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SOBRE DRÁCULA
E OUTROS VAMPIROS* OU
A IMPOSSIBILIDADE DA VÍTIMA
Valter A. RODRIGUES* *
CONTEMPORÂNEAS
ram do outro, suposto seu senhor, essa materialidade. É então desde o
corpo do outro que buscam, passiva e demandantemente, sua via. Daí per-
manecerem em seu desejo de ser amadas, buscando figurar a si mesmas
como objeto desse desejo que sempre lhes falta, que sempre lhes escapa.
Quando falam, sempre entre iguais, isto é, sempre entre outras víti-
mas, jamais perante o senhor, sua fala busca nomear isso que lhes falta, e as
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Este texto surgiu-me em novembro de 1996, após assistir à peça Drácula e outros vampiros, de
Antunes Filho (montagem pelo CPT, Sesc-Consolação, São Paulo). No dia seguinte à apresentação,
encontrei-me com o polêmico diretor e conversamos durante horas sobre seu trabalho de formação de
atores, que visa, sobretudo, formar seres humanos integrais, plenos em sua expressividade. No decorrrer
dos anos, voltei várias vezes a este texto, fiz pequenas alterações e aproximações a Espinosa, Sade,
Nietzsche, Deleuze, até chegar à forma atual.
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Psicólogo com formação em psicanálise e análise institucional. Professor de Psicologia na Faculdade
Cásper Líbero (SP), nos últimos anos tem se dedicado a pesquisas sobre subjetividade, cultura e midia.
Atua também como editor de livros e revistas acadêmicas. valterodrigues2002@yahoo.com.br
SOBRE DRÁCULA E OUTROS VAMPIROS OU A IMPOSSIBILIDADE DA VÍTIMA
te, demonstrar, com sua ação, a ineficácia da estratégia, que irá reverter a
seu favor, devolvendo a vítima à sua própria condição. O fracasso da
vítima é, assim, sempre a prevalência (mas também a exasperação) do
senhor. É sempre ela que o confirma na posição da qual supunha poder
deslocá-lo, e o exige enquanto tal.
O fracasso da vítima no confronto direto com o senhor produz para
este seu regojizo; um às vezes desconfortável, amargo regojizo. Assim, mesmo
quando não deseja ameaçar, o senhor simula sua presença como uma ame-
aça, exatamente o que a vítima deseja. É assim que o senhor dispensa seu
amor: jogando o jogo da vítima e fazendo-a jogar o seu jogo. Uma cruelda-
de, sem dúvida, às vezes uma amorosa crueldade, que a vítima, por não
reconhecê-la, quase nunca a encontra como amorosa. Nesse jogo o senhor
só faz fortalecer-se, jogando sua vítima no remoinho das repetições que a
cristalizam em sua posição e garantem-lhe sua discursividade reiterativa.
É essa discursividade, que lhe escapa – ela jamais fala, é antes falada –, que
RODRIGUES, Valter A. REVISTA REICHIANA, ANO XI, NO. 11, 2002, P. 89-94
representação vampírica, como aquele que está para além da morte, que
92 emerge da escuridão e carrega consigo o mal. Longe de ser o maior ter-
ror, é esse mal seu maior pólo de atração. Destruidor, em primeiro lugar,
possibilidade de ultrapassagem dos limites estreitos da vítima, em se-
gundo, ele é figurado como a mais temida e a mais desejada de todas as
forças. O vampiro é a maneira como a vítima representa sua possibilida-
de de liberação, sua possibilidade de consciência, sua paixão de tornar-
se outro. Mas, como toda paixão, ela não lhe é consciente. Emerge de
um fundo que a excede, daí a força da sedução que a captura.
Representação romântica do século XIX (resgatada de arquétipos
anteriores, transculturais), quando o desejo foi poderosamente sub-
mergido sob a ordem disciplinar do universo da razão masculina, em
particular o desejo do outro sexo – que é sempre a mulher – a figura do
vampiro foi convocada a responder ao apelo da feminidade negada,
tanto no homem como na mulher, como aquele que invade, que se
apropria, que destrói ou que transforma sua vítima em seu semelhan-
te, por assimilação da vítima a ele. Transgressor, fazedor da própria lei,
o vampiro abre a possibilidade, no imaginário da vítima, de escapar à
lei do desejo que a conforma. Tornar-se também fazedora da própria
lei, eis o projeto da vítima, seu sonho, sua utopia. Sua perversão.
De uma demanda de amor à própria afirmação de si como aman-
te, pode a vítima realizar esse passe?
Ora, se a vítima não ama, se não tem a potência de amar, poderia
ela construir para si um senhor capaz de amá-la? Como poderia, o que
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não ama, conceber um amante para si? O que a vítima pode conceber,
em sua posição de vítima, é aquele que irá se apropriar dela, de sua vida,
seduzindo-a, não o que irá amá-la. E, por essa limitação, ali onde ela
sonha sua liberdade, acaba por eleger, no outro, seu tirano. Protegendo-
se de se reconhecer enquanto desejante, canta a glória de seu suposto
libertador, delegando a ele seu sentido, sua ação, que só seriam efetivos
se lhe fossem próprios. Eis o risco de todas as revoluções, individuais ou
coletivas, postas no porvir e nas imagens ideais de poder e potência de
um líder: a emergência de microfascismos. A cristalização da vítima, o
aprisionamento do imaginário, não sua liberação.
O senhor sonhado pela vítima nao é, assim, aquele que a afeta e a
contamina com sua potência. Ele está, antes, contaminado dela, de sua
demanda, de sua impossibilidade. Como pensá-lo, então, senão como
tirano, senão como modelizado pelos referentes que a vítima retira do
mundo como ela o vê?
RODRIGUES, Valter A. REVISTA REICHIANA, ANO XI, NO. 11, 2002, P. 89-94
POST-SCRIPTUM
Sade, o antropófago, o coprófago, o grande excretor, o insurreto, talvez
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tenha sido, no século XVIII francês, o que mais radicalmente abraçou o ideal
da democracia como uma revolução dos espíritos. A insurreição permanente
proposta por ele, que o diferencia de todos os seus contemporâneos, se efetiva,
em seus textos, como uma radical revolução estética: fazer as palavras dizerem
o insuportável de ser dito, levá-las além do limite da representação (fazer
delas puras agenciadoras dos corpos e suas intensidades), torná-las absolutas
em sua imanência, como pura presentação. Daí ser ele, como bem o indica
Barthes, em primeiro lugar, um criador de língua. Explodir e implodir a
língua, articulá-la ali onde ela resiste a qualquer articulação, levá-la à sua
expressividade heterogênica, encaminhá-la em seu processo mais profunda-
mente destrutivo-criador, cometer com ela violentações e assassinatos impossí-
veis. Levar, enfim, à destruição do estado de vítima, pela língua. Os sobrevi-
ventes de Silling, não serão eles o novo homem possível de emergir dessa des-
truição? Buñuel, o mais sadeano dos surrealistas, no final de L’age d’or,
acreditou que sim.