS Schmitz et al.
(1970), Ruthschil-
ling (1989) e
DC Bittencourt (1994).

É possível concluir, portanto, que o domínio da lama cresce no


sentido do oceano.
Na Zona de Transição, cujo limite superior se situa no nível de base
mais baixo de alcance das ondas normais, registra-se o acúmulo de areia
siltosa e silte arenoso com estratificações e laminações cruzadas e
bioturbação.
142

Figura 5.50. Perfil de praia incluindo as áreas de dunas, transição e Costa Afora. As
regiões de dunas e Pós-praia são as de ocupação humana. Modificado de Walker (1986) e
Reineck e Singh (1980).

A Zona de Praia, que compreende a região localizada entre a Zona de


Transição e o nível da maré baixa, é formada por areia fina com laminação
cruzada (Praia Inferior, 1m a 2m de lâmina de água), laminação plano-
paralela (Praia Superior, do nível de maré baixa a 1m de profundidade) e
bioturbação.
Entre os níveis de maré baixa e alta, ocorre a Zona de Antepraia.
Constitui-se por depósitos de areia fina e média intercalados com níveis de
conchas. Ocorrem leitos com estratificações cruzadas de baixo e alto ângulo
e laminações cruzadas.
A região que compreende desde o nível da maré mais alta até o
campo de dunas eólicas, corresponde a Zona de Pós-praia, que, se
ocorrente em litorais dominados por ondas, é formado por areias finas a
médias sobre as quais se desenvolvem arroios, riachos e pequenos lagos. A
zona supratidal, em uma região de domínio das marés, é apenas atingida
pelas águas oceânicas em períodos de tempestades e de marés mais
vigorosas. Os sedimentos variam de areias a lamas, com laminações
cruzadas e estruturas orgânicas.
A Zona de Pós-praia pode ser progradante (figura 5.51), deslocando-
se na direção do corpo de água e, em conseqüência, ocorre a migração do
ponto onde se encontram as águas e os sedimentos dessa zona. Desse
processo, resulta a acresção de sucessivos cordões (cristas de praia) de
areia paralelos entre si e, portanto, ao aumento na largura daquela zona.
143

Finalmente, a Zona de Dunas é composta essencialmente por areias


finas a muito finas depositadas como dunas e interdunas eólicas. As
estruturas mais significativas são as estratificações cruzadas de grande
porte e as laminações cruzadas transladantes.

LAGUNA DOS PATOS

Rio Camaquã

Figura 5.51. Fotografia aérea de parte do delta do Rio Camaquã, RS, retratando a atual
linha de costa da Laguna dos Patos e o sentido de sua progradação (seta). Foto: Marco
Antônio Fontoura Hansen.

Na região litorânea oceânica, pode ocorrer ainda a formação de ilhas-


barreira (barrier islands), depósitos alongados de areia dispostos paralelos
à praia, separados do continente por uma laguna30 (figura 5.52). Em
litorais com domínio das ondas, a ilha-barreira é estreita e muito alongada
(figura 5.53); naqueles onde as marés são dominantes ou há equilíbrio
entre maré e ondas, formam-se diversos canais (inlets) que ligam laguna e
oceano dando origem a diversas ilhas pequenas, porém largas. Durante
tempestades, o impacto das ondas pode romper a ilha-barreira em alguns
locais e arremessar seus sedimentos na direção da laguna, assumindo tais
depósitos (washover), a forma lobada.

30
As lagunas recebem água doce dos rios e salgada do oceano, com o qual se conectam por uma ou mais aberturas
(inlets) existentes na ilha-barreira e, por essa razão, suas águas são salobras ou hipersalinas.
144

N
LAGUNA DOS
PATOS Figura 5.52.
CONTINENTE Laguna dos Patos,
RS, porção centro-
ILHA-BARREIRA sul. A ilha-barreira
contém uma série
de lagoas destacan-
do-se entre elas a
Lagoa do Lagoa do Peixe, um
Peixe parque nacional.
Observa-se ainda o
curso inferior do Rio
Camaquã e o seu
delta. A ligação com
o oceano situa-se
mais ao sul, não
Delta do Rio sendo visível.
Camaquã
Imagem do satélite
CBERS cedido pelo
Instituto Nacional
30 km de Pesquisas
OCEANO Espaciais – INPE.
ATLÂNTICO

Figura 5.53. Ilustra-


ção de um segmento
de ilha-barreira. Mo-
dificado de Hayes
(1979).

Em costas com correntes longitudinais internas vigorosas,


micromarés, energia de ondas baixa a moderada e aporte de sedimentos
145

com granulometria variável, pode haver o desenvolvimento de cristas


alongadas de conchas e areias paralelas à praia, isoladas, separadas por
planícies de lama e pântanos progradantes. Essas cristas, denominadas
cherniers, estendem-se por muitos quilômetros e possuem poucos metros
de altura e até 200 metros de largura.
Essas feições são desenvolvidas especialmente em regiões onde rios
atingem a costa, devido à diminuição no influxo de sedimentos carreados
pelo fluxo de água. As correntes longitudinais e as ondas arrastam as lamas
e concentram as areias e as conchas; posteriormente, quando ocorrer novo
aporte de lamas, as ondas e correntes longitudinais internas não
conseguem transportar toda a carga, e as finas granulometrias
sedimentam-se à frente do chenier, avançando na direção do oceano
(progradação). A repetição do processo dá origem às cristas de areias e
conchas paralelas à costa (figura 5.54).

Figura 5.54. Processo de formação de cheniers e a progradação da linha de praia. Fonte:


modificado de Boggs (1987).
146

À medida que ocorre a progradação e novo chenier é criado, ele


passa a ser ocupado pelo homem, o que não implica o abandono definitivo
das cristas mais antigas (figura 5.55).

Figura 5.55. Bloco-diagrama, com o registro de linhas de praia progradantes (I a IV) e


dos cheniers que se desenvolvem à medida que o oceano regride (3 a 5). Os locais com
números arábicos simbolizam locais de assentamento humano. A cor amarela assinala
depósitos de areias (e também de conchas nos cheniers) e as tonalidades esverdeadas, os
sedimentos lamíticos. Fonte: Gagliano (1984), modificado.

Ambiente espélico

O ambiente espélico é o ambiente das cavidades naturais. As


cavernas são o objeto principal dos estudos espeleológicos, ou seja, da
ciência que prospecta essas cavidades, analisa seus processos formativos e
procura reconhecer seus componentes inorgânicos e orgânicos, avaliando
suas relações com o ambiente externo.
O termo espeleologia é de origem grega (spelaion = caverna, logos =
estudo, discurso) e não só abrange o estudo interdisciplinar acima citado,
mas também é empregado para referir uma atividade esportiva e de lazer.
147

Segundo alguns, gruta é o nome genérico da caverna com extensão


superior a 20m, preferencialmente horizontalizada, e abismo, a designação
de uma cavidade subterrânea vertical com comprimento maior do que 10m.
As cavidades podem ocorrer em quaisquer espécies de rochas sendo
mais comuns as dos arenitos, quartzitos, granitos e calcários. As mais
impressionantes pela extensão, complexidade e beleza dos ornamentos são
as cavernas calcárias. Essas surgem graças ao processo de carbonatação,
onde o ácido carbônico (H2CO3) presente nas águas naturais reage com a
rocha carbonática (calcário), normalmente composta por calcita (CaCo3) ou
dolomita (MgCO3. CaCO3), liberando o gás carbônico (CO2) e formando íons
de cálcio (Ca++) e de bicarbonato de cálcio (2 HCO3-), este último bastante
solúvel.
Ao longo do tempo, a água rica em H2CO3 percola pelas diáclases e
poros da rocha promovendo mais carbonatação e aumentando a dimensão
da cavidade. Contudo, ao chegar na abertura (caverna), a água que goteja
do teto sofre um aumento da temperatura e uma queda de pressão, além
da evaporação de parte do CO2. Resulta disso a transformação de uma
porção do bicarbonato de cálcio em carbonato de cálcio, que, por ser
menos solúvel, se precipita dentro da abertura na forma de espeleotemas31
(speleon = caverna, thema = depósito, do grego).
O aspecto morfológico de uma região com rocha calcária exposta ao
intemperismo químico recebe o nome de paisagem cárstica (de karst, em
alemão). Ela apresenta canhões (canyons), que são gargantas estreitas e
profundas com paredes verticais, lapiás (lapiaz), uma superfície muito
sulcada com profundidades de até 1m, dolinas, depressões de forma oval
ou circular, semelhante a um funil, em cujo fundo está depositada argila
avermelhada (figura 5.56), e poljés, planícies cársticas com centenas de
metros de largura e comprimento inferior a essa dimensão.
Uma região cárstica compõe-se, em subsuperfície, por três zonas
(figura 5.56): uma porção inferior ou freática, permanentemente inundada

31
Estruturas decorativas das cavernas, tais como estalactites, estalagmites, cortinas, etc.
148

por água que se desloca por pressão hidrostática mediante “sifões” através
de galerias conectadas; uma porção intermediária, média ou epifreática,
composta por uma rede de condutos, que podem estar secos em algumas
ocasiões e inundados, em outras. Nessa zona, o escorrimento da água é
lateral e é dela que emergem os rios subterrâneos nas ressurgências dos
vales. Na zona superior ou vadosa, a água circula por gravidade, por
galerias, abismos e poços (cavidades verticais com comprimento inferior a
10m). É nela que se formam, na superfície, os canhões, lapiás, dolinas e
poljés, e, em subsuperfície, as cavernas com seus espeleotemas.

Figura 5.56. Paisagem cárstica evidenciando a diversidade de feições externas e internas


originadas na rocha calcária e a distribuição das zonas freática, epifreática e vadosa.
Fonte: Melendez e Fuster (1981), modificado.

Os espeleotemas mais comuns em cavernas são as estalactites, as


estalagmites, as colunas, as cortinas (figura 5.57) e as pérolas das
cavernas.
As estalactites (stalactos = que escorre em gotas, do grego) são
deposições cônicas de calcário, que se projetam do teto na direção do solo
das cavernas; são formadas pelo gotejar da água carregada de carbonato
de cálcio.
149

Cortinas

Estalactites

Coluna
Figura 5.57.
Espeleotemas de
carbonato de cálcio
(calcita) em caver-
na (abrigo) escava-
da em arenito da
Aloformação Var-
zinha, Ordoviciano
da Bacia do Cama-
quã. Varzinha, Mu-
nicípio de Caçapava
do Sul, RS. Foto:
Estalagmites Flora Zeltzer.

As estalagmites (stalagmos = que goteja, do grego) correspondem a


corpos cônicos que crescem a partir do chão das cavernas, cujo vértice
dirige-se para o teto; surgem da deposição de carbonato de cálcio contido
nos pingos da água que goteja do alto da cavidade.
À medida que as estactites e estagmites se desenvolvem, elas se
aproximam e, finalmente, podem se unir transformando-se numa coluna.
150

Já as cortinas, lâminas de carbonato de cálcio que crescem


verticalmente do teto da caverna, são originadas porque a água com CaCO3
não goteja, mas escorre pela superfície e deposita aquele composto
linearmente.
As pérolas das cavernas são deposições de carbonato de cálcio com
aspectos esferoidais e dimensões que variam de poucos milímetros a 20cm
ou mais. Elas acumulam-se em pequenas depressões (“ninhos”) no piso das
cavernas, possuem um núcleo (comumente areia de quartzo) e, segundo
alguns, formam-se graças ao gotejar da água dos tetos, que gera débil,
porém constante fluxo nas pequenas poças onde estão alojadas. Como
estruturas sedimentares, denominam-se oólitos e pisólitos (vide capítulo 2).
Por serem abrigos naturais contra as intempéries e os inimigos e
também por terem sido consideradas sagradas por muitos povos antigos,
as cavernas podem conter restos de animais e vegetais e sinais de
ocupação humana, tais como registros de fogueiras, artefatos,
sepultamentos, vestígios de construções, pinturas e gravuras rupestres.
Nem sempre é fácil a aplicação do método estratigráfico nos estudos
arqueológicos realizados em cavernas, pois os depósitos não raramente
apresentam-se descontínuos e perturbados. Trata-se de uma conseqüência
do próprio ambiente deposicional porque ele está sujeito a
desmoronamentos, concrecionamentos, enxurradas e inundações que
promovem a interrupção das camadas e recortam novas galerias. O
trabalho deve ser desenvolvido a partir da dissecação em áreas com menor
dimensão e posterior montagem do quadro geral.
Em decorrência das características únicas do ambiente espélico, as
quais favorecem o registro e a manutenção de eventos episódicos,
(enxurradas e inundações), esse sítio propicia condições ímpares para que
se estabeleça uma forte relação de trabalho entre o paleontólogo e o
arqueólogo.
Ao redor do planeta, têm sido descobertas cavernas usadas pelos
homens ancestrais em épocas diversas, como demonstram as pinturas de
151

Lascaux, França, e Altamira, Espanha, as quais datam do Paleolítico


Superior (± 32.000 anos A.P.) e os restos humanos de Chukutien, China,
do Paleolítico Inferior (mais de 500.000 anos A.P.).
Um dos mais importantes acervos cavernícolas do Brasil foi estudado
pelo naturalista Peter Wilhelm Lund, dinamarquês, durante o período de
1835 a 1844, na região do Vale do Rio das Velhas (Lagoa Santa, MG). A
coleção é composta por mais de 200 espécies de animais e de restos de 30
indivíduos (Homem da Lagoa Santa). Entre os animais extintos, destacam-
se os despojos de preguiças gigantes (megatérios), tatus gigantes
(gliptodontes), capivaras gigantes, mastodontes, lhamas, ursos, cavalos e
tigres dentes-de-sabre (smilodon). Esqueletos de antas, capivaras, porcos-
do-mato, veados, tatus pequenos, gambás e tamanduás, também
constituem o acervo.
A partir daí, sucederam-se outras descobertas paleontológicas em
cavernas brasileiras: em Jacobina, BA, em 1889, o naturalista C. Schreiner
encontrou o esqueleto quase completo de uma prequiça gigante; Ricardo
Krone, um naturalista, encontra em cavernas de Iporanga e Eldorado, no
Vale do Ribeira, SP, no fim do século XIX, ossos de roedores, tatus, lebres,
felinos, porcos-do-mato, veados, morcegos e gambás, além de tatus
gigantes, os quais foram mais tarde estudados pelos paleontólogos
Florentino Ameghino (argentino) e Carlos de Paula Couto (brasileiro); em
1977, no Abismo do Fóssil, situado no Parque Estadual Turístico do Alto
Ribeira – PETAR, em Ituporanga, SP, uma equipe do Centro Excursionista
Universitário encontrou, entre outros restos, ossos e dentes de megatérios,
gliptodontes, toxodontes (hipopótomo); membros daquele centro
registraram o encontro de um crânio incompleto de urso na Gruta do Urso
Fóssil, em Ubajara, CE.
A equipe de arqueólogos do Instituto Anchietano de Pesquisas – IAP
localizado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, dedica-
se, entre outras pesquisas, ao estudo da arte pictórica feita pelos antigos
habitantes do centro-nordeste do Brasil, de seus artefatos e restos
152

alimentares. São conhecidos seus estudos no sudoeste da Bahia na Serra


do Ramalho e em Santa Maria da Vitória ao longo dos rios Correntina e
Corrente, em grutas e abrigos calcários decorados com desenhos. Estes são
creditados, pelo menos a maioria, à Tradição São Francisco, à tradição
brasileira de pintura em que as figuras abstratas (geometrizantes)
dominam sobre as antropomorfas e as zoomorfas. As figurações quase
sempre apresentam bicromia amarelo e vermelho, e, em menor
quantidade, o preto e o branco (figura 5.58).

Figura 5.58. Reprodução de figuras


geometrizantes e zoomorfas encontra-
da em cavernas (abrigos) na Serra do
Ramalho e em Santa Maria Vitória,
sudoeste da Bahia. É notável o
predomínio do vermelho e do amarelo
sobre as demais cores (preto e
branco). Fonte: Schmitz et al. (1997).

Os municípios de Serranópolis e Caiapônia em GO, Costa Rica, Coxim,


Água Clara e Camaquã em MS, entre outros do Brasil Central, também
foram percorridos por equipes do IAP que registraram pinturas e gravuras
em grutas e abrigos de arenito Botucatu, silicificado ou não, e quartzito
gerado pelo metamorfismo daquele psamito ao entrar em contato com as
lavas da Formação Serra Geral.

Aparentemente, a ocupação daqueles sítios começou há 11.000 anos


A.P. e se estendeu até 1.000 anos A.P.

As cavernas de quartzito e arenito silicificado estão decoradas com


pinturas, enquanto as de arenito e blocos de arenito caídos apresentam
153

gravuras. As figurações mais comuns são as geométricas, as pisadas de


animais (aves, felinos, etc.) e as humanas, as quais são coloridas de
vermelho e amarelo (dominantes), branco e preto (raras).

Os desenhos de Serranópolis (figura 5.59) assemelham-se aos das


tradições Geométrica32 e São Francisco.

As pinturas de Mato Grosso do Sul e Caiapônia são parecidas com as


de Serranópolis, porém as cores dominantes em MS são o vermelho e o
bordô, sendo rara a presença do amarelo. Já, em Caiapônia, as cores
preferidas foram o vermelho e os tons alaranjados; secundariamente, o
amarelo, o preto e as cores policromáticas.

As figuras zoomorfas mais evidentes são os peixes, os lagartos, as


tartarugas (ou tatus?), as aves, os mamíferos quadrúpedes (veados), as
pisadas de animais, e as não determinadas. Não raras são as
representações antropomorfas, porém raríssimas o são as fitomorfas.

32
É aquela que apresenta grande quantidade de figuras geométricas, em vermelho com amarelo, cuja aparência é
de tecido pintado ou bordado ou ainda de decoração sobre cerâmica.
154

Figura 5.59. Reprodução de


desenhos encontrados em
abrigos na região do Município
de Serranópolis, GO. Obser-
vam-se representações geo-
metrizantes e zoomórficas
(aves, peixe e mamífero?).
Fonte: Schmitz et al. (1997).

Apesar de as duas datações realizadas em restos de fogueiras


encontradas em níveis diferentes em um dos abrigos de Serranópolis
apontarem para as idades de 6.520±100 anos A.P. e 4.980±75 anos A P.,
os dados, segundo Schmitz et al. (1997), não são de todo confiáveis. Para
eles, o mais provável é que dois grupos ocuparam aqueles sítios: um que
ali se localizou há 9.000 anos A.P. e outro após-Cristo (menos de 2005
anos atrás).

Contudo, é no Parque Nacional da Serra da Capivara, no sítio


arqueológico de Boqueirão da Pedra Furada, em São Raimundo Nonato, PI,
que se encontram os mais importantes vestígios da atividade humana
antiga do Brasil, cuja cronologia alcança em torno de 50.000 anos A.P., o
que ainda é motivo de acalorados debates entre os arqueólogos. O parque
possui 130.000 hectares e nele existem muitíssimas cavernas de onde
155

foram coletados ossos de animais, de humanos e artefatos. O que mais


impressiona, porém, pela quantidade, beleza e idade, são as gravuras e
pinturas rupestres (figuras 5.60 e 5.61).

Figura 5.60. Gravu-


ras geometrizantes
encontradas na Toca
da Ema, Sítio do
Brás, Serra da
Capivara, Município
de Raimundo Nonato,
CE. Foto: Fundação
Museu do Homem
Americano – FUND-
HAM
(www.fundham.com.
br).

Figura 5.61.
Pinturas rupestres
geometrizantes,
antropomorfas e
zoomorfas da
Serra da Capiva-
ra, Toca da Ema,
Sítio do Brás,
Município de Raí-
mundo Nonato,
CE. Foto: Funda-
ção Museu do
Homem América-
no – FUNDHAM
(www.fundham.co
m.br).

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