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Rubem Alves1

Palestra: Educação para a cidadania


Congresso Educação e Transformação Social
SESC Santos – maio/2002

Me dá grande alegria estar com vocês. Eu quero começar fazendo um pedido bem simples. Todo
mundo que está com caderno e caneta para tomar nota, guarde a caneta e guarde os cadernos. Eu vou
explicar a vocês por que. Eu já tomei muita nota de conferências e nunca consultei as minhas notas e sei
que vocês também não vão consultar as notas de vocês e, na verdade, tomar nota prejudica, não é? Eu
tenho impressão que essa questão de tomar nota é uma espécie de tique nervoso que assola os
professores. Eles têm a obrigação de tomar nota para dizer que estão levando a sério, mas isso é não levar
a sério, por que a gente, quando está envolvido numa conversa afetuosa, é até indelicadeza tomar nota,
não é? Eu brinco sempre: não se toma nota quando se está fazendo amor. E toda a experiência de
conversa, na realidade, é uma experiência de fazer amor. Um dos educadores que eu mais amo é o Roland
Barthes. Roland Barthes era um homem de uma delicadeza... todos os estudantes junto com o Roland
Barthes se sentiam inteligentes porque ele tinha a capacidade de transformar qualquer coisa que o aluno
falasse numa coisa bonita, ele tinha capacidade de extrair a beleza das coisas que os alunos falavam. E ele
tem um texto chamado “A Aula” – é uma aula inaugural que ele deu, quando ele estava sendo inaugurado
como professor de semiologia no Collège de France. E, ao final do seu texto, ele já estava se sentindo
velho...
Deixa eu só fazer uma observação psicanalítica sobre os celulares. Sabe que psicanalista é um ser
perverso, que fica dando interpretação para todas as coisas, não é? Diz que havia uma querela entre Freud
e um discípulo dele chamado Ferenczi, porque Freud fumava um charuto e então o Ferenczi ficava fazendo
interpretações fálicas do charuto que o Freud tinha na boca. Mania de psicanalista. Eu fiquei, então,
pensando sobre o sentido psicanalítico dos telefones celulares e a interpretação que eu tive foi a seguinte:
quando eu era menino, a diversão da gente era ir à matinê de domingo, assistir bang-bang. E a coisa que a
gente mais desejava era ter um revolvão e sair para a rua com o revólver na cintura assustando todo mundo
e dando tiro. Era a fantasia infantil da gente. Claro que a gente nunca teve revólver nem saiu dando tiro,
nunca realizamos então esse sonho infantil. Mas agora, graças aos telefones celulares, os homens saem
com seus coldres e os seus revólveres. Então eles chegam no restaurante e – pum! – põem o revólver na
mesa, por que pode ser que, a qualquer momento, sejam chamados, é aquela idéia de alguma coisa
urgente, eu sou super, super-herói, eu tenho de agir, eu tenho de agir imediatamente, eu tenho de estar em
contato com o mundo, eu sou muito importante, muito importante – de modo que eu não posso estar nem
um segundo longe do contato com o mundo. Aprenda uma coisa: nós não temos a menor importância. O
mundo vai continuar do mesmo jeito, sabe? Então, guardem os celulares para serem um pouquinho mais
humildes, para poderem estar mais presentes, porque uma pessoa com celular ligado nunca está presente,
ela está sempre à espera de uma chamada. Isso é ruim, não é?
Bom, eu estava falando sobre o Roland Barthes, e ele estava se sentindo velho, mas ele era bem
mais moço do que eu, devia ter, eu acho, uns 55 anos. E ao final da aula, ele disse uma coisa muito
interessante: que a vida de um professor se divide em três fases. (Na verdade, ele falou vida de um
professor por modéstia, era a vida dele que se dividia em três fases.) Na primeira fase, ele disse, a gente
ensina o que sabe. E é verdade, a gente ensina o que sabe, a gente ensina a criança a dar nó no sapato, a
andar de bicicleta, a somar, dividir, a escrever, a gente ensina as coisas que sabe. Esse “ensinar as coisas
que sabe” é um ato de transmitir as receitas de como viver que a gente aprendeu. Parte dos nossos saberes
são receitas, como receita culinária do livro da Dona Benta.
Então ele diz: mas a gente vive um pouco mais e começa a ensinar as coisas que a gente não sabe.
Aí as pessoas perguntam: mas como é que a gente pode ensinar aquilo que a gente não sabe? Imagine que
a minha filha me pergunte: pai, onde é que fica a Rua Sampainho? Sampainho é uma rua lá em Campinas.
Então eu digo a ela: não sei onde fica a Rua Sampainho, mas na lista telefônica tem uma série de mapas,
você procura o nome da rua, na lista dos endereços, e lá tem indicação do mapa e você vai achar.
Eu não sei onde é a Rua Sampainho mas, apesar de não saber, ensinei minha filha a achar a Rua
Sampainho. Essa é uma das coisas mais lindas sobre a vida de um professor. Não é aquele professor que
sabe o programa, isso é banal. Os programas estão em livros, os professores que sabem o programa vão
desaparecer: eles serão substituídos por disquetes, programas e livros. Mas ensinar a encontrar é a coisa
mais importante: isso tem o nome de “fazer pesquisa”... é isso que a gente faz, não é? Quando a gente está
ensinando a fazer pesquisa, está ensinando a coisa que a gente mesmo não sabe. O orientador da
pesquisa é aquele que não sabe nada, quem sabe é o aluno, o aluno vai lá, visita a coisa, vem e conta para
o professor e o professor aprende. Na situação de pesquisa, o orientador se torna aluno do aluno que faz a
pesquisa.
Então ele diz o seguinte: chegou agora, finalmente, o momento supremo da minha vida, eu me
entrego à maior de todas as forças da vida viva. Eu me entrego ao poder do esquecimento, procuro
esquecer, desaprender tudo o que eu aprendi. Vejam que coisa curiosa, dizer que ele, professor, de
semiologia, estava se dedicando a desaprender tudo. Parece o contrário do ideal de aprendizagem, de
educação, de que a gente vai cada vez saber mais. Ele está dizendo que queria saber menos, saber menos.
Um amigo meu, nos Estados Unidos, comprou uma casa muito velha, uma casa de mais de cem
anos. E ele teve curiosidade de saber como era a cor da casa, a primeira cor da casa, no tempo do seu
primeiro morador. Então, começou a tirar as demãos de tinta, pois ela tinha sido pintada com várias demãos
de tinta. Ele raspou uma demão de tinta, aparecia outra cor, raspou outra demão de tinta, aparecia outra cor,
raspou outras demãos... E foi raspando, raspando, até que, finalmente, ele raspou a última demão de tinta...
e teve uma surpresa muito grande, porque o que estava lá no fundo, que ele não podia suspeitar, era que a
casa tinha sido construída com pinho-de-riga. O pinho-de-riga é um pinho maravilhoso, cor de marfim, com
estrias marrons. São lindos os pinhos-de-riga. O que aconteceu com o pinho-de-riga? Ele foi sendo
sucessivamente pintado e desapareceu, foi esquecido. Foi preciso raspar para que fosse lembrado. Essa é
uma metáfora para nós: é isso que acontece com a gente através da vida. A gente nasce pinho-de-riga,
criança. Aí os adultos começam a falar e, à medida que vamos falando – e é inevitável que a gente fale – a
criança vai sendo pintada com demãos de educação. Fala a mãe o que é certo, fala o pai o que é certo, fala
o padre o que é certo, fala o pastor o que é certo, fala todo mundo, fala a televisão – e vai pintando, e vai
pintando, e vai pintando, até que chega um momento em que a gente não sabe mais quem a gente é.
Vejam então que é necessário que a gente esqueça, que a gente raspe o que aprendeu, é
necessário que a gente se esqueça do que aprendeu, para a gente se lembrar de uma coisa de que a gente
se esqueceu.
É essa a pedagogia da psicanálise, a arte que eu tento praticar. Na psicanálise, a gente está
sempre em busca de um pinho-de-riga que foi esquecido, que às vezes aparece sob a forma de lapsos, sob
a forma de sonhos, sob a forma de arte, esse pinho-de-riga maravilhoso que está escondido lá debaixo.
Aí o Barthes foi raspando e finalmente chegou, segundo ele, àquilo que ele achava essencial, àquilo
que estava por debaixo, soterrado pela educação. Então ele disse que aquilo que havia encontrado, ele ia
dizer “na encruzilhada da etimologia” e usou a palavra latina sapientia. Sapientia quer dizer sabedoria. E o
francês tem uma palavra para sabedoria, que é sagesse. Mas o Barthes não quis falar sagesse, ele quis
falar sapientia. Por que ele quis falar sapientia? Porque a palavra sapientia, em latim, quer dizer saber
“saboroso”. Sapio, em latim, quer dizer “eu degusto”. Então, o Barthes, depois de velho, compreendeu que a
coisa maravilhosa na vida não é conhecer com os olhos, como acontece com a ciência, mas é conhecer
com a boca. A vida é para ser degustada, a vida é para ser experimentada sob a forma de prazer.
E então o Barthes começou a falar sobre umas coisas interessantes... o prazer do texto, escrever
como quem cozinha. Foi essa então... a importância do Barthes para mim, ele deu respeitabilidade
acadêmica a algumas coisas que eu estava sentindo, que eu estava fazendo, mas não tinha coragem de
dizer, porque eu era um professorzinho aqui do Brasil, mas quando o francês fala, então está tudo
justificado... Escrever um texto para ser degustado.
Então, isso aconteceu comigo e, na medida em que eu fui entrando para essa linha, para essa
experiência de sapientia, algumas coisas vieram à minha cabeça, fizeram parte da minha experiência, e eu
aprendi algumas coisas que não sabia. Por exemplo: o Barthes disse que ele queria desaprender o que
tinha aprendido. Eu desaprendi: eu desaprendi completamente o jeito acadêmico de falar. Eu não consigo
mais falar academicamente. Eu comecei a falar por meio de imagens, as imagens vêm à minha cabeça e as
imagens são deliciosas, e quando a gente usa uma imagem boa, a imagem é absolutamente inesquecível.
As imagens têm o poder de transformar as pessoas. Nós estamos falando em transformação social, a
transformação social não se consegue através da ciência, a transformação social se consegue através da
sapientia.
Eu vou dar um exemplo para vocês - um exemplo que citei numa carta que escrevi ao Roberto
Marinho. Não sei se vocês se lembram de um comercial que havia lá na Rede Globo, um comercial
lindíssimo – o comercial era assim: florestas de pinheiros - sem uma palavra, sem uma palavra! - florestas
de pinheiros... Quando eu vejo a floresta de pinheiros, eu já sinto o cheiro do pinheiro. Riachos cristalinos...
Aí eu já sinto o frio da água, eu estou com o pé dentro do riacho cristalino. Eu vou entrando na cena.
Campos floridos, aí a gente já sente o cheiro das flores. Cavalos selvagens... Ah!, os cavalos selvagens são
lindos. O Da Vinci dizia que eram os seres animais mais bonitos depois dos seres humanos. Os cavalos
simbolizam a liberdade, a força! E o cheiro de cavalo! Não sei se vocês conhecem o cheiro de cavalo.
Quando o cavalo fica suado debaixo da sela, entre a sela e o pelo do cavalo, aquele cheiro é um cheiro
másculo, eu até pensei uma vez em fazer um perfume masculino extraído do suor de cavalo. Eu tinha até o
nome para esse perfume, “Equus”, de eqüino, não havia mulher que fosse capaz de resistir, porque um
homem com cheiro de cavalo é uma coisa maravilhosa, não é esses perfuminhos adocicados, aquilo é coisa
de homem. Então aquele cavalo, aquela coisa, eu já estou apaixonado, não falar nem uma palavra, mas eu
já estou apaixonado, já estou dentro da cena, tomando banho, sentindo pinheiro, andando de cavalo! Aí
aparece o rosto másculo de um vaqueiro... fumando um cigarro. “Venha para o mundo de Malboro”. Não há
qualquer sugestão grosseira de fumar, que coisa mais brega, fume Malboro, quem falou? “Venha para o
mundo de Malboro”. Este é o mundo de Malboro: se você fumar Malboro, vai estar nesse mundo. Corte.
Tela azul. “O Ministério da Saúde adverte: fumar...”
Só que não conheço quem tenha parado de fumar Malboro por causa da advertência do Ministério
da Saúde, mas me dá uma vontade danada de fumar Malboro lembrando desse comercial. Que coisa
interessante, não é? A advertência do Ministério da Saúde, na linguagem da psicanálise, se encontra ao
nível daquilo que é chamado o consciente, aquelas idéias claras e distintas: fumar produz câncer. Mas o
outro não diz nada, não diz nada, são imagens. Numa você tem a verdade, na outra você tem a beleza. E
nós somos seduzidos pela beleza. Então, essa é uma coisa que eu aprendi, que se a gente quer
transformar as pessoas, é preciso que a gente aprenda a usar a beleza, porque as pessoas são
transformadas, não pela verdade, mas são seduzidas pela beleza. E eu aprendi também uma outra coisa,
que quando a gente está tentando transformar as pessoas, as verdades são inúteis. O poeta Walt Whitman
falava que os argumentos não convencem, mas o silêncio da noite estrelada fala mais alto. Então, se a
gente fala beleza, a gente seduz e é capaz de transformar as pessoas.
Isso mudou a minha maneira... a questão de comunicação – acho que vocês tiveram um seminário
anterior sobre comunicação - então eu me comunico desse jeito, eu preciso de usar as imagens e não é
uma decisão consciente, as imagens vêm em cima de mim, elas me atropelam, eu não tenho jeito de fugir
delas. E uma outra coisa que eu aprendi, que para mim é muito importante, que tem a ver com a educação,
tem a ver com a vida, é que a parte da sabedoria... Vocês vejam que coisa interessante, sabedoria é o que?
Eu saboreio”... É conhecer com a boca. Vocês sabem, as crianças, os nenezinhos, ao mamar, eles
conhecem o essencial com a boca, eles não conhecem nem com o ouvido, nem com os olhos, porque os
olhos estão fechados, mas eles conhecem com a boca, eles estão com a boquinha no seio da mãe e eles
sabem duas verdades essenciais: seio produz leite, sobrevivência; mas seio dá leite, mas é deleite. O seio
não é só máquina de dar leite, seio é gostoso, e é por isso que a criança quer mamar mesmo quando o seio
não tem mais leite. E quando a mãe recusa o seio à criança, ela quer um substituto para o seio e arranja a
chupeta, e é por isso, pelo resto da vida, que o seio é o objeto de amor erótico dos homens porque, embora
não tenham o menor interesse em mamar e ter leite, porque é mais fácil comprar um leite A, mas – por que?
– porque beijar o seio da mulher amada é uma coisa deliciosa, é um prazer e isso faz parte da vida, então a
vida é feita de duas coisas: é preciso sobreviver e é preciso ter prazer. Criança sabe isso, essa essência da
sabedoria. Então, eu aprendi o seguinte, que o objetivo da educação não é aquela coisa perversa que se
faz – as escolas são máquinas de transformar crianças brincantes em adultos produtivos. Isso é uma coisa
horrível, é destruir a capacidade de brincar das crianças e, na minha filosofia de educação, eu digo que o
objetivo da educação é permitir que a criança continue a brincar pela vida inteira sem se machucar, porque
o objetivo da vida é brincar.
Eu estava olhando para vocês e para todo mundo lá fora, naquela farra da música, aquela
felicidade, e a gente pergunta para que a gente vive, a gente vive para aquilo, gente, o objetivo da vida é
brinquedo. Eu estou dizendo isso para vocês para dar um resumo de como é que eu estou, como é que eu
estou pensando, quando eu chego neste processo de esquecimento, de todas essas coisas.
Vamos entrar direto, agora, no nosso tema. Aliás, já entrei, eu já entrei no nosso tema porque nós
estamos falando em transformação social e é preciso que nós tomemos consciência, é preciso que os
políticos tomem consciência disso, é preciso que os políticos tomem consciência disso, que o objetivo da
política é transformar o mundo num grande parque de diversões. É preciso ter prazer, aliás, em todos os
lugares que eu tenho ido e que tem prefeitura envolvida, eu falo para os políticos e para os prefeitos: olha,
eu tenho lá na minha clínica, onde eu trabalho, eu mandei fazer um balanço. Balanço é uma felicidade para
as crianças. E balanço, lá na minha clínica, é remédio contra a depressão. Porque é impossível que uma
pessoa fique deprimida enquanto está balançando. Você pega uma pessoa deprimida, põe no balanço e
põe para balançar, daí a pouco ela está rindo, acabou com a depressão, porque é impossível. Então, eu
estava dizendo aos prefeitos – e sugiro à prefeitura de Santos – que haja parques de diversão para os
adultos e que haja balanços em que as vovós, os vovôs, os velhos, os professores, os catedráticos, os
padres, os bispos... Já imaginou que coisa maravilhosa os bispos balançando? Que coisa maravilhosa! Aí
então eles estariam acreditando naquilo que Jesus falou: “A não ser que vos transformeis em crianças, não
herdareis o reino de Deus”. Isso faz parte da felicidade!
Bem, vocês sabem que os samurais eram uma casta guerreira do Japão, movida por um estrito
código de honra. E de vez em quando os samurais eram obrigados a cometer o suicídio ritual, chamado
sepuku ou harakiri. Era um suicídio cometido por razões rituais e consistia no seguinte: o guerreiro,
recebendo a ordem de cometer sepuku, se vestia com as suas vestes rituais e, com um punhal afiado, abria
o ventre devagarzinho. Ao lado dele estava o seu melhor amigo, com uma espada afiadíssima e no
momento em que ele terminava de abrir o seu ventre, ele se inclinava para a frente e seu amigo o
decapitava, cortava a sua cabeça.
A tradição diz que os guerreiros samurai, quando tinham que cometer o sepuku, escreviam antes o
seu último hai-kai. O que é um hai-kai? Hai-kai é um poema mínimo, mínimo. O (Paulo) Leminski dizia que o
hai-kai é um objeto mínimo, de peso insuportável, tal a sua densidade. Eu vou dizer um hai-kai para vocês,
de Mat-Suo Bashô. Não tem rima, não tem nada:

“Na velha casa


que abandonei,
as cerejeiras florescem”.

Acabou. E vocês dirão: não entendi. Que bom! Não é para ser entendido. Hai-kais são para ser
vistos, são fotografias. Você ouve um hai-kai, você vê e você pensa: abandonei a casa, cresceu o mato,
caiu a cerca, o jardim ficou selvagem, os vidros quebrados, as janelas podres, arruinadas. Abandono. Mas
alguns dias atrás eu passei por lá e as cerejeiras florescem. É um hai-kai que fala sobre e fidelidade: as
cerejeiras florescem. Esse é um hai-kai que foi feito no meio da vida, mas um hai-kai que é feito como último
hai-kai tem de conter a última palavra, a última palavra, a palavra mais importante. Qual é a última palavra?
A palavra mais importante. Espera-se que a última palavra de uma pessoa seja a coisa mais importante, um
professor de matemática está morrendo e ele tenta falar alguma coisa, tenta falar e as pessoas vão ouvir a
última palavra do professor de matemática e ele, balbuciando, - b, + ou -, raiz quadrada, b dois, - quatro, c
sobre 2a. Equação de segundo grau. Nenhum professor seria tolo, por que isso não é essencial, não pode
ser a última palavra de ninguém. Então, eu queria dizer para vocês aquilo que, para mim seria quase, seria
o meu hai-kai final. Não é hai-kai, porque é um pouco maior do que um hai-kai, mas é um poema mínimo da
Cecília Meireles:

“No mistério do sem-fim,


equilibra-se um planeta.
No planeta, um jardim.
No jardim um canteiro.
No canteiro, uma violeta.
E, na violeta, o dia inteiro,
entre o mistério do sem fim e o planeta,
a asa de uma borboleta”.

Esse poema é o resumo da história bíblica da criação. Entre o mistério do sem-fim e o planeta... a
história bíblica da criação começa com o sem-fim e Deus vai afunilando as coisas do sem fim, e vai
afunilando, afunilando, afunilando... até que chega a um lugar mínimo, onde ele planta um jardim. O
universo foi criado por causa de um jardim. Vou repetir isso: o universo foi criado por causa de um jardim. O
jardim é o sonho mais alto de Deus.
Um poeta alemão chamado Heine escreveu um poema chamado “A Canção do Criador”, que diz o
seguinte: que Deus resolveu criar porque ele estava doente. E eu acho que isso é verdade, a gente sempre
cria quando a gente está doente, porque, se a gente não estiver doente, a gente está bem, a gente não quer
criar nada. Todas as pessoas que estão bem não querem criar nada. A criação sempre surge de uma certa
infelicidade. É um momento em que Deus diz: eu posso estar mais feliz do que deste jeito aqui. Eu acho que
ele deve ter ficado com um tédio imenso do céu vazio e infinito, os anjos tocando harpa, ele não agüentava
mais aquilo, deixa eu criar mais alguma coisa interessante, e ele sonhou esse sonho: um jardim, que é o
sonho mais alto da criação.
E foi nesse jardim que nós fomos colocados. Somos destinados ao jardim, somos destinados a ser
jardineiros. O sonho do jardim apareceu entre os hebreus. Sabe por que eles sonharam o jardim? Porque
eles eram nômades que moravam no deserto. Deserto é areia, é terra estéril, é escorpião, é cobra, é pedra,
é secura, é sede. Quem está no deserto, sonha com jardins porque todo deserto faz com que a gente sonhe
com um lugar fresco, de águas e de plantas. O Antoine de Saint-Exupéry fala, no Pequeno Príncipe, que o
deserto é belo porque, em algum lugar, ele esconde uma fonte.
Um amigo meu esteve na Alemanha e foi visitar uma exposição de jardins, um evento, jardins de
todos os tipos. Havia os jardins de estilo japonês, com as fontes, as águas, as carpas, as cerejeiras. Os
jardins de estilo italiano, os jardins de estilo francês, que são todos geométricos, os jardins ingleses, que
são plantados na confusão da natureza, no meio das pedras. E ele estava extasiado com a maravilha
daqueles jardins e, de repente, ele viu, no meio daquilo tudo, um terreno abandonado, cheio de pedra, uma
coisa horrível, cheio de mato, uma coisa horrível, e ele ficou horrorizado como é que os alemães, tão
cuidadosos, fazem esses jardins tão maravilhosos e deixam essa coisa horrível aqui no meio. Então ele foi
falar com uma pessoa como é que se explicava aquilo. Aí a pessoa olhou para ele e disse: isso aqui é o
jardim natural, isso aqui é a natureza que ainda não foi tocada pelo homem.
É quando a natureza é tocada pelo homem que ela fica bela, o jardim é a natureza tocada pelo
homem. Marx falava na “humanização da natureza”, para que houvesse a “naturalização do homem”. A
natureza sozinha é cruel, ela é bruta, ela mata, não tem piedade. Mas o homem sabe que naquela natureza
bruta dorme um jardim. Jardim é beleza, jardim é a natureza fazendo amor com os homens. A psicanálise
acredita que todo o nosso corpo é um órgão sexual. Nós pensamos que os órgãos sexuais são a genitália.
Para a psicanálise não: todo o nosso corpo tem órgãos sexuais de fazer amor. Com os olhos, a gente faz
amor com as cores, com a formas, com as árvores, com as coisas que a gente vê, a gente tem alegria. Com
o ouvido a gente faz amor com os sons, a gente escuta o barulho das árvores, o barulho do canto dos
pássaros, o barulho da água. Com o nariz, a gente faz amor com os perfumes, o jasmim, a malva, hortelã.
Com a boca, a gente faz amor com as pimentas. Vocês já fizeram amor com as pimentas? Vocês já viram a
pimenteira? As pimenteiras são lindas, os pássaros adoram comer pimenta. Você faz amor com o caqui.
Aliás, eu acho que a fruta do paraíso foi o caqui, não foi a maçã. Eu já contei isso para vocês, não
é? Vocês já sabem por que, não é? Não sabem? Na tradição, dizem que a fruta do paraíso é a maçã, todos
os pintores pintaram a maçã, mas eu digo que a maçã não é a fruta do paraíso porque a maçã, primeiro, ela
faz musculação. Vocês já viram que a maçã, em cima, ela é toda dura, ela tem uns bíceps assim em cima,
ela é forte, a maçã é forte. Você pega a maçã, ela é rija, ela parece bíceps, aqueles músculos, a maçã é rija,
rija. Segundo, a maçã não tira a roupa de jeito nenhum. Ela só tira a roupa na ponta de um canivete. Então
você vai lá e tem que tirar à força, você tem que forçar a maçã a tirar a roupa, senão ela não tira a roupa. E
quando a gente morde a maçã ela geme, ela não gosta de ser comida, ela geme. A maçã se sente sempre
estuprada. É, que não é assim com o caqui. Você olha para o caqui, o caqui diz “me come, vá”!
Algum de vocês já descascou caqui com a faca? Ninguém descasca caqui com faca, você passa o
dedo ele já tira a roupa ali na hora, se lambuza todo, se entrega, é aquela lambuzeira danada. Por isso é
que eu digo que o caqui... então você faz amor aqui... veja, o caqui... olha, o caqui é uma festa para os
olhos, porque ele é lindo, lindo, lindo, o vermelho do caqui é lindo, lindo, lindo. É uma festa para o tato, ele é
lambuzento, aquele negócio gostoso, é uma lambuzeira, e a semente do caqui é lizinha, a gente fica com a
semente... embora não tenha gosto nenhum, a gente fica com ela dentro da boca, passando para lá e para
cá, porque é muito gostoso. A mesma coisa acontece com a pitanga...
Então vocês vejam, o jardim é uma festa para o corpo inteiro. Depois tem a festa para a pele, o
banho de cachoeira, a cachoeira fria, que coisa fantástica você sentir aquilo na pele, aquele frio na pele,
você ressuscita, ressuscita, você toma... o vento que passa, aqueles, toques, aquilo é uma coisa
maravilhosa. Então, o jardim é aquele lugar onde existe a reconciliação entre o homem e a natureza, é o
lugar do prazer e é o lugar da alegria. Os gregos não falavam em jardim.
Não, deixa eu dizer uma outra coisinha. Então os hebreus, por causa de sua experiência com o
deserto, pensavam que o ideal da vida boa, da convivência entre os homens, era o jardim, que era o lugar
de felicidade, de abundância da natureza, de beleza das flores. Que coisa mais esquisita, não é? Nós não
queremos... nem só de pão viverá o homem. Vocês sabem, desse texto de Jesus, não é, daquela conversa
com o demônio, o demônio tentou Jesus para transformar pedras em pães e Jesus falou: “Nem só de pão
viverá o homem, mas de toda palavra que saia da boca de Deus”. Eu pedi licença a Jesus Cristo e fiz uma
alteração no texto: “nem só de repolho, rabanete e nabo viverá o homem, mas de orquídeas, rosas e
petúnias”. Eu acho que seria melhor assim, eu gosto do texto mais desse jeito...
Vocês vejam, a coisa estranha sobre nós: a coisa estranha sobre nós é que nós não nos
contentamos com a coisa física. Se a gente está falando em transformação social, é importante que todos
tenham o que comer, mas não basta comer, é preciso que haja beleza. O Mário Quintana tem um poema
lindo, em que ele conta de uma menina que foi a ele e perguntou se a prefeitura ia cortar uma determinada
árvore, se o machado ia cortar a árvore. Aí ele disse que a prefeitura não ia cortar aquela árvore, mas ele se
lembrou que na casa dele tinha uma paineira maravilhosa e um dia, quando ele acordou, a paineira tinha
sido cortada e os adultos disseram que precisaram cortar a paineira porque ela estava fazendo sombra para
as árvores frutíferas. Aí ele disse: “pois é, menina, eles não sabem que nós também nos alimentamos de
beleza”. Os gregos não pensavam em jardim. Para eles, a utopia, a grande idéia, a grande idéia política, era
a polis. Daí política, política é a arte de administrar a polis. A polis é uma coisa semelhante ao jardim, é um
espaço onde nós, seres humanos, podemos viver sem medo. Adélia Prado, poetisa mineira, num poema
sobre Paraíso, diz que o Paraíso vai ser exatamente igual à vida nossa, exatamente igual, tudo do jeitinho
da nossa vida, menos medo. No ideal dos gregos, era o espaço em que as pessoas podiam viver sem
medo. Para os hebreus não, não era aquele espaço, não eram as casas que eram importantes. O que era
importante, para eles, era o jardim.
Eu sempre fui fascinado pelo jardim, vivo fazendo jardins. Eu tenho um pedaço de terra lá no interior
de Minas e estou plantando lá, e uma das coisas que eu estou fazendo no meu jardim, é um cemitério: eu
planto uma árvore para cada amigo meu que morre. Então eu digo para as esposas ou para os maridos: o
Elias floresceu, deu vários ipês amarelos. O Murilo deu várias uvaias e estavam deliciosas as uvaias do
Murilo. Minha mãe dá camélias. Tinha uma cerejeira que eu plantei para um jardineiro japonês que eu não
conheço. Me contaram a história do jardineiro japonês, está num livro meu, A Beleza do Crepúsculo. Se a
gente tiver tempo no final, se vocês quiserem, eu conto a história do jardineiro. O jardineiro japonês...
Mas eu comecei a fazer isso... eu morava numa casa apertada lá em Campinas, apertadinha, e do
meu lado tinha um terreno baldio, grande... Tinha tudo quanto é porcaria no terreno baldio: pneu, telha
quebrada, tijolo quebrado, lata velha, crescia o mato. Aí eu subia no muro, botava a escada e ficava olhando
lá para o terreno baldio. Mas eu não via o terreno baldio. Eu olhava para lá e ficava vendo como é que seria
o meu jardim, se aquele terreno fosse meu.
Onde é que começam os jardins? Os jardins não começam na terra e na enxada e nas sementes.
Os jardins começam no sonho, é preciso sonhar. Jardineiros são aqueles que sonham jardins. Os jardins
começam a ser plantados na cabeça dos jardineiros. Eu queria comprar aquele terreno, porque se eu não
comprasse o terreno eu não teria o jardim. Aquela poetisa americana Emily Dickinson tem um versinho
muito bonitinho e muito mentiroso, que diz assim: “Para se plantar uma campina, é preciso um trevo e uma
abelha; um trevo, uma abelha e fantasia. Mas, faltando abelhas, basta a fantasia”. Não basta a fantasia...
Fantasia só não faz jardim, eu preciso de abelha. Então, eu queria comprar aquele terreno mas o dono do
terreno não queria me vender o terreno, ele disse que ia fazer um predinho lá. Eu falei: meu Deus, se ele faz
um predinho aqui... Aí aconteceu uma desgraça, ele morreu. Aí eu comprei. Aí, você veja, precisava ter
dinheiro, eu tinha juntado dinheiro, eu tinha dinheiro para comprar aquele terreno. Se eu não tivesse
dinheiro, não adiantava nada. Mas também precisava de uma outra coisa. Eu precisava de ter os saberes
necessários para fazer um jardim, porque não adianta você querer fazer o jardim se você não tem os
saberes. Eu tinha que ter... o sonho, aqui, e dizer: e agora? Como é que eu vou fazer? Notem isso. Os
saberes sempre aparecem em resposta a um sonho. Vou repetir: os saberes sempre aparecem em resposta
a um sonho. Não adianta tentar ensinar uma coisa para a qual não houve sonho. As crianças não aprendem
nas escolas, os adolescentes não aprendem nas escolas porque não estão sonhando com aquilo que está
sendo ensinado a eles. Aquilo não corresponde a sonho nenhum, não é ferramenta, não é semente para o
sonho deles. Um dos maiores educadores do século XX, o Bruno Bettelheim, falando sobre as escolas, ele
dizia o seguinte: que nas escolas os professores ensinavam a ele aquilo que ele não queria aprender, do
jeito que eles queriam ensinar. Aí, então... você veja, primeiro precisa do sonho mais depois precisa do
poder.. poder é o que? É poder físico, dinheiro para comprar a coisa, se não tiver isso não adianta que não
faz. E tem que ter o poder do conhecimento, tem que ter o poder do conhecimento. Vocês vejam, eu estou
mostrando aqui para vocês, através de uma imagem, como é que as coisas acontecem. Sonhar, tem que ter
poder, tem que ter conhecimento em função do sonho e depois então que você junta essas coisas, você tem
o sonho, tem o poder, aí você trabalha. Só que, quando a gente trabalha para realizar o sonho, a gente não
tem preguiça. Quando a gente está com vontade de realizar um sonho, a gente trabalha sem parar, sem
parar, e isso vale para gente grande, vale para criança também. Todas as vezes que a gente tem preguiça,
é porque a gente não está envolvido num sonho. E se a gente reclama das crianças, que as crianças não
querem estudar, é porque elas não estão envolvidas num sonho, aquilo não vai ser construção do jardim
delas. Eu estou usando jardim aqui como metáfora, pode ser construção do brinquedo, construção do não-
sei-o-que. É construção do sonho. Tem que haver o sonho para que a gente queira trabalhar, para que a
gente queira estudar. O cientista que vai para o laboratório, trabalha o dia inteiro lá, por que? Não é porque
alguém manda, é porque ele tem um sonho e ele quer realizar o sonho dele.
Esqueçam que pedagogia se aprende em livro. Olha, aquele negócio da raspagem... esqueçam.
Pedagogia se aprende em coisas pequenas. Olhem o que esse cara fala, o William Blake: “prazer
engravida”. Claro! Se você tem uma visão do sonho, você fica grávido... se você tem uma visão do jardim,
você fica grávido, você começa a... puxa vida, mas que coisa fantástica, você começa a ter prazer
antecipado. Aí você está disposto a passar por todos os sofrimentos, vai lá, cavouca de manhã, carrega
pedra, corta a mão, machuca o pé, finca espinho, mas não tem importância, porque todo esse sofrimento é
para quê? É para dar à luz um filho, que é o jardim da gente. E ao final, então, o que é que a gente tem? A
gente tem o gozo do jardim. É aquela delícia, porque foi para isso que a gente foi criado, a gente foi criado
para o gozo, para a alegria, a gente não foi criado para o trabalho. Você veja: Deus trabalhou seis dias, mas
ele trabalhou seis dias só para vagabundar no sétimo. Não foi isso que ele fez? Não foi ele que trabalhou
seis dias e depois chegou lá no sétimo dia, ele parou, ou ela, tanto faz, depende se for feminista, ela, olhou
e disse: mas que coisa boa. Aí, o que é que Deus começou a fazer, naquela história? Começou a passear
pelo jardim, sem fazer nada, só, diz o texto, que ele ficava passeando pelo jardim, pela viração da tarde, na
maior preguiça, na maior vagabundagem. Por que? Porque já havia construído a coisa bela e agora era
hora de gozar a coisa, de gozar. Isso é uma coisa que precisa ser ensinada para as crianças. Ai gente, seria
preciso muito tempo para a gente conversar sobre essas coisas todas, ensinar às crianças os gozos do
som, os da música, o gozo das obras de arte, das telas, o gozo da literatura, o gozo, o gozo, o gozo. As
escolas deveriam ser como museus, cheias de telas. Deveriam ouvir música o tempo todo. Não é vamos ter
agora aula de música. Meninos, vamos comprar flauta doce. Ai, meu Deus, é muito chato. Escuta, flauta
doce é bom quando você toca flauta doce bem, não é por aí que se aprende a música, não. Se aprende a
música não é tocando flauta doce, se aprende a música é escutando música. É preciso escutar música,
depois que você escutar muita música, aí você pode tomar a decisão e dizer: eu quero estudar flauta doce,
mas não antes. O pessoal acha que estudando flauta doce está dando cultura musical para as crianças,
mas não está dando cultura.
Mas o jardim tem uma tristeza. A tristeza é que a palavra jardim, em grego, é parádeisos, paraíso. E
essa palavra é derivada de uma língua mais antiga, que é o pérsico, e nessa língua essa palavra significa
“lugar fechado”. É um lugar fechado, o jardim é um lugar fechado. Um lugar fechado por que? Porque tem
que separar o lugar bom, das feras, dos escorpiões, das cobras. O medo fica lá fora para que o gozo fique
aqui dentro, tem que ter uma separação. Do lado de fora... no meu jardim, eu posso chegar lá no muro e
olhar para fora. Aliás é interessante, já ficou norma lá em Campinas que ninguém jamais sai da sua casa,
assim, abre a porta e sai. Ninguém faz isso. Você abre a porta cuidadosamente com o pé, ali atrás da porta,
passa a cabeça, espia para um lado e para outro, porque pode ser que alguém da quadrilha do Andinho ou
de não-sei-o-que esteja por ali. O ar está misturado com o medo. Nossa situação, hoje, é parecida com a
situação da Idade Média, quando as pessoas faziam conventos cercados, ou faziam aqueles castelos
fortificados e ficavam lá dentro presas. Eram as pessoas boas que ficavam presas porque lá fora estavam
os criminosos, estava o medo. O que é que são condomínios? Condomínios são prisões grã-finas. Claro,
estão todos presos lá dentro, não podem sair porque não pode sair na rua, porque tem o perigo de ser
assaltado. Aliás, se está no condomínio tem mais perigo ainda, porque sai de BMW, de Mercedes, e aí é
que são vítimas de seqüestros. Então, existe um grande deserto em torno de nós, mas isso é muito triste,
porque o desejo do coração, o desejo nosso é que tudo fosse jardim.
Eu estou vindo de Curitiba. Curitiba é uma cidade maravilhosa. Com todo o respeito por vocês, eu
acho que Curitiba é a cidade mais civilizada do Brasil. Eu queria aconselhar a vocês que separassem um
fim de semana só para visitar os parques de Curitiba. São maravilhosos. Ontem, na hora do sol poente, eu
estava num parque, aquelas cachoeiras caindo, não tinha medo, não tinha nada, não precisava ter policial,
aquela coisa linda, aqueles jatos d’água, os patinhos nadando, que coisa linda, que coisa linda! O que a
gente quer é que o mundo inteiro seja um paraíso, que as praias não sejam poluídas, que o povo não jogue
garrafa de plástico e fralda usada na praia. Que as pessoas aprendam a usar as lixeiras, que os rios não
sejam poluídos, que haja peixe nos rios, que a gente possa tomar banho nos rios, que a natureza seja
preservada, é isso que a gente deseja. Por que nós somos seres biológicos, nós temos a nostalgia pela
volta à natureza, nós queremos voltar à natureza. Eu sozinho, com os meus recursos, posso fazer o meu
jardim. Mas eu não posso fazer o grande jardim, meu poder não dá. Para fazer um grande jardim, eu
preciso de muita gente que tenha o mesmo sonho de jardim, é preciso que haja muita gente que tenha o
mesmo sonho do jardim, para que a gente possa fazer o grande jardim. É preciso que haja muitas pessoas
com alma de jardineiro. Eu queria sugerir a vocês que a grande tarefa das escolas é criar, nas crianças e
nos adolescentes e nos adultos, alma de jardineiro. Se eles tiverem alma de jardineiro, então eles vão tratar
de aprender as coisas necessárias para se criar o jardim. Vocês sabem qual é o nome para esse mundaréu
de pessoas com o mesmo sonho? Você sabe como é que chama isso?
Quem fala isso é Santo Agostinho. Ele diz: “povo é um conjunto de seres racionais ligados por um
mesmo sonho”. Vou repetir: povo é um conjunto de seres racionais ligados por um mesmo sonho. Existe
povo no Brasil? O Chico (Buarque), sem saber, transformou Santo Agostinho numa marchinha. “Eu estava à
toa na vida, o meu amor me chamou pra ver a banda passar tocando coisas de amor”. E agora? Eu não me
lembro exatamente da letra: o homem velho se esqueceu do cansaço, a namorada que contava as estrelas,
a moça feia que pensava na feiúra saiu na janela, o homem rico que contava o dinheiro... cada um estava
na sua. Isso é o anti-povo, porque cada um está no seu, cada um está na sua, cada um está vendo o “Big
Brother”. Sonho de brasileiro é futebol e é “Big Brother”.
Entre parênteses: vocês sabem por que é que chama “Big Brother”? Quem é que sabe? Não
precisa falar, não, levanta a mão. Quem sabe? Eu disse na brincadeira, que aquele, Kleber é o nome dele,
aquele debilóide... com o cheque na mão... se eu fosse o apresentador eu faria uma maldade com ele.
“Olha aqui, Kleber, quinhentos mil reais. Para você ganhar isso, só falta me dizer, por que é que chama “Big
Brother”? Havia um escritor chamado George Orwell que escreveu um livro chamado 1984. 1984 descreve
uma sociedade absolutamente totalitária – e a forma como o poder era exercido era que em todas as casas,
em todos os cômodos da casa, havia câmaras de televisão, e as pessoas eram monitoradas 24 horas por
dia, mesmo quando estavam dormindo. E um homem, enquanto dormia, sonhou, e no sonho ele falou alto,
e falou uma coisa que era proibida, e no que ele sonhou e falou e foi monitorado, ele foi para a cadeia. A
idéia do Big Brother é uma idéia sinistra, horrenda, medonha. Aqui é motivo de brincadeira, ninguém sabe o
que é que é. Então, temos um povo, temos um sonho comum.
Agora na eleição nós estamos perdidos, não é? Quais são os sonhos? Voltando lá para a Banda:
estava cada um na sua, aí veio uma banda tocando coisas de amor. O que a banda tocava era tão mais
bonito do que aquilo que cada um tinha, do que o jardinzinho de cada um, cada um tinha um potinho de
gérbera. Aí vem um jardim desfilando pela avenida, a marcha alegre se espalhou pela avenida, todo mundo
que estava lá, cada um na sua, largou, foi seguir... a meninada, como é que diz, e a meninada toda se
assanhou para ver a banda passar, cantando coisas de amor. Gente, é assim que se faz um povo. Quando
existe uma coisa linda e todos largam deixam seus pequenos projetos porque existe um projeto muito maior,
que une todas as pessoas, a marcha alegre. O Geraldo Vandré também sabia disso: “caminhando e
cantando e seguindo a canção”. Quem é que faz o povo? Quem faz o povo são os poetas, são os artistas,
são as grandes imagens, são os grandes sonhos, são as grandes utopias. É isso que faz um povo. Que
tristeza, não é? “Mas, para meu desencanto, o que era doce acabou, tudo voltou ao lugar depois que a
banda passou, cada qual no seu canto, em cada canto uma dor, depois da banda passar tocando coisas de
amor”.
Tem que haver uma banda. Eu gostaria que vocês, educadores, fossem a banda. A primeira tarefa
da educação não é ensinar nem matemática, nem geometria, nem história, nem ciências. Essas coisas são
boas, mas essas coisas são como aprender os detalhes da jardinagem. Mas não adianta aprender os
detalhes da jardinagem se você não aprender, se você não amar o jardim, é preciso amar o jardim primeiro.
Se as coisas não estiverem ligadas a um grande sonho, elas não fazem sentido. Vou repetir: se as coisas,
se os saberes, não estiverem ligados a um grande sonho, não fazem sentido.
Eu converso muito com professoras da periferia. Eu não sei como é que é aqui em Santos, eu sei
da situação de Campinas. O que as professoras de periferia me descrevem são cenas de horror, de
violência, de ameaça, de desrespeito, de agressões. E ouvindo as professoras contar o que acontece com
elas, a imagem que me veio à cabeça foi a imagem de uma jaula cheia de tigres e uma mocinha lá com uma
varinha na mão tentando acalmar os tigres: silêncio, tigres, silêncio! Que adolescentes horríveis, não é?
Quando eu era menino, eu me dedicava a um esporte cruel, na minha época todo menino se dedicava a
esse esporte cruel: pegar passarinho. Fazia a arapuca, botava o fubá lá debaixo da arapuca e ficava
espiando o pobre canarinho da terra chegar lá desavisado. Quando ele caía na arapuca, a gente ia lá,
enfiava a mão debaixo da arapuca, tirava o passarinho e botava dentro da gaiola. A hora que você colocava
dentro da gaiola, o espetáculo era terrível porque ele, acostumado com a liberdade, dentro da gaiola ele
batia as asas furiosamente, furiosamente, contra as grades e com tal fúria batia e rebatia, enfiava o bico,
que ficava todo ferido, começava a sair sangue. Mas que violência a do pássaro, não é? Quem é violento, é
o pássaro ou é a gaiola? Quem é violento, é o adolescente ou é a escola? Por que os adolescentes são
violentos? Porque as escolas não têm nada a ver com a vida deles.
O que é que interessa para o adolescente saber o nome das enzimas que fazem parte da digestão?
Você vai lá estudar as enzimas: olha aqui, minha gente, as enzimas que fazem parte da digestão... estou lá
interessado em enzima? Não, escuta, vamos estudar este teorema aqui, sobre a soma dos ângulos
internos, vamos fazer a demonstração de que os ângulos internos de um triângulo é 180 o. Que interesse
que eu tenho em saber que os ângulos internos de um triângulo fazem 180 o? Eu não quero saber disso,
minha vida tem outra coisa. Onde estão as coisas que têm a ver com a vida? Então o que é que acontece?
Eles têm que ficar violentos, porque não faz sentido. E não faz sentido por que? Porque a escola não...
talvez eu seja injusto de falar isso, eu estou falando na escola assim, em geral, há tantas exceções, há
tantas escolas maravilhosas. Mas eu estou falando sobre essa situação dos adolescentes. As coisas não
fazem sentido. Por que não fazem sentido? Porque não estão ligadas à construção de um jardim. Porque,
se estivessem ligadas à construção de um jardim, eu garanto que todo mundo ia trabalhar. Vocês entendem
que eu estou falando construção do jardim no sentido metafórico, pode ser qualquer projeto de construção
de alguma coisa que faça sentido. O Amyr Klink deu uma entrevista há pouco tempo e eu recebi a entrevista
dele por e-mail e ele fala uma coisa que eu achei muito legal. Perguntaram a ele qual era o projeto que ele
tinha de educação para os filhos dele e ele contou que ele colocou os filhos dele em escolas comuns e que
tinha problemas com as escolas, que as coisas não tinham a ver com a vida, tantas coisas que as crianças
têm que aprender que não têm nada a ver. Aí ele disse que gostaria que as crianças dele aprendessem do
jeito que ele viu acontecer numa ilha na costa, se não me engano, da Noruega. Ele disse que lá nessa ilha
que ele citou, o nome eu não sei, as crianças aprendem construindo uma casa viking. Enquanto elas
constroem a casa viking, elas vão aprendendo tudo o que é necessário sobre a ciência.
Eu já tive essa idéia de fazer um currículo baseado na casa. Vocês já pensaram nisso? Deixa eu
logo dizer para vocês: eu tenho raiva de laboratório em escola. Eu acho que a única função de laboratório
em escola é convencer os pais de que as escolas são boas, porque as pessoas têm a fantasia de que
laboratórios são bons para a ciência. Não são, eles são perniciosos para a ciência. Porque o laboratório, em
escola, não estou dizendo que o laboratório lá dos grandes cientistas, não, estou dizendo laboratório em
escola conta uma mentira de saída. A mentira é que ciência é uma coisa que se faz dentro daquele
quartinho com aqueles aparelhinhos. Ciência não é uma coisa que se faz naquele quartinho com aqueles
aparelhinhos, ciência é uma coisa que tem a ver com a vida inteira. Tem a ver com a eletricidade de minha
casa, com a privada, com a panela de pressão, com a cozinha, com a química da cozinha, com o vidro, com
o espelho, com tudo o que está lá na casa, com os fungos que estão na casa, com o aerossol, com as
baratas, com os carrapatos, com as lagartas, com as borboletas, com os retratos, com as fotografias, com
os brinquedos, a ciência está lá. A ciência se faz com duas coisas: se faz com o olho e cérebro. Só.
Laboratório só tem uma função: melhorar os olhos. Só.
Por que eu falei isso? Ah! Eu estava dizendo a questão do sentido, não é? As coisas são aprendidas
se elas fazem sentido. Quando eu era menino, lá em Minas... em Minas tinha um hábito que às três horas,
duas e meia, a gente se reunia para tomar o café, tinha o café da tarde, geralmente era café com leite,
queijo, essas coisas todas. Era uma comilança danada. Mas quando era tempo de laranja, a gente não tinha
o café, a gente apanhava a laranja no quintal e a gente ia chupar laranja. Eu me lembro, na minha casa, a
gente sentava no quintal, tinha um tamborete e, com aquela cesta de laranjas no meio, a gente ia chupando
laranja. E eu gostava de ver meu pai, meu pai era exímio em descascar laranja. E ele chupava mais de
quinze laranjas. E ele sai descascando as laranjas e botando a casca aqui no braço, ficava as cascas todas
dependuradas, inteirinhas. As cascas eram guardadas, não sei se vocês sabem por que. Porque a casca
seca serve para acender fogo no fogão de lenha. E eu tinha inveja do meu pai, como é que ele conseguia.
Eu fiquei com inveja e então eu tratei de aprender a descascar. Por que? Porque eu queria descascar
laranja do jeito que ele descascava. Quando eu quero uma coisa, quando eu tenho vontade, eu aprendo. A
gente aprende quando a gente quer, a coisa faz sentido, é assim para tudo.
As coisas fazem sentido, elas são aprendidas quando fazem sentido num processo de construção.
Não sei se vocês sabem que o Piaget, antes de estudar psicologia de gente, ele fazia pesquisa sobre os
moluscos dos lagos da Suíça. Molusco é um bicho mole, bom de ser comido. Escargot, vocês já comeram
escargot? Eu comi uma vez, sempre tive nojo de escargot, mas uma vez um amigo me convidou e eu tive
que comer. E é gostoso. Ostra. Aqui deve comer muita ostra, não é, aqui em Santos. Delícia, ostra,
maciinho, não é? Delícia! Coitadinha da ostra. Coitadinhos dos moluscos. Porque sabem que são tão
apetitosos, eles tratam de se proteger, eles constroem conchas. As conchas dos moluscos são as casas
deles, ficam fechadinhas para eles ficarem lá dentro e não serem comidos. Então, vocês vejam que os
moluscos têm uma inteligência, eles sabem que... olha o que eu disse da sabedoria da criança: é preciso
sobreviver, leite, e é preciso gozar, deleite. O molusco sabe que ele precisa sobreviver, concha, caracol.
Então, mais uma coisa que eu acho fantástica nas conchas é que elas não são só ferramentas úteis para a
sobrevivência: as conchas são belas. Por isso é que há pessoas que fazem coleções de conchas. O Neruda
tinha uma coleção enorme de conchas. Aquelas conchas em forma de caracol são fascinantes. Eu tenho
várias, eu tenho uma cortadas no meio, assim, com uma serra, de modo que você vê os buracos da concha
lá dentro. Tem umas conchas deste tamanho, conchas não, caracóis deste tamanho, uns caracóis enormes,
todos perfeitos, todos maravilhosos. Eu não sei, dentro de um molusco deve morar uma combinação de
matemático e arquiteto para fazer aquilo. Porque aquilo é um objeto matemático incrível, aquilo é um objeto
que pode ser descrito por um processo matemático. Então, são lindas, são bonitas, que coisa interessante,
a natureza quer beleza, não quer? A natureza não faz só repolho. A natureza faz flores maravilhosas que
não servem para nada. Ela faz coisas lindas. Aí o Piaget deu um “sarapiteco” nele que ele parou de mexer
com molusco e começou a fazer psicologia de gente. Aí umas pessoas pensam: ele mudou de idéia. Não,
ele continuou a pesquisar moluscos.
Nós somos moluscos, nós somos seres de corpo mole, nós não prestamos para nada. Se nós
ficássemos soltos no mato, morreríamos, porque o nosso corpo não serve para nada. Primeiro que a gente
não ia conseguir caçar, a gente não tem mais capacidade de caçar. A gente ia correr atrás do coelho o
coelho ia sair correndo, nós não pegamos o coelho. Que bicho você vai pegar? Você não reconhece as
plantas, a sua unha não serve para nada. Compara a sua unha com a unha de um gato, a unha do gato é
uma navalha, a nossa unha quebra, não presta para nada. E o nosso pezinho delicado para andar no meio
do mato? Compare esse nosso pé ruim, desajeitado, cheio de calo, com aquele pé maravilhoso de uma
vaca. Que coisa, que casco! A vaca vai, ela não tem medo. Por que inventamos o sapato? Inventamos o
sapato porque não temos casco feito as vacas. Por que?
Gente, isso não é brincadeira, eu estou falando coisa séria. O Marshall McLuhan, que era o
especialista em mídia, ele dizia que todas as invenções, todos os meios que nós inventamos, são extensões
do corpo. A gente inventa os óculos para aumentar os olhos, eu tenho microfone para aumentar a boca,
tenho bicicleta para aumentar o pé, eu tenho faca para melhorar a unha. Entende? É tudo para melhorar o
nosso corpo. Assim, nós construímos a nossa concha. Construtivismo. Para que a gente constrói a concha?
A gente constrói a concha para sobreviver. Então, se a gente tiver que aprender coisa que não é para
sobreviver, o molusco não quer aprender aquilo porque aquilo não tem nada a ver com a sobrevivência.
Então nós queremos, para a nossa concha, que começa com a nossa roupa, depois é a nossa casa que é a
nossa concha, depois é a nossa cidade, é esse grande mundo em que nós vivemos. Nós temos que
construir esse mundo, essa concha para não sermos devorados. E quando estamos envolvidos nessa tarefa
de construir esse mundo nosso, que não é só um mundo de utilidades, de casas, mas é um mundo de
beleza, de arte, de música – então as coisas fazem sentido. Mas, como eu disse a vocês, como é que
começa o jardim? Ele começa no sonho. Pergunto a vocês: as escolas estão fazendo os alunos sonhar?
Deixa eu só dizer uma coisa para vocês: existe um monstro solto na educação chamado vestibular.
O vestibular é uma das maiores estupidezes que eu já vi na minha vida. Se eu for fazer vestibular, eu sou
reprovado. Se o reitor da UNICAMP for fazer vestibular, ele vai ser reprovado. Se todos os professores da
UNICAMP forem fazer vestibular, eles serão reprovados. Se o Fernando Henrique e o Lula e o Garotinho e
o Serra forem fazer vestibular, eles serão reprovados. Se os professores de cursinho forem fazer vestibular,
eles serão reprovados porque cada um será aprovado somente na matéria de sua especialidade. Se
aqueles que preparam o vestibular forem fazer vestibular, serão reprovados, porque eles só passarão na
sua disciplina. Se ninguém passa no vestibular, por que é que os adolescentes têm que passar? Agora
vocês vejam: isso não faz sentido. Por mais que se pergunte você está construindo o que, não está
construindo nada, por uma razão muito simples, que tudo isso vai ser esquecido.
Quando a minha filha estava fazendo vestibular, eu dizia para ela: minha filha, isso é uma estupidez
imensa, mas você tem de passar por isso porque senão você não vai fazer seu curso. Você tem de passar
por isso. E eu ficava estudando com ela para dar estímulo a ela. Estudamos as causas da Guerra dos Cem
Anos. Importante, não é? Depois eu queria conversar com algumas de vocês sobre as causas da Guerra
dos Cem Anos, sobre orações subordinadas, sobre dígrafos, sobre encontros consonantais e cruzamento
de coelho branco com coelho preto, que coisa mais importante. E eu dizia para ela: fique tranqüila porque
um mês depois você terá esquecido tudo isso. E terá esquecido por que? Por causa de deficiência de
memória? Não, porque a memória dela era ótima. É por uma outra razão. Eu vou explicar a vocês por que é
que esquece. Esquece porque a memória é um escorredor de macarrão. E eu vou explicar para vocês por
que a memória é um escorredor de macarrão. O que é um escorredor de macarrão? É uma bacia cheia de
furos. Para que é que a bacia é cheia de furos? Porque a gente, quando vai fazer o macarrão, põe o
macarrão na água fervendo – e o que é que a gente faz, depois de amolecer o macarrão? Pega água e
macarrão e joga no escorredor de macarrão e o que é que acontece? Se livra da água. Então, o objetivo do
escorredor de macarrão é se livrar do inútil para reter o útil, ou o gostoso, tanto faz. A memória é
exatamente assim. Você despeja aquela coisarada na memória, ela, como o escorredor de macarrão,
esquece, deixa passar o que não é útil, o que não é gostoso. Por isso, o esquecimento não é prova de
defeito. É interessante, não sei se vocês sabem disso, que pessoas completamente débeis mentais têm
uma memória perfeita, guardam lista telefônica na cabeça. Então, memória boa não é prova de inteligência,
é prova de uma perturbação mental grave. Fujam das pessoas que guardam todas as coisas na memória.
O que eu quero dizer para vocês é o seguinte: há uma grande tarefa a ser feita, que é muito mais do
que passar em vestibular que não faz sentido. Há uma tarefa que é construir, construir uma casa, construir
um jardim, construir uma cidade, construir um país. E quando as pessoas estão fascinadas por esse sonho,
aí elas vão lutar, elas vão fazer feito na ‘Banda’, elas vão aprender, elas vão lutar, elas vão sofrer para poder
parir. E então as coisas vão acontecer, desde que exista um sonho. E é isso que eu queria dizer para vocês.
Queremos construir um mundo diferente... cidadania, eu não quero cidadania porque tem a ver com cidade.
Jardinagem!
Aliás deixa eu dizer uma coisa para vocês - estou terminando, fiquem tranqüilos. Eu escrevi uma
crônica, que saiu na Folha de São Paulo, sobre política e jardinagem, eu não sei se vocês viram esse
artigo. É um resumo disto que eu estou dizendo aqui. Muita gente citou esse artigo, partidos citaram, e o
prefeito de Campinas, o Toninho, que era um cara muito legal, um dia ele me chamou lá na prefeitura e
disse: Rubem... eu não sou do PT e ele era do PT, e a gente era amigo. Eu não sou de partido nenhum. Eu
não sou de partido nenhum, vou explicar para vocês, porque eu não sou capaz de obedecer palavra de
ordem, eu não consigo obedecer palavra e ordem. Aí ele disse: “Eu estou criando aqui uma escola de
jardineiros”. Porque naquele artigo eu falava que, mais importante do que o jardim, é o jardineiro. Por que se
tiver um jardim sem jardineiro, o jardim acaba. Mas se você tiver um jardineiro sem jardim, o jardim nasce.
Então, o importante não é ter o jardim, é ter o jardineiro, porque se você tiver o jardineiro, você tem o jardim.
“Eu estou criando uma escola de jardineiros e queria que você fosse o”... eu não sei que palavra ele usou,
era uma espécie de ideólogo... que fosse falar sobre essas coisas com o pessoal que estivesse aprendendo
jardinagem. Eu fiquei com tanta alegria... pegar as pessoas lá... e aí ia trabalhar na cidade, criar os
espaços... Aí ele foi assassinado e eu não sei onde foi parar o projeto.
Mas eu fico pensando na função das escolas... é preciso que as escolas semeiem sonhos. Os
sonhos são infinitamente mais importantes do que as pequenas ciências. Porque as ciências estão, para a
construção de uma sociedade, da mesma forma como as ferramentas estão para a construção do jardim. É
preciso de pá, de picareta, de enxada, de esterco, de muda para fazer um jardim? É. Mas se você tiver só
pá, picareta, enxada, você não constrói o jardim. Para você construir o jardim, tem que ter uma coisa
anterior, que é exatamente essa visão da coisa bela que a gente quer construir. Então, eu queria pedir que
você pensassem sobre isso. E, quando vocês estivessem com os seus alunos, esquecessem um
pouquinho, aprendam a esquecer... esquecessem um pouquinho lá das suas matérias, disciplinas ou não
sei o que e gastassem tempo para conversar com as crianças e os adolescentes sobre a possibilidade da
gente transformar o nosso Brasil – talvez seja grande demais... transformar a Baixada, não sei o que, algum
bairro aqui, num grande jardim.
Eu me lembrei agora, olhei para uma amiga ali, que é japonesa, e me lembrei de um filme do
Kurosawa. Eu não me lembro exatamente do nome do filme, eu não sei se é Viver, é um filme do fim da
década de 40, então é um filme que é feito com tecnologia muito primitiva. A história é o seguinte: é um
lugar de burocracia no Japão, todos burocratas lá, aquelas pilhas de processos, carimba processo de cá,
manda para outra repartição, vai para lá, vai para cá, porque burocrata sabe fazer é isso, não é, ficar
passando papel... burocrata é um...
Eu vou contar para vocês o que é o espírito da burocracia. Eu fui pastor protestante de uma igreja
presbiteriana no interior de Minas e, nas igrejas protestantes, tem um negócio que se chama Sociedade
Auxiliadora Feminina, as mulheres fazem coisas interessantes. E parte do programa das mulheres é para
cultivar a comunidade, é um programa de visitas, e elas fazem relatórios de números de visitas e isso conta
ponto. E havia lá uma senhora, Dona Maria Portuguesa, e a Dona Maria Portuguesa era campeã de visitas.
E ela saía para fazer visitas com um papel para anotar as visitas e ela saía e batia na porta da pessoa, a
pessoa atendia, “ó Dona Maria, que felicidade a sua visita, vamos entrar, vamos tomar um café!” E ela
respondia: “Eu não posso entrar, eu estou a fazer visitas”. Fazia um sinal no papel e continuava. A Dona
Maria... sabe qual é o espírito da burocracia, porque na burocracia aquilo que está no relatório existe, se
não está no relatório não existe. Sabe? Na escola é assim. Se estiver no relatório, se você disser dei o
programa e tiver no relatório, deu, ainda que as crianças não tenham aprendido nada. Mas, para a
burocracia, o que existe é o que está lá. Se você morou nos Estados Unidos a vida inteira, criança, sabe
falar inglês fluentemente, mas você chega para a escola que tem curso de inglês, você tem que fazer o
curso de inglês, porque eu sei falar inglês mas a burocracia não sabe disso, não tem a chamada, você não
tem freqüência, se não tem freqüência você não sabe inglês. Então, burocrata é um ser perverso e a nossa
educação é controlada pelos burocratas nos seus escritórios, que determinam as ordens das coisas.
Aliás, eu nem sei por que eu comecei a falar sobre burocrata, o que eu estava falando?... Ah, o
filme! O filme é o seguinte: então tinha um burocrata, o mais velho deles, que era só aquela coisa vai para
lá, vai para cá, e chegou um pessoal de uma comunidade, de um bairro, que tinha um terreno baldio lá e
eles queriam fazer um jardim. Então, abriram logo o processo para fazer o jardim. Aí carimba o processo
daqui, e aí manda para a outra repartição, carimba de cá, a comissão vem, mas já está na outra, carimba de
lá, e vai para lá, e vai para cá. E o pessoal volta, mas o processo está andando e não sai do lugar. Aí, esse
homem começou a sentir dores e vai ao médico e descobre que está com câncer e está com seis meses de
vida. E de repente, ele se deu conta da estupidez de tudo aquilo que ele estava fazendo. E então ele disse:
minha vida terá sentido se eu conseguir que esse processo seja aprovado e que aquele pessoal possa fazer
o jardim. E o resto do filme é a luta dele, de instância em instância, de mesa em mesa, para que o projeto
do jardim seja aprovado. O que transformou a vida desse homem foi a visão de um jardim. Espero que a
visão de um jardim transforme a vida de vocês.
Conheço uma professora de 75 anos, em Manaus, que dirige uma creche. A primeira coisa que as
crianças fazem quando entram para a creche dela: todas elas têm que plantar a semente de uma árvore da
Amazônia. Durante o ano ela têm que cuidar dessa semente, regar a semente. No fim do ano, todas elas
vão juntas plantar as sementes. Isso não custa um tostão furado. Todas as escolas podem fazer isso. Se
nós vamos fazer grandes jardins, nós poderemos fazer os pequenos gestos que indicam a possibilidade de
fazer essas coisas. “No mistério do sem-fim, equilibra-se um planeta. No planeta, um jardim. No jardim, um
canteiro. No canteiro, uma violeta. E na violeta, o dia inteiro, entre o mistério do jardim e o planeta, a asa de
uma borboleta”.
Eu fico comovido com seus aplausos, mas vocês me aplaudem só por uma razão. É porque essas
coisas que eu falei estavam dentro de vocês. Então, que o aplauso seja para vocês.
1
Rubem Alves, mestre em Teologia, Union Theological Seminary, NY, USA; doutor em Filosofia
(Ph.D.), Princeton Theological Seminary, Princeton, NJ, USA; professor titular da Faculdade de Educação
da Unicamp; diretor da Assessoria Especial da Unicamp para Assuntos de Ensino; psicanalista pela
Associação Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Autor de várias crônicas sobre educação, entre elas
Entre a ciência e a sapiência: O dilema da educação.

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