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26/11/2018 A sociologia pragmática em três gestos – ou como caminhar rumo à uma sociologia dos problemas íntimos, por Diogo

or Diogo Silva Corrêa | Blog do Soc…

Blog do Sociofilo

BLOG DO SOCIOFILO
BLOG DE TEORIA SOCIAL, FILOSOFIA & CIÊNCIAS SOCIAIS

A sociologia pragmática em três gestos – ou como


caminhar rumo à uma sociologia dos problemas íntimos,
por Diogo Silva Corrêa

novembro 22, 2018 por sociofilo

Fonte: http://mechanoid.tumblr.com/post/33029853180
https://blogdosociofilo.com/2018/11/22/a-sociologia-pragmatica-em-tres-gestos-ou-como-caminhar-rumo-a-uma-sociologia-dos-problemas-intimos-por-diogo-… 1/10
26/11/2018 A sociologia pragmática em três gestos – ou como caminhar rumo à uma sociologia dos problemas íntimos, por Diogo Silva Corrêa | Blog do Soc…

Por Diogo Silva Corrêa

Em 1973, Gilles Deleuze publicou um texto intitulado “Em que se pode reconhecer o estruturalismo?
[“A quoi reconnaît-on le structuralisme?”]. Nele, o filósofo francês fazia um esforço de descrição dos
elementos constitutivos das abordagens estruturalistas em voga naquele momento. Neste texto,
fazendo um gesto análogo, proponho esboçar uma breve e sintética exposição que visa dar uma
resposta a seguinte pergunta: “em que se pode reconhecer a sociologia pragmática?” [“A quoi
reconnaît-on la sociologie pragmatique”]. Antes de avançar, deixo claro que esse exercício de exposição
teórica da sociologia pragmática tem menos um objetivo escolar de apresentação de suas questões
fundamentais e mais um escopo pessoal de exibição do que concebo como os passos, atos ou gestos
necessários para se produzir uma boa teoria social hoje. Além disso, considero esses três movimentos
como essenciais para o que, no final, defino como uma sociologia dos problemas íntimos.

A partir de um estreito diálogo que estabeleci nos últimos anos com autores dos principais centros
franceses nos quais a sociologia pragmática foi forjada[1](ainda que não tenha sido por todos os
autores pertencentes a esses laboratórios de pesquisa reivindicado), pretendo explicitar e apresentar
três gestos fundamentais.

O primeiro é um gesto metafísico de inversão da sociologia clássica durkheimiana. O objetivo aqui é


conceber uma ideia ou imagem do social (ou da sociedade) que seja a mais abrangente e
desdeterminante possível pela nossa imaginação. Em outros termos, advogo aqui pela ideia de que o
social deve ser definido pelo “princípio de liberalidade” (Garcia, 2010) ou simplesmente por um lema
particular, a saber, o de “deixar ser” [laisser être]. Trata-se, aqui, de defender, em um primeiro
momento, um conceito de social que não exclua nada a priori, e que, portanto, esteja aberto para se
pensar as mais heterogêneas e complexas composições do que convencionamos a chamar de
sociedade.

O segundo é um gesto epistemológico de delegação aos atores (ou actantes) pesquisados dos critérios
de definição do que lhes é pertinente, justo, real, verdadeiro, autêntico, etc. Esse gesto refere-se a uma
máxima abertura à experiência concreta daqueles a que se deseja pesquisar e conhecer. Pretende-se,
com esse segundo gesto, não apenas colocar a experiência dos atores como o ideal regulativo do
conhecimento do pesquisador, mas fazer da experiência dos próprios atores pesquisados um
dispositivo de permanente desestabilização dos conceitos e conhecimentos prévios da sociologia,
antropologia e filosofia – isto é, do arcabouço conceitual inicial do pesquisador.

O terceiro, por fim, é um gesto metodológico de seleção e enquadramento de situações ou momentos


indeterminados para aqueles que se deseja conhecer. Trata-se aqui, neste terceiro gesto, do que se
pode chamar de uma heurística das indeterminações, dos momentos críticos, das situações
problemáticas, das controvérsias, dos affaires, etc. Esse enquadramento metodológico busca focar nos
momentos, situações ou ocasiões em que o que é constitutivo, fundamental, elementar e essencial
para os atores pesquisados se torna explícito para eles próprios – e, por conseguinte, mediante o
trabalho desses últimos para restabelecer um novo equilíbrio, para o próprio pesquisador. Este gesto
importa em razão de sua dimensão explicitativa, pois é nesses aludidos momentos que as pessoas, de
modo geral, tendem a evidenciar o que lhes é fundamental e que, em situações habituais e rotineiras,
costuma ficar em estado tácito.

O primeiro gesto: a inversão metafísica

Comecemos pelo primeiro ponto: qual seria essa inversão da sociologia clássica durkheimiana? Ela se
daria em quais termos?

Como toda obra clássica que se preze, há uma multiplicidade de entradas e abordagens possíveis da
sociologia de Émile Durkheim. O que importa, para os meus propósitos, é enfatizar o modo como o
pai fundador da sociologia francesa traz para o universo sociológico aquilo que na filosofia ficou
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conhecido, a partir de Santo Anselmo, como “argumento ontológico” (ver Crahay, 1949). Se diversas
abordagens que fazem a associação entre a sociologia de Durkheim e a filosofia costumam sublinhar
como o autor francês sociologiza o sujeito transcendental kantiano (o que está expresso na introdução
e na conclusão do livro As formas elementares da vida religiosa), aqui quero chamar a atenção para o
modo como ele introduz na sociologia o argumento ontológico.

O que seria, contudo, o argumento ontológico? Na filosofia, ele pode ser resumido a partir da
seguinte questão: de qual maneira o pensamento pode encontrar em si mesmo os recursos suficientes
para chegar a ideia de que há alguma coisa ou um ser que seguramente existe? A resposta a essa
questão consistiu na busca por um ser que é de tal modo grande (Santo Anselmo), perfeito
(Descartes) e necessário (Leibniz), que mesmo que se pudesse pelo pensamento negá-lo, ele impor-se-
ia por conta própria. Qual seria esse objeto privilegiado? Este seria o Deus dos filósofos clássicos. Ele
foi tomado como o ser superior cuja potência é de tal modo forte que, mesmo quando negado, ele
tanto se imporia por si mesmo quanto englobaria aquilo que a ele se opõe.

Como, então, Durkheim transpõe o argumento ontológico para a sociologia? Ora, não basta trazer à
baila a afirmação, expressa pelo próprio sociólogo francês em As formas elementares da vida religiosa, de
que, para ele, a sociedade e Deus são uma coisa só. O ponto fundamental é a manutenção da
estrutura do raciocínio do argumento ontológico: Durkheim, na mesma obra, afirma que a sociedade
é um ser de tal modo potente, geral, exterior e coercitivo (para fazer aqui menção às características
que ele descreve em As regras do método sociológicocomointrínsecas ao fato social), que mesmo que
uma representação individual possa negar a sua existência, ela se imporá por si mesma. Toda a
estrutura do argumento de Durkheim consiste na busca por um ser que seguramente existe, uma
espécie de incondicionado da vida social. Isso é expresso sinteticamente na seguinte passagem:

“De uma maneira geral, não há dúvida de que uma sociedade tem tudo o que é preciso para
despertar nos espíritos, pela simples ação que exerce sobre eles, a sensação do divino; pois ela é
para seus membros o que um deus é para seus fiéis. Com efeito, um deus é antes de tudo um ser que o
homem concebe, sob certos aspectos, como superior a si mesmo, e do qual acredita depender(…) a sociedade
provoca em nós a sensação de uma perpétua dependência. Por ter uma natureza que lhe é
própria, diferente da nossa natureza de indivíduo, ela persegue fins que lhe são igualmente
específicos, mas, como não pode atingi-los, a não ser por intermédio de nós, reclama
imperiosamente a nossa colaboração. Exige que, esquecidos de nossos interesses, façamo-nos seus
servidores e submete-nos a todo tipo de aborrecimentos, privações e sacrifícios, sem os quais a
vida social seria impossível. É assim que a todo instante somos obrigados a sujeitar-nos a regras de
conduta e de pensamento que não fizemos nem quisemos, e que, inclusive, são às vezes contrárias às nossas
inclinações e nossos instintos mais fundamentais” (Durkheim, 2003, p. 211).

Como se pode ver, para Durkheim a sociedade é suficientemente potente para “despertar, pela
simples ação que exerce sobre [seus membros], a sensação do divino”, provocar em seus membros
“um sentimento de dependência” e sujeita-los “a regras de conduta e de pensamento” que
contrariam, por vezes, as suas “inclinações e [seus] instintos mais fundamentais”. Em suma, ela é um
ser sui generis cuja força maior e superior ao de suas partes é capaz de determinar a ação dos
indivíduos que a ela pertencem.

Na sociologia posterior àquela de Durkheim, duas são as formas de inversão desse argumento. Uma
primeira via, sobre a qual não me deterei, pode ser denominada de via moral. Quem a produz é
Pierre Bourdieu. Em sua sociologia, a sociedade, como Durkheim, continua a ser uma espécie de
equivalente funcional de Deus, mas não sem que se opere um deslocamento importante: Bourdieu a
ela acrescenta a ideia sartreana, muito bem explorada por Gabriel Peters (2012), de que “o inferno são
os outros”. Ao introduzir no coração da ordem social uma lógica agonística de reconhecimento,
Bourdieu faz, por meio de uma série de conceitos vinculados ao que Paul Ricoeur chamou de
“hermenêutica da suspeita”, tais como violência simbólica e dominação, o deus durkheimiano virar,
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na verdade, uma espécie de diabo ardiloso e enganador. Assim como em Durkheim, Bourdieu
sustenta que todos estamos submetidos à lógica do mundo social. Todavia, ele institui no coração do
social a lógica da arbitrariedade cultural. 

Para além dessa inversão moral, há uma outra inversão, que é a que me interessa aqui. Esta é aquela
que considero própria ao primeiro gesto da sociologia pragmática. Nela, não se trata mais para o
sociólogo de definir, como em Durkheim, o ser mais forte, mais potente e maior, que se impõe àquilo
que pode inclusive tentar negá-lo. Em vez disso, trata-se de fazer uma verdadeira inversão deste
princípio e definir um sentido do social mais fraco, mais desubstancializado e, por isso mesmo, mais
plástico possível. Quem melhor exprime em termos teóricos essa inversão é Bruno Latour (2012).

Em Reagregando o social, o autor afirma que o social não é uma substância, mas apenas “um tipo de
conexão” (2012, p. 23), “um movimento peculiar de reassociação e reagreação” (2012, p. 25). Não se
trata aqui mais de pensar o social (substantivo), nem em alguma coisa de social (adjetivo), mas em
tudo o que se dá, digamos assim, (as)sociadamente (como advérbio). É neste sentido que Latour
defende uma sociologia. “associal”, uma sociologia das associações.

Segundo esta sociologia, a tarefa do sociólogo não é mais explicitar, como em Durkheim, uma
instância aristocrática última capaz de hierarquizar (ou de se impor a) todos os outros seres, mas
instituir uma primeira instância maximamente democrática capaz de colocar todos os seres, em
princípio, em pé de igualdade. No lugar do aristocratismo calcado na potência máxima do social,
Latour advoga por uma democracia ontológica baseada na plasticidade radical das associações.

O jogo da teoria social passar a ser, seguindo o que o filósofo Tristan Garcia (2010) chamou de
princípio de liberalidade, estabelecer um conceito de social menos discriminante, menos
determinante e mais inclusivo possível – isto é, em que nada, absolutamente nada, pode ser dele
excluído a priori. Ao invés do social que se explica apenas pelo social e exclui o universo psicológico e
biológico, propõe-se uma teoria social maximamente democrática e inclusiva, que se pode chamar de
uma teoria social do “deixar ser” [laisser être]. Nesta acepção do termo, não há um reino específico do
social (humano, intersubjetivo, como na sociologia de Durkheim ou de Bourdieu), mas é social toda e
qualquer forma possível de associação. Essa é razão pela qual há, na perspectiva latouriana, a
incorporação no universo social de qualquer que seja a entidade ou actante, seja ele Deus (mas “d”eus
aqui como um actante como outro) ou qualquer outra entidade como o micróbio, o capitalismo, o
azul do céu, o pedaço de papel, a Amazônia, o Oceano pacífico, a asa da xícara, o ethos protestante ou
o antropoceno.

Este é o primeiro princípio que dá esteio à sociologia pragmática: a substituição do hiper potente
conceito clássico de sociedade durkheimiano pelo social como despontencializada e
dessubstancializada profusão de associações entre termos heterogêneos.Não é por acaso que Latour,
na obra acima aludida, faz a recuperação de Gabriel Tarde, para quem há sociedade de moléculas,
amebas, animais e humanos. O que importa não é mais a boa delimitação e exposição do grande ser, a
Sociedade (e tudo que dele deriva), mas do conceito do social mais fraco, menos potente e, por isso
mesmo, mais inclusivo possível. Repito: um social calcado pelo princípio do “deixar ser”.

O segundo gesto: a delegação contra a ruptura

No entanto, uma vez explicitado esse primeiro gesto, um problema se revela logo de cara.
Entendemos bem que, enquanto sociólogos, devemos a prioriestipular um conceito do social o mais
desdeterminado e desdeterminante possível, levando o princípio de liberalidade à sua máxima
potência. Por outro lado,é evidente que os próprios atores que pesquisamos, a todo momento, não
param de definir, redefinir, determinar e transformar o que lhes parece pertinente, justo, real,

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verdadeiro, autêntico, etc. A desdeterminação de partidado sociólogo deve, portanto, corresponder à


atenção radical e a um ímpeto descritivo e explicitativo das determinações, definições, criterizações
produzidas a todo momento pelos próprios atores que ele deseja conhecer.

No entanto, uma óbvia questão se coloca de imediato: como isso pode ser realizado? Eis aqui a
importância do segundo gesto fundamental “em que se pode reconhecer um sociólogo pragmático”,
que é o gesto de delegação. Em que ele consiste? Primeiro, como estabelecido pelo primeiro princípio,
no ato de o sociólogo colocar entre parênteses todos os critérios de definição do que é, para ele,
pertinente, justo, real, verdadeiro, etc. Isso apenas para, em seguida, delegar essa tarefa aos atores que
ele pesquisa.

Quem recentemente melhor definiu o gesto de delegação foi Gildas Salmon (2016: 41-60), em seu
artigo a respeito da “virada ontológica” ocorrida na antropologia. Embora o foco de sua discussão
tenha se dirigido ao discurso antropológico, o primeiro exemplo de delegação a que o autor faz
referência é, não por acaso, encontrado na sociologia pragmática de Luc Boltanski e Laurent
Thévenot:

“A primeira instância que me vem à mente no contexto francês é o que ocorreu na sociologia em
torno de Luc Boltanski, com a substituição de uma ‘sociologia crítica’ por uma ‘sociologia da
crítica’. Esse caso ilustra claramente o que está implicado na noção de delegação. Quando uma
operação torna-se excessivamente onerosa para o sociólogo ou o antropólogo continuar
perseguindo de uma maneira exclusiva ou soberana, ele a delega aos atores, dando à pesquisa um
novo ímpeto: ao invés de dar uma interpretação crítica das práticas dos atores, o escopo torna-se
agora descrever como estes últimos criticam e, a partir disso, torna-se também formalizar os
modelos a que os atores se referem em seus atos de denúncia.” (Salmon, 2016: 42)

De fato, ao fazerem essa passagem de uma sociologia que arroga para si o monopólio da produção da
crítica socialpara uma sociologia que toma as operações críticas dos atores como objeto de análise,
Luc Boltanski e Laurent Thévenot (1991) realizam esse movimento de delegação no plano axiológico.
Eles passam, assim, do paradigma que Bourdieu, Chamboredon e Passeron tão bem definiram como
“ruptura epistemologica” para aquele da delegação. No livro De la justification, Boltanski e Thévenot
abrem mão de definir o mundo social com base em um princípio único de justiça ou de poder e, em
vez disso, delegam aos próprios atores estudados esse poder de definição do que seria o justo.

Por meio dessa pragmática dos julgamentos ordinários, eles formalizam uma pluralidade de
concepções de justo imanentes às críticas e justificações expressas pelos próprios atores pesquisados
(ver Corrêa e de Castro, 2016). Esse movimento, que fique claro, pressupõe um ato anterior por parte
dos sociólogos: o de que estes coloquem suas pressuposições normativas entre parênteses para, com
isso, se abrirem ao senso de justiça daqueles a quem desejam conhecer. No caso particular da
mencionada obra, tratou-se de uma delegação específica, a saber, uma delegação aos atores dos
critérios axiológicos necessários para composição de um acordo e um mundo comum.

É curioso que Gildas Salmon verse, no artigo já mencionado, sobre a delegação ontológica, mas não
avance em exemplos existentes a esse respeito na própria sociologia francesa. Ele não indica, na
sociologia pragmática subsequente àquela de Boltanski, os autores que deslocam o gesto delegativo
na direção da ontologia – seus exemplos, após a menção ao sociólogo francês, passam a ficar restritos
à antropologia, mais precisamente a autores como Lévi-Strauss, Marilin Strathern e Eduardo Viveiros
de Castro. No entanto, na própria sociologia pragmática, notadamente naquela realizada por Francis
Chateauraynaud, um ex-aluno e orientando de Luc Boltanski, pode ser encontrada essa passagem de
uma delegação axiológica para uma efetiva delegação ontológica.

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A importância do livro Experts et faussaires, escrito por Chateauraynaud em co-autoria com Christian
Bessy (1995), consiste justamente em manter o gesto delegativo, desde que operando uma transição
do universo axiológico da justiça para o universo ontológico da realidade. No mencionado livro, eles
delegaram aos atores pesquisados a capacidade de produzir a própria definição da realidade. Trata-
se, aqui, da retomada, pelo raciocínio delegativo, da questão que Erving Goffman, em seu famoso
livro Os quadros da experiência social [Frame Analysis], explorou ao comentar o artigo de William James,
“The Perception of Reality”:

“Em lugar de interrogar-se sobre o que é a realidade, ele [William James] deu ao assunto uma
guinada fenomenológica subversiva, colocando em itálico a seguinte pergunta: em que
circunstâncias pensamos que as coisas são reais? O importante acerca da realidade, segundo ele, é a
impressão que temos de que seu caráter real, em contraposição ao sentimento que temos de que
algumas coisas não têm esta qualidade. Alguém pode, então, se perguntar em que condições se
produz esse sentimento, e esta pergunta está ligada a um problema pequeno e administrável, que
tem a ver com a câmera, e não com aquilo que a câmera fotografa” (Goffman, 2012: p. 24)

É justamente esta a questão que Chateauraynaud e Bessy desenvolvem no livro Experts e Faussaires.
Neste livro, eles colocam entre parênteses a sua própria concepção do que seria a realidade para
buscar os critérios utilizados pelos atores para definir fenomenologicamente o seu próprio regime de
distribuição do real e do falso. Com efeito, eles esforçam-se para descrever a economia da percepção
mobilizada pelos atores quando estes buscam não tanto produzir um acordo justo, como Boltanski e
Thévenot em De la justification, mas uma realidade sensível compartilhada e comum.

É bem verdade que os exemplos poderiam ser aumentados a partir de outros autores da sociologia
pragmática, mas esses citados já deixam claro o que chamo de gesto epistemológico de delegação. Em
oposição à perspectiva da ruptura epistemológica com o senso comum, ele consiste em dizer que o
conhecimento do mundo pertinente – ou do que é pertinente no mundo – não é e nem pode ser
aquele previamente estabelecido pelo sociólogo, mas sim mostrado em atopelos próprios atores. Neste
sentido, ele é um princípio de abertura radical às experiências(no sentido pragmatista de Dewey) dos
atores, fazendo com que todo o sistema conceitual do sociólogo, por mais bem elaborado que seja,
não deixe de se reformular permanentemente à luz dos atores que o pesquisador deseja conhecer.

O terceiro gesto: a heurística das indeterminações

Uma vez esse segundo passo dado, cabe a seguinte pergunta: quais as situações, momentos,
circunstâncias em que os atores apresentam “em ato” o que lhes é pertinente, justo, real, autêntico
etc.? Eis onde entra a importância do terceiro gesto. Este é o gesto metodológico de seleção ou de
enquadramento dos momentos críticos ou situações indeterminadas. Dos três, ele é o único
autenticamente pragmatistada sociologia pragmática. Trata-se de uma aposta metodológica calcada no
que se pode chamar de heurística dos momentos críticos ou das situações indeterminadas. Esta
consiste em encarar os momentos críticos, situações problemáticas e indeterminadas, mas também as
controvérsias e os affaires, como ocasiões nas quais os próprios atores tendem a explicitar –
transformando ou ratificando – os elementos que lhes são fundamentais, constitutivos e pertinentes.

A ideia, ainda que nem sempre por vias diretas, encontra ressonância na tradição pragmatista de John
Dewey, sobretudo na forma como este autor define a noção de “investigação”. Segundo Dewey, a
investigação “éa transformação controlada ou dirigida de uma situação indeterminada em uma
situação que é de tal modo determinada em suas distinções e relações constitutivas que ela converte
os elementos da situação original em um todo unificado” (1998, p. 171). Trata-se de um processo de
experimentação por meio do qual as pessoas, diante de uma indeterminação, agem com o objetivo de
alcançar novamente uma nova situação habitual e rotineira. Assim Albert Ogien e Louis Queré a
descrevem:

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“O ponto de partida é a existência de uma situação conturbada, instável ou incerta, ou ainda


obscura, confusa, contraditória, conflituosa; em suma, uma situação cujos elementos constitutivos
não se mantêm em conjunto ou estão em conflito uns com os outros, o que entrava o
prosseguimento da conduta. O ponto de chegada é a organização de uma conduta ajustada: a
investigação se realiza de fato quando uma situação integrada ou ordenada pode ser estabelecida,
isto é, quando os elementos de confusão e de conflito puderam ser reduzidos ou eliminados de
modo que uma orientação de ação possa ser definida. Mas, mesmo em suas fórmulas mais
reflexivas, a investigação permanece em continuidade com o tipo de exploração não cognitiva que
preside a organização sequencial do comportamento.” (2008, p. 67)

A diferença com relação a Dewey é que enquanto este último faz uma filosofia das formas elementares da
investigação, os sociólogos pragmáticos, por meio desse terceiro gesto, produzem uma sociologia das
investigações dos atores. O princípio é simples:ao olhar para as situações de crise, problemáticas,
indeterminadas (não para os sociólogos, mas para os próprios atores pesquisados), e analisar o
trabalho que estes últimos empreendem para reconduzi-las a um novo equilíbrio estável ou a um
novo regime habitual e rotineiro, o sociólogo tem mais facilmente acesso aos critérios fundamentais
que presidem as ações dos atores que ele busca conhecer – e que, em estado habitual e rotineiro,
permanecem em estado tácito (taken for granted, como diria Alfred Schutz; ou seen, but unnoticed, como
diria Harold Garfinkel).

Esta é a estratégia metodológica, para ficar nos autores e obras já mencionados da constelação
pragmática, utilizada tanto por Boltanski e Thévenot em De la justification, quanto por Bessy e
Chateauraynaud, em Experts et Faussaires. Em De la justification, os autores buscam capturar as
pressuposições normativas dos atores não tanto olhando para situações comuns e habituais, mas sim
para o que eles chamam de “momentos críticos”, isto é, situações de disputa nas quais os próprios
atores tentam convergir na direção de um novo acordo justo. Boltanski e Thévenot encaram tais
momentos, definidos como inerentes a um “regime de justificação”, como aqueles nos quais os atores
são instados a produzir uma explicitação axiológica. A aposta dos sociólogos franceses é que quando
submetidos a um imperativo de justificação os próprios atores tornam visíveis as pressuposições
normativas que, em situações rotineiras e habituais (o que eles chamam de regime de rotina [justesse])
permanecem em estado tácito.

Em Experts et Faussaires, Bessy e Chateauraynaud não fazem nada muito diferente: os autores olham
para as situações nas quais a aparência e a realidade para os próprios atores pesquisados se acham
indiscerníveis, de modo, com isso, a descrever a economia da percepção tornada visível pelo trabalho
destes últimos quando intentam criar uma realidade sensível comum.

É preciso enfatizar que essa heurística dos momentos críticos se desdobra em várias pesquisas na
constelação pragmática da sociologia: seja aquela do mapeamento de controvérsias de Bruno Latour
(2016) ou da balística sociológica de Francis Chateauraynaud (2011), seja a da recuperação de Daniel
Cefai (2017) da tradição pragmatista de Dewey e da ênfase que esta confere às situações
problemáticas; seja, ainda, a da relevância que Boltanski e Clavérie (2007) atribuem ao affaire: todas
compartilham uma sensibilidade em torno da heurística das situações que apresentam uma
disrupção de alguma ordem para os atores.

Isso dito, temos os três gestos “em que podemos reconhecer a sociologia pragmática”: um primeiro
gesto metafísico de inversão da sociologia clássica; um segundo um gesto epistemológico de
delegação aos atores dos critérios de definição do que é pertinente; por fim, um gesto metodológico
de enquadramento das situações problemáticas, momentos críticos, etc.

Agora, para encerrar, faz-se preciso dizer em que medida esses gestos estruturam teoricamente as
perguntas fundamentais do que tenho definido e defendido, inspirado por essa discussão mais geral,
como sociologia dos problemas íntimos. Desenvolvida na última parte da minha tese de doutorado
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(ver Corrêa, 2015), esta perspectiva busca tornar operacionalizáveis esses três aludidos gestos não
tanto para pensar a sociedade, o coletivo, mas o self. Neste aspecto, devo enfatizar a influência de
uma série de autores que escapam à constelação da sociologia pragmática da sociologia francesa,
como Margaret Archer (2003) e Bernard Lahire (2005). A ideia que ambos apregoam de mudança de
escala na sociologia, notadamente de fazer, para retomar o belo texto de Frédéric Vandenberghe
(2018), uma sociologia em escala individual, pareceu e ainda parece-me vital para o avanço da
sociologia em objetos que são comumente deixados de lado.

Num registro que pretendeu contribuir para as pesquisas do que Francis Chateauraynaud tem
chamado de pragmática da interioridade, meu ponto tem sido, na verdade, ser capaz de responder ao
desafio de mudar de escala de análise para o indivíduo ou self mantendo-me fiel aos três princípios
acima desenvolvidos. Aqui, termino apenas com as perguntas centrais que se apresentaram e ainda se
apresentam como desafios para se pensar, a partir da influência da sociologia pragmática, a relação
entre sociologia e self.

Como estabelecer uma agenda de pesquisa e levar a sério não tanto sobre o senso de justiça ou de
realidade dos atores, mas o seu senso de interioridade? Isso sem recair tanto no mito da
interioridade quanto o mito da exterioridade, mas pensar a interioridade como instância
pragmática mobilizada pelos atores. Elemento este que está presente tanto em falas prosaicas dos
atores, quanto na filosofia de autores clássicos da tradição filosófica, como é o caso da clássica
passagem de Jean-Jacques Rousseau a respeito do sentimento de existência:

“Sua alma, que nada agita, entrega-se unicamente ao sentimento da existência atualsem qualquer
ideia do futuro, ainda que próximo, e seus projetos, limitados como suas vistas, dificilmente se
estendem até o fim do dia.” (Rousseau, 1985, p. 53)

Como estabelecer, em um primeiro momento, um conceito mais inclusivo possível,


desdeterminante e desdeterminado, de self?
Como delegar aos próprios atores pesquisados os critérios de definição de si e de sua
interioridade?
Quais seriam os momentos privilegiados em que os atores explicitam ou tendem a o que lhes é
pertinente do ponto de vista de si [soi], de sua identidade e de sua interioridade? Situações-limite?
Conversão religiosa? Crises identitáras? Mudanças radicais de vida?

Referências bibliográficas

ARCHER, Margaret. Structure, Agency and the Internal Conversation. Cambridge: Cambridge
University Press, 2003. 

BOLTANSKI, Luc. L’amour et la justice comme compétences: trois essais de sociologie de l’action. Paris:
Métailié, 1990.

________________; THÉVENOT, Laurent. De la justification. Paris, Gallimard, 1991.

________________; CLAVÉRIE, Elisabeth. Du Monde Social en tant que Scène d’un Procès. In: L.,
Boltanski et alli (eds.), Affaires, Scandales et Grandes Causes. Paris: Stock, 2007.

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26/11/2018 A sociologia pragmática em três gestos – ou como caminhar rumo à uma sociologia dos problemas íntimos, por Diogo Silva Corrêa | Blog do Soc…

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[1]Cabe aqui mencionar, ao menos, os três grupos pelos quais transitei na École des Hautes Études en
Sciences Sociales [EHESS]: Groupe de Sociologie Politique et Morale [GSPM],  Groupe de Sociologie
Pragmatique et Réflexive [GSPR], Centre d’Études des Mouvements Sociaux [CEMS], Laboratoire
d’Études sur la Reflexivité [LIER].

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