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SOBRE DRÁCULA
E OUTROS VAMPIROS* OU
A IMPOSSIBILIDADE DA VÍTIMA

Valter A. RODRIGUES* *

para Antunes Filho

I. DA VÍTIMA E SEU SENHOR


Vítimas não falam. Não é que lhes falte a voz: sua fala não se efetiva
senão numa débil demanda ao senhor. Demanda que é sempre de reco-
nhecimento, que é sempre um frágil pedido de amor. Pois vítimas não
amam. Falta-lhes a potência de fazerem-se amantes, falta-lhes o movi-
mento, a expressividade que transmitiria ao outro um corpo que se vitaliza
ao se presentar. Por não poderem dar materialidade à sua expressão, espe-

CONTEMPORÂNEAS
ram do outro, suposto seu senhor, essa materialidade. É então desde o
corpo do outro que buscam, passiva e demandantemente, sua via. Daí per-
manecerem em seu desejo de ser amadas, buscando figurar a si mesmas
como objeto desse desejo que sempre lhes falta, que sempre lhes escapa.
Quando falam, sempre entre iguais, isto é, sempre entre outras víti-
mas, jamais perante o senhor, sua fala busca nomear isso que lhes falta, e as

*
Este texto surgiu-me em novembro de 1996, após assistir à peça Drácula e outros vampiros, de
Antunes Filho (montagem pelo CPT, Sesc-Consolação, São Paulo). No dia seguinte à apresentação,
encontrei-me com o polêmico diretor e conversamos durante horas sobre seu trabalho de formação de
atores, que visa, sobretudo, formar seres humanos integrais, plenos em sua expressividade. No decorrrer
dos anos, voltei várias vezes a este texto, fiz pequenas alterações e aproximações a Espinosa, Sade,
Nietzsche, Deleuze, até chegar à forma atual.
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Psicólogo com formação em psicanálise e análise institucional. Professor de Psicologia na Faculdade
Cásper Líbero (SP), nos últimos anos tem se dedicado a pesquisas sobre subjetividade, cultura e midia.
Atua também como editor de livros e revistas acadêmicas. valterodrigues2002@yahoo.com.br
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estratégias que permitiriam, finalmente, sua conquista de um contorno.


90 Entre si, chegam a reconhecer-se fortes, uma força que inevitavelmente
fracassa ao se encontrarem em uma nova presentação ao senhor, com seu
suposto fortalecimento antecipado. O que parecia sólido se desfaz, por
mais pensados tenham sido os gestos, por mais medidas as palavras. Tro-
peçam em si mesmas, fazem de si mesmas sua própria armadilha, a inevi-
tável armadilha de todo aquele que, em sua impotência, só demanda.
Não potencializando seu desejo, a vítima é sempre capturada em
uma sedução, da qual sua demanda é suporte. O que a faz capturável é
uma esperança e uma promessa: a de transmissão, pelo outro, de uma
potência, o que jamais se realiza, salvo como efêmero, salvo como ilusão,
salvo como alegria fugaz. Trata-se, no entanto, menos de uma recusa ou
de uma falha daquele que é demandado (embora isso possa também
acontecer), e mais de uma impossibilidade da vítima. Referida ao se-
nhor, e só a ele, a vítima compõe seus gestos e suas palavras a partir de
um sistema de equivalências das quais só pode reconhecer efeitos, jamais
causas. Obedece, mas não serve. E o que supõe ser ação é, em toda sua
extensão, pura resposta previsível, pura reação. Por não possuir os códi-
gos, os assimila, assim, por espelhamento, por estereotipia, sendo sem-
pre em um exterior que irá buscar, nos códigos a que recorre, sua própria
eficácia. A especularidade é sua sina. E ali onde ela pensa ter realizado
uma conquista, o que encontra é sempre uma anterioridade, uma assi-
milação, a evidência de uma inocente artimanha destinada a fracassar. O
senhor, suposto portador do código, só pode divertir-se e, pacientemen-
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te, demonstrar, com sua ação, a ineficácia da estratégia, que irá reverter a
seu favor, devolvendo a vítima à sua própria condição. O fracasso da
vítima é, assim, sempre a prevalência (mas também a exasperação) do
senhor. É sempre ela que o confirma na posição da qual supunha poder
deslocá-lo, e o exige enquanto tal.
O fracasso da vítima no confronto direto com o senhor produz para
este seu regojizo; um às vezes desconfortável, amargo regojizo. Assim, mesmo
quando não deseja ameaçar, o senhor simula sua presença como uma ame-
aça, exatamente o que a vítima deseja. É assim que o senhor dispensa seu
amor: jogando o jogo da vítima e fazendo-a jogar o seu jogo. Uma cruelda-
de, sem dúvida, às vezes uma amorosa crueldade, que a vítima, por não
reconhecê-la, quase nunca a encontra como amorosa. Nesse jogo o senhor
só faz fortalecer-se, jogando sua vítima no remoinho das repetições que a
cristalizam em sua posição e garantem-lhe sua discursividade reiterativa.
É essa discursividade, que lhe escapa – ela jamais fala, é antes falada –, que
RODRIGUES, Valter A. REVISTA REICHIANA, ANO XI, NO. 11, 2002, P. 89-94

a leva a supor-se conquistando um conhecimento que a retiraria para uma


outra posição, a de senhor. Mas essa posição, efetivamente, ela não a dese-
ja, por supor que perderia a única terra em que pode representar-se en-
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quanto sendo. Ser vítima é seu destino.
Se nao há saída para a vítima, senão sua própria reiteração enquanto
vítima, até a morte, essa não-saída resulta, entretanto, de um duplo equí-
voco. Amarrada definitivamente à figura do senhor, todo seu projeto e seu
movimento apontam para um porvir: um dever-ser, um vir-a-ser que só
pode figurar-se como sua mais cara utopia: tornar-se, um dia, o senhor. É
por projetar-se para um futuro impossível e irrealizável que ela se sujeita.
Faz, enfim, a única coisa que aprendeu a ser, não se apreendendo em seus
próprios devires. Alheia ao acontecimento, não reconhece em si os pró-
prios gestos que espera o outro reconheça. Mais: não reconhece do outro
os gestos, senão enquanto sujeitadores dos seus. Assim, aspira a uma sobe-
rania, sem fazer de si mesma um corpo-língua soberano. Aparentemente
está voltada para o exterior, mas não o faz numa conexão com esse exterior,
mas tão-somente enquanto certeza antecipada daquilo que lhe vem do
exterior. É no medo, é no horror – e na atração – a isso que pode tomá-la,
que ela se dá forma. Este é o gozo da vítima.
Na fragilidade de quem demanda, a vítima, portanto, continua-
mente supõe um senhor. Mas exatamente por não reconhecer senão
suas formas de captura, o que se indiferencia para ela é o próprio se-
nhor. No extremo, o senhor, para a vítima, é, enquanto possibilidade,
todo e qualquer outro.
E quem, afinal, é o senhor? Com certeza, não é um sujeito, um
sujeito específico. Não se trata, para reconhecermos um senhor, de
buscarmos aquele que detém o poder. O verdadeiro senhor, o senhor CONTEMPORÂNEAS
real e efetivo, seria aquele que recusa e ao mesmo tempo joga
ludicamente com o poder, não o que se faz ávido ou escravo dele, pois
o senhor escravo do próprio poder é, também, uma vítima.
O verdadeiro senhor, para ser senhor, deve ser livre. Se ele precisa
do poder que lhe é externo, que lhe vem do reconhecimento que a
vítima faz dele, precisará sempre da vítima para confirmar-se, e acaba
se tornando escravo do que comanda. Um mundo sem vítimas seria
sua derrocada.

II. DA VÍTIMA E SEU VAMPIRO


Por ter se tornado imprescindível à existência da vítima, a figura do
senhor é uma construção da própria vítima. Talvez esteja fundada aí sua
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representação vampírica, como aquele que está para além da morte, que
92 emerge da escuridão e carrega consigo o mal. Longe de ser o maior ter-
ror, é esse mal seu maior pólo de atração. Destruidor, em primeiro lugar,
possibilidade de ultrapassagem dos limites estreitos da vítima, em se-
gundo, ele é figurado como a mais temida e a mais desejada de todas as
forças. O vampiro é a maneira como a vítima representa sua possibilida-
de de liberação, sua possibilidade de consciência, sua paixão de tornar-
se outro. Mas, como toda paixão, ela não lhe é consciente. Emerge de
um fundo que a excede, daí a força da sedução que a captura.
Representação romântica do século XIX (resgatada de arquétipos
anteriores, transculturais), quando o desejo foi poderosamente sub-
mergido sob a ordem disciplinar do universo da razão masculina, em
particular o desejo do outro sexo – que é sempre a mulher – a figura do
vampiro foi convocada a responder ao apelo da feminidade negada,
tanto no homem como na mulher, como aquele que invade, que se
apropria, que destrói ou que transforma sua vítima em seu semelhan-
te, por assimilação da vítima a ele. Transgressor, fazedor da própria lei,
o vampiro abre a possibilidade, no imaginário da vítima, de escapar à
lei do desejo que a conforma. Tornar-se também fazedora da própria
lei, eis o projeto da vítima, seu sonho, sua utopia. Sua perversão.
De uma demanda de amor à própria afirmação de si como aman-
te, pode a vítima realizar esse passe?
Ora, se a vítima não ama, se não tem a potência de amar, poderia
ela construir para si um senhor capaz de amá-la? Como poderia, o que
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não ama, conceber um amante para si? O que a vítima pode conceber,
em sua posição de vítima, é aquele que irá se apropriar dela, de sua vida,
seduzindo-a, não o que irá amá-la. E, por essa limitação, ali onde ela
sonha sua liberdade, acaba por eleger, no outro, seu tirano. Protegendo-
se de se reconhecer enquanto desejante, canta a glória de seu suposto
libertador, delegando a ele seu sentido, sua ação, que só seriam efetivos
se lhe fossem próprios. Eis o risco de todas as revoluções, individuais ou
coletivas, postas no porvir e nas imagens ideais de poder e potência de
um líder: a emergência de microfascismos. A cristalização da vítima, o
aprisionamento do imaginário, não sua liberação.
O senhor sonhado pela vítima nao é, assim, aquele que a afeta e a
contamina com sua potência. Ele está, antes, contaminado dela, de sua
demanda, de sua impossibilidade. Como pensá-lo, então, senão como
tirano, senão como modelizado pelos referentes que a vítima retira do
mundo como ela o vê?
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Por isso, um mundo aderido às figuras e estratos de poder a que os


sujeitos devem aceder – e neles permanecer – para realizarem sua con-
dição de potência é um mundo onde só há vítimas, pois aquele que
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ocupa o lugar do poder, o de senhor, está permanentemente ameaçado
de ter revertida sua posição, perdendo sua potência de ação. Daí sua
aderência ao que pode significá-lo. E a aderência da vítima ao que lhe
permite reconhecê-lo. Essa é a ameaça totalitária dos desejos de ultra-
passagem e de superação do si-mesmo que concebem um pólo de con-
vergência/referência fora de si para sua realização.
Seria ingênuo, entretanto, conceber um mundo sem vítimas,
logo, sem senhores? Ou um outro, em que todos seriam senhores?
Uma comunidade, enfim, em que todos seriam livres? Um mundo de
seres humanos, de homens integrais?
Esse mundo, reiteram as razões e as evidências do mundo, é utópi-
co. Mas é necessário afirmar, sempre e sempre, essa “utopia” como
virtualidade, não do amanhã, mas do agora, pois é nela que afirmamos
nossa potência e encontramos o motor de nossas ações. Paradoxal, tal-
vez, desejante do impossível, por que não? A verdadeira democracia,
um coletivo de múltiplos, afinal, é também uma virtualidade pela qual
e para a qual somos convocados a trabalhar (e não a lutar por). Jamais
um porvir (daí a inutilidade da luta), sempre um devir (daí o trabalho
permanente por sua efetividade).
Um mundo de senhores, um mundo de iguais, cada um em sua
diferença e com a própria potência como seu único poder, para ser
concebido em sua virtualidade, exige um outro olhar, uma outra
positividade, de forma que a apreensão das relações não seja dada só
por oposição ou por complementaridade ou disjunção (senhor/escra- CONTEMPORÂNEAS
vo, ativo/passivo, masculino/feminino, forte/fraco, escuro/luminoso,
bem/mal...), por composição unitária, mas principalemente por sime-
tria, por mutação, por processualidade, por diversidade, por diferen-
ça, por multiplicidade, por conectividade. Uma revolução dos espíri-
tos, cujo motor ético exige, por se significar pelo olhar, uma nova
assunção estética. Um novo coletivo, o da multidão.

III. DA ARTE COMO DESTRUIÇÃO DA VÍTIMA


Dos modos expressivos do contemporâneo, a arte é a que melhor
consegue transformar em positividade o discurso da vítima. Daí, talvez, o
poder de atração que ela exerce para aqueles que, em sua precariedade
perante os poderes, não encontram lugar para sua voz. A essa voz sem
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lugar, desterritorializada, a arte dá língua. Uma língua que, em relação aos


94 poderes, está em posição continuada de extraterritorialidade. O poder,
enquanto garantidor não de uma diferença, mas de uma desigualdade, é
sempre conservador de si mesmo, jamais criador de um campo novo. Con-
trariamente ao que poderíamos supor, o poder não cria língua. Toma para
si uma língua já dada, fazendo dela seu universal, pois, por sua condição
de instituído, ele jamais poderá ser instituinte sem o risco de dissolver-se
enquanto poder. Assim, onde algo pode ser reconhecido como instituído,
manifesta-se o poder em seu caráter conservador. Daí o fracasso das ideo-
logias em seus esforços de criar mundo, fazendo fracassar junto as utopias
nelas e por elas sustentadas.
A arte, ao criar formas de presentação e expressão do mundo, abre,
com sua permanente reinvenção estética, as possibilidades de o imaginá-
rio exercer-se, significar-se, reconhecer-se, criar mundo. Daí que, consis-
tentemente, ela invista a destruição da vítima no homem-artista (que não
é só o criador, mas também o que se coloca perante a obra em afetação com
seus fluxos, suas linhas, seus campos abertos à imaginação criadora, ao
próprio devir de uma subjetividade-artista). Como nos indica Deleuze,
uma continuada guerra de guerrilha, não contra os poderes que nos são
externos (contra eles o artista é impotente no confronto, embora possa ser
lúdico nas negociações), mas contra os poderes em si mesmo.

POST-SCRIPTUM
Sade, o antropófago, o coprófago, o grande excretor, o insurreto, talvez
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tenha sido, no século XVIII francês, o que mais radicalmente abraçou o ideal
da democracia como uma revolução dos espíritos. A insurreição permanente
proposta por ele, que o diferencia de todos os seus contemporâneos, se efetiva,
em seus textos, como uma radical revolução estética: fazer as palavras dizerem
o insuportável de ser dito, levá-las além do limite da representação (fazer
delas puras agenciadoras dos corpos e suas intensidades), torná-las absolutas
em sua imanência, como pura presentação. Daí ser ele, como bem o indica
Barthes, em primeiro lugar, um criador de língua. Explodir e implodir a
língua, articulá-la ali onde ela resiste a qualquer articulação, levá-la à sua
expressividade heterogênica, encaminhá-la em seu processo mais profunda-
mente destrutivo-criador, cometer com ela violentações e assassinatos impossí-
veis. Levar, enfim, à destruição do estado de vítima, pela língua. Os sobrevi-
ventes de Silling, não serão eles o novo homem possível de emergir dessa des-
truição? Buñuel, o mais sadeano dos surrealistas, no final de L’age d’or,
acreditou que sim.

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