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BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Tradução de Liz Silva. Lisboa: Edições 70, 2009.

Primeiro Livro

As Últimas Invasões

Capítulo I

Muçulmanos e Húngaros

I. A Europa invadida e cercada

“’Vedes desabar sobre vós a cólera do Senhor (...). Só há cidades despovoadas,


mosteiros em ruínas ou incendiados, campos reduzidos ao abandono (...). Por toda parte
o poderoso oprime o fraco e os homens são semelhantes aos peixes do mar que
indistintamente se devoram uns aos outros’”. Assim falavam, em 909, os bispos da
província de Reims, reunidos em Trosly. A literatura dos séculos IX e X, as cartas, as
deliberações dos concílios, estão cheias destas lamentações. Tenhamos em
consideração, na medida em que o desejarmos, a ênfase e o pessimismo natural dos
oradores sagrados. (...) o feudalismo medieval nasceu dessas no seio de uma época
infinitamente perturbada (...) nasceu dessas mesmas perturbações. (...) Formada alguns
séculos antes, no escaldante cadinho das invasões germânicas, a nova civilização
ocidental (...) aparecia como uma cidadela sitiada (...) mais do que semi-invadida. E por
três lados ao mesmo tempo: ao sul, pelos fiéis do Islão, Árabes ou arabizados; a leste,
pelos Húngaros, ao norte, pelos Escandinavos.

II. Os Muçulmanos

Dos inimigos que acabamos de enumerar, o Islão era decerto o menos perigoso.
Não que devamos apressar-nos a falar em decadência, a seu respeito. Durante largo
tempo, nem a Gália nem a Itália tiveram algo a oferecer, entre as suas pobres cidades,
que se aproximasse do esplendor de Bagdad ou de Córdova. O mundo muçulmano e o
mundo bizantino exerceram sobre o ocidente, até ao século XII, uma verdadeira
hegemonia econômica: as únicas moedas de ouro que circulavam ainda nas nossas
regiões saíam das oficinas gregas ou árabes, ou então – tal como muitas outras moedas
de prata imitavam-lhes as cunhagens. E se os séculos VIII e IX viram quebrar-se, para
sempre, a unidade do grande califado, os diversos Estados erguidos dos seus destroços
continuavam a ser potências temíveis. Mas daí em diante, tratava-se menos de invasões
propriamente ditas do que de guerras de fronteiras. Deixemos o Oriente, onde os
Basileis das dinastias amoriana e mecedónica (828-1056) penosa e valentemente
procederam à reconquista da Ásia Menor. As sociedades ocidentais apenas se chocavam
com os Estados islâmicos em duas frentes”.

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p. 22: “desde longa data que os árabes foram marinheiros. Dos seus redutos de
África, de Espanha e sobretudo das Baleares, os seus corsários percorria o Mediterrâneo
Ocidental. No entanto, nessas águas que poucos navios percorriam, o ofício de pirata
propriamente dito era pouco rendoso. No domínio do mar, os Sarracenos, como os
Escandinavos na mesma época, viam sobretudo o meio para atingirem o litoral e ái
praticarem frutuosas incursões. Desde 842 que subiam o Ródano até perto de Arles, e
pilhavam as duas margens na sua passagem. A Camargue servia-lhes então de base
normal. Mas em breve um acaso iria proporcionar-lhes, com um ponto de partida mais
seguro, a possibilidade de alargarem consideravelmente as suas pilhagens.

Em data que não podemos precisar, (...) cerca de 890, um pequeno navio
sarraceno, vindo da Espanha, foi lançado pelos ventos contra a costa provençal,
próximo da povoação actual de Aint-Tropez. Os seus ocupantes ocultaram-se durante o
dia e, depois, quando caiu a noite, massacraram os habitantes de uma aldeia vizinha.
Montanhosa e arborizada – chamava-se então de terra dos freixos ou <<Freixedo>>
(Freine)1 – esta parcela de terreno era favorável à defesa”.

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Segundo livro

As condições de vida e a atmosfera mental

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Capítulo II – maneiras de sentir e pensar

1. O homem perante a natureza e a duração

1 É o nome cuja lembrança é conservada no nome actual da ladeia de La Garde-Freinet. Mas, situada à
beira-mar, a cidadela dos Sarracenos não se situava em La Garde, que fica no interior.
p. 97: “O homem das duas idades feudais, mais do que nós, estava próximo de
uma natureza que, por sua vez, estava muito menos domesticada e suave. A paisagem
rural (...). Os animais ferozes (...) os ursos, os lobos (...) vagueavam por todos os lugares
desertos e (...) até nos campos cultivados (...) a caça era um meio de defesa (...) e
fornecia (...) alimentação (...). A apanha dos frutos (...) e a recolha do mel continuavam
(...) como nos primeiros tempos da humanidade (...) havia por detrás de toda a vida
social um fundo de primitivismo, de submissão aos elementos indisciplináveis, de
contrastes físicos que não podiam ser atenuados (...). Como pensar (...) que ele não
tenha contribuído para a rudeza daquelas?

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p. 98: “entre tantas mortes prematuras, muitas eram devidas às grandes


epidemias que frequentemente se abatiam sobre uma humanidade mal apetrechada para
as combater; entre os pobres, além do mais, eram provocadas pela fome. Juntamente
com as violências diárias, estas catástrofes davam à existência como que um sabor de
precariedade perpétua (...). A higiene (...) medíocre, contribuía também para este
nervosismo. Nos nossos dias houve a preocupação de demonstrar que a sociedade
senhorial não desconhecia os banhos (...) entre os pobres, a subalimentação e, entre os
ricos, os excessos de comida (...) como podem negligenciar os efeitos da espantosa
sensibilidade às manifestações (...) sobrenaturais? Ela tornava os espíritos constante e
quase doentiamente atentos a toda a espécie de presságios, de sonhos, de alucinações.
Esta particularidade era sobretudo intensa nos meios monásticos, onde as macerações e
o recalcamento acrescentavam a sua influência à de uma reflexão profissionalmente
centrada sobre os problemas do invisível. Nenhum psicanalista perscrutou alguma vez
os seus sonhos com amis ardor que os monges dos séculos X ou XI (...)”.

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